terça-feira, 31 de agosto de 2010

Feminismo, Gênero e Revolução - Lelita Oliveira Benoit

Texto extraído da revista Crítica Marxista, disponível em: http://www.unicamp.br/cemarx
/criticamarxista/05lelita.pdf
. A autora é Doutora em Filosofia Política pela USP e pesquisadora da Fapesp.

"De mãos dadas com o homem de sua classe, a mulher proletária luta contra a sociedade capitalista."
Clara Zetkin (1)

A partir dos anos 80, os chamados "estudos de gênero" revolucionaram todo o campo conceitual em que se situava a questão do feminismo. O próprio conceito de "feminino" - ou de "feminilidade" - passou por uma radical revis ão, particularmente, no sentido de superar e erradicar os referenciais "biológico-sexuais" que envolviam a temática feminista. Procurou-se, desde então, circunscrever as expressões culturais, sociais, psicológicas do feminino e reconstruir o conceito de feminino no campo das suas significações simbólicas; nesse sentido, passou-se a investigar, nos diversos domínios da cultura, da sociedade e da história, as chamadas "relações de gênero" entre mulheres e homens (2).

A partir destas séries de pesquisas acadêmicas, ao menos à primeira vista, parece ter havido um avanço teórico significativo no domínio geral antes ocupado pelo chamado "feminismo". Sobretudo, considera-se importante a superação de um suposto reducionismo biológico que sobredeterminava as diversas categorias da anterior reflexão feminista: conceitos como "luta entre os sexos", "diferenças sexuais entre mulher-homem", entre outras. O pretenso progresso teórico em curso foi bem sintetizado pela historiadora Joan Scott: "Na sua utilização recente, `gênero´ parece primeiro ter feito aparição entre as feministas americanas que queriam insistir sobre o caráter fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. A palavra indicava a rejeição do determinismo biológico implícito no uso dos termos como `sexo´ e `diferença sexual´. O gênero enfatiza o aspecto relacional das definições normativas de feminidade." (3)

Diante disto, pretendemos refletir especificamente sobre a seguinte questão: os chamados "estudos de gênero", enraizados na tese da desnaturalização do social, podem, efetivamente, em algum sentido, contribuir e harmonizarse com a teoria marxista clássica?


1. Feminismo

Reflitamos, inicialmente, sobre o discurso feminista contra o qual se voltam os estudos de gênero. As categorias biológico-deterministas ("opressão sexual", "luta de sexos", "classes sexuais") predominaram no discurso feminista que, durante os anos posteriores às barricadas de 68, autodenominava-se "revolucionário e marxista"(4).

Exemplo significativo do discurso feminista daqueles anos encontra-se em Feminisno e Revolução. Nesta obra, Sheila Rowbotham sustenta a necessidade de uma revisão feminista do marxismo, apoiando-se em categorias que são evidentemente a-históricas e marcadas por um recorte biológico. Argumentava a autora que Marx e também, em certo sentido, a tradição marxista não teriam compreendido a especificidade da opressão feminina. Sendo historicamente anterior à sociedade capitalista, enraizada na própria natureza biológica, a opressão sexual incidiria, com a mesma intensidade, sobre as mulheres de todas as classes sociais. Em outras palavras, para a autora, seria necessário repensar o conceito marxista da história como luta de classes completando-o com o da "luta entre os sexos".

Segundo Rowbotham, inquietações revolucionárias fundamentais poderiam originar-se do entrecruzamento sexo/classe: "Estando dado que a submissão da mulher precedeu à sociedade capitalista, podemos esperar que uma revolução, que transforme os fundamentos econômicos da sociedade no sentido do socialismo, afetará o papel sexual da mulher?"(5). Concluía Rowbotham que, a exemplo da União Soviética e de outros países do Leste Europeu, a transformação da propriedade privada capitalista em propriedade socialista não implicaria, necessariamente, o fim da opressão de sexo. Nesse mesmo sentido, naqueles anos, elaborou-se o conceito de "classes sexuais"(6). Contra Marx, resgatandose, em certo sentido, as análises de Engels de inspiração antropológica, sobretudo de A origem da família, da propriedade privada e do Estado, procuravase entrecruzar a questão da dominação econômica entre classes à questão mais universal da mulher, como "sexo oprimido"(7).

No mesmo período, a teoria das novas vanguardas era elaborada no interior de partidos ditos "marxistas". Lado a lado à classe operária, pensava-se então nas novas vanguardas: a juventude, as chamadas "minorias" raciais, sexuais, etc., assim como a "vanguarda feminista". Mary-Alice Waters, feminista e marxista, justificava o pensamento da nova vanguarda feminista pós-68, com as seguintes reflexões: "O novo ascenso das lutas das mulheres em escala internacional e o surgimento de um forte movimento de liberação da mulher (...) aumentam a força política da classe trabalhadora e tornam mais clara a possibilidade de que a revolução possa ser levada adiante, até a sua tarefa de reconstrução socialista. O surgimento do movimento de liberação da mulher é uma garantia adicional contra a degeneração burocrática de futuras revoluções" (8).

No Secretariado Unificado da IV Internacional, e particularmente na sua seção americana, o Socialist Workers Party, a organização e luta pelo socialismo deveria ter como eixo, ao mesmo tempo, a questão de classe e a questão de sexo, como atestam diversos documentos daquela época: "A verdade é que as mulheres estão, ao mesmo tempo, unidas pela opressão sexista e divididas pela sociedade de classes. Há [contudo] uma base objetiva sobre a qual é possível unificar a luta das mulheres de diferentes classes e nacionalidades: todas as mulheres são oprimidas enquanto mulheres [sic] pelo capitalismo"(9).


2. Gênero

Desde os anos 80, essas posições teóricas feministas foram sendo, pouco a pouco, abandonadas. As abordagens chamadas "estudos de gênero" - nas quais se fundamenta o discurso atual sobre o feminino - vêm apontando a fragilidade de conceitos tais como opressão sexual, guerra dos sexos, classe sexual, papéis sexuais. Contra o suposto "engano biológico-determinista" da teoria feminista anterior, mas também, em certos casos, para "evitar a redução ao determinismo econômico" do marxismo, defende-se agora que sejam feitas pesquisas específicas sobre o feminino, reconstruindo este objeto a partir de uma multiplicidade de níveis e perspectivas. Deve-se levar em conta os aspectos mais diversos: culturais, literários, sociais, históricos, psicológicos, etc.(10) Além disso, recomenda-se que não se privilegie, como fundamento da opressão feminina, qualquer "causalidade única" (11).

Apesar da multiplicidade dos enfoques disciplinares, "gênero" pode ser entendido, contudo, como o nome de um certo modo ou método de conhecer o "feminino" a partir das significações construídas, de modo relacional, por mulheres e homens. As relações de gênero, sustentam os estudos atuais, devem ser apreendidas ali onde se desenvolve o simbólico, ou seja, nas definições ou imagens do feminino (e do masculino). Trata-se de estudar as significa ções do feminino, ou, nas palavras de Joan Scott: "o aspecto relacional das definições normativas de feminidade".

Se parte do discurso feminista pós-68, de maneira confusa, procurava apoiarse basicamente ainda na teoria marxista, agora, este novo discurso, com o conceito relacional-cultural de gênero, parece possuir outros referenciais teóricos. As categorias "gênero", "relação de gênero" e "feminino", como entes construídos culturalmente, isto é, como elementos simbólicos, parecem nos remeter ao corpus teórico da sociologia da cultura. Em Economia e sociedade, Max Weber desenvolve certas matrizes conceituais que, de certo modo, são reativadas, de maneira evidente, na categoria "gênero", tal como é utilizada pelo discurso atual sobre o feminino. Designamos por "relação social" - escreve Weber - "o comportamento de diversos indivíduos em tanto que, por seu conteúdo significativo [Sinngehalt], o comportamento de uns se regulamenta pelo de outros [auf-einander gegenseitig eingestellt] e se orienta por eles"(12). Prossegue Weber explicando que o "conteúdo significativo" da relação pode ser "luta, hostilidade, amor sexual, amizade, piedade, troca comercial, etc.".(13)

Como o paradigma weberiano (14) de "relação social", a categoria "gênero" delimita o estudo da questão da desigualdade feminina às significações que são construídas nas relações entre indivíduos, especificamente, entre "mulheres" e "homens". Além do mais, como se obedecessem rigorosamente aos preceitos epistemológico-weberianos, as atuais investigadoras do feminino evitam pensar o conceito de relações de gênero como se este fosse uma entidade realmente existente ou "estrutura coisificada"(15). À semelhança dos paradigmas ou "tipos ideais" weberianos, gênero é o nome de uma categoria do entendimento, uma espécie de abstração sem maior realidade ontológica. É nesta abstração que as pesquisas atuais se apóiam para apreender e descrever aspectos ou significações parciais das relações específicas entre mulheres e homens.

