quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Natureza Social da URSS - Leon Trotsky

Que é a URSS?, extraído do livro:  A revolução traída - Leon Trotsky, Ed. Sundermann.
AS RELAÇÕES SOCIAIS

A propriedade estatal dos meios de produção na indústria é quase universal. Na agricultura esta prevalece absolutamente somente nas sovkhozes1, que não abrangem mais de 10% das terras semeadas. Nos kolkhozes2, a propriedade cooperativa ou das associações, combina-se em proporções variadas com as propriedades do Estado e com as individuais. A terra, ainda que juridicamente pertencente ao Estado, foi transferida em “usufruto perpétuo” aos kolkhozes, pouco diferindo da propriedade das associações. Os tratores e as máquinas mais elaboradas pertencem ao Estado; os equipamentos menores pertencem aos coletivos. 
Cada membro dos kolkhozes tem também seu cultivo individual. E finalmente, cerca de 10% dos camponeses permanecem como fazendeiros individuais. Segundo o censo de 1934, 28,1% da população eram operários e empregados das instituições e empreendimentos do Estado. Os operários das indústrias e da construção civil eram cerca de 7,5 milhões em 1935, sem contar suas famílias. Os kolkhozes e os ofícios organizados em cooperativas constituíam, quando do censo, 45,9% da população. Os estudantes, os soldados do Exército Vermelho, os pensionistas e outras categorias diretamente dependentes do Estado, 3,4%. No total, 74% da população encontrava-se ligada ao “setor socialista” e dispunha de 95,8% do capital do país. Os camponeses isolados e os artesãos representavam ainda, em 1934, 22,5% da população mas só possuíam pouco mais de 4% do capital nacional. 
Não há novo censo desde 1934 e o próximo acontecerá em 1937. Indubitavelmente, contudo, nos últimos dois anos, o setor privado da economia diminuiu ainda mais, em proveito do “setor socialista”. Os camponeses individuais e os artesãos constituem hoje, segundo os órgãos oficiais, cerca de 10% da população, isto é, 17 milhões de pessoas; a sua importância econômica é inferior à importância numérica. Andreyev, secretário do Comitê Central, anunciou em abril de 1936: “A importância relativa da produção socialista no nosso país, em 1936, deve ser de 98,5%, de modo que só caberá ao “setor não-socialista” uns insignificantes 1,5%”. Estes números otimistas parecem, à primeira vista, provar irrefutavelmente a vitória “definitiva e irrevogável” do socialismo. 
Mas ai daquele que, por detrás da aritmética, não veja a realidade social! Esses mesmos números são um pouco forçados. Basta indicar que a propriedade privada dos membros dos kolkhozes está incluída no “setor socialista”. No entanto, este não é o x do problema. A enorme e indiscutível superioridade estatística das formas estatais e coletivas da economia, por mais importante que venha a ser no futuro, não afasta um outro problema não menos sério: o do poder das tendências burguesas no próprio interior do “setor socialista”, e não só na agricultura mas também na indústria. A melhoria do nível de vida é suficiente para provocar um crescimento das necessidades mas não basta, de forma alguma, para satisfaze-las. O próprio dinamismo do surto econômico comporta um certo despertar dos apetites pequeno burgueses, e isto não só entre os camponeses e os representantes do trabalho “intelectual” mas também na aristocracia operária. A simples oposição dos proprietários individuais aos kolkhozes e dos artesãos à indústria estatal não dá a menor idéia do poder explosivo desses apetites que impregnam toda a economia do país e se exprimem, falando sumariamente, na tendência de todos e de cada um em dar o menos possível à sociedade e receber dela o máximo possível. 
A solução dos aspectos do consumo e da competição pela sobrevivência exige, pelo menos, tanta energia e tanto engenho como a construção socialista no sentido próprio do termo; daí, em parte, o fraco rendimento do trabalho social. Enquanto o Estado luta permanentemente contra a ação molecular das forças centrífugas, os meios dirigentes constituem o lugar principal da acumulação privada, lícita e ilícita.
