terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Teologia da Libertação: luta de classes dentro da Igreja - Michael Lowy

(grifo meu)

a) Um movimento social classista
Marx e Engels acreditavam que o papel subversivo da religião era um fenômeno do passado, que não tinha mais significado na época da luta de classes moderna. Esta previsão foi mais ou menos (com exceções importantes) confirmada pela história durante um século. Mas, para compreender o que se passa há duas décadas na América Latina – do mesmo modo que nas Filipinas e mesmo, numa menor medida, aqui e ali na Europa – deve-se incorporar as intuições de Bloch (e Goldmann) sobre as potencialidades utópicas da tradição religiosa judaico-cristã.
O que é a teologia da libertação? Por que ela inquieta não só o Vaticano, mas também o Pentágono, não apenas os cardeais do Santo-Ofício mas também os conselheiros de Reagan? Bem, evidentemente porque o assunto ultrapassa amplamente o quadro dos debates teológicos tradicionais: trata-se, para os partidários da ordem estabelecida, clerical e social, de um desafio prático ao seu poder.
A teologia da libertação é, como escreveu Leonardo Boff, reflexo e reflexão sobre uma práxis pré-existente. Ou melhor, ela é expressão/legitimação de um vasto movimento social, que surgiu no início dos anos 60, bem antes dos novos escritos teológicos, e que incluiu setores significativos da Igreja (bispos, padres, ordens religiosas), movimentos religiosos leigos (Ação Católica, Juventude Universitária Cristã, Juventude Operária Cristã), pastorais populares (pastoral operária, pastoral urbana, pastoral da terra) e Comunidades Eclesiais de Base. Sem este movimento, que pode-se chamar cristianismo pela libertação, não se pode compreender toda a riqueza dos fenômenos sociais tão importantes como o desenvolvimento da revolução na América Central, ou a emergência do novo movimento operário no Brasil.
Este movimento (do qual examinaremos aqui apenas a versão católica, embora exista também no meio protestante) é vigorosamente contestado pelo Vaticano e pelo aparelho hierárquico da Igreja na América Latina, o CELAM (Conferência dos Bispos da América Latina), dirigido pelo bispo colombiano Alfonso Lopez Trujillo. Pode-se então falar de luta de classes no seio da Igreja? Sim, na medida em que certas posições correspondem tendencialmente aos interesses das classes dominantes ou aos dos oprimidos. Mas não se deve esquecer que os bispos, jesuítas ou padres que animam a Igreja dos pobres não são eles próprios pobres. Seu alinhamento com a causa dos explorados resulta de motivações espirituais e morais, inspirados pela sua cultura religiosa, sua fé cristã e sua tradição católica. Por outro lado, esta dimensão moral e religiosa é um componente essencial da motivação de milhares de militantes cristãos de sindicatos, associações de bairro, comunidades de base e de frentes revolucionárias: os próprios pobres tomam consciência de sua condição e se organizam para lutar enquanto cristãos, pertencendo a uma Igreja e animados por uma fé. Considerar esta fé e esta identidade religiosa, profundamente enraizada na cultura popular, como um simples "envelope" ou "máscara" de interesses econômicos e sociais é o tipo de abordagem reducionista que impede a compreensão da riqueza e da autenticidade do movimento real.
A teologia da libertação é o produto espiritual - o termo "produção espiritual", como se sabe, vem de Marx (Ideologia Alemã) - deste movimento social, mas ao legitimá-lo, oferecendo-lhe uma doutrina religiosa coerente, ela tem contribuído enormemente para sua extensão e fortalecimento. Mesmo se a corrente cristã/libertadora permanece minoritária, e a maioria da Igreja latino-americana permanece moderada ou conservadora (com bastiões reacionários notórios na Colômbia e Argentina) sua influência está longe de ser negligenciável, notadamente no Peru e no Brasil, onde o episcopado, apesar das pressões insistentes no Vaticano, recusou a condenação da teologia da libertação.
Por que a teologia da libertação desarranja de tal forma a ortodoxia do Vaticano? De todos os pecados que Roma atribui aos novos teólogos há um que parece de longe o mais grave, o mais perigoso, o mais inquietante: o pecado do marxismo. Segundo o Monsenhor Lopez Trujillo (presidente do CELAM), representante da corrente conservadora, "o emprego indiscriminado" da análise marxista "está em vias de desequilibrar e fazer desmoronar a estrutura eclesiástica".
Não há dúvida que o marxismo é um dos principais temas da polêmica em torno da teologia da libertação.
Por que os teólogos da Igreja Católica Apostólica Romana puderam ser atraídos por uma doutrina tão herética? Deixemos a palavra ao cardeal Ratzinger (principal teólogo do Vaticano) de quem não se pode subestimar a perspicácia política: durante os anos 60 "produziu-se no mundo ocidental um sensível vazio de significação"; nesta situação "as diversas formas de neo-marxismo se transformaram em um élan moral, e ao mesmo tempo em uma promessa de significação, que pareciam quase irresistíveis à juventude universitária". Por outro lado, "o desafio moral constituído pela pobreza e a opressão não podiam ser ignorados no momento em que a Europa e a América do Norte haviam atingido um grau de opulência desconhecido até então. Este desafio exigia evidentemente novas respostas que não se podia encontrar na tradição existente até então. A situação teológica e filosófica mudada levava expressamente a procurar a resposta em um cristianismo que se deixasse guiar pelos modelos de esperança, fundados cientificamente, aparentemente, nas filosofias marxistas". O resultado foi a aparição dos teólogos da libertação" que fizeram sua opção marxista fundamental". Se foi subestimada a gravidade do perigo que apresentava esta nova doutrina é "porque ela não entra em nenhum esquema de heresia que tivesse existido até então; seu ponto de partida se encontra fora do que pode ser enquadrado pelos esquemas tradicionais de discussão". Não se pode negar, reconhece o Cardeal, que a nova teologia, articulando crítica bíblica e análise marxista é "sedutora" e "de uma lógica quase sem falha": Ela parece responder "tanto às exigências da ciência como aos desafios morais de nosso tempo". Mas isto não a faz menos temível: "de fato, um erro é mais perigoso quanto maior é a dimensão do núcleo de verdade que ele contém". Já se conhece a seqüência dos fatos: alguns meses mais tarde, a Santa Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício) publicou um documento, assinado pelo seu presidente (o próprio cardeal Ratzinger) que, pela primeira vez, condena oficialmente a teologia da libertação como "desvio". A principal crítica desta Instrução sobre alguns aspectos da "Teologia da Libertação" aos novos teólogos latino-americanos é seu recurso "de uma forma insuficientemente crítica" aos conceitos "emprestados de diversas correntes do pensamento marxista". Graças a estes conceitos - notadamente o de luta de classes - a Igreja dos pobres da tradição cristã se torna na teologia da libertação "uma Igreja de classe, que tomou consciência das necessidades da luta revolucionária como etapa para a libertação e que celebra esta libertação na sua liturgia, o que conduz necessariamente a um "questionamento da estrutura sacramental e hierárquica da Igreja"...
Estas fórmulas são evidentemente polêmicas, mas é inegável que os teólogos da libertação buscaram no arsenal teórico do marxismo análises, conceitos e pontos de vista que jogam um papel importante na sua compreensão da realidade social da América Latina. Apenas por esta referência positiva a certos aspectos do marxismo - independentemente do conteúdo mesmo da referência - a teologia da libertação sacudiu profundamente o campo político-cultural, derrubando um tabu e favorecendo, em um grande número de cristãos, uma visão nova não somente sobre a teoria mas também sobre a prática dos marxistas. Uma visão que podia ser crítica, mas que não tem nada a ver com os anátemas tradicionais contra "o marxismo ateu, inimigo diabólico da civilização cristã", que se acha, em troca, nos discursos dos ditadores militares, de Videla a Pinochet...