Ainda no corpus teórico da sociologia da cultura, podemos demarcar proximidades do conceito de gênero com certas categorias simmelianas, em particular, nas chamadas de "formas de associação". "Associação" (Vergesellschaftung), para Simmel, é uma espécie de síntese frágil de tendências opostas, como ele próprio explica: "As relações sociológicas são condicionadas de modo absolutamente dualista: a união, a harmonia, a cooperação, que valem enquanto tais como forças socializantes, devem ser atravessadas pela distância, a concorr ência, a repulsão, para dar lugar às configurações reais da sociedade (...)" (16). É preciso ainda que os indivíduos em interação "uns com os outros, para e contra os outros", formem de alguma maneira uma "unidade", uma "sociedade ", e que sejam conscientes disto. Em certo sentido, segundo Simmel, a sociedade seria a "unidade objetiva" das consciências subjetivas, cujo jogo de interações ou associação forma o substrato essencial. Sendo que, como escreveu o próprio Simmel, a compreensão do social, na sua multiplicidade infinita, deve ser elaborada a partir de conteúdos subjetivos da consciência: "Qualquer que seja o acontecimento exterior que designamos como social (...) senão reconhecermos, de modo evidente, as motivações espirituais, os sentimentos, os pensamentos, as necessidades, (...) tratar-se-á de um espetáculo de marionetes" (17).

As formas sociais (conflito, subordinação, divisão do trabalho) pensadas à maneira de Simmel remetem-nos à categoria "gênero", tal como é elaborada pelo discurso atual do feminino. Como as formas sociais de Simmel, gênero é um modelo conceitual do jogo de interações simbólicas, neste caso, esta forma social gênero é constituída pela polaridade "feminino/masculino"(18). Aliás, a própria forma feminino/masculino é essencializada por Simmel, como modelo significativo da "tragédia da cultura". Na teoria da cultura simmeliana, o "masculino" está vinculado à cultura objetiva (lugar da alienação das significa ções individuais) e o feminino, à cultura subjetiva (imanência individual das significações preservadas), sendo que a tragédia da cultura (perda do sentido) é apresentada como "tragédia feminina"19. Como as categorias simmelianas, também as "relações de gênero", no discurso atual do feminino, são pensadas, de certo modo, como oposição não-contraditória e apenas relativa. Nesse sentido, as relações de gênero são apenas relações entre pólos complementares, não permitindo que seja pensada qualquer superação do processo de divisão do trabalho que subordina e oprime a mulher, a partir da oposição contraditória entre classes sociais.

Ao mesmo tempo, se a categoria "gênero" se enraíza na compreensão weberiana e simmeliana das oposições sociais, afasta-se da teoria marxista clássica(20). Para Marx, a análise e a síntese teórica das relações sociais não podem ter como elemento essencial as significações que os indivíduos lhes atribuem, ou seja, as realidades discursivas da consciência. Aquilo que os indivíduos pensam não coincide, em geral, com o seu ser real, conforme Marx escreveu no Prefácio à crítica da economia política: "O modo de produção da vida material domina, em geral, o desenvolvimento da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a sua existência, ao contrário, é sua existência social que determina sua consciência."(21) Ao contrário de ser reveladora de conteúdos, a consciência - na sociedade de classes - seria o lugar privilegiado das deformações ideológicas das relações sociais. Portanto, do ponto de vista de Marx, pode-se dizer que os estudos atuais sobre o feminino, ao tomarem construções simbólico-sociais de gênero como fio condutor de suas análises, recaem no engano comum a todas as manifestações do idealismo conceitual.

Mas se gênero, como "categoria de análise" (22), não coincide com o método marxista, podemos dizer que a teoria anterior, da chamada "nova vanguarda feminista", aparece, do ponto de vista de Marx, como igualmente problemática. Também aquela teoria feminista, que se autodenominava "revolucionária e marxista", quando dava realidade indiferenciada e indeterminada às diferenças biológico-sexuais, fundava o universal "mulher" de maneira puramente abstrata; naturalizava elementos históricos e cortava, em diagonal, a concreticidade da luta de classes, totalidade, esta sim, real para Marx.

Aliás, talvez por isso mesmo, aquela teoria da chamada "nova vanguarda feminista", dos anos 60, apesar de comprometida com setores ditos "marxistas ", não obteve resultados objetivos significativos no movimento revolucionário das mulheres operárias, repercutindo muito mais nos setores burgueses e pequeno-burgueses. Em sentido contrário, lembremos que, no quadro da II Internacional, Clara Zetkin defendeu, em uma infinidade de textos teóricos e políticos, a independência de classe do movimento das mulheres operárias, em relação ao "feminisno burguês"(23). Contra vanguardas feministas acima das classes, Clara Zetkin escreveu: "Certamente, Marx não se ocupou da questão feminina `enquanto tal´ e `em si mesma´. Entretanto, sua contribuição é insubstituível, ela é essencial na luta levada pelas mulheres para conquistar seus direitos. (...) Em O capital, acumula-se uma profusão de fatos, de idéias e de sugestões sobre a questão do trabalho feminino, sobre a situação das trabalhadoras, sobre a justificação da proteção legal do trabalho, etc. É um arsenal intelectual inesgotável para nossa luta, tanto para as nossas reivindicações imediatas como para nosso objetivo socialista."(24) A própria Clara Zetkin discute amplamente em seus escritos, a importância, no final do século XIX e começo do XX, da agitação e da propaganda de questões específicas que atingiam, em massa, a mulher da classe operária (direito ao voto, legislação trabalhista, assistência à maternidade, etc.), ou seja, aqui a mulher é pensada como força de trabalho explorada pelo capital, isto é, como e enquanto Marx a analisou.

Em O capital, Marx esboçou a tese que fundamenta a organização e a luta independentes das mulheres trabalhadoras. Naquela obra, no capítulo "Maquinaria e Grande Indústria", Marx observa que a mecanização crescente do processo de trabalho torna progressivamente dispensável a força muscular do trabalhador, possibilitando a incorporação "de trabalhadores sem força muscular ou com desenvolvimento corporal imaturo, mas com membros de maior flexibilidade" (25). Concretiza-se assim, conclui Marx, um trágico paradoxo: a maquinaria, poderoso meio de substituir trabalho humano, em sua utilização capitalista, transformou-se em seu oposto, ou seja, em poderoso meio de multiplicar infinitamente o número dos que podem trabalhar, ao destruir concretamente todas as diferenças entre a força de trabalho masculina e feminina, instaurando a mais absoluta e brutal igualdade, a da força de trabalho disponível para a exploração. Além disso, prossegue Marx, "a maquinaria, ao lançar todos os membros da família do trabalhador no merca o de trabalho, reparte o valor da força de trabalho do homem por toda sua família", rebaixa o valor do trabalho masculino e conseqüentemente, dali para diante, todos "os membros da família precisam fornecer não só trabalho, mas mais-trabalho para o capital, para que uma família possa viver." (26) Desse modo, para Marx, a maioria das mulheres é reduzida (como os homens e também os jovens e crianças da classe trabalhadora) à condição de simples força de trabalho, ou seja, matéria de exploração do capital.

Marx não aprofunda de fato, como disse Zetkin, a questão específica das mulheres, ou seja, a questão da divisão "natural" do trabalho no interior da família e da subordinação "natural" ao homem. Mas, exatamente porque, para Marx, a superação das classes sociais, a instauração do comunismo, resulta na superação da exploração da força de trabalho tanto do homem como da mulher e, portanto, na superação de todas as formas opressoras de divisão do trabalho, inclusive as familiares, que recaem particularmente sobre as mulheres. Para Marx, as questões específicas de opressão das mulheres - que atingem as mulheres em geral e não só as operárias - estariam vinculadas à sobrevivência, na sociedade atual, de formas pré-capitalistas de relações sociais que a sociedade burguesa, na sua fase já de decadência, jamais será capaz de superar.

Para Marx, ao contrário, legitimadas por supostos enraizamento na natureza, as determinações biológico-sexuais (mas também raciais, nacionais, de idade, etc.) da divisão do trabalho permaneceriam indefinidamente sob o capitalismo, mesmo porque a burguesia sabe instrumentalizá-las para alargar ainda mais o tempo de trabalho não-pago da classe operária e conservar a sua dominação de classe. Em O capital, Marx se refere à divisão natural do trabalho existente "no limiar de todos os povos civilizados", sem contudo, tomar o ponto de vista antropológico, ou seja, o ponto de vista da investigação de supostos fundamentos universais, intemporais da divisão do trabalho. O que interessa, para Marx, é pensar a atual divisão do trabalho, como lemos nos Grundrisse: "Não é a unidade dos homens vivos e ativos com as condições naturais e inorgânicas de seu metabolismo com a natureza que tem necessidade de ser explicada; é, ao contrário, a separação entre as condições inorgânicas da existência humana e de sua atividade, separação que é total na relação entre o trabalho assalariado e o capital."(27) Nesse sentido, pode-se concluir que, para Marx, a questão específica das mulheres trabalhadoras, e não só delas, se reduziria, finalmente, à questão da superação revolucionária do modo de produção capitalista.