Mascaradas pelas novas normas jurídicas, as tendências pequeno burguesas não se deixam apreender facilmente pela estatística. Mas sua atual predominância na vida econômica é provada antes de mais nada pela própria burocracia “socialista”, essa gritante contradictio in adjecto3, monstruosa sempre crescente distorção social, e que por sua vez se torna causa das febres malignas da sociedade. 
A nova Constituição − toda baseada, como veremos, na identificação entre a burocracia e o Estado e entre o Estado e o povo − diz: “... A propriedade do Estado, ou seja, a de todo o povo ...”. Sofisma fundamental da teoria oficial! É verdade que os marxistas, a começar pelo próprio Marx, empregaram; no que diz respeito ao Estado operário, os termos de propriedade “estatal”, “nacional”, “socialista”, como simples sinônimos. A uma grande escala histórica, esse modo de falar não apresentava inconvenientes; contudo, se tornou a origem de erros e mentiras grosseiros quando aplicados aos primeiros e ainda não assegurados estágios do desenvolvimento de uma nova sociedade, ainda mais isolada, e economicamente atrasada em relação aos países capitalistas. 
A propriedade privada, para se tornar social, tem que passar inevitavelmente pela estatização, tal como a larva, para se tornar borboleta, tem de passar por crisálida. Mas a crisálida não é uma borboleta. Milhares de 3 crisálidas morrem sem chegarem a ser borboletas. A propriedade do Estado só se torna a de “todo o povo” na medida em que desapareçam os privilégios e as distinções sociais e, conseqüentemente, o Estado perca a sua razão de ser. Em outras palavras: a propriedade do Estado se torna propriedade socialista à medida que vai deixando de ser propriedade do Estado. E o contrario é verdade: quanto mais o Estado soviético se elevar acima do povo, quanto mais se opuser a ele, como guardião da propriedade do povo e dilapidador desta propriedade, mais obviamente testemunha contra o caráter socialista da propriedade estatal. “Encontramo-nos ainda longe da completa abolição das classes”, reconhece a imprensa oficial quando se refere às diferenças que subsistem entre a cidade e o campo, entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Esta confissão, puramente acadêmica, oferece a vantagem de justificar pelo trabalho “intelectual” os rendimentos da burocracia. Os “amigos” − para os quais Platão é mais querido que a verdade − limitam-se igualmente a admitir, em estilo acadêmico, a existência de vestígios da velha desigualdade. Mas os vestígios não são suficientes para explicar a realidade soviética. Se a diferença entre a cidade e o campo se atenuou em certos aspectos, aprofundou-se em outros, devido ao rápido crescimento das cidades e da cultura urbana, isto é do conforto para a minoria urbana. A distância social entre o trabalho manual e intelectual aumentou no decurso dos últimos anos em vez de diminuir, a despeito da formação de quadros científicos provenientes do povo. As barreiras de castas, milenares, que isolam o homem por todos os lados − o urbano civilizado e o mujik4 inculto, o mago da ciência e o operário − não só são mantidas sob formas mais ou menos enfraquecidas mas renascem consideravelmente e estão assumindo um caráter mais e mais desafiador. 
A famosa palavra de ordem: “Os quadros decidem tudo” caracteriza, muito mais abertamente do que Stalin desejaria, a sociedade soviética. Os quadros são a essência dos órgãos de dominação e comando. O culto aos “quadros” significa, antes de mais nada, o culto à burocracia, ao oficialismo, a uma aristo cracia técnica. Na formação e distribuição dos quadros, como em outros campos, o regime soviético ainda tem que resolver problemas que a burguesia há muito tempo já resolveu em seus países. Mas como os quadros soviéticos aparecem sob a bandeira do socialismo exigem honras quase divina e salários sempre elevados. De maneira que a formação de “quadros socialistas” é acompanhada por um renascimento da desigualdade burguesa. 