b) Opção marxista e opção pelos pobres
O exame das condições históricas (econômicas, sociais e políticas) que permitiram esta abertura da cultura católica às idéias marxistas ultrapassa o quadro deste estudo. Lembremos simplesmente o papel de duas séries de acontecimentos convergentes: a nova teologia européia e o Concílio Vaticano II, que abriram a Igreja Católica às correntes de pensamento moderno, e de outro lado, a ruptura do monolitismo stalinista após o XXº Congresso do PLICS e o cisma chinês. A isto deve-se somar na América Latina o papei da
Revolução cubana e o fim da hegemonia dos partidos comunistas: o marxismo deixa de aparecer como um sistema fechado e rígido, submetido à autoridade ideológica de Moscou, para se tornar um pensamento em movimento, aberto a diversas interpretações, e portanto acessível á uma leitura cristã nova.
É difícil apresentar uma visão de conjunto da posição da teologia da libertação em relação ao marxismo, porque, de um lado, encontra-se uma enorme diversidade de atitudes, indo da utilização prudente de certos elementos à síntese integral, e de outro, porque uma certa mudança se operou entre a postura dos anos 68 aos 80, mais radical, e a de hoje (após as críticas de Roma), mais reservada. Mas pode-se, a partir das obras dos teólogos mais representativos da corrente (como Gutierrez e Boff) e de certos documentos episcopais, situar alguns pontos de referência essenciais.
Alguns teólogos latino-americanos (influenciados por Althusser) se referem ao marxismo simplesmente como uma (ou a) ciência social que se utiliza, de modo estritamente instrumental, para melhor conhecer a realidade latino-americana. Isto é, ao mesmo tempo, muito e muito pouco. Muito, por que o marxismo não é a única ciência social... Muito pouco, porque o marxismo não é unicamente uma ciência: ele se fundamenta numa opção prática que visa não apenas conhecer mas também transformar o mundo.
Na realidade, o interesse - muitos autores falam de "fascinação" - dos teólogos da libertação pelo marxismo é mais amplo e mais profundo que o empréstimo heurístico de alguns conceitos analíticos.
Ele se refere também aos valores (comunitários) às escolhas ético-políticas (a solidariedade com os pobres), às utopias do futuro (uma sociedade sem classes, nem opressão). Gustavo Gutierrez reconhece, referindo-se a si próprio, que o marxismo traz não somente uma análise científica, mas também uma aspiração utópica de mudança social; ele critica a visão cientificista de um Althusser, que "impede a visão da unidade profunda da obra de Marx e, em conseqüência, a compreensão exata de sua capacidade de inspirar uma práxis revolucionária radical e permanente".
Em qual marxismo se inspiram os teólogos da libertação? Certamente, não naquele dos manuais soviéticos de diamat, nem os dos partidos comunistas latino-americanos. É sobretudo o "marxismo ocidental". Por vezes designado como "neo-marxismo" nos seus documentos - que lhes atrai: na Teologia da Libertação-Perspectivas, a grande obra inaugural de Gustavo Gutierrez (1971) o autor marxista mais citado é Ernst Bloch; encontra-se também referências à Althusser, Marcuse, Lukács, Gramsci, Henri Lefebvre, Lucien Goldmann e... Ernest Mandel (confrontado com Althusser por sua melhor compreensão do conceito de alienação em Marx). Mas estas referências européias são menos importantes que as latino-americanas: Mariátegui, como fonte de um marxismo original, adaptado à realidade do continente, a revolução cubana, como acontecimento que sacode a história da América Latina, e, finalmente, a teoria da dependência na crítica do capitalismo dependente desenvolvida por Fernando Henrique Cardoso, André Gunder Frank, Theotônio dos Santos, Aníbal Quijano (todos mencionados diversas vezes no livro de Gutierrez). Não é preciso dizer que Gutierrez e seus amigos privilegiam certos temas no marxismo (o humanismo, a alienação, a práxis, a utopia) e rejeitam outras (a "ideologia materialista", o ateísmo).
O ponto de partida para esta descoberta do marxismo é um fato social incontornável, uma realidade massiva e brutal na América Latina: a pobreza. Evidentemente a pobreza existe há séculos no continente, mas com o desenvolvimento do capitalismo nas cidades e no campo, o êxodo rural, o desemprego, o crescimento desmesurado das favelas na periferia dos centros urbanos, vê-se surgir uma pobreza nova, mais dramática, mais extensa, e, em muitos aspectos, pior do que aquela do passado. O marxismo aparece aos olhos dos teólogos da libertação como a explicação mais sistemática, coerente e global das causas desta pobreza, e como a única proposição suficientemente radical para sua abolição.
O interesse pelos pobres é uma tradição milenar da Igreja, que remonta às fontes evangélicas do cristianismo. Os teólogos latino-americanos se colocam como continuidade desta tradição, que lhes serve constantemente de referência e de inspiração. Mas, sobre um ponto capital, eles rompem profundamente com o passado: para eles os pobres não são mais essencialmente objetos de caridade, mas sujeitos de sua própria libertação. A ajuda ou a assistência paternalista são substituídas por uma atitude de solidariedade com a luta dos pobres por sua auto-emancipação.
É aqui que se dá a conjunção com o princípio político fundamental do marxismo, a saber: a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Esta mudança pode ser a novidade política mais importante e a mais rica de conseqüências trazida pelos teólogos da libertação em relação à doutrina social da Igreja.
O Vaticano acusa Gutierrez e seus amigos de terem substituído o pobre da tradição cristã pelo proletariado marxista. Isto não é exato. O pobre dos teólogos latino-americanos é um conceito carregado de significações morais, bíblicas, religiosas: o próprio Deus é definido por eles como o "Deus dos pobres" e o Cristo se reencarna no pobre crucificado de hoje. Trata-se de um conceito socialmente mais amplo que o de classe operária: inclui, segundo Gutierrez, também as classes exploradas, as raças discriminadas e as culturas marginalizadas (nos últimos textos ele completa: as mulheres duplamente exploradas). Certos marxistas criticarão sem dúvida esta substituição do conceito "materialista" do proletariado por uma categoria tão vaga, emocional e imprecisa. Na realidade, este termo corresponde à situação social latino-americana, onde se encontra, tanto nas cidades como no campo, uma enorme massa de pobres - desempregados, semi-desempregados, empregados sazonais, vendedores ambulantes, marginais, prostitutas, etc. - excluídos do sistema produtivo "formal". Os sindicalistas cristãos/marxistas de El Salvador inventaram um termo que associa todos os componentes da população oprimida e explorada: o “pobretariado”.
A opção prioritária pelos pobres, aprovada pela Conferência de Bispos Latino-Americanos em Puebla (1979) é, em realidade, uma fórmula de compromisso, interpretada num sentido tradicional (assistencialista) pelas correntes mais moderadas ou conservadoras da Igreja, e num sentido radical pelos teólogos da libertação e as correntes mais avançadas do clero: como um engajamento na organização e na luta dos pobres por sua própria libertação. Noutros termos: a luta de classes marxista, não apenas como “instrumento de análise” mas como guia para a ação, tornou-se uma peça essencial da nova Igreja dos pobres. Como escreveu Gustavo Gutierrez: "negar o fato da luta de classes, é na realidade tomar partido em favor dos setores dominantes. A neutralidade neste assunto é impossível." O que se trata é de "suprimir a apropriação por alguns da mais-valia criada pelo trabalho de um grande número, e não fazer apelos líricos em favor da harmonia social. Construir uma sociedade socialista, mais justa, mais livre e mais humana e não uma sociedade de conciliação, de falsa e aparente igualdade.
O que conduz logicamente à conclusão prática seguinte: "Construir uma sociedade justa passa hoje necessariamente pela participação consciente e ativa na luta de classes que se realiza diante de nossos olhos'. Como conciliar isto com a exigência cristã do "amor universal"? A resposta de Gutierrez é de um grande rigor político e generosidade moral: não se odeia os opressores, se quer libertá-los também, libertando-os de sua própria alienação, de sua ambição, de seu egoísmo, numa palavra, de sua condição desumana. Mas para isto deve-se optar resolutamente pelos oprimidos e combater realmente e eficazmente a classe dos opressores...
A opção pelos pobres não é do cristianismo pela libertação uma frase de efeito: ela se traduz na prática pelo engajamento de centenas de milhares de cristãos - membros de comunidades de base, agentes de pastoral, padres e religiosos - com a constituição de comitês de bairro nas favelas, a formação de oposições classistas nos sindicatos, a organização de movimentos de camponeses sem terra, a defesa de prisioneiros políticos, contra a tortura. Ela inspira sua participação ativa nas lutas operárias e populares em todo o continente, na criação do Partido dos Trabalhadores no Brasil, na revolução sandinista na Nicarágua, e no combate revolucionário da FMLN em El Salvador.
Ver em tudo isto simplesmente um "ardil" da Igreja, uma "manobra populista" para manter o controle sobre as massas, ou uma tática hábil para fazer face ao comunismo - como a fazem certos marxistas um pouco apressados - é deixar de lado o essencial e nada compreender nem das motivações subjetivas, nem da significação objetiva do fenômeno. Não foi um "ardil" mas uma profunda mudança de curso espiritual, uma autêntica conversão moral e política à causa dos pobres que levou o padre Domingo Lain (assassinado em 1974) e o padre Gaspar Garcia Laviana (assassinado em 1978) - todos os dois de origem espanhola -a se engajar na guerrilha na Colômbia e na Nicarágua. Ou o jesuíta brasileiro João Bosco Penido Burnier (assassinado em 1976) ou o jesuíta salvadorenho Rutilio Grande (assassinado em 1977) a se solidarizarem com os camponeses e contribuir para sua organização. Ou Monsenhor Oscar Romero (assassinado em 1980), já ameaçado de morte pelo Exército, a apelar aos soldados que desobedecessem as ordens de seus superiores e não atirassem no povo.
Para lutar eficazmente contra a pobreza, deve-se reconhecer suas causas: é aqui que a teologia da libertação se reencontra de novo com o marxismo. A pobreza da grande maioria e a riqueza insolente de um punhado de privilegiados têm o mesmo fundamento econômico: o sistema capitalista. Mais precisamente, na América Latina, o capitalismo dependente, submetido aos monopólios multinacionais das grandes metrópoles imperialistas.
A crítica moral das injustiças do capitalismo, a hostilidade à sua natureza fria e impessoal é uma velha tradição da Igreja. O sociólogo de religiões Max Weber chamava já a atenção sobre a oposição de princípio entre o racionalismo ético do catolicismo e a racionalidade econômica do capital. Evidentemente, isto não impediu a Igreja de se reconciliar com a ordem burguesa à partir do séc. XIX, mas a crítica ao "capitalismo liberal" permanece uma componente da cultura católica.