3. Revolução

A partir de tais colocações, diante da teoria marxista clássica, manifestamse claramente os limites conceituais do feminismo e das matrizes sociológicas utilizadas pelo discurso de gênero. Por outro lado, neste caso, como em tantos outros aspectos, as análises de Marx não parecem totalmente envelhecidas, como propaga a ideologia burguesa. Aqueles limites conceituais, aliás, são confirmados, em parte, pela história mais recente. Se é verdade que mesmo no interior do capitalismo os direitos das mulheres têm sido contemplados, nas últimas décadas, isto ocorreu de modo bem unilateral. É inegável que, particularmente após os anos 60, significativos avanços democráticos foram obtidos pelas mulheres da burguesia e da pequena burguesia (intelectuais, artistas, profissionais liberais, políticas, etc.). Desta época em diante, este setor social vem conquistando direitos civis e igualdade de oportunidades de trabalho. Se isto não deu ainda a estas mulheres a cidadania burguesa absoluta, ao menos, configura significativo avanço na direção da completa igualdade, de forma jamais sonhada em outras épocas históricas. No entanto, estas mulheres emancipadas, em geral, situam-se nas relações de produção, entre aqueles que extraem mais-valia das próprias mulheres, as operárias(28).

As mulheres da classe trabalhadora, ao contrário, nada conquistaram nas últimas décadas. A estas, muito pelo contrário, cada vez mais amplamente, têm sido negados direitos democráticos, mesmo aqueles conquistados pela luta do movimento operário, desde o século XIX, como o simples direito ao trabalho, hoje retirado, em nome da chamada "modernização capitalista"(29) Tendo, com muita astúcia, feito o corte de classes na questão das mulheres, a burguesia ainda vê a mulher da classe operária como simples "instrumento de trabalho", para usarmos a expressão de Marx(30).

Realmente, a igualdade das mulheres, em sentido não-unilateral, parece ter limites bem concretos, no âmbito da sociedade capitalista e da democracia burguesa. Contudo, a superação de todas as desigualdades culturais, sociais, psicológicas, sexuais e da própria divisão natural do trabalho, não pode ser considerada tão-somente uma utopia adiada para uma hipotética sociedade socialista do futuro. Sob nossos olhos, concretamente, muitas vezes, já foi e é iniciada a superação, mais ampla, da desigualdade feminina. Ali onde a negação revolucionária da sociedade capitalista é iniciada, percebem-se claros avanços nas relações cotidianas entre mulheres e homens, no sentido de uma sempre crescente igualdade democrático-socialista. Assim é que, significativamente, nos primeiros anos da Revolução Russa, efetivou-se uma ampla legislação igualitária, acompanhada do esclarecimento revolucionário e da organização política das trabalhadoras russas, no sentido da real concretização de seus direitos (31). Mesmo que tenha sido aprisionado nos limites do "socialismo em um só país", e fracassado, o projeto democrático-socialista para as trabalhadoras russas permanece, enquanto gênese e modelo radical de outras experiências possíveis.

Atualmente, os movimentos populares da América Latina, na concreticidade de práticas político-revolucionárias cotidianas, recolocam a questão democrático-socialista das mulheres. Veja-se a experiência igualitária no interior das FARC-EP, organização marxista que controla parte da Colômbia: homens e mulheres dividem todo o trabalho revolucionário, político e cotidiano, mesmo o doméstico (32). Da mesma forma, nos acampamentos do MST, no processo de luta social, as mulheres trabalhadoras adquirem consciência política e direitos que a sociedade burguesa lhes nega. Também em momentos mais esporádicos de luta, por exemplo em grandes greves, as mulheres trabalhadoras, freqüentemente, já ali vivem a experiência da igualdade que está contida na própria oposição operária à exploração burguesa da força de trabalho.