Pode parecer, do ponto de vista da propriedade dos meios de produção, que não existe diferença alguma entre o marechal e a doméstica, o diretor de truste e o operário, o filho do comissário do povo e o jovem órfão. Contudo, uns ocupam belos apartamentos, dispõem de casas de veraneio em diversos recantos do país, têm os melhores automóveis e, desde há muito, não sabem como se engraxa seus pares de sapatos; os outros vivem em barracos de madeira onde freqüentemente não existem divisórias, a fome lhes é familiar e, se não engraxam seus sapatos, é porque andam descalços. Para o burocrata estas diferenças são insignificantes; para o operário, não sem razão, são essenciais. 
“Teóricos” superficiais poderão se consolar dizendo que a distribuição dos bens é um fator secundário em relação à produção. A dialética das influências recíprocas conserva, todavia, a sua força total. O destino dos meios nacionalizados de produção será, a longo prazo, decidido pela evolução das diferentes condições individuais, para um lado ou para o outro. 

Se um navio é declarado propriedade coletiva, mantendo-se os passageiros divididos em primeira, segunda e terceira classes, é perfeitamente compreensível que a diferença entre as condições reais acabará por ter, aos olhos dos passageiros de terceira, uma importância muito maior do que a mudança jurídica da propriedade. 
Os passageiros de primeira, pelo contrário, explicarão de boa vontade, entre um café e um cigarro, que a propriedade coletiva é tudo, nada sendo, em comparação, o conforto das cabinas. E o antagonismo crescente destas situações pode explodir esta coletividade instável. 
A imprensa soviética relatou com satisfação o fato de uma criança, ao visitar o Jardim Zoológico de Moscou, depois de ter perguntado a quem pertencia o elefante, e ter como resposta: “Ao Estado”, ter feito o seguinte comentário: “Então, um pequeno pedaço também é meu”. Se, na verdade, fosse dividido o elefante, os bons pedaços iriam para os escolhidos, alguns felizes apreciariam a perna do paquiderme e os mais numerosos não conheceriam mais do que as tripas e os restos. As crianças lesadas se encontrariam, com toda razão, pouco inclinadas a confundir a sua propriedade com a do Estado. Os jovens de rua só têm como seu o que vão roubando ao Estado. O rapazinho do Jardim Zoológico era, muito provavelmente, filho de um personagem influente habituado a proceder de acordo coma idéia de que “o Estado sou eu”. 
Se traduzirmos, para nos exprimirmos mais claramente, as relações socialistas em termos da Bolsa, diremos que os cidadãos poderiam ser os acionistas de uma empresa que possui as riquezas do país. O caráter coletivo da propriedade supõe uma repartição “igualitária” das ações e, portanto, o direito a dividendos iguais para todos os “acionistas”. Os cidadãos, contudo, participam na empresa nacional, quer como acionistas, quer como produtores. Na fase inferior do comunismo, a que chamamos socialismo, a remuneração do trabalho se faz, ainda, segundo as normas burguesas, isto é, de acordo com a qualificação do trabalho, a sua intensidade etc. A renda teórica de um cidadão é formada, pois, por duas partes, A + B o dividendo mais o salário. Quanto mais desenvolvida for a técnica, mais aperfeiçoada será a organização econômica, maior será a importância do fator A em relação ao B e menor será a influência exercida sobre a condição material pelas diferenças individuais do trabalho. O fato das diferenças de salários serem, na União Soviética, não menores, mas maiores que nos países capitalistas, nos leva a concluir que as ações são desigualmente repartidas e que os rendimentos dos cidadãos comportam, ao mesmo tempo que um salário desigual, partes desiguais de dividendos. Enquanto o operário não especializado recebe apenas B, o pagamento mínimo que sob condições similares receberia também em uma empresa capitalista, o stakhanovista5 e o burocrata recebem 2 A + B ou 3 A + B, e assim por diante, podendo B, por outro lado, tornar-se também 2 B, 3 B etc. A diferença dos rendimentos é determinada, em outras palavras, não pela simples diferença do rendimento individual, mas pela apropriação mascarada do trabalho de outros. A minoria privilegiada dos acionistas vive às custas da maioria desprovida. 