c) Um caminho para o socialismo
A partir dos anos 60, esta tradição vai se articular com a análise marxista do capitalismo (que também comporta uma condenação moral da injustiça) notadamente sob a forma da teoria da dependência. O grande mérito dos teóricos da dependência (em especial André Gunder Frank e Aníbal Quijano) foi romper com as ilusões "desenvolvimentistas" que dominavam o marxismo latino-americano dos anos 50 (e principalmente na ideologia dos partidos comunistas), mostrando que a causa da miséria, do subdesenvolvimento, das desigualdades crescentes e das ditaduras militares, não era o "feudalismo" ou a modernização insuficiente, mas a própria estrutura do capitalismo dependente. E que, conseqüentemente, somente a transformação de tipo socialista poderia arrancar as nações latino-americanas da dependência e da pobreza. Certos aspectos desta análise serão incorporados, não somente pelos teólogos da libertação, mas também por bispos e Conferências Episcopais, notadamente no Brasil.
Em maio de 1980 um grupo de "experts" do Partido Republicano dos E.U.A, preparou um texto que servirá de base ao candidato presidencial do partido, Ronald Reagan: o Documento de Santa Fé. Na segunda parte do documento, intitulado "a subversão interna", a proposição nº 3 afirma: "A política externa dos Estados Unidos deve começar a enfrentar (e não somente reagir à posteriori) a teologia da libertação. Na América Latina, o papel da Igreja é vital para o conceito de liberdade política. Infelizmente, as forças marxista-leninistas utilizaram a Igreja como arma política contra a propriedade privada e o sistema capitalista de produção, infiltrando a comunidade religiosa de idéias mais comunistas que cristãs".
Fazendo abstração da linguagem policial ("infiltração") e dos clichês de propaganda ("forças marxista-leninistas") não há dúvida que este documento aponta um fato real: a oposição de setores importantes da Igreja Latino-americana, próximos da teologia da libertação, ao "sistema capitalista de produção".
Por outro lado, se por "idéias comunistas" os experts (?) do Partido Republicano entendem as dos partidos comunistas, sua análise passa inteiramente à margem do essencial. A Igreja dos pobres, cuja inspiração é inicialmente religiosa e ética, manifesta um anti-capitalismo muito mais radical, intransigente e categórico - porque carregado de repulsa morai - que os partidos comunistas do continente, que acreditam ainda nas virtudes progressistas da burguesia industrial e no papel histórico "anti-feudal" do desenvolvimento industrial (capitalista). Um exemplo é suficiente para ilustrar este paradoxo! enquanto o Partido Comunista Brasileiro explicava nas resoluções do seu Vlº Congresso (1967) que "a socialização dos meios de produção não corresponde ao nível atuai da contradição entre forças produtivas e relações de produção" - noutros termos, que o capitalismo industrial deve primeiro desenvolver a economia e modernizar o país - os bispos e superiores religiosos da região Centro-Oeste do Brasil publicavam em 1973 um documento ("O grito das igrejas") cuja conclusão afirma: "é preciso vencer o capitalismo: este é o maior mal, o pecado acumulado, a raiz apodrecida, a árvore que produz todos estes frutos que nós conhecemos: pobreza, fome, doença, morte... Para isto é necessário que a propriedade privada dos meios de produção (fábricas, terra, comércio, bancos) seja ultrapassada..."
Ainda mais explícito, um outro documento episcopal, a declaração dos bispos do Nordeste brasileiro (1973) afirma: "a injustiça que nasce desta sociedade é o fruto dás relações capitalistas de produção que dão obrigatoriamente nascimento a uma sociedade de classes, que traz a marca da discriminação e da injustiça. (...) A classe dominada não tem outra saída para se libertar que seguir o longo e difícil caminho, já iniciado, que leva à propriedade social dos meios de produção. Este é o fundamento principal de um gigantesco projeto histórico de transformação global da sociedade atual numa sociedade nova na qual se torne possível a criação de condições objetivas que permitam aos oprimidos recuperar a humanidade da qual eles foram despojados... O Evangelho apela a todos os cristãos e todos os homens de boa vontade a se engajar nesta corrente profética". Este documento é assinado por 13 bispos (como Helder Câmara) e por provinciais franciscanos e jesuítas, redentoristas e pelo abade do Monastério de St. Benoit na Bahia.. .
Como se vê por estes textos, e em muitos outros vindos da corrente cristã/libertadora, a solidariedade com os pobres conduz à condenação do capitalismo e esta à aspiração socialista. De qual socialismo se trata? A crítica mais ou menos explícita dos modelos "realmente existentes" é geral nos cristãos revolucionários e nos teólogos da libertação. Gutierrez insiste sobre a necessidade do povo oprimido da América Latina evitar os velhos modelos e procurar de maneira criativa seu próprio caminho para o socialismo. Ele se inspira na obra de Mariátegui, para o qual o socialismo na América Latina não poderia ser um "mero decalque" ou uma "cópia" de outras experiências, mas uma "criação heróica": "nós devemos dar vida, pela realidade que é nossa, pela nossa própria linguagem, ao socialismo indoamericano". Não é precise dizer que para os teólogos da libertação o socialismo, ou toda forma de emancipação humana, não é senão uma preparação ou antecipação da salvação total, da chegada do reino de Deus à terra.
Não se pode deduzir de tudo isto que os teólogos da libertação aderem pura e simplesmente ao marxismo. Como sublinha Leonardo e Clodovis Boff na sua resposta ao Cardeal Ratzinger, o marxismo é utilizado como mediação para o discurso da fé: "ele ajudou a esclarecer e enriquecer certas noções maiores da teologia: povo, pobre, histórica e mesmo práxis e política. Isto não quer dizer que se reduziu o conteúdo teológico destas noções à forma marxista. Pelo contrário, separamos o conteúdo teórico válido (quer dizer conforme a verdade) das noções marxistas no interior do horizonte teológico".
Entre os aspectos do marxismo que eles recusam, se encontram, corno se pode entender, a filosofia materialista, a ideologia atéia e a caracterização da religião como ”ópio do povo”. E, no entanto, eles não recusam a crítica marxista à Igreja e às práticas religiosas "realmente existentes". Como escreveu Gustavo Gutierrez, a Igreja Latino-americana contribuiu para dar um caráter sagrado à ordem vigente: "A proteção que ela recebe da classe social beneficiária, guardiã da sociedade capitalista dominante na América Latina, fez da igreja institucional uma peça do sistema, e da mensagem cristã uma componente da ideologia dominante". Este julgamento severo é partilhado por urna parte do episcopado latino-americano: por exemplo, os bispos peruanos, numa declaração adotada por sua XXXV Iº Assembléia Episcopal (1969) escrevem: "Reconhecemos antes de tudo que nós, cristãos, por falta de fidelidade, contribuímos por nossas palavras e nossos atos, por nossos silêncios e omissões, para a situação atual de injustiça". Um dos textos mais interessantes a este respeito é uma resolução redigida pelo Departamento de Educação do CELAM em fins dos anos 60: "A religião cristã serviu e serve ainda de ideologia justificadora da dominação dos poderosos. O cristianismo foi na América Latina uma religião funcional em relação ao sistema. Seus ritos, suas igrejas e suas obras contribuíram para canalizar a insatisfação popular para um além totalmente desligado do mundo presente. Dessa forma o cristianismo freou o protesto popular face a um sistema injusto e opressor". Evidentemente, esta crítica SE faz em nome do verdadeiro cristianismo evangélico, solidário dos pobres e dos oprimidos, E não tem nada em comum com o questionamento materialista da religião enquanto tal.
De todos os teólogos da libertação é, sem dúvida, Leonardo Boff que formulou a crítica mais sistemática e mais radical das estruturas autoritárias da Igreja católica, de Constantino a nossos dias. Estas estruturas se ligam, segundo ele, a um modelo de autoridade romana e feudal: hierarquia piramidal, sacralização da obediência, recusa de toda crítica interna, culto da personalidade dos papas. Boff chega à irreverência de comparar (citando o texto de um cristão de esquerda brasileira, Márcio Moreira Alves) a estrutura institucional e burocrática da Igreja com a do Partido Comunista da URSS: "O paralelismo de estruturas e de comportamentos revela a lógica de todo poder centralizador". Este tipo de análise não agradou ao Vaticano, porque Boff, em seguida à publicação de seu livro, foi condenado pelas autoridades eclesiásticas romanas a um ano de silêncio... Ao dizer isto, é preciso observar que Boff não rejeita a Igreja enquanto tal: ele pede sua transformação profunda, sua re-criação a partir da periferia, dos pobres, daqueles que vivem no "sub-solo da humanidade".

d) A contribuição ao Marxismo Revolucionário
Como o mostram estes textos de teólogos e de Conferências Episcopais, um setor minoritário mas significativo da Igreja Latino-americana incorporou certas idéias marxistas essenciais na sua compreensão nova do cristianismo. Em certos sindicalistas cristãos, nos militantes cristãos de organização de esquerda, ou ainda em certos movimentos mais radicaliza dos como os "Cristãos pelo Socialismo" encontra-se um processo mais claro de síntese ou fusão entre cristianismo e marxismo. Trata-se de uma corrente cristã no seio do movimente revolucionário, do qual eles são, aliás, um dos principais componentes em muitos países. Há vínculos mais ou menos diretos entre essa corrente e a teologia da libertação, mas seria errôneo confundi-Ias. Um dos representantes mais conhecidos desta sensibilidade radical é o dominicano brasileiro Frei Betto, animador das comunidades de base e que se tornou célebre por seu diálogo sobre religião com Fidel Castro.
Se os teólogos da Libertação aprenderam muito com o marxismo, os marxistas não terão também alguma coisa a aprender com eles? Certas questões interessantes devem ser colocadas, tanto do ponto de vista da teoria como da prática. Por exemplo:
1) Deve-se considerar, como o fazem a maior parte dos "Manuais de Marxismo-Leninismo", a oposição entre "o materialismo" e o "idealismo" como a questão fundamental da filosofia? Pode-se ainda afirmar, como o faz o "Petit Dictíonnaire Philosophique" publicado pelos ilustres acadêmicos soviéticos Rosenthal e Ioudine que o materialismo "foi sempre a concepção de mundo das classes sociais avançadas, na sua luta pelo progresso"? Ou que Ide acordo com os mesmos autores), o idealismo não pode deixar de jogar um "papel reacionário" na história? Lenine afirmava nos Cadernos Filosóficos que um idealismo dialético era superior ao materialismo metafísico, não desenvolvido, morto, grosseiro, "estúpido". Não se poderia dizer que o idealismo revolucionário dos teólogos da libertação é superior ao materialismo "estúpido" dos economistas burgueses e mesmo de certos "marxistas" stalinistas? Ainda mais que este idealismo teológico se revelou perfeitamente compatível como uma abordagem materialista-histórica dos fatos sociais...?
2) A teologia da libertação não pode nos ajudar a combater nó seio do marxismo as tendências reducionistas, o economicismo, o materialismo vulgar? Para compreender porque toda uma camada de intelectuais e indivíduos saídos das classes médias (o clero radicalizado) rompeu com sua classe e aderiu à classe dos oprimidos, deve-se levar em consideração o papel das motivações morais e "espirituais". Do mesmo modo, para explicar porque as massas cristãs saem de sua apatia, se sublevam contra seus opressores, deve-se examinar não apenas sua condição social objetiva, mas também sua subjetividade, sua cultura, suas crenças, sua nova maneira de viver a religião.
Ao retomar as intuições de marxistas latino-americanos como José Carlos Mariátegui, os teólogos da libertação nos ajudam também a revalorizar certas tradições comunitárias pré-capitalistas, conservadas pela cultura popular (notadamente camponesa) e a desconfiar do culto cego do "progresso" econômico, da "modernização" capitalista e do "desenvolvimento das forças produtivas" como um objetivo em si. Os cristãos revolucionários se mostraram mais sensíveis às catástrofes sociais provocadas pelo "desenvolvimento do subdesenvolvimento" sob a batuta das multinacionais do que muitos marxistas aprisionados nas malhas da lógica desenvolvimentista puramente econômica.
3) Em revolta contra o autoritarismo da Igreja, os cristãos pela libertação desconfiam do autoritarismo político nos sindicatos e partidos políticos. Seu "basismo" que toma por vezes formas ingênuas e excessivas, é uma reação compreensível face às práticas antidemocráticas, corrompidas ou manipuladoras dos aparelhos burocráticos populistas ou stalinistas. Corretamente formuladas, esta sensibilidade anti-autoritária e esta aspiração à uma democracia de base não são uma contribuição preciosa à auto-organização dos oprimidos e a uma recomposição anti-burocrática do movimento operário?
4) Os teólogos da libertação nos incitam a refletir sobre a dimensão moral do engajamento revolucionário, da luta contra a injustiça social, e da construção de uma nova sociedade. Os jesuítas sempre foram conhecidos, aos olhos de seus adversários, como partidários da máxima amoral "o fim justifica todos os meios". Trotsky, em "Nossa Moral e a Deles" os defende dessa acusação, e observa que uma tal doutrina, tomada no seu sentido estrito, seria "internamente contraditória e psicologicamente absurda". Em todo caso, os novos jesuítas revolucionários, como Ernesto e Fernando Cardenal, membros do governo- sandinista, têm pouco em comum com este tipo de maquiavelismo: seu engajamento político é inseparável de certos valores éticos. É, em grande medida, graças ao papel dos cristãos sandinistas que a revolução nicaragüense é a primeira revolução social autêntica, depois de 1789, que aboliu a pena de morte. Um exemplo a ser seguido.
5) Finalmente, a teologia da libertação obriga os marxistas a re-examinar certos aspectos de sua doutrina tradicional sobre a religião: se esta jogou e joga ainda na maior parte dos casos um papel de "ópio do povo", não poderia também agir algumas vezes como estimulante do povo, como um apelo que desperta os oprimidos de seu torpor, de sua passividade, de seu fatalismo, e lhes faz tomar consciência de seus direitos, de sua força, de seu futuro?
Quais são então as críticas que se pode dirigir aos teólogos da libertação? As discussões mais urgentes com os cristãos pela libertação não são os debates sobre o materialismo, sobre a alienação religiosa ou sobre a história da Igreja (e ainda menos sobre a existência de Deus), mas sobre questões eminentemente práticas e atuais: por exemplo, qual estratégia revolucionária, qual partido de vanguarda, qual socialismo; ou então, divórcio, aborto, contracepção, o direito das mulheres à dispor de seu corpo. Trata-se na realidade de debates que se referem ao conjunto do movimento operário latino-americano, que está longe de ter uma orientação coerente sobre estes problemas.
É difícil prever qual será a saída do conflito entre Vaticano e a teologia da libertação, entre a Igreja conservadora e a Igreja dos pobres. Em todo caso, uma conclusão se impõe como verdadeira: a revolução na América Latina se fará com os cristãos ou não se fará.