Notas

(1) Zetkin, C. “Relatório para o congresso de Gotha”, 1896. In Ausgewählte Reden und Schriften. 3 vols. Berlim (R. D. A.): Dietz Verlag, 1957-60, T. 1, p. 103-5.
(2) Deve-se a constituição teórica do conceito de “gênero” à socióloga Ann Oakley, em trabalhos que remontam à década de 70 (cf. Sex, gender and society, 1972; The sociology of housework, 1974, Housewife, 1976), sendo, mais recentemente, rediscutido pela historiadora Joan Scott em “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Tradução de G. Lopes Loro. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, 16 (2):5:22, jul./dez. 1990, p. 5-22; Idem. Gender and Politics of History. New York: Columbia University Press, 1994.
(3) Scott, Joan. “Gênero: uma categoria útil… ”, op. cit., p. 5. O suposto progresso teórico é apontado na extensa bibliografia de “gênero”, também no Brasil: “Gênero tem sido (… ) o termo usado para teorizar a diferença sexual. (… ) A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como ‘sexo’ ou ‘diferença sexual’. O gênero sublinha o aspecto relacional entre homens e mulheres, ou seja, nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir através de um estudo que os considere totalmente em separado.” (Soihet, Rachel.”História, mulheres, gênero: contribuições para um debate”. In Aguiar, Neuma (org.). Gênero e Ciências Humanas, desafios às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1997, p. 101).
(4) Sobre o feminismo da década de 70, cf. Fougeyrollas, Dominique. “Les féministes des années 1970”. In Fauré, Christine (org.). Encyclopédie politique et historique: Europe, Amérique du Sud. Paris: PUF, 1997; Thébaud, François. Écrire l’histoire des femmes. Col. “Sociétes, temps”. Fontenayauxroses: ed. Fontenay-Saint-Cloud, 1998.
(5) Rowbotham, S. Féminisme et Révolution [Women, Resistance and Revolution, 1972]. Paris: Payot, 1973, p. 86.
(6) Cf. Firestone, Shulamith. A dialética do sexo, um estudo da revolução feminista [ The dialectic of Sex, 1970]. Rio de Janeiro: Ed. Labor do Brasil, 1976, p. 14.
(7) Até hoje, A origem da família… é uma referência necessária aos estudos do feminino e feministas. Para uma leitura feminista clássica do pensamento de Engels, cf. Delmar, Rosalind. “Looking again at Engels’s ‘Origins of the family, private property and State’”. In Mitchell, Juliet e Oakley, Ann (org.). The rights and wrongs of women. Londres: Penguin Books, 1976, p. 271-287.
(8) Water, M.-A. “La revolución socialista y la lucha por la liberación de la mujer”. In Trotski, Leon. Escritos sobre la cuestión femenina. Barcelona: Anagrama, 1977, p. 133.
(9) “Un programme socialiste pour la libération des femmes: vers un mouvement féministe de masse (Résolution de congrès du Socialist Workers Party)”. In F. Le Cavez, Françoise. (tradução e apresentação). Féminisme et socialisme aux États-Unis. Col. “10/18”. Paris: U.G.E, 1979 ( 1a ed., 1971); este documento se insere na linha política “inovadora” do setor dito “pablista” do trotskismo que, na década de 50, já “inovara” sustentando uma possível “regeneração dos PCs” e do “stalinismo”.
(10) Para uma descrição da abrangência teórica da categoria “gênero” cf. Scott, Joan, “Gênero: uma categoria útil...”, op. cit.
(11) Sobre o relativismo imanente aos estudos de gênero, comenta uma das pioneiras na temática: “Sendo escrupulosa em meu uso das palavras, utilizaria o termo ‘sexo’ apenas para falar da diferença biológica entre macho e fêmea, ‘gênero’ quando me referisse às construções sociais, culturais, psicológicas que se impõem sobre essas diferenças biológicas. Gênero designa um conjunto de categorias às quais outorgamos uma mesma etiqueta ( crosslinguistically, ou crossculturally), porque elas têm alguma conexão com diferenças sexuais. Estas categorias, no entanto, são convencionais ou arbitrárias. Elas não são redutíveis e não derivam diretamente de fatos naturais, biológicos, e variam de uma linguagem a outra, de uma cultura a outra, na maneira em que ordenam experiência e ação” (Shapiro, Judith. ”Anthropology and study of gender”. In Soudings, an Interdisciplinary Journal, 64, n. 4, 1981, p. 446-65).
(12) Weber, M. Économie et Société (Wirtschaft und Gesellschaft), 1 e 2 . Tradução de Julien Freund e outros. Paris: Plon, 1971, T. 1: “Les catégories de la sociologie”, p. 58.
(13) Idem, ibidem. A seguir, Weber explica que “o conceito nada diz sobre a existência de uma ‘solidariedade’ entre os agentes ou o contrário”.
(14) É o próprio Weber que se refere aos “paradigmas sociológicos” ou “tipos”, explicando: “A sociologia – como pressupomos em vários momentos, por ser evidente – elabora conceitos de tipos e põe-se à procura das regras gerais do devir (… ). A elaboração de conceitos, que é característica da sociologia, toma seus materiais, sob a forma de paradigmas, nas realidades da atividade as quais são igualmente importantes para os pontos de vista da história” (op. cit., p. 48-49, grifos do autor).
(15) Como diz Weber, rejeitando o realismo conceitual dos universais ou das totalizações: “Não é somente a natureza particular da linguagem, mas também aquela de nosso pensamento que faz com que os conceitos, pelos quais apreendemos uma atividade, deixem que esta apareça sob a forma de uma realidade durável, de uma estrutura coisificada ou de uma estrutura ‘personificada’, tendo uma existência autônoma. É assim igualmente, e mesmo bem particularmente, em sociologia. Conceitos como aqueles de ‘Estado’, ‘associação’, ‘feudalismo’ ou outros semelhantes, designam, de uma maneira geral, do ponto de vista da sociologia, categorias representando formas determinadas da cooperação humana; [a] tarefa [da sociologia] consiste em as reduzir a uma atividade ‘compreensível’, o que quer dizer, sem nenhuma exceção, a uma atividade dos indivíduos isolados que delas participam.” (Weber, M. “Essai sur quelques catégories de la sociologie compréhensive” (“Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie”, 1913). Tradução de J. freund. In Weber, M. Essais sur la théorie de la science ( Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre). Paris: Plon, p. 318-19.
(16) Simmel, G. Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung, in Gesamtausgabe, v. 11. Frankfurt, Suhrkamp, 1992, p. 28, cit. por Vandenberghe, F. Une histoire critique de la sociologie allemande. Aliénation et Réification. 2 T. Paris: La découverte/M.A.U.S.S, 1997. T 1, p. 117.
(17) Idem, ibidem, p. 35.
(18) Simmel propõe que as formas de associação sejam reconstruídas conceitualmente fazendo-se o inventário das polaridades que as constituem, ou seja: distinção/imitação, oposição/integração, resistência/submissão, diferenciação/expansão, distanciamento/proximidade. Assim, por exemplo, o conflito, como forma social, deve ser pensado (reconstruído conceitualmente) como síntese entre “subordinação e resistência”; a troca, como forma social “que separa e une os indivíduos”, etc.
(19) Simmel, G. “Culture féminine”. In: Philosophie de l’amour. Paris: Rivages, 1988, p. 69-109; Idem. “Ce qui est relatif et ce qui est absolu dans le problème des sexes”. In: Philosophie de la modernité. La femme, la ville, l’individualisme, I. Paris: Payot, 1989, p. 69-112.
(20) Para uma análise comparada de Marx e Weber, além do estudo clássico de Löwith, K. Marx and Weber. Londres: Allen & Unwin, 1982, cf. Weiss, J. Weber and the marxist world. Londres: Routledge, 1986; Wiley, N. (direção de). The Marx-Weber debate. Bervely Hills: Sage, 1987; Sayer, D. Capitalism and modernity. An excursus on Marx and Weber. Londres: Routledge, 1991; Vincent, J.-M. Fétichisme et société. Paris: Anthropos, 1973.
(21) Marx, K. “Avant Propos”. In Critique de l’Économie Politique [ Zur Kritik der politischen Oekonomie, 1859]. Tradução de M. Rubel e L. Évrard. In Marx, K., Oeuvres. T: Economie I. Col. “Bibliothèque de la Pléiade”. Paris: Gallimard. p. 273.
(22) A expressão é de Joan Scott.
(23) Amiga de Rosa Luxemburg, de Franz Mehring e de Karl Liebknecht, Clara Zetkin (1857-1933) foi uma das figuras marcantes da ala esquerda da social-democracia alemã; em 1907, tornou-se dirigente do Movimento internacional das mulheres socialistas. Organizou, em 1915, uma conferência internacional das mulheres, em Berna. Foi dirigente da Liga spartakista, e mais tarde do partido comunista alemão; em 1921, eleita para o Comitê executivo da III Internacional. Como Rosa, após 1906, denunciou o reformismo da direção social-democrata, que, segundo pensava, não lutava com bastante energia contra a sociedade capitalista. Clara criou aquele que foi então o mais importante e único órgão de propaganda e agitação socialista dirigido às mulheres trabalhadoras: Die Gleichheit ( A Igualdade), cujo subtítulo era: “Revista dos interesses das trabalhadoras” que circulou amplamente, na Europa, de 1891 a 1917. Em sua luta política pela independência de classe do movimento das mulheres trabalhadoras, enfrentou a ala feminista reformista dentro da própria social-democracia alemã; comenta Badia que, para Clara, “(… ) o partido não tem que desenvolver uma propaganda feminina específica, mas uma ‘propaganda socialista entre as mulheres’. Sendo que sua tarefa essencial é despertar ‘nas mulheres a consciência de classe e fazê-las participar da luta de classes’.” Badia, Gilbert. “Préface”. In: Zetkin, C. Batailles pour les femmes. Paris: Ed. Sociales, 1980, p.35; sobre a atividade política de Clara Zetkin, cf. Badia, G. Rosa Luxemburg, journaliste, polémiste revolutionnaire. Paris: ed. Sociales, 1975; Idem. Les spartakistes, 1918: l’Allemagne en révolution. Col. “Archives”. Paris: Julliard-Gallimard. 2a ed., 1974; Dornemann, Luise. Clara Zetkin. Leben und Wirken. Berlim: Dietz Verlag, 1973. Constituída por uma infindável série de escritos teóricos e políticos, a obra de Clara Zetkin foi reunida, parcialmente, em Ausgewählte Reden und Schriften. 3 vols. Berlim: Dietz Verlag, 1957.
(24) Zetkin, C. “Ce que les femmes doivent à Karl Marx”, 1890 [“O que as mulheres devem a Karl Marx”, 1890]. In Idem. Batailles pour les femmes. Paris: ed. Sociales, ed. cit., p. 90-94; cf. Idem. La cuestión femenina y la lucha contra el reformismo. Barcelona: Anagrama, 1976.
(25) Marx, K. O capital. Crítica da Economia Política. Tradução de R. Barbosa e F. Kothe. 3 Livros. Col. “Os Economistas”. São Paulo, Abril, 1983. Livro I, (1/2), p. 23 .
(26) Idem, ibidem.
(27) Marx, K. Fondements de la critique de l’économie politique [ Grundrisse der Kritik der politischen economie, 1857-58]. Tradução de R. Dangeville. Paris: Anthropos, 1968; 2bis. “Supplément au Chapitre du Capital”, p. 24.
(28) Neste sentido, não parece sem fundamento a crítica segundo a qual os estudos de gênero fariam parte da contra-ideologia atual: “Essa ‘contra-ideologia’ raramente desafia as prescrições da política liberal (… ). Dentro dessa contra-ideologia (que é generosamente financiada pelas instituições de pesquisa), estudiosos do desenvolvimento encontram um confortável nicho. Seu papel é gerar (internamente a esse contra-discurso) uma aparência de debate crítico sem tocar nos fundamentos sociais do sistema de mercado global. O Banco Mundial desempenha um papel-chave nesse particular, promovendo a pesquisa sobre a pobreza e as chamadas ‘dimensões sociais do ajuste’. Esse enfoque ético e as categorias subjacentes (por exemplo, a diminuição da pobreza, questões ligadas a gênero, eqüidade, etc.) fornecem uma ‘face humana’ às instituições de Bretton Woods e uma aparência de compromisso com a mudança social. Todavia, uma vez que está funcionalmente divorciada das principais reformas macroeconômicas, essa análise raramente constitui uma ameaça para a agenda econômica neoliberal.” (Chossudovsky, Michel. A globalização da pobreza. Impactos das reformas do FMI e do Banco Mundial. Trad. de M. Pinto Michel. São Paulo, Moderna, 1999, p. 35.)
(29) Em pesquisa da própria ONU, constatou-se: “O relatório provisório das Nações Unidas deixa também perceber que as práticas ligadas à globalização se apoiaram em uma ideologia patriarcal que existia anteriormente mas que a globalização soube integrar, quando não a reforçou. Desta forma, três dos fenômenos ligados à globalização – a multiplicação dos ‘sweat shops’ (fábricas onde o trabalhador é superexplorado), empregos em tempo parcial e formas de trabalho precárias – atingem principalmente as mulheres, em especial as do Sul e as imigrantes: a globalização soube, desta forma, incorporar e utilizar uma divisão do trabalho e um sistema de valores baseado, entre outros, na desvalorização das funções desempenhadas pelas mulheres.” (Callamard, Agnès. “Pequim, cinco anos – avanços e obstáculos: um balanço”. Traduzido por C. Marcondes. In Le Monde Diplomatique, ed. bras., ano 1. n. 4, 2000, p. 4; cf. da mesma autora: Méthodologie de recherche séxospécifique. Montreal: Anistia Internacional e Centro Internacional dos Direitos da Pessoa e do Desenvolvimento Democrático, 1999).
(30) No Manifesto Comunista (1848), lemos que “aos olhos dos burgueses, a mulher [da classe proletária] é apenas um instrumento de trabalho”, quanto às mulheres da própria burguesia, escrevem Marx e Engels, pode-se dizer que estão, mais ou menos veladamente, destinadas à “prostituição oficial ou não-oficial”.
(31) “As medidas avançadas que foram tomadas no início [da revolução de 1917], com relação ao casamento, ao divórcio, ao aborto, ao cuidado das crianças e da família, foram suprimidas totalmente e a reação se impôs a tal ponto que, em 1943, estava proibida a co-educação na União Soviética. Sufocada a revolução sexual, triunfava a contra-revolução. Durante as décadas seguintes, a opinião conservadora mundial se regozijou em mostrar que a União Soviética permanecia totalmente atrasada a este respeito.” (Millet, Kate. Sexual Politics. Nova Iorque: Doubleday, 1970, p. 176)
(32) Observe-se, no entanto, que em interessante artigo intitulado “Feminismo y Genero”, da revista da FARC, utiliza-se a equívoca categoria “gênero”, porém neutralizada pelo recorte de classe: “Categorías que han omitido el género, tales como ‘campesinos’, ‘desposeídos’, ‘desplazados’ siguen prevaleciendo a pesar que dentro de estos grupos las mujeres han sido las más prejudicadas, al grado de que se habla de la ‘feminización de la pobreza’.” (Documento eletrônico).