Supondo que o operário não especializado soviético recebe mais do que receberia, mantendo-se o mesmo nível técnico e cultural em uma empresa capitalista, isto é, que, apesar de tudo, ele é um pequeno acionista, o seu salário deve ser considerado com A + B. Os salários das melhores categorias serão expressos pela fórmula 3 A + 2 B, 10 A + 15 B etc. o que significará que o operário terá uma ação, o stakhanovista terá três e o especialista dez; e que, além dos seus salários, no sentido próprio do termo, se encontram na proporção de 1 para 2 e de 1 para 15. Os hinos à sagrada propriedade socialista são, nestas condições, bem mais convenientes para o diretor de fábrica ou para o stakhanovista do que para a massa dos operários ou para o camponês dos kolkhozes. As massas trabalhadoras, no entanto, são a imensa maioria da sociedade. Eram eles, e não a nova aristocracia, que o socialismo tinha em mente. 
“O operário não é, no nosso país, um escravo assalariado, um vendedor de trabalhomercadoria. É um trabalhador livre” (Pravda). Neste momento, esta eloqüente fórmula só pode ser brincadeira. A passagem das fábricas para o Estado só mudou a situação jurídica do operário; de fato, ele vive na necessidade, trabalhando um certo número de horas por um dado salário. As esperanças que o operário tinha antes no partido e nos sindicatos, se transferiu depois da revolução para o Estado criado por ele. Mas o trabalho útil deste Estado foi limitado pela insuficiência da técnica e da cultura. Para melhorar uma e outra, o novo Estado recorreu aos velhos métodos: a pressão sobre os músculos e os nervos dos trabalhadores. Criou-se um corpo de condutores de escravos. A gestão da indústria se tornou extremamente burocrática. Os operários perderam toda a influência sobre a direção das fábricas. Trabalhando por produção, vivendo em difíceis condições materiais, sem liberdade de se deslocar, sofrendo na própria fábrica uma terrível repressão policial, o operário dificilmente poderá se sentir um “trabalhador livre”. A burocracia é para ele um chefe, o Estado um patrão. O trabalho livre é incompatível com a existência do Estado burocrático. 
Tudo o que acabamos de expor aplica-se aos campos com algumas correções necessárias. De acordo com teoria oficial a propriedade dos kolkhozes é uma forma especial de propriedade socialista. O Pravda escreve que “os kolkhozes são na essência comparáveis a empresas do Estado e conseqüentemente socialistas”. E acrescenta imediatamente que a garantia do desenvolvimento socialista da agricultura é a “administração dos kolkhozes pelo Partido Bolchevique”. Isto é, nos mandar da economia para a política. Ou seja, as relações socialistas ainda não estão incorporadas nas relações cotidianas entre os homens, mas dependem do coração benevolente das autoridades. Os trabalhadores farão bem se desconfiarem desse coração. Na verdade, a economia dos kolkhozes se encontra a meio caminho entre a agricultura individual e a economia estatal e as tendências pequeno burguesas entre eles no seio dos kolkhozes são cada vez mais fortalecidas pelo rápido crescimento dos lotes individuais e economias pessoais dos camponeses. (...) 
Quando a nova Constituição anuncia que a União Soviética atingiu “a abolição da exploração do homem pelo homem”, não está falando a verdade. A nova diferenciação social criou as condições para o renascimento da exploração sob as formas mais bárbaras, que são as da compra do homem para serviço pessoal de outro. A criadagem não figura nas listas do censo e está compreendida evidentemente na rubrica “trabalhadores”. Há, no entanto, muitas questões sobre isso: o cidadão soviético tem empregados domésticos e quais? (faxineira, cozinheira, babá, governanta, motorista); tem automóvel para seu serviço pessoal? de quantos quartos dispõe? etc. Nem uma palavra sobre o total dos rendimentos! Se entrasse em vigor a regra soviética que priva de direitos políticos quem quer que explore o trabalho de outro, veríamos que os principais dirigentes da sociedade soviética estão fora da lei! Felizmente, eles estabeleceram a igualdade de direitos ... entre o patrão e os criados! Duas tendências opostas estão crescendo no interior do regime soviético: ao contrario do capitalismo decadente, ele desenvolve as forças produtivas, está preparando as bases econômicas do socialismo, e levando ao extremo, para beneficio dos altos dirigentes, as normas cada vez mais burguesas de distribuição, está preparando a restauração capitalista. A contradição entre as formas de propriedade e as normas de distribuição não pode crescer indefinidamente. Ou as normas burguesas se estenderão, de uma ou de outra maneira, aos meios de produção, ou as normas de distribuição terão de corresponder as normas do sistema de propriedade socialista. 