Marxismo e Religião - Michael Lowy

(grifo meu)

I - Introdução
O engajamento de cristãos nas lutas revolucionárias não é um fenômeno novo, notadamente na América Latina. O marxismo "tradicional" leva esse fato em conta opondo os trabalhadores cristãos, ganhos para a revolução, à Igreja (os "curas"), corpo reacionário por excelência. A morte do padre Camilo Torres, combatente da guerrilha colombiana, num enfrentamento com o exército, podia ainda passar como um caso excepcional; mas o engajamento crescente de cristãos e padres nas lutas sociais e sua participação massiva na revolução sandinista obrigam certamente a uma revisão dessa análise simplista. Opor a base popular da Igreja à sua hierarquia conservadora não era mais suficiente, quando numerosos bispos se declaram solidários aos movimentos populares; solidariedade paga às vezes com sua vida, como no caso do Monsenhor Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, assassinado pelos esquadrões da morte em março de 1980. Restava aos marxistas desconcertados o recurso de distinguir entre a prática social, válida, destes cristãos, e sua ideologia religiosa, necessariamente retrógrada e idealista. Ora, com a teologia da libertação, vê-se surgir um pensamento religioso que utiliza de conceitos marxistas e impulsiona lutas de libertação social.
Já é tempo de os marxistas se darem conta de que se passa alguma coisa de novo, cuja importância é histórico-mundial: uma fração significativa do "povo de Deus" e de sua Igreja (cristã) está em vias de mudar de posição no campo da luta de classes, passando com armas (espirituais) e bagagens (materiais) para o lado do povo trabalhador.
Este fenômeno não tem muito a ver com o antigo "diálogo" entre cristãos e marxistas - vistos como dois campos separados - e ainda menos com a insípida negociação diplomática entre aparelhos burocráticos, cujo exemplo caricatural é o recente "encontro entre cristãos e marxistas" - quer dizer representantes do Vaticano e dos Estados da Europa Oriental - em Budapeste. O que se passa na América Latina (e alhures) em torno da teologia da libertação é outra coisa: uma fraternidade nova entre revolucionários crentes e não crentes, numa dinâmica emancipadora que escapa tanto à Roma, quanto à Moscou.
Tudo isto significa sem dúvida um desafio à concepção marxista "clássica" da religião, sobretudo na sua versão vulgarizada, reduzida ao materialismo e ao anti-clericalismo dos filósofos burgueses do séc. XVIII. Pode-se, no entanto, encontrar nos escritos de Marx e Engels, apesar de algumas simplificações que devem ser superadas, e em alguns marxistas modernos, conceitos e análises que podem nos ajudar a compreender a surpreendente realidade atual.

a) Marx e Engels
Comecemos pela célebre fórmula "a religião é o ópio do povo", que parece resumir a concepção marxista do fenômeno religioso aos olhos da maior parte de seus partidários e adversários. Lembremos, primeiramente, que esta expressão não tem nada de especificamente marxista: vamos encontrá-la, em vários contextos, em Kant, Herder, Feuerbach, Bruno Bauer e Heine. Uma leitura atenta do texto de Marx mostra que ele é mais nuançado do que se acredita, dando conta da dupla natureza do fenômeno: "a angústia religiosa é por um lado a expressão da angústia real e, por outro, o protesto contra a angústia real.
A religião é o suspiro da criatura oprimida, a alma de um mundo sem coração, como é o espírito de condições sociais de onde o espírito está excluído. Ela é o ópio do povo".
Esta análise deve mais ao neo-hegelianismo de esquerda, que concebe a religião como a alienação da essência humana, que à filosofia das Luzes (a religião como conspiração clerical). Na realidade, no momento em que Marx escreveu este texto, ele era ainda um discípulo de Feuerbach; quer dizer, um neo-hegeliano ele próprio. Sua análise da religião é, portanto, "pré-marxista". Mas ela não é menos dialética, pois compreende o caráter contraditório do fato religioso: enquanto justificação do mundo existente, enquanto protesto contra ele.
E só mais tarde notadamente com “A Ideologia Alemã" (1846), que começa o estudo propriamente marxista da religião enquanto fato social e histórico, quer dizer, como uma das múltiplas formas da ideologia, da produção espiritual de um povo, da produção de idéias, de representações e da consciência, necessariamente condicionada pela produção material e pelas relações sociais correspondentes. Friedrich Engels manifesta um interesse muito maior que Marx pelos fenômenos religiosos e seu papel histórico. A principal contribuição de Engels ao estudo marxista das religiões é sua análise da relação das representações religiosas com a luta de classes. Mais além da polêmica filosófica (materialismo contra idealismo) ele tenta compreender e explicar as manifestações sociais concretas da religiosidade. O cristianismo não aparece mais como uma "essência" atemporal, mas como uma forma cultural que se transforma historicamente: primeiro religião de escravos, depois ideologia do Estado do Império Romano, religião adequada à hierarquia feudal e finalmente religião adaptada à sociedade burguesa. Ela aparece assim como um espaço simbólico disputado pelas forças sociais antagônicas: teologia feudal, protestantismo burguês, heresias plebéias. Por vezes essa análise tende para uma visão estreitamente utilitária, instrumental, do problema: "cada uma das diferentes classes utiliza a religião que lhe é adequada... que estes senhores creiam ou não em suas respectivas religiões, isto não faz nenhuma diferença." Engels parece não perceber nas diferentes formas de crença nada além do "disfarce religioso" dos interesses de classe.
Entretanto, graças ao método da luta de classes, Engels percebe, contrariamente aos filósofos das Luzes, que o conflito entre materialismo e religião não pode ser sempre identificado ao combate entre revolução e reação. Por exemplo, na Inglaterra no século XVII, o materialismo aparece, com Hobbes, em defesa do absolutismo monárquico, enquanto que as seitas protestantes fazem da religião sua bandeira na luta revolucionária contra os Stuart.
Do mesmo modo, longe de conceber a Igreja como um todo socialmente homogêneo, ele mostra enfaticamente como, em certas conjunturas históricas, ela se divide segundo sua composição de classes.
Assim, à época da Reforma, uma parte é o alto clero, a cúpula feudal da hierarquia eclesiástica, e outra parte é o baixo clero, de origem plebéia, onde se recruta os ideólogos da Reforma e do movimento camponês revolucionário.
Materialista, ateu e adversário irreconciliável da religião, Engels percebe, entretanto, (como o jovem Marx) o duplo caráter do fenômeno: seu papel legitimador da ordem estabelecida, mas também, segundo as circunstâncias sociais, seu papel crítico, de protesto, e mesmo revolucionário. A maior parte dos estudos oncretos que ele escreveu acentuam sempre este segundo aspecto. Inicialmente, o cristianismo primitivo, religião de escravos, dos banidos, dos condenados, dos perseguidos, dos oprimidos. Os primeiros cristãos se recrutavam nas camadas mais baixas do povo: os escravos, os homens livres em penúria, e os pequenos camponeses assoberbados pelas dividas. Engels chega a estabelecer um surpreendente paralelo entre o cristianismo primitivo e o socialismo moderno: a) os dois grandes movimentos não são feitos por chefes e por profetas - se bem que os profetas não faltam nem em um, nem em outro - mas são movimentos de massa; b) todos os dois são movimentos de oprimidos, submetidos à perseguição: seus adeptos são proscritos e perseguidos pelas autoridades do momento; c) todos os dois pregam uma libertação em breve da servidão e da miséria. Para demonstrar sua comparação, Engels se diverte com uma frase de Rénan: "Se quizerem ter uma idéia das primeiras comunidades cristãs, observem uma seção local da Associação Internacional dos Trabalhadores". A diferença essencial é, evidentemente, que os cristãos primitivos transpõem a libertação para o além, enquanto que o socialismo se localiza neste mundo.
Esta diferença é assim tão marcante como parece à primeira vista? No seu estudo do segundo
grande movimento cristão de protesto - as heresias da Idade Média e a Guerra dos Camponeses na Alemanha - ela parece se diluir: Thomas Münzer, teólogo e dirigente dos camponeses e plebeus revolucionários do Século XVI, queria a instauração imediata na terra do reino de Deus, do reino milenar dos profetas. Segundo Engels, o reino de Deus para Münzer "não era outra coisa que uma sociedade onde não haveria mais nenhuma diferença de classes, nenhuma propriedade privada, nenhum poder de Estado".
Entretanto, Engels tende, ainda uma vez, a reduzir a religiosidade à um estratagema: ele fala da "fraseologia cristã" de Münzer e de sua "máscara bíblica". A dimensão propriamente religiosa do milenarismo münzeriano, sua força espiritual e moral, sua profundidade mística autenticamente vivida, parecem lhe escapar.
Dito isto, por sua análise do fato religioso do ponto de vista da luta de classes, Engels iluminou as potencialidades de protesto do fenômeno e abriu o caminho para uma abordagem nova - distinta tanto da dos filósofos iluministas como dos neo-hegelianos alemães - da relação entre religião e sociedade.