O marxismo e o problema da emancipação da mulher - Cecília Toledo

Retirado do sítio da LIT-QI disponível em: http://www.litci.org/pt/index.php?option=com_content&view=article&id=1:artigo1&catid=41:mundo


Um estudo, mesmo que breve, sobre a maneira como o problema da opressão da mulher foi visto nas fileiras marxistas revolucionárias desde a I Internacional nos leva a duas constatações. Primeiro: que, ao contrário do que afirmam seus detratores, o marxismo, desde o início, há mais de 150 anos, sempre se preocupou com a questão da mulher e buscou encontrar a política mais justa para o problema, no marco da divisão da sociedade em classes, justamente o que o diferencia das correntes reformistas e burguesas. Por isso, as correntes que acusam o marxismo de não se preocupar com a questão da mulher, na verdade, estão contra a análise materialista da opressão da mulher, contra a necessidade de um partido marxista revolucionário para organizar a classe trabalhadora para destruir o capitalismo para acabar com a opressão da mulher.

A segunda constatação é a de que a questão da mulher sempre foi polêmica dentro do movimento socialista, com os marxistas se enfrentando aos mais diversos matizes de reformismo, justamente porque é uma das que mais coloca em evidencia a divisão da sociedade em classes. O problema da opressão da mulher é uma questão das mulheres ou da classe trabalhadora? Até que ponto pode ir a unidade entre as mulheres trabalhadoras e burguesas? É possível resolver o problema da opressão feminina no capitalismo? A raiz do problema é cultural, uma questão de gênero, de opressão sobre um setor da sociedade, ou econômica, com fundamento na divisão da sociedade entre produtores e possuidores de riqueza? Essas e outras perguntas sempre atravessaram as grandes polêmicas que ocorreram nas Internacionais e no movimento socialista, e a resposta que cada setor dava a elas, fosse marxista ou não, demonstrava em última instância de que lado da divisão de classes estava.


O Manifesto Comunista: primeiro passo

O Manifesto Comunista, lançado em 1848 por Marx e Engels, começava por questionar a família burguesa. Respondendo àqueles que acusavam os comunistas de querer acabar com a instituição familiar burguesa, na qual a mulher é submetida ao papel de um simples instrumento de produção, Marx argumentava:

"Em que se baseia a família atual, a família burguesa? No capital, no lucro privado. A família plenamente desenvolvida só existe para a burguesia; mas encontra seu complemento na supressão forçada de todo vínculo familiar para o proletariado e na prostituição pública. (...) As declarações burguesas sobre a família e a educação, sobre os doces laços que unem pais e filhos, ficam ainda mais repugnantes à medida em que a grande indústria destrói todo vínculo de família para o proletariado e transforma as crianças em simples artigos de comércio, em simples instrumentos de trabalho. (...) Para o burguês, sua mulher não passa de um instrumento de produção. Ouve dizer que os instrumentos de produção devem ser de uso comum e, naturalmente, não pode chegar a outra conclusão que o mesmo vai ocorrer com as mulheres no socialismo. Não suspeita de que se trata justamente de acabar com essa situação da mulher como simples instrumento de produção. Nada mais grotesco que o horror ultramoralista que a pretendida comunidade oficial das mulheres, atribuída aos comunistas, inspira em nossos burgueses. Os comunistas não têm necessidade de introduzir a comunidade das mulheres: ela praticamente sempre existiu. Nossos burgueses, não satisfeitos em ter à sua disposição as mulheres e as filhas de seus operários, sem falar da prostituição oficial, encontram um prazer singular em seduzir mutuamente suas esposas. O matrimonio burguês é, na verdade, a comunidade das esposas. No máximo se poderia acusar os comunistas de querer substituir uma comunidade de mulheres hipocritamente dissimulada, por uma comunidade franca e oficial. É evidente que com a abolição das relações de produção atuais, a comunidade das mulheres dela derivada desaparecerá, ou seja, a prostituição oficial e não oficial". (Manifesto Comunista)


A linha de divisão estabelecida aqui e em todos os escritos posteriores de Marx e Engels sobre o tema da mulher era a que existe entre o socialismo utópico e o socialismo científico. Os socialistas utópicos pre-marxistas, como Fourier e Owen, também foram ardorosos defensores da emancipação da mulher. Mas seu socialismo, assim como suas teorias sobre a família e a mulher, se assentavam sobre princípios morais e desejos abstratos, não sobre uma compreensão das leis da história e da luta de classes baseada no crescimento da capacidade produtiva da humanidade.

O marxismo proporcionou, pela primeira vez, uma base materialista científica não só para o socialismo, como também para a causa da libertação da mulher. Expôs as raízes da opressão da mulher, sua relação com um sistema de produção baseado na propriedade privada e com uma sociedade dividida entre uma classe possuidora de riquezas e outra produtora de riquezas. O marxismo explicou o papel da família na sociedade de classes como um contrato econômico, e sua função primordial na perpetuação do capitalismo e da opressão da mulher. Mais que isso: apontou o caminho para a liberação da mulher. Explicou como a abolição da propriedade privada proporcionará as bases materiais para transferir à sociedade de conjunto todas as responsabilidades sociais que hoje recaem sobre a família individual, como o cuidado das crianças, dos anciãos, dos doentes; a alimentação, o vestuário, a educação. Livres dessas cargas, as mulheres poderão romper com a servidão doméstica e cultivar plenamente suas capacidades como membros criativos e produtivos da sociedade, e não só como reprodutivos. Livre da coação econômica sobre a qual repousa, a família burguesa como a conhecemos hoje, desaparecerá e as relações humanas se transformarão em relações livres, de pessoas livres.

Assim, o marxismo eliminou o caráter utópico do socialismo e da luta pela liberação da mulher, ao demonstrar que o próprio capitalismo engendra uma força, o proletariado, bastante poderosa para destruí-lo. Pela primeira vez, os socialistas podiam deixar de sonhar com uma sociedade nova e melhor, e começar a se organizar para consegui-la.


A questão da mulher na I Internacional (1864)

A Primeira Internacional foi fundada por Marx e Engels em 1864. Respondeu à necessidade prática dos operários europeus de se organizar, já que a burguesia estava unificando economicamente o continente. A princípio, a I IC não tinha um programa claramente marxista (agrupava também os anarquistas), mas já em seus primeiros passos foi definindo sua posição em relação à causa da emancipação da mulher. Contra todos os costumes da época, a Associação Internacional dos Trabalhadores, como era chamada, elegeu uma mulher para seu Conselho Geral, a sindicalista inglesa Henrietta Law.

Foi um passo tão importante que Marx relata ter recebido inúmeras cartas de mulheres querendo filiar-se à Internacional. Tanto que ele, pessoalmente, apresentou uma moção ao Conselho Geral para que se organizassem seções especiais de mulheres trabalhadoras nas fábricas e zonas industriais das cidades onde houvesse grandes concentrações de trabalhadoras, alertando que isso não devia, de forma alguma, interferir na construção de seções mistas.

De 1865 até meados da década de 1880, o movimento socialista na Alemanha esteve dividido entre os seguidores de Ferdinand Lasalle, e os marxistas, dirigidos por Wilhelm Liebknecht e August Bebel. Em 1875, os dois grupos se uniram em um único partido, o SPD (Partido Social-Democrata Alemão), o maior partido socialista da era anterior à I Guerra Mundial, mas mantiveram sérias divergências dentro da organização. A questão da mulher foi uma delas. Os lasalleanos (seguidores de Ferdinand de Lassalle) se opunham a exigir a igualdade de direitos para a mulher como parte do programa do partido. Achavam que as mulheres eram criaturas inferiores, cujo lugar predestinado era o lar, e a vitória do socialismo, assegurando ao marido um salário adequado para abastecer toda a família, as faria regressar a seu habitat natural, já que não teriam de trabalhar por um salário. Os primeiros programas dos social-democratas alemães exigiam apenas "plenos direitos políticos para os adultos" - deixando ambígua a questão de se a mulher era considerada adulta ou não.

A ideologia de que "lugar de mulher é o lar" teve como um de seus maiores impulsionadores o pensador francês Proudhon, cujas idéias repercutiram nos sindicatos e também entre os dirigentes da I Internacional. Ele defendia ardorosamente idéias bem semelhantes às dos pais da Igreja, teólogos que construíram a teologia do catolicismo na Idade Média. Respeitado nos meios políticos, inclusive de esquerda, e intelectuais e operários de toda a Europa, Proudhon advogava que a função da mulher era a procriação e as tarefas domésticas; aquela que trabalhava (fora de casa) estava roubando o trabalho do homem. Ele chegou a propor que o marido tivesse direito de vida ou morte sobre sua mulher, por desobediência ou mau caráter, e demonstrava, mediante uma relação aritmética, a inferioridade do cérebro feminino sobre o masculino.