A burocracia foge da exposição desta alternativa. Em todos os lados, na imprensa, nos discursos, na estatística, nos romances dos escritores e nos versos dos poetas, e finalmente no texto da nova Constituição, a burocracia emprega as abstrações do vocabulário socialista para encobrir as relações sociais nas cidades e nos campos. É por isto que a ideologia oficial é falsa, medíocre e artificial.
(...)


A questão do caráter social da União Soviética não foi ainda resolvida pela História

Para melhor compreender o caráter  social da União Soviética atual, vamos trabalhar duas hipóteses sobre seu futuro. Suponhamos que a burocracia soviética seja derrubada do poder por um partido revolucionário reunindo todas as qualidades do velho bolchevismo e, além disso, enriquecido pela experiência mundial dos últimos anos. Este partido começaria pelo restabelecimento da democracia nos sindicatos e nos Soviets. Poderia e deveria restabelecer a liberdade dos partidos soviéticos. Com as massas e à frente delas, procederia a um expurgo impiedoso nos aparatos do Estado. Aboliria a hierarquia, as condecorações e todos os tipos de privilégios. 
Limitaria a desigualdade no pagamento do trabalho às necessidades da vida econômica e ao aparato estatal. Daria à juventude a possibilidade de pensar livremente, de aprender, de criticar e crescer. Introduziria profundas modificações na distribuição da renda nacional, de acordo com a vontade das massas operárias e camponesas. Não teria de recorrer a medidas revolucionárias na relação de propriedade. Continuaria e desenvolveria a fundo a experiência da economia planificada. Após a revolução política – isto é, após a derrubada da burocracia − o proletariado teria que introduzir na economia uma série de reformas muito importantes, mas não teria de fazer uma nova revolução social. 
Se – para trabalhar a segunda hipótese − um Partido Burguês derrubasse a casta soviética dirigente, encontraria não poucos servidores entre os burocratas de hoje, os técnicos, os diretores, os secretários do partido, os dirigentes privilegiados em geral. Uma depuração do aparato do Estado, é claro, também seria necessária neste caso. Mas a restauração burguesa teria, com certeza, de afastar menos gente do que um partido revolucionário. A principal tarefa do novo poder seria restabelecer a propriedade privada dos meios de produção. 
Deveria, antes de mais nada, criar condições para o desenvolvimento de fazendeiros ricos a partir dos kolkhozes pobres e transformar os kolkhozes ricos em cooperativas de produção do tipo burguês, ou em sociedades por ações. Na indústria, a desnacionalização começaria pelas empresas da indústria leve e da alimentação. O plano se reduziria, nos primeiros tempos, a compromissos entre o poder e as “corporações”, isto é, os capitães da indústria soviética, os seus proprietários potenciais, os antigos proprietários emigrados e os capitalistas estrangeiros. Embora a burocracia soviética tivesse feito muito pela restauração burguesa, o novo regime seria obrigado a cumprir, no terreno da propriedade e do modo de gestão, não uma reforma mas uma verdadeira revolução. 