b) A Religião e o Marxismo do séc. XX
A maior parte dos estudos marxistas sobre a religião do séc. XX se limitam a desenvolver as indicações de Marx e de Engels, onde se pode aplicá-las a tal ou qual realidade específica. Este é o caso, por exemplo, dos estudos históricos de Karl Kautsky sobre o cristianismo primitivo, sobre as heresias da Idade Média e sobre Thomas Münzer: se, por um lado, faz análises precisas interessantes sobre as bases sociais e econômicas deste movimentos e de suas aspirações comunistas, por outro, reduz suas crenças religiosas a um simples "envelope" (Hülle) ou "roupagem" (Gewand) que "esconde" o conteúdo social, Quanto aos escritos de Lênin, Trotsky ou Rosa Luxemburgo, eles têm por objeto sobretudo os problemas táticos que a religião coloca para o movimento operário: sua idéia matriz é que o combate ateísta contra a religião deve estar subordinado às necessidades concretas da luta de classes, que exige a unidade entre trabalhadores crentes e não-crentes.
Com Ernst Bloch, a abordagem marxista dos fatos religiosos muda de registro radicalmente. De maneira análoga à de Engels, ele faz a distinção entre duas correntes socialmente opostas: a religião teocrática das Igrejas oficiais, ópio mistificador do povo a serviço dos poderosos, e a religião subterrânea e subversiva dos profetas messiânicos, das heresias e dos milenarismos, a religião dos cátaros, dos hussitas, de Joaquim de Flore, de Thomas Münzer, de Baader, Weitling e Toistoi.
Contrariamente a Engels, entretanto, Bloch se recusa a conceber a religião unicamente como uma "máscara" dos interesses de classe (ele critica explicitamente esta tese, atribuindo-a, entretanto, à Kautsky...). Nas figurações de protesto, a religião é uma das formas mais significativas da consciência utópica, uma das manifestações mais ricas do principio da esperança. Por sua capacidade de antecipação criadora, a escatologia judaico-cristã - o universo religioso preferido de Bloch - desenha o espaço imaginário do ainda-não-existente.
Partindo destes pressupostos, Bloch se dedica a uma hermenêutica heterodoxa e iconoclasta da Bíblia - tanto o Antigo como o Novo Testamento - à procura da Bíblia pauperum, a que denuncia o Faraó e que leva cada um a escolher: "Aut Cesar aut Christus".
Ateu religioso - segundo ele, só um ateu pode ser um bom cristão, e vice-versa - teólogo da revolução, Bloch se dedica não somente a uma leitura marxista dó milenarismo (seguindo nisto a Engels) mas também - e isto é novo - a uma interpretação milenarista do marxismo. As heresias escatológicas e coletivistas do passado não são para ele simplesmente os "precursores do socialismo" (título do livro de Kautsky) - quer dizer, um capítulo já encerrado do passado - mas uma herança subversiva atual.
Bloch reconhece, evidentemente, como o jovem Marx da célebre citação de 1844, a dupla natureza do fato religioso, seu aspecto opressor e seu potencial de revolta. O primeiro aspecto deve ser analisado empregando-se o que ele chama da "corrente fria" do marxismo: a análise materialista implacável das ideologias, dos ídolos e das idolatrias; o segundo, pelo contrário, necessita da "corrente quente", que procura salvar o excedente cultural utópico das religiões, sua força crítica e antecipadora. Mais além do "diálogo", Bloch sonha com uma união verdadeira entre cristianismo e revolução, como na época da Guerra dos Camponeses.
Uma outra tentativa interessante e original de estudo marxista da religião é a obra de Lucien Goldmann. No seu livro Le Dieu Cachê (1955) ele compara (sem as identificar) a fé religiosa e a fé marxista: as duas têm em comum a oposição ao individualismo (racionalista ou empirista) e a crença nos valores trans-individuais - Deus para a religião, a comunidade humana para o socialismo. Uma semelhante analogia existe entre a aposta pascaliana sobre a existência de Deus e a aposta marxista sobre o futuro histórico libertado: as duas pressupõem o risco, o perigo do fracasso e a esperança da vitória, as duas dependem da "fé" e não são demonstráveis no exclusivo plano dos julgamentos de fato. O que as separa é, evidentemente, o caráter sobrenatural ou supra-histórico da transcendência religiosa. Sem querer de nenhuma forma "cristianizar o marxismo", Lucien Goldmann introduziu uma visão nova sobre a relação conflitiva entre crença religiosa e ateísmo marxista.

O Deus dos Oprimidos - Rubem Alves

Capítulo extraído do livro - "O que é religião" (grifo meu)

Mahatma Gandhi, líder hindu, assassinado em 1948.
Martin Luther Kíng, pastor pro­testante, assassinado em 1968.
Oscar Ranulfo Romero, arcebispo católico, assassinado em 1980.

Muitos séculos atrás, bem antes dos tempos de Cristo, surgiu entre os hebreus uma estranha estirpe de líderes religiosos, os profetas. Quem eram eles? Em geral as pessoas pensam que profe­tas são videntes dotados de poderes especiais para prever o futuro, sem muito o que dizer sobre o aqui e o agora. Nada mais distante da vocação do profeta hebreu, que se dedicava, com paixão sem paralelo, a ver, compreender, anun­ciar e denunciar o que ocorria no seu presente. Tanto assim que suas pregações estavam mais próximas de editoriais políticos de jornais que de meditações espirituais de gurus religiosos. Eles pouco ou nada se preocupavam com aquilo que vulgarmente consideramos como propria­mente pertencendo ao círculo do sagrado: o cultivo das experiências místicas, das atitudes piedosas e das celebrações cerimoniais está prati­camente ausente do âmbito dos seus interesses. Ma verdade, boa parte de sua pregação era tomada pelo ataque às práticas religiosas dominantes em seus dias, patrocinadas e celebradas pela classe sacerdotal. E isto porque eles entendiam que o sagrado, a que davam o nome de vontade de Deus, tinha a ver fundamentalmente com a justiça e a misericórdia. Em suas bocas tais palavras tinham um sentido político e social que todos entendiam. Para se compreender o que diziam não era necessário ser filósofo ou teólogo. Sua pregação estava colada à situação dos homens comuns. Que situação era esta?
O Estado crescia cada vez mais, tornando-se centralizado e concentrado nas mãos de uns poucos. E, como sempre acontece, quando o poder de alguns aumenta, o poder dos outros diminui. As pequenas comunidades rurais, que em outras épocas haviam sido o centro da vida do povo hebreu, se enfraqueciam em decorrência dos pesados impostos que sobre elas recaíam. A fraqueza do povo crescia na medida em que se avolumava o poder dos exércitos — porque sem eles o Estado não subsiste. Os camponesas, pobres, tinham de vender suas propriedades, que eram então transformadas em latifúndios por um pequeno grupo de capitalistas urbanos. É de tal situação que surgem os profetas como porta-vozes dos desgraçados da terra. Assim, quando pregavam a justiça, todos compreendiam que eles estavam exigindo o fim das práticas de opressão. Era necessário que a vida e a alegria fossem devolvidas aos pobres, aos sofredores, aos fracos, aos estrangeiros, aos órfãos e viúvas, enfim, a todos aqueles que se encontravam fora dos círculos da riqueza e do poder.
Instaurou-se com os profetas um novo tipo de religião, de natureza ética e política, e que entendia que as relações dos homens com Deus têm de passar pelas relações dos homens, uns com os outros:

"Abomino e desprezo vossas celebrações so­lenes.
Corra, porém, a justiça como um ribeiro impe­tuoso..." (Amos, 5.24).

As autoridades, por razões óbvias, os detes­tavam, acusando-os de traidores e denunciando sua pregação como contrária aos interesses nacio­nais. Foram proibidos de falar, perseguidos e mesmo mortos. E enquanto lutavam com o poder estatal, de um lado, confrontavam-se com os representantes da religião oficial, do outro. Pare­cia-lhes que uma religião protegida pelo Estado só podia estar a seu serviço. Sua denúncia profé­tica, assim, se dirigia não apenas àqueles que efetivamente oprimiam os fracos, como também àqueles que sacralizavam e justificavam a opressão, envolvendo-a na aura da aprovação divina. E foi assim que, cerca de 2 500 anos antes que qualquer pessoa dissesse que a religião é o ópio do povo, eles perceberam que até mesmo os nomes de Deus e os símbolos sagrados podem ser usados pêlos interesses da opressão, e acu­saram os sacerdotes de enganadores do povo e os falsos profetas de pregadores de ilusões:

"Eles enganam o meu povo dizendo que tudo vai bem quando nada vai bem. Pretendem esconder as rachaduras na parede com uma mão de cal. . ." (Ezequiel, 13.10).