O preconceito contra as mulheres envenenou a tal ponto o movimento operário que em 1867 os dirigentes da Internacional Socialista foram capazes de fazer a seguinte declaração solene:

"Em nome da liberdade de consciência, em nome da iniciativa individual, em nome da liberdade da mãe, devemos arrancar da fábrica que a desmoraliza e a mata, a essa mulher que sonhamos livre... a mulher tem por objetivo essencial o de ser mãe de família, ela deve permanecer no lar, o trabalho deve ser-lhe proibido".


E em 1875, no Congresso de Gotha, os socialistas alemães, sensíveis às idéias de Proudhon, se opõem ao grupo marxista dirigido por Bebel, que queria inscrever no programa do partido a igualdade do homem e da mulher. O Congresso derrota Bebel afirmando que "as mulheres não estão preparadas para exercer seus direitos".

Em 1866 Marx apresenta à Internacional Socialista uma resolução em favor do trabalho das crianças e das mulheres, com a condição de que sejam regulamentados por lei. Ele achava que o trabalho não podia separar-se da educação e era benéfico para os seres humanos. N´ O Capital escreve que

"Se os efeitos imediatos (do trabalho das crianças e das mulheres) são terríveis e repugnantes, nem por isso deixa de contribuir ao dar às mulheres, jovens e crianças de ambos os sexos uma parte importante no processo de produção fora do meio doméstico, na criação de novas bases econômicas, necessárias para uma forma mais elevada de família e de relação entre os dois sexos".

Apesar de ter sido com outras palavras, o mesmo disse Engels:

"Parece que a emancipação da mulher, sua igualdade de condição com o homem é e continua sendo impossível enquanto a mulher permaneça excluída do trabalho social produtivo e deve limitar-se ao trabalho privado doméstico... A liberação da mulher tem como condição primeira a incorporação de todo o sexo na indústria pública" (Origem da Família).


Até meados do século XIX a idéia de que mulher tem de ficar em casa permaneceu quase inalterada, mas a realidade outra vez se mostrou mais forte: pese a toda ideologia, a mulher trabalhava porque precisava sobreviver.

Em 1883, August Bebel publicou o livro A mulher e o socialismo, que colaborou muito para transformar a discussão sobre a questão da mulher. Apesar de ter saído um ano antes do livro de Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, o livro de Bebel é basicamente um desenvolvimento das idéias de Engels. Explica as raízes profundas da opressão da mulher, as formas que adotou ao longo dos séculos, do significado historicamente progressivo da integração da mulher na produção industrial e a necessidade da revolução socialista para abrir o caminho para a liberação da mulher. O livro causou sensação não só na Alemanha, mas em toda a Europa, e ajudou na formação de várias gerações de marxistas.

Quanto ao livro de Engels, tornou-se um clássico que até hoje norteia as discussões sobre a origem da opressão da mulher. Socialista científico, Engels partiu das descobertas históricas feitas até então sobre a origem da opressão da mulher, da família, do casamento. Os primeiros historiadores, entre eles Bachofen e Morgan, que desenvolveram suas pesquisas no século 19, afirmaram que a mulher nem sempre foi oprimida, e em algumas sociedades primitivas houve um período em que havia matriarcado, a predominância da mulher nas tribos. Essas afirmações foram tão revolucionárias para a época que provocaram verdadeiro escândalo nas sociedades conservadoras e sobretudo entre os padres. Marx e Engels deram grande importância a essas descobertas, que incorporaram em seus estudos sobre o surgimento da propriedade privada dos meios de produção. E foi em base a elas que Engels escreveu A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, publicado em 1884, obra que serviu de grande impulso para o movimento revolucionário passar a integrar em seu seio a luta pela emancipação da mulher.

As descobertas feitas pela antropologia do século 20 nos permitem concluir que a monogamia não surgiu com a propriedade privada, como acreditava Engels, mas antes dela, já com a exploração; a propriedade privada apenas acirrou, de forma brutal, a opressão da mulher, e a consolidou. No entanto, o grande mérito de Engels foi associar o surgimento da opressão da mulher a uma causa econômica e não natural ou psíquica. Para ele, o surgimento da monogamia não foi, de forma alguma, fruto do amor sexual individual, mas pura convenção. Foi a primeira forma de família que teve por base condições sociais e não naturais. E foi, mais que nada, o triunfo da propriedade individual sobre o comunismo espontâneo primitivo.

Engels definiu a abolição do direito materno como a "grande derrota do sexo feminino".

"O homem se apossou também da direção da casa; a mulher foi inferiorizada, dominada, passou a ser a escrava de seu prazer e um simples instrumento de reprodução. Essa situação degradada da mulher, tal como se manifestou sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos, e mais ainda nos tempos clássicos, foi gradualmente retocada e dissimulada, em certos lugares até foi revestida de formas mais suaves; mas de nenhuma forma foi suprimida". (Origem da Família, p.66)

Preponderância do homem na família e procriação de filhos que só podiam ser dele e destinados a ser seus herdeiros. Em todo o resto, o matrimônio era uma carga, uma dever. E Engels lembra que

"A monogamia foi um grande progresso histórico, mas ao mesmo tempo inaugura, juntamente com a escravidão e a propriedade privada, aquela época que ainda dura em nossos dias e na qual cada progresso é ao mesmo tempo um retrocesso relativo, em que a ventura e o desenvolvimento de uns se dá às custas da desventura e repressão de outros. É a forma celular da sociedade civilizada, na qual já podemos estudar a natureza das contradições e dos antagonismos que se propagam e crescem plenamente nesta sociedade". (Origem da Família, p. 76)

É certo que as descobertas feitas pela antropologia do século 20 atualizam a obra de Engels e corrigiram certas imprecisões, mas ela continua sendo a base para o programa marxista em relação à mulher porque derruba por terra a concepção burguesa de que ela já nasceu oprimida, e que a causa da opressão é sua inferioridade natural em relação ao homem. Demonstra que a causa da opressão da mulher é fundamentalmente econômica, e não histórica, e, portanto, para acabar com ela é preciso transformar a sociedade.


A mulher na II Internacional (1889)

Se a I Internacional significou a conquista da vanguarda proletária para o marxismo, a II Internacional levou milhões de trabalhadores às suas concepções. Foi a Internacional mais característica da era reformista, pois foi o período em que mais se arrancaram concessões, como férias, aumentos salariais, legislação social e trabalhista e outras. Em relação à questão da mulher, a luta por direitos democráticos - como igualdade política, direito de filiação a partidos e direito de voto - foi a que mais agitou a II Internacional.

Iniciada nos Estados Unidos, a luta sufragista foi a primeira luta feminista internacionalista; envolveu mulheres de vários países do mundo e incorporou os métodos tradicionais de luta da classe trabalhadora, como passeatas massivas, assembléias, greves de fome e enfrentamentos brutais com a polícia, nos quais muitas ativistas foram presas e assassinadas.

No campo socialista, a luta sufragista foi dirigida pela II Internacional, dividida entre reformistas, que defendiam o direito de voto apenas para os homens (eles achavam que as mulheres votariam nos partidos católicos reacionários) e marxistas, defensores do voto para todos. A dirigente política feminista marxista mais importante da II Internacional e também da III foi Clara Zetkin, membro do SPD. No Congresso de Stuttgart, em 1907, ela defendeu a posição dos marxistas, que saiu vencedora. E a IC lançou uma campanha internacional pelo sufrágio feminino, com mobilizações de massa em diversos países.

O partido mais importante da II Internacional era o SPD que, em 1891, ano em que a ala esquerda conseguiu aprovar um programa basicamente marxista, o partido passou a exigir direitos políticos para todos, independente do sexo, e a abolição de todas as leis que discriminavam a mulher.

Depois que os lasalleanos deixaram de existir como tendência dentro do SPD, surgiu uma nova corrente reformista dentro do partido, que pressionava pela adaptação ao status quo capitalista. Clara Zetkin, da ala esquerda marxista, dirigiu o movimento socialista da mulher durante todo o período anterior à guerra, e combateu dentro do SPD por desenvolver uma perspectiva revolucionária sobre a luta pela emancipação da mulher. Em 1914, quando a maioria da direção do SPD capitulou ante o imperialismo alemão e votou pela defesa de sua "própria" burguesia na I Guerra Mundial, Clara Zetkin foi um dos poucos dirigentes do partido a, junto com Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, a romper com o SPD e manter uma posição internacionalista revolucionária.

Na década de 1890, o SPD se concentrou em primeiro lugar na organização sindical das mulheres, e fez algumas conquistas importantes. Em 1896, por proposta de Clara Zetkin, o partido aprovou uma moção para iniciar o desenvolvimento de organizações especiais para uma atividade política mais ampla entre as mulheres. Além de trabalhar pelos objetivos gerais do partido, se concentraram em bandeiras feministas, como igualdade política, licença-maternidade, legislação de proteção para a mulher trabalhadora, educação e proteção para as crianças e educação política para as mulheres.