Vamos assumir uma terceira variante. Admitamos, contudo, que nem o partido revolucionário nem o partido contra-revolucionário tomam o poder. A burocracia continua à frente do estado. Mesmo nestas condições as relações sociais não ficariam congeladas. Não podemos contar com que a burocracia renunciará voluntária e pacificamente em favor da igualdade socialista. Como se sabe,  apesar dos graves inconvenientes desta operação, ela restabeleceu as patentes e as condecorações; será, pois, inevitavelmente necessário que procure apoio nas relações de propriedade. Alguém pode argumentar que pouco importa ao grande burocrata qual a forma de propriedade, desde que garantidos os seus rendimentos. Mas isto é ignorar a instabilidade dos direitos do burocrata e o problema de seus descendentes. O novo culto à família não caiu do céu. Os privilégios valem apenas metade, se eles não podem ser transferidos aos filhos de cada um. Ora, o direito de herança é inseparável do direito de propriedade. Não basta ser diretor de truste, é necessário ser acionista. A vitória da burocracia neste setor decisivo faria dela uma nova classe possuidora. Inversamente, a vitória do proletariado sobre a burocracia marcaria o renascimento da revolução socialista. A terceira hipótese nos conduz, assim, às duas primeiras, pelas quais tínhamos começado para maior clareza e simplicidade. 
Definir o regime soviético como transitório, ou intermediário, é abandonar as categorias sociais acabadas como o capitalismo (incluído o “capitalismo de Estado”) e o socialismo. Mas esta definição é em si absolutamente insuficiente e é capaz de sugerir a falsa idéia de que a única transição possível para o regime soviético atual é o socialismo. Na verdade uma volta ao capitalismo é totalmente possível. Uma definição mais completa seria, necessariamente, mais complicada e ponderada. A União Soviética é uma sociedade contraditória no meio do caminho entre o capitalismo e o socialismo, na qual: a) as forças produtivas são ainda insuficientes para dar à propriedade de Estado um caráter socialista; b) a propensão para a acumulação primitiva, nascida da necessidade, manifestase através de todos os poros da economia planificada; c) as normas de distribuição que preservam a natureza burguesa são a base da nova diferenciação social; d) o desenvolvimento econômico, melhorando lentamente a condição dos trabalhadores, contribui para a rápida formação de uma camada de privilegiados; e) a burocracia, explorando os antagonismos sociais, tornou-se uma casta incontrolável, estranha ao socialismo; f) a revolução social, traída pelo partido governante, ainda existe nas relações de propriedade e na consciência dos trabalhadores; g) a evolução das contradições acumuladas pode tanto levar ao socialismo como de volta para o capitalismo; h) no rumo do capitalismo a contra-revolução deverá quebrar a resistência dos operários; i) no caminho para o socialismo, os trabalhadores terão que derrubar a burocracia. Em última instancia, a questão será resolvida pela luta das duas forças sociais, tanto na arena nacional como na internacional. 
Naturalmente que os doutrinários não se satisfarão com uma definição tão vaga; desejariam fórmulas categóricas; sim, sim e não, não. As questões de sociologia seriam bem mais simples se os fenômenos sociais tivessem sempre um caráter acabado. Mas nada é mais perigoso do que eliminar, no desenvolvimento de uma precisão lógica, os elementos que contrariam os nossos esquemas e que, amanhã, os podem refutar. Em nossa análise, tentamos evitar violentar o dinamismo de uma formação social que não tem precedentes e que não conhece nada de análogo. A tarefa científica e também política, não é dar uma definição acabada a um processo inacabado, mas analisar todos seus estágios, separar as tendências progressistas das reacionárias, avaliar suas relações mutuas, prever as múltiplas variantes do desenvolvimento posterior e encontrar nesta previsão um ponto de apoio para a ação. 

Notas
1) Termo russo que designa as fazendas estatais soviéticas que empregavam trabalhadores rurais assalariados.
2) Termo russo que designa as cooperativas agrícolas indepe dentes do Estado, que vendiam a ele sua produção agrícola.
3) Contradictio in adjecto, do latim, contradição na afirmação
4) Designa o camponês russo em geral.
5) O termo se refere a stakhanov, operário mineiro que batia recorde de produtividade e foi convertido em exemplo pela burocracia do trabalhador russo.