E em oposição a esta falsa religião que sacralizava o presente eles teceram, com as dores, tris­tezas e esperanças do povo, visões de uma terra sem males, uma utopia, o Reino de Deus, em que as armas seriam transformadas em arados, a harmo­nia com a natureza seria restabelecida, os lugares secos e desolados se converteriam em mananciais de águas, os poderosos seriam destronados e a terra devolvida, como herança, aos mansos, fracos, pobres e oprimidos.
É provável que os profetas tenham sido os primeiros a compreender a ambivalência da reli­gião: ela se presta a objetivos opostos, tudo depen­dendo daqueles que manipulam os símbolos sagrados. Ela pode ser usada para iluminar ou para cegar, para fazer voar ou paralisar, para dar coragem ou atemorizar, para libertar ou escra­vizar. Daí a necessidade de separar o Deus em cujo nome falavam, que era o Deus dos oprimidos, e que despertava a esperança e apontava para um futuro novo, dos ídolos dos opressores, que tornavam as pessoas gordas, pesadas, satisfeitas consigo mesmas, enraizadas em sua injustiça e cegas para o julgamento divino que se apro­ximava...
Mas esta lição foi esquecida. A memória do Deus dos oprimidos se perdeu... E não é difícil compreender por quê. Visões semelhantes às suas só aparecem em meio aos pobres e fracos. Mas os pobres e os fracos vão de derrota em derrota... Quem preservaria suas memórias? Quem aco­lheria suas denúncias? Quem registraria as suas queixas? Não se pode esperar tanta generosidade dos vencedores. São os fortes que escrevem a história e esta é a razão por que não se encontram ali as razões dos derrotados. Já notaram como os derrotados são sempre descritos como vilões? O que restou, como história, foram os relatos da religião triunfante, mãos dadas com os conquistadores, fez de si mesma e daqueles que foram esmagados. E, assim, em nossa memória restou apenas a religião dos fortes, justamente aquela que os profetas denunciaram. Quanto à religião dos profetas, ela continuou emergindo aqui e ali. Mas aqueles que empunharam suas esperanças foram derrotados. E, para efeitos práticos, foi como se tal religião nunca tivesse existido... E as evidências, assim, pareciam se ajuntar para levar à conclusão de que a reli­gião nada mais é que alienação, narcótico, ilusão.
Foi então que uma série de fatores coincidentes permitiu que se reconstruísse a perdida visão profética da religião como instrumento de liber­tação dos oprimidos.
Primeiro, o desenvolvimento da ciência histó­rica, que tornou possível a recuperação dos fragmentos do passado, num esforço para se penetrar atrás da cortina de interpretações que os vitoriosos haviam erigido. E lá foram encon­trados, com frequência, revolucionários que falavam em nome de Deus e em nome dos pobres, não importa que tivessem na mão a espada, como Thomas Munzer, anabatista, líder de campo­neses no século XVI, ou que se valessem apenas do poder do exemplo e da não violência, como foi o caso de São Francisco de Assis.
Depois, o desenvolvimento da arte da interpre­tação que permitia vislumbrar, através do discurso dos vitoriosos, a verdade acerca dos vencidos. Arte da interpretação? Para nossos objetivos basta saber que "o que o António fala acerca de Pedro contém mais informações acerca de António que acerca de Pedro". Assim, muito embora os derrotados tivessem deixado poucos documentos sobre si mesmos, nos próprios docu­mentos dos vitoriosos a verdade estava escondida, como o negativo de uma fotografia, como cor complementar, como o oposto. Aquilo que os opressores denunciam nos oprirnidos não é a verdade dos oprimidos, mas aquilo que os opres­sores temem. Assim, quando as versões oficiais, justificadoras dos massacres dos movimentos revolucionários de camponeses, os descreviam como fanáticos, lunáticos, anárquicos, revela-se em que medida os trabalhadores de enxada e pé no chão questionavam a ordem de dominação. E a história do Brasil apresenta muitos exemplos destes movimentos, denominados messiânicos. Messiânicos? Sim. Esperavam um messias, um representante de Deus para exercer o poder e estabelecer uma sociedade justa sobre a face da terra.
Ao mesmo tempo se elaborou uma ciência nova que recebeu o nome de sociologia do conhe­cimento. Seu ponto de partida é extremamente simples: ela constata que a maneira pela qual pensamos é condicionada. pela textura social de nossas vidas. Certo dia eu" estava engraxando os sapatos, numa praça. O garoto, engraxate, viu um homem que se aproximava e comentou:
"Lá vem um freguês". Perguntei: "É seu conhe­cido?". "Não", foi a resposta. "Então, como é que você sabe que ele é um freguês?". Ao que ele respondeu: "O senhor não olhou prós sapatos dele?". É assim, os olhos dos engraxates e o seu pensamento seguem os caminhos do seu trabalho. O seu mundo, talvez, se divida entre pessoas calçadas e pessoas descalças. E as pessoas calça­das se classifiquem em pessoas que usam sapatos engraxáveis e outras que usam sandálias havaia­nas, alpargatas e sapatos de camurça. . . E assim por diante. No seu ponto extremo esta linha de pensamento nos levaria à conclusão de que os poderosos pensam diferentemente daqueles que não têm poder:

"o mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes" (Wittgenstein).

Mas, não é verdade que toda sociedade tem uma classe dominante e uma classe dominada? Uma classe que pode e outra que não pode? Uma classe forte e uma classe fraca? Até mesmo as crianças e velhos sabem disto — especialmente as crianças e velhos. E também os migrantes, e os camponeses assolados pela seca, e os doentes que morrem sem atendimento médico... e assim por diante. E a conclusão que se segue, necessa­riamente, é que os sonhos dos poderosos têm de ser diferentes dos sonhos dos oprimidos. E também suas religiões...
Os poderosos moram em oásis. O seu poder lhes abre avenidas largas para o bem-estar, a tranquilidade, a prosperidade, o lucro, a saúde. O futuro? Os fortes não querem mudan­ças. Que o futuro seja uma continuação do presente. E como se perpetua o presente? Primeiro, pelo uso da força. Constroem-se fortalezas. Depois é necessário que tanto dominadores quanto dominados aceitem tal situação como legítima. Riqueza pela vontade de Deus, pobreza pela vontade de Deus. . . Tudo se reveste com a aura sagrada. Mas já sabemos que coisas sagradas são intocáveis. Elas exigem reverência e submissão, independentemente de quaisquer considerações utilitárias. O sagrado está destinado à eternidade, bem como o mundo do poder que ele envolve. E é por isto que nos templos se encontram ban­deiras e rituais de ações de graça são celebrados pelo triunfo dos que venceram.
Com os dominados a situação é diferente. Não habitam os oásis, mas os desertos. Sem poder, sem segurança, sem tranquilidade, de um lado para outro, sem raízes e sem terras, sem casas, sem trabalho. Sua condição é de humilhação. Doença. Morte prematura. E o futuro? Os fracos exigem a mudança, se não com sua voz, por medo, pelo menos em seus sonhos. O sofrimento prepara a alma para a visão (Buber). E dos pobres e opri­midos brotam as esperanças — tal como aconteceu com os profetas hebreus — de um futuro em que eles herdarão a terra.
Reencontramo-nos assim no mundo dos profetas em que a religião aparece com toda a sua ambivalência política: os sonhos dos poderosos eternizam o presente e exorcizam um futuro novo; os sonhos dos oprimidos exigem a disso­lução do presente para que o futuro seja a reali­zação do Reino de Deus, não importa o nome que se lhe dê.
É irônico, mas esta conclusão escandaliza tanto a gregos quanto a troianos. De um lado, aqueles que se horrorizaram com a afirmação de Marx de que a religião é o ópio do povo se horrorizam agora com a possibilidade de que talvez ela não o seja... Teria sido melhor que Marx estivesse certo, porque assim os detentores do poder não teriam de se preocupar com os profetas e suas esperanças. Mas, por outro lado, são os próprios marxistas que não podem esconder sua perplexidade. E isto porque, na eventualidade de que as religiões possam revolucionar a reali­dade, terão de admitir que os fantasmas superestruturais podem se encarnar e fazer história...
Um fascinante estudo deste assunto se encontra no artigo de KarI Mannheim entitulado "A menta­lidade utópica", em que ele analisa a maneira como o desejo e a imaginação incidem sobre os fatores materiais para determinar a política. Contraria­mente àqueles que pensam que a ação é sempre o efeito de uma causa material que a antecede, Mannheim sugere que aquilo que caracteriza propriamente a política, como atividade humana é a capacidade que têm os homens para imaginar utopias e organizar o seu comportamento como uma tática para realizá-las. Que são utopias? Realidades? De forma alguma. Como o próprio nome está indicando, utopias se referem a algo que não se encontra em lugar algum (do grego ou = não + topos = lugar). Como surgem elas? Cairão do ar? Não. São as classes sociais opri­midas que, não encontrando satisfação para os seus desejos em sua "topia", emigram pela ima­ginação para uma terra inexistente onde suas aspirações se realizarão. Sua atividade política se torna, então, peregrinação na direção da terra prometida, construção do mundo que ainda não existe.
Foi isto que ocorreu com os camponeses anabatistas do século XVI. Movidos por um profundo fervor religioso, iniciaram um movimento revolu­cionário para a construção de uma nova ordem social, de acordo com a vontade de Deus. Deles as memórias foram poucas. Nem mesmo Marx se lembrou destes ancestrais do proletariado. Esquecimento compreensível. As memórias dos derrotados desaparecem com facilidade.
Mas Engels lhes fez justiça. Mais do que isto, acreditou encontrar fermento semelhante dentro mesmo da comunidade cristã primitiva. É bem possível. Não era ela formada por grupos desti­tuídos de poder? E não sofreram eles todo tipo de perseguição? Não é de se espantar, portanto, que um dos seus textos sagrados, o Apocalipse, tenha falado sobre a esperança de uma revolução total no cosmos, em que todas as potências do mal, inclusive o Estado, seriam destruídas.
Mas permanece um problema, porque esta des­crição que fazemos da religião dos pobres e opri­midos parece não corresponder à realidade. É raro vê-los envolvidos com qualquer coisa que se pareça com a religião dos profetas. Parece que eles se sentem mais à vontade na companhia do mágico, do curandeiro, do milagreiro, tratando de resolver os problemas do seu dia-a-dia sem muita esperança, sabendo que as coisas são o que são pêlos decretos insondáveis da vontade de Deus, sendo mais garantido acreditar que os pobres herdarão os céus que herdarão a terra. E aqui voltamos à sociologia do conhecimento. Existirá alguma outra alternativa para aqueles que diariamente experimentam a impotência? Não será a sua falta de poder que os leva a empur­rar suas esperanças para o outro mundo? Se isto for verdade, o que se poderia esperar de uma situação em que os pobres e oprimidos descobrem a sua força? Parece que quando isto acontece eles se atrevem a transformar seus sonhos em realidade, fazem descer o paraíso dos céus à terra, colocam-no no horizonte, e começam a sua marcha. E é então que começam a aparecer os mártires. Se a religião fosse apenas ópio, veriamós o Estado e o poder económico ao seu lado, protegendo-a como aliada.
Mas os mártires têm aparecido: Gandi, Martin Luther King, Oscar Romero e muitos outros. Líderes religiosos são intimados, perseguidos, ameaçados, expulsos, presos... Isto não aconteceria se fossem aliados do poder. Testemunhos da significação política da religião profética: expressão das dores e das esperanças dos que não têm poder. Ópio do povo? Pode ser, mas não aqui. Em meio a mártires e profetas, Deus é o protesto e o poder dos oprimidos.