Até 1908, na maior parte da Alemanha as mulheres estavam proibidas de filiar-se a qualquer grupo político. Para burlar isso, o SPD organizou dezenas de "sociedades para a autoeducação das trabalhadoras", organizações livres que estavam parcialmente fora dos limites do partido, mas estreitamente ligadas a ele. De 1900 em diante se organizaram conferências bianuais de mulheres socialistas para unificar esses grupos e dar-lhes uma direção.

Depois de 1908, as mulheres passaram a filiar-se legalmente ao SPD, e o fizeram nas organizações especiais de mulheres do partido. Mas continuaram mantendo seu próprio jornal, Igualdade, dirigido por Clara Zetkin. Esse foi um dos jornais femininos mais importantes do mundo, cuja circulação ultrapassava os 100 mil exemplares até 1912.

No entanto, apesar desses avanços, as reivindicações da mulher se tornaram realidade pela primeira vez na Rússia, com a revolução de 1917.


A Revolução Russa e a mulher

A revolução socialista na Rússia significou uma revolução também na situação da mulher no mundo inteiro. Pela primeira vez um país tomava medidas concretas para alcançar a igualdade entre homens e mulheres.

A mulher russa tomou parte ativa em todo o processo revolucionário, apesar (e quem sabe por isso mesmo) da enorme carga de opressão, secular e brutal, que pesava sobre seus ombros, sobretudo entre as mulheres camponesas.

Mas a voragem revolucionária empurrou à frente a mulher trabalhadora russa, que já naqueles anos tinha um papel decisivo na produção, concentrada nas grandes fábricas.

A história da revolução, se bem que nem sempre é fácil encontrar as citações, está repleta de exemplos sobre a abnegação, a garra e a coragem demonstradas pelas operárias russas naqueles dias terríveis e decisivos.

A revolução de fevereiro de 1917 - antesala da revolução decisiva de outubro - iniciou-se no Dia Internacional da Mulher com manifestações massivas de mulheres em Petrogrado contra a miséria provocada pela participação da Rússia na I Guerra Mundial. A guerra havia empurrado a mulher russa para o mercado de trabalho, e em 1917 a terça parte dos operários industriais de Petrogrado eram mulheres. Nas áreas de produção têxtil da região industrial do centro, 50% ou mais da força de trabalho estava composta por mulheres.

A militância feminina era disputada palmo a palmo pelas diversas tendências políticas. Tanto os bolcheviques quanto os mencheviques tinham jornais especiais para a mulher trabalhadora, como o Rabotnitsa, publicado pelos bolcheviques e o Golos Rabotnitsy, pelos mencheviques. Os social-revolucionários (SR), que lutavam por uma democracia burguesa na Rússia, por sua vez, propuseram a criação de uma "união das organizações democráticas de mulheres", que uniria os sindicatos e os partidos sob a bandeira de uma república democrática. E foi naqueles dias que surgiu a Liga por Direitos Iguais para a Mulher, exigindo o direito de voto para as mulheres acompanhando a batalha que elas travavam no mundo inteiro por seus direitos civis.

Mas na Rússia, com a revolução socialista, elas conquistaram muito mais que direitos democráticos. Pela primeira vez um país legislou que o salário feminino seria igual ao masculino pelo mesmo trabalho. Tanto que, ao finalizar a Segunda Guerra, contrariamente ao que ocorreu nos países capitalistas, na URSS se conservou a mão-de-obra feminina e se buscaram os meios para que estas tivessem maior qualificação. Havia mulheres em todos os setores da produção: nas minas, na construção civil, nos portos, enfim, em todas os ramos da produção industrial e intelectual.

No entanto, logo depois da tomada do poder pelos soviets, a questão da mulher enfrentou o duro embate com a realidade. De fato, foi a primeira vez na história que ela passou do plano da discussão, para a prática.

Em um país atrasado como a Rússia em relação às questões morais e culturais, com uma enorme carga de preconceitos arraigados há séculos, o que caracteriza em geral os países predominantemente camponeses, a questão da emancipação da mulher assumia, naqueles momentos difíceis para o jovem estado operário, contornos tão complexos quanto muitos dos outros aspectos relativos à transformação para o socialismo.

Por isso, Lenin e Trotsky, juntamente com muitas dirigentes mulheres, além de se dedicarem a "explicar pacientemente" às massas, sobretudo às mulheres, quais as tarefas gerais do movimento operário feminino da República Soviética, não esperaram para tomar as primeiras medidas nesse terreno e reverter a situação humilhante à qual estava submetida a mulher russa há séculos.

Essa tarefa tinha dois aspectos fundamentais:

1) a abolição das velhas leis que colocavam a mulher em situação de desigualdade em relação ao homem e,

2) a libertação da mulher das tarefas domésticas, que exigia uma economia coletiva na qual ela participasse em igualdade de condições com o homem.

Em relação ao primeiro aspecto, desde os primeiros meses de sua existência, o Estado Operário concretizou a mudança mais radical na legislação referente à mulher. Todas as leis que colocavam a mulher em uma situação de desigualdade em relação ao homem foram abolidas, entre elas, as referentes ao divórcio, aos filhos naturais e pensão alimentícia. Foram abolidos também todos os privilégios ligados à propriedade que se mantinham em proveito do homem no direito familiar. Dessa forma, a Rússia Soviética, apenas nos primeiros meses de sua existência, fez mais pela emancipação da mulher do que o mais avançado dos países capitalistas em todos os tempos.

Foram introduzidos decretos estabelecendo a proteção legal para as mulheres e as crianças que trabalhavam, o seguro social, igualdade de direitos para as mulheres em relação ao matrimônio.

Com a ação política do Zhenotdel, o departamento feminino do Partido Bolchevique, as mulheres conquistaram o direito ao aborto legal e gratuito nos hospitais do estado. Mas não se incentivava a prática do aborto e quem cobrava para praticá-lo era punido. A prostituição e seu uso eram descritos como "um crime contra os vínculos de camaradagem e solidariedade", mas o Zhenotdel propôs que não houvesse penas legais para esse crime. Tentou atacar as causas da prostituição melhorando as condições de vida e trabalho das mulheres. E deu início a uma ampla campanha contra os "resquícios da moral burguesa".

A primeira Constituição da República Soviética, promulgada em julho de 1918, deu à mulher o direito de votar e ser eleita para cargos públicos. No entanto, igualdade perante a lei ainda não é igualdade de fato. Para a plena emancipação da mulher, para sua igualdade efetiva em relação ao homem é necessária uma economia que a livre do trabalho doméstico e na qual ela participe de forma igualitária ao homem. A essência do programa bolchevique para a emancipação da mulher era sua liberação final do trabalho doméstico por meio da socialização dessas tarefas. Lenin insistia em que o papel da mulher dentro da família era a chave de sua opressão:

Independentemente de todas as leis que emancipam a mulher, esta continua sendo uma escrava, porque o trabalho doméstico oprime, estrangula, degrada e a reduz à cozinha e ao cuidado dos filhos, e ela desperdiça sua força em trabalhos improdutivos, intranscendentes, que esgotam seus nervos e a idiotizam. Por isso, a emancipação da mulher, o comunismo verdadeiro, começará somente quando e onde se inicie uma luta sem quartel, dirigida pelo proletariado, dono do poder do estado, contra essa natureza do trabalho doméstico, ou melhor, quando se inicie sua transformação total, em uma economia a grande escala (jul.1919)

Nas condições da Rússia, essa era a parte mais difícil da construção do socialismo e a que requeria mais tempo para ser concretizada. O Estado Operário começou por criar instituições como refeitórios e creches modelo para liberar a mulher do trabalho doméstico. E eram justamente as mulheres quem mais se empenhavam na sua organização. Essas instituições, instrumentos de libertação a mulher de sua condição de escrava doméstica, surgiam em todas as partes onde era possível, mas mesmo assim foram poucas para o necessário.


A Rússia estava em guerra civil, sendo atacada por seus inimigos, e as mulheres tiveram de assumir, junto com os homens, as tarefas da guerra e de defesa do Estado Operário. No entanto, muitas dessas instituições foram criadas e funcionaram a contento, mostrando seu acerto e a necessidade de sua expansão e manutenção.

Por outro lado, os dirigentes soviéticos, Lenin à frente, chamavam as mulheres a tomarem parte cada vez maior na gestão das empresas públicas e na administração do Estado, bem como a se candidatarem como delegadas aos soviets. Num discurso em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, em março de 1920, Lenin se dirigiu assim às mulheres russas:

"O capitalismo uniu uma igualdade puramente formal à desigualdade econômica e, por conseqüência, social. E uma das manifestações mais gritantes dessa inconseqüência é a desigualdade da mulher e do homem. Nenhum Estado burguês, por mais democrático, progressivo e republicano que seja, reconhece a inteira igualdade dos direitos do homem e da mulher. A República dos Soviets, pelo contrário, destruiu de um só golpe, sem exceção, todos os traços jurídicos da inferioridade da mulher e também de um só golpe assegurou a ela, por lei, a igualdade mais completa". (Obras Escolhidas)

Ele lembra que se costuma dizer que o nível de um povo se caracteriza melhor pela situação jurídica da mulher. Sob esse ponto de vista, só a ditadura do proletariado, só o Estado socialista podem atingir e atingem o grau mais alto da cultura. No entanto, isso não é suficiente. O movimento operário feminino russo não se contentou com uma igualdade puramente formal e assumiu a tarefa - árdua e longa, porque exige uma transformação radical da técnica social e dos costumes- de lutar pela igualdade econômica e social da mulher, fazendo com que ela participasse do trabalho produtivo social, libertando-a da escravidão doméstica, que é sempre improdutiva e embrutecedora.


As resoluções da III Internacional sobre a questão da mulher (1919)

A Terceira Internacional surgiu no calor da Revolução Russa e seu programa em relação à questão da mulher incorporou as experiências soviéticas. No livro Lembranças de Lenin, Clara Zetkin descreve as opiniões de Lenin sobre a questão da mulher, expressas em dois encontros que ambos tiveram em Moscou, em 1920. Ela estava encarregada de elaborar a resolução sobre o trabalho entre as mulheres para ser apresentada no Terceiro Congresso da Comintern, em 1921, e foi discutir com Lenin.

Em primeiro lugar, Lenin insistiu em que a resolução deveria enfatizar "a conexão inquebrantável entre a posição humana e social da mulher e a propriedade privada dos meios de produção". Para mudar as condições de opressão da mulher no seio da família, os comunistas devem se esforçar por unir o movimento da mulher com "a luta da classe proletária e a revolução".

Em relação às questões organizativas, a polêmica que perpassava o partido era se as mulheres deviam ou não se organizar de forma separada. Sobre isso, Lenin lembrava que

"Nós deduzimos nossas idéias organizativas de nossas concepções ideológicas". Não queremos organizações separadas de mulheres comunistas. A comunista é membro do partido tanto quanto o comunista. Têm os mesmos direitos e deveres. No entanto, não devemos fechar os olhos para os fatos. O partido deve contar com órgãos - grupos de trabalho, comissões, comitês, seções ou como se queira chamar - com o objetivo específico de despertar as amplas massas de mulheres..."

Clara Zetkin comentou que muitos membros do partido a acusaram - por fazer propostas parecidas - de cometer um desvio social-democrata, já que se os partidos comunistas concediam a igualdade à mulher, elas deviam, por isso, desenvolver seu trabalho sem diferenças entre os operários em geral. E Lenin argumentou que a "pureza dos princípios" não pode entrar em choque com as necessidades históricas da política revolucionária. Todo esse discurso cai por terra diante das necessidades impostas da realidade. Interrogando-se de por que em nenhum lugar há igual número de homens e de mulheres no partido, nem mesmo na Rússia Soviética? Por que é tão baixo o número de mulheres nos sindicatos?, ele defendeu a necessidade de levantar as reivindicações especiais em favor de todas as mulheres, das operárias e camponesas, e inclusive das mulheres das classes possuidoras, que também sofrem na sociedade burguesa.

Por último, Lenin criticou as seções nacionais da Comintern que adotam uma atitude passiva, de esperar e ver, quando chega o momento de criar um movimento massivo de mulheres trabalhadoras sob a direção comunista e atribuía a debilidade do trabalho sobre a mulher na Internacional à persistência de idéias machistas que levavam à subestimação da importância vital de construir um movimento de massas da mulher. Por isso, achava que a resolução para o Terceiro Congresso Mundial da Comintern era muito importante.

A resolução adotada pelo Terceiro Congresso da Comintern em junho de 1921 tratava dos aspectos políticos e organizativos da orientação da Internacional.

Em relação aos aspectos políticos, a "Tese sobre o trabalho de propaganda entre as mulheres" destaca a necessidade da revolução socialista para conseguir a liberação da mulher, e a necessidade de os partidos comunistas conquistarem o apoio das massas de mulheres se querem conduzir a revolução socialista à vitória. Nenhum dos dois se pode conseguir sem o outro. Se os comunistas fracassam na tarefa de mobilizar as massas de mulheres do lado da revolução, as forças políticas reacionárias se esforçarão por organizá-las contra eles.

Afirma também que "não existem questões femininas especiais". Com isso não queriam dizer que não houvessem problemas que afetassem especialmente as mulheres ou reivindicações especiais em torno das quais as mulheres podem ser mobilizadas; significa apenas que não existe problema que afete a mulher e não seja também uma questão social mais ampla, de interesse vital para o movimento revolucionário, pelo qual tanto os homens como as mulheres devem lutar. Não se dirigia contra a exigência de levantar reivindicações especiais para as mulheres, mas precisamente o contrário, para explicar aos trabalhadores e trabalhadoras mais atrasados que tais reivindicações não podem ser descartadas como "preocupações femininas" sem importância.

A resolução também condenava o feminismo burguês, referindo-se ao setor do movimento feminista que achava que se podia alcançar a liberação da mulher reformando o sistema capitalista. Exortava as mulheres a repudiar essa orientação.

Quanto aos aspectos organizativos, explicava porque não podia existir uma organização aparte para as mulheres no interior do partido, e, por outro lado, porque deve haver órgãos especiais do partido para trabalhar entre as mulheres. Tornava obrigatório, quase uma condição para ser membro da Internacional Comunista, que toda seção organizasse uma comissão de mulheres, estrutura que funcionaria em todos os níveis do partido, desde a direção nacional até as seções ou células. Instruía aos partidos para garantir que pelo menos uma camarada tivesse a tarefa permanente para dirigir esse trabalho a nível nacional. E criava uma Secretaria Internacional da Mulher para supervisionar o trabalho e convocar a cada seis meses conferências regulares de representantes de todas as seções para discutir e coordenar sua atividade.

Por último, a resolução tratava de dois tipos concretos de ações que podiam ajudar a mobilizar as mulheres em todo o mundo. Incluíam manifestações e greves, conferências públicas que envolvessem as mulheres sem partido, cursos, escolas de quadros, envio de membros do partido às fábricas onde trabalhassem grande número de mulheres, utilização do jornal do partido etc. Os sindicatos e as associações profissionais de mulheres eram apontadas como os terrenos centrais da atividade. Esta resolução foi aplicada dentro da Internacional de forma muito desigual, devido aos diferentes níveis de desenvolvimento das seções.

No Quarto Congresso da Comintern, no final de 1922, reafirmou-se a linha essencial da resolução de 1921. O Congresso chamou a atenção sobre o fato de que algumas seções, não especificadas, não tivessem aplicado as decisões do último congresso. Se mencionou especialmente o trabalho efetivo entre as mulheres feito pela seção chinesa, que haviam organizado as mulheres segundo as linhas marcadas pelo Terceiro Congresso. A Comintern dava muita importância ao trabalho entre as mulheres mais oprimidas dos países coloniais.

As concepções marxistas sobre a emancipação da mulher e seu papel na luta pelo socialismo foram transformadas em teses e resoluções durante o terceiro Congresso da Internacional Comunista, reunido em 1921, antes portanto do período stalinista. Esse evento, de importância histórica para o movimento socialista mundial, traçou um programa e uma orientação para o trabalho entre as mulheres que, por sua clareza e concordância com os princípios do marxismo, até hoje não foram superados por nenhuma outra organização operária. E que, por isso, continuam sendo válidos até hoje.

Em primeiro lugar, a Internacional Comunista deixa bem definida sua posição de que a liberação da mulher da injustiça secular, da escravidão e da falta de igualdade da qual é vítima no capitalismo só será possível com a vitória do comunismo.

O que o comunismo dará à mulher, em nenhum caso o movimento feminino burguês poderá dar. Enquanto existir a dominação do capital e da propriedade privada, a liberação da mulher não será possível.
A mulher acabara de conquistar o direito de voto, e a Internacional alertava que isso, apesar de importante, não suprimia a causa primordial da servidão da mulher na família e na sociedade e não solucionava o problema das relações entre os sexos.

A igualdade não formal, mas sim real, da mulher, só é possível num regime onde a mulher da classe operária seja dona de seus instrumentos de produção e distribuição, participando de sua administração e tendo a obrigação do trabalho nas mesmas condições que todos os membros da sociedade trabalhadora; ou seja, essa igualdade só é realizável depois da destruição do sistema capitalista e sua substituição por formas econômicas comunistas.

Sobre a questão da maternidade, a Internacional não deixa dúvida de que também apenas no comunismo essa função natural da mulher não entrará em conflito com as obrigações sociais e não impedirá seu trabalho produtivo. No entanto, a IC aclara que o comunismo é o objetivo último de todo o proletariado.


Por isso, a luta da mulher e do homem deve ser dirigida de forma inseparável.

E, o mais importante, é que essa que foi uma das organizações internacionais mais ativas da causa dos trabalhadores confirma os princípios fundamentais do marxismo, segundo os quais não existem problemas especificamente femininos e que a mulher operária tem de se manter junto à sua classe, e não unir-se à mulher burguesa.

Toda relação da operária com o feminismo burguês e as alianças de classe debilitam as forças do proletariado e retardam a revolução social, impedindo assim a realização do comunismo e a liberação da mulher.

Por fim, a Internacional reforça o princípio de que o comunismo só