As Flores sobre as Correntes - Rubem Alves

Capítulo extraído do livro - "O que é religião" (grifo meu)

"O sofrimento religioso é, ao mesmo tempo, expressão de um sofrimento real e protesto contra um sofrimento real. Suspiro da criatura oprimida, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito: a religião é o ópio do povo".

(K. Marx)

Entramos num outro mundo. Durkheim contem­plou as tênues cores do mundo sacral que desapa­recia, como nuvens de crepúsculo que passam de rosa ao negro, sob as mudanças rápidas da luz que mergulha. Fascinado, empreendeu a busca das origens, do tempo perdido... E lá se foi atrás da religião mais simples e primitiva que se conhecia... Compreender com esperança. . .

Marx não habita o crepúsculo. Vive já em plena noite. Anda em meio aos escombros. Analisa a dissolução. Elabora a ciência do capital e faz o diagnóstico do seu fim. Nada tem a pregar e nem oferece conselhos. Não procura paraísos perdidos porque não acredita neles. Mas dirige o seu olhar para os horizontes futuros e espera a vinda de uma cidade santa, sociedade sem opri­midos e opressores, de liberdade, de transfigu­ração erótica do corpo...

Mas o solo em que pisa desconhece o mundo sacral, de normas morais e valores espirituais. Ele é secularizado do princípio ao fim e somente conhece a ética do lucro e o entusiasmo do capital e da posse. Não importa que os capitalistas frequentem templos e façam orações, nem que construam cidades sagradas ou sustentem movi­mentos missionários, nem ainda que haja água benta na inauguração das fábricas e celebrações de ações de graças pela prosperidade, e muito menos que missas sejam rezadas pela eterna sal­vação de suas almas... Este mundo ignora os elementos espirituais. Salários e preços não são estabelecidos nem pela religião e nem pela ética. A riqueza se constrói por meio de uma lógica duramente material: a lógica do lucro, que não conhece a compaixão. Na verdade, aqueles que têm compaixão se condenam a si mesmos à destruição... Não se pode negar que os gestos e as falas ainda se referem aos deuses e aos valores morais: maquilagem, incenso, desodorante, perfu­maria, uma aura sagrada que tudo envolve no seu perfume, sem que nada se altere. E Marx tem de insistir num procedimento rigorosamente materialista de análise. De fato, materialismo que é uma exigência do próprio sistema que só conhece o poder dos fatores materiais. É a lógica do lucro e da riqueza que assim estabelece — e não as inclinações pessoais daquele que a analisava.

Poucas pessoas sabem que o pensamento de Marx sobre a religião tomou forma e se desen­volveu em meio a uma luta política que travou. E a luta não foi nem com clérigos e nem com teólogos, mas com um grupo de filósofos que entendia que a religião era a grande culpada de todas as desgraças sociais de então, e desejava estabelecer um programa educativo com o obje-tivo de fazer com que as pessoas abandonassem as ilusões religiosas. Marx estava convencido de que a religião não tinha culpa alguma. E que não existia nada mais impossível que a elimi­nação de ideias, ainda que falsas, das cabeças dos homens. . . Porque as pessoas não têm certas ideias porque querem. E imagino que clérigos e religiosos poderão esfregar as mãos com prazer: "Finalmente descobrimos um Marx do nosso lado". Nada mais distante da verdade. A religião não era culpada pela simples razão de que ela não fazia diferença alguma. Como poderia um eunuco ser acusado de deflorar uma donzela? Como poderia a religião ser acusada de responsa­bilidade, se ela não passava de uma sombra, de um eco, de uma imagem invertida, projetada sobre a parede? Ela não era causa de coisa alguma. Um sintoma apenas. E, por isto mesmo, os filó­sofos que se apresentavam como perigosos revo­lucionários não passavam de réplicas de D. Quixote, investindo contra moinhos de vento.

Marx não desejava gastar energias com dragões de papel. Estava em busca das forças que realmente movem a sociedade. Porque era aí, e somente aí, que as batalhas deveriam ser travadas.

Que forças eram estas?

Os filósofos revolucionários a que nos refe­rimos, hegelianos de esquerda, desejavam que a sociedade passasse por transformações radicais. E eles entendiam que a ordem social era construí­da com uma argamassa em que as coisas materiais eram cimentadas umas nas outras por meio de ideias e formas de pensar. Assim, armas, máquinas, bancos, fábricas, terras se integravam por meio da religião, do direito, da filosofia, da teologia. . . A conclusão político-tática se segue necessaria­mente: se houver uma atividade capaz de dissolver ideias e modificar formas antigas de pensar, o edifício social inteiro começará a tremer. E foi assim que eles se decidiram a travar as batalhas revolucionárias no campo das ideias, usando como arma alguma coisa que naquele tempo se chamava crítica. Hoje, possivelmente, eles falariam de conscientização. E investiram contra a religião.

Marx se riu disto. Os hegelianos vêem as coisas de cabeça para baixo. Pensam que as ideias são as causas da vida social, quando elas nada mais são que efeitos, que aparecem depois que as coisas aconteceram. . . "Não é a consciência que determina a vida; é a vida que determina a cons­ciência." E ele afirmava:

"Até mesmo as concepções nebulosas que existem nos cérebros dos homens são necessa­riamente sublimadas do seu processo de vida, que é material, empiricamente observável e determinado por premissas materiais. A produção de ideias, de conceitos, da cons­ciência, está desde as suas origens diretamente entrelaçada com a atividade material e as rela­ções materiais dos homens, que são a linguagem da vida real. A produção das ideias dos homens, o pensamento, as suas relações espirituais aparecem, sob este ângulo, como uma ema­nação de sua condição material. A mesma coisa se pode dizer da produção espiritual de um povo, representada pela linguagem da política, das leis, da moral, da religião,da metafísica. Os homens são os produtores de suas concepções".

"É o homem que faz a religião; a religião não faz o homem".

É o fogo que faz a tumaça; a fumaça não faz o fogo.

E, da mesma forma como é inútil tentar apagar o fogo assoprando a fumaça, também é inútil tentar mudar as condições de vida pela crítica da religião. A consciência da fumaça nos remete ao incêndio de onde ela sai. De forma idêntica, a consciência da religião nos força a encarar as condições materiais que a produzem.

Quem é esse homem que produz a religião?

Ele é um corpo, corpo que tem de comer, corpo que necessita de roupa e habitação, corpo que se reproduz, corpo que tem de transformar a natureza, trabalhar, para sobreviver.

Mas o corpo não existe no ar. Não o encon­tramos de forma abstraia e universal. Vemos homens indissoluvelmente amarrados aos mundos onde se dá sua luta pela sobrevivência, e exibindo em seus corpos as marcas da natureza e as marcas das ferramentas. Os bóias-frias, os pescadores, os que lutam no campo, os que trabalham nas construções, os motoristas de ônibus, os que trabalham nas forjas e prensas, os que ensinam crianças e adultos a ler — cada um deles, de ma­neira específica, traz no seu corpo as marcas do seu trabalho. Marcas que se traduzem na comida que podem comer, nas enfermidades que podem sofrer, nas diversões a que podem se dar, nos anos que podem viver, e nos pensamentos com que podem sonhar — suas religiões e espe­ranças.

Marx também sonhava e imaginava. E muito embora haja alguns que o considerem importante em virtude da ciência económica que estabeleceu, desprezando como arroubos juvenis os voos de sua fantasia, coloco-me entre aqueles outros que invertem as coisas e se detêm especialmente nas fronteiras em que o seu pensamento invade os horizontes das utopias. E Marx se perguntava sobre um outro tipo de trabalho que daria prazer e felicidade aos homens, trabalho companheiro das criações dos artistas e do prazer não utili­tário do brinquedo e do jogo... Trabalho expres­são da liberdade, atividade espiritual criadora, construtor de um mundo em harmonia com a intenção... É claro que Marx nunca viu este sonho utópico realizado em sociedade alguma. Foi ele que o construiu a partir de pequenos fragmentos de experiência, trabalhados pela memória e pela esperança. Mas são estes hori­zontes utópicos que aguçam os olhos para que eles percebam os absurdos do "topos", o lugar que habitamos. E, ao contemplar o trabalho, o que ele descobriu foi alienação do princípio ao fim.

O que é alienação?

Alienar um bem: transferir para uma outra pessoa a posse de alguma coisa que me pertence. Tenho uma casa: posso doá-la ou vendê-la a um outro. Por este processo ela é alienada. A alie­nação, assim, não é algo que acontece na cabeça das pessoas. Trata-se de um processo objetivo, externo, de transferência, de uma pessoa a outra, de algo que pertencia à primeira.

Por que o trabalho é marcado pela alienação?

Voltemos por um instante ao trabalho não alienado, criador, livre, que Marx imaginou. Sua marca essencial está nisto: o homem deseja algo. Seu desejo provoca a imaginação que visualiza aquilo que é desejado, seja um jardim, uma sinfo­nia ou um simples brinquedo. A imaginação e o desejo informam o corpo, que se põe inteiro a trabalhar, por amor ao objeto que deve ser criado. E quando o trabalho termina o criador contempla sua obra, vê que é muito boa e des­cansa...

Que acontece com aquele que trabalha dentro das atuais condições?

Em primeiro lugar, ele tem de alienar o seu desejo. Seu desejo passa a ser o desejo de outro. Ele trabalha para outro.

Em segundo lugar, o objeto a ser produzido não é resultado de uma decisão sua. Ele não está gerando um filho seu. Na verdade, ele não está metido na produção de objeto algum porque com a divisão da produção numa série de atos especializados e independentes, ele é rebaixado da condição de construtor de coisas à condição de alguém que simplesmente aperta um parafuso, aperta um botão, dá uma martelada. Se se pergun­tar a um operário de uma fábrica de automóveis: "que é que você faz?", nenhum deles dirá "eu faço automóveis. Você já viu como são bonitos os carros que fabrico?". Eles não dirão que objetos produzem, mas que função especializada seus corpos fazem: "Sou torneiro. Sou ferramenteiro. Sou eletricista".

Em terceiro lugar, e em consequência do que já foi dito, o trabalho não é atividade que dá prazer, mas atividade que dá sofrimento. O homem trabalha porque não tem outro jeito. Trabalho forçado. Seu maior ideal: a aposentadoria. O prazer, ele irá encontrar fora do trabalho. E é por isto que ele se submete ao trabalho e ao pago do salário.

Em último lugar, o trabalho cria um mundo independente da vontade de operários... e capi­talistas. Porque também os capitalistas estão alienados. Eles não podem fazer o que desejam. Todo o seu comportamento é rigorosamente determinado pela lei do lucro. Não é difícil com­preender como isto acontece. Imaginemos que você, sabendo que o bom do capitalismo é ser capitalista, e dispondo de uma certa importância ajuntada na poupança, resolva dar voos mais altos e investir na bolsa de valores. Como é que você irá proceder? Você deverá consultar tabelas que o informem dos melhores investimentos. E que é que você vai encontrar nelas? Números, nada mais. Números indicam as possibilidades de lucro. Se as firmas em que você vai investir estão derrubando florestas e provocando devas­tações ecológicas, se elas prosperam pela produção de armas, se elas são injustas e cruéis com os seus empregados, tudo isto é absolutamente irrele­vante. Estabelecida a lógica do lucro, todas as coisas — da talidomida ao napalm — se transfor­mam em mercadorias, inclusive o operário. Este é o mundo secular, utilitário, que horrori­zava Durkheim. É o mundo capitalista, regido pela lógica do dinheiro. E o que ocorre é que o mundo estabelecido pela lógica do lucro — que inclui de devastações ecológicas até a guerra — está totalmente alienado, separado dos desejos das pessoas, que prefeririam talvez coisas mais simples. . . Assim, as áreas verdes são entregues à especulação imobiliária, os índios perdem suas terras porque gado é melhor para a economia que índio, as terras vão-se transformando em desertos de cana, enquanto que rios e mares viram caldos venenosos, e os peixes bóiam, mortos...

Mas que fatores levam os trabalhadores a aceitar tal situação? Por que trabalham de forma alie­nada? Por que não saem para outra?

Porque não há alternativas. Eles só possuem os seus corpos. Para produzir deverão acoplá-los às máquinas, aos meios de produção. Máquinas e meios de produção não são seus, e são gover­nados pela lógica do lucro. E é assim que o próprio conceito de alienação nos revela uma sociedade partida entre dois grupos, duas classes sociais. Duas maneiras totalmente diferentes de ser do corpo. Os trabalhadores são acoplados às máquinas e, por isto, têm de seguir o seu ritmo e fazer o que elas exigem. Isto deixará marcas nas mãos, na postura, no rosto, nos olhos, especialmente os olhos. . . Os corpos que habitam o mundo do lucro também têm suas marcas, que vão do colarinho branco (os americanos falam mesmo nos trabalhadores white collar), passando pêlos restaurantes que frequentam, as aventuras amo­rosas que têm, e as enfermidades cardiovasculares que os afligem...

E não é necessário pensar muito para compreen­der que os interesses destas duas classes não são harmónicos. Para Marx aqui se encontra a contra­dição máxima do capitalismo: o capitalismo cresce graças a uma condição que torna o confli­to entre trabalhadores e patrões inevitável. Marx nunca pregou luta de classes. Achava tal situação detestável. Apenas como um médico que faz um diagnóstico de um paciente enfermo, ele dizia: o desenlace é inevitável porque os órgãos estão em guerra... O problema não é de natureza moral nem de natureza psicológica. Não se resolve com boa vontade por parte dos operários e genero­sidade por parte dos patrões. Nenhum salário, por mais alto que seja, eliminará a alienação. Trata-se de uma lei, sob o ponto de vista de Marx, tão rigorosa quanto a lei da química que diz: comprimindo-se o volume de um gás a pressão aumenta; expandindo-se o volume, a pressão cai. E aqui poderíamos afirmar: "Salários compri­midos ao seu mínimo produzem milagres econó­micos expandidos ao seu máximo".

Isto é a realidade: homens trabalhando, em relações uns com os outros, sob condições que eles não escolheram, fazendo com seus corpos um mundo que não desejam.. . E é disto que surgem ecos, sonhos, gritos e gemidos, poemas, filosofias, utopias, critérios estéticos, leis, consti­tuições, religiões...

Sobre o fogo, a fumaça, sobre a realidade as vozes, sobre a infra-estrutura a superestrutura, sobre a vida a consciência...

Só que tudo aparece de cabeça para baixo, confuso. Diz Marx, lá em O Capital, que só vere­mos com clareza quando fizermos as coisas do princípio ao fim, de acordo com um plano previa­mente traçado. Mas quem faz as coisas do princípio ao fim? Quem compreende o plano eral? Os presidentes? Os planejadores? Os ministros? O FMI?

Compreende-se que o que as pessoas têm nor­malmente em suas cabeças não seja conhecimento, não seja ciência, mas pura ideologia, fumaças, secreções, reflexos de um mundo absurdo.

E é aqui que aparece a religião, em parte para iluminar os cantos escuros do conhecimento. Mas, pobre dela... Ela mesma não vê. Como pretende iluminar? Ilumina com ilusões que consolam os fracos e legitimações que conso­lidam os fortes.

"A religião é a teoria geral deste mundo, o seu compêndio enciclopédico, sua lógica em forma popular, sua solene completude, sua justificação moral, seu fundamento universal de consolo e legiti­mação."

De fato, quando o pobre/oprimido, das profun­dezas do seu sofrimento, balbucia: "É a vontade de Deus", cessam todas as razões, todos os argu­mentos, as injustiças se transformam em mistérios de desígnios insondáveis e a sua própria miséria, uma provação a ser suportada com paciência,na espera da salvação eterna de sua alma. E os poderosos usam as mesmas palavras sagradas e invocam os poderes da divindade como cúmplices da guerra e da rapina. E os habitantes ori­ginais deste continente e suas civilizações foram massacrados em nome da cruz, e a expansão colonial levou consigo para a África e a Ásia o Deus dos brancos, e constituições se escrevem invocando a vontade de Deus, e um represen­tante de Deus vai ao lado daquele que foi conde­nado a morrer... Nada se altera, nada se trans­forma, mas sobre todas as coisas dos homens se espalha o perfume do incenso...

Religião, "expressão de sofrimento real, protesto contra um sofrimento real, suspiro da criatura oprimida, coração de um mundo sem coração, espírito de uma situação sem espírito, ópio do povo".

E, desta forma, as palavras que brotam do sofrimento se transformam, elas mesmas, no bálsamo provisório para uma dor que ele é impo­tente para curar. E é por isto que é ópio, "felici­dade ilusória do povo", que deve ser abolida como condição de sua verdadeira felicidade. Mas o abandono das ilusões não se consegue por meio de uma atividade intelectual. As pessoas não podem ser convencidas a abandonar suas ideias religiosas. Ideias são ecos, fumaça, sinto­mas. . . Se elas têm tais ideias é porque a sua situação as exige. É necessário, então, que sua situação seja mudada, as fendas curadas, para que as ilusões desapareçam.

"A exigência de que se abandonem as ilusões sobre uma determinada situação, é a exigência de que se abandone uma situação que neces­sita de ilusões."

"A crítica arrancou as flores imaginárias da corrente não para que o homem viva acorren­tado sem fantasias ou consolo, mas para que ele quebre a corrente e colha a flor viva. A crítica da religião desilude o homem, a fim de fazê-lo pensar e agir e moldar a sua reali­dade como alguém que, sem ilusões, voltou à razão; agora ele gira em torno de si mesmo, o seu sol verdadeiro. A religião é nada mais que o sol ilusório que gira em torno do homem, na medida em que ele não gira em torno de si mesmo."

Marx antevê o fim da religião. Ela só existe numa situação marcada pela alienação. Desapa­recida a alienação, numa sociedade livre, em que não haja opressores, não importa que sejam capi­talistas, burocratas ou quem quer que ostente algum sinal de superioridade hierárquica, desapa­recerá também a religião. A religião é fruto da alienação. E com isto os religiosos mais devotos concordariam também. Nem no Paraíso e nem na Cidade Santa se e/nitem alvarás para a cons­trução de templos...

O equívoco é pensar que o sagrado é somente aquilo que ostenta os nomes religiosos tradicionais. Bem lembrava Durkheim que as roupas simbó­licas da religião se alteram. Onde quer que ima­ginemos valores e os acrescentemos ao real, aí está o discurso do desejo, justamente o lugar onde nascem os deuses. E Marx fala sobre uma sociedade sem classes que ninguém nunca viu, e na visão transparente e conhecimento crista­lino das coisas, e no triunfo da liberdade e no desaparecimento de opressores e oprimidos, enquanto o Estado murcha de velhice e inuti­lidade, ao mesmo tempo que as pessoas brincam e riem enquanto trabalham, plantando jardins pela manhã, construindo casas à tarde, discutindo arte à noite. . . De fato, foram-se os símbolos sagrados, justamente aqueles "já avançados em anos ou já mortos. . .". Mas eu me perguntaria se a razão por que o marxismo foi capaz de produ­zir "horas de efervescência criativa, nas quais ideias novas apareceram e novas fórmulas foram encontradas, que serviram, por um pouco, como guias para a humanidade", sim, eu me pergun­taria se tudo isto se deveu ao rigor de sua ciência ou à paixão de sua visão, se se deveu aos detalhes de sua explicação ou às promessas e esperanças que ele foi capaz de fazer nascer.. . E se isto for verdade, então, à análise que o marxismo faz da religião como ópio do povo, um outro capítulo deveria ser acrescentado sobre a religião como arma dos oprimidos, sendo que o marxismo, de direito, teria de ser incluído como uma delas. . . Parece que a crítica marxista da religião não termina com ela, mas simplesmente inaugura um outro capítulo. Porque, como Albert Camus corretamente observa, "Marx foi o único que compreendeu que uma religião que não invoca a transcendência deveria ser chamada de polí­tica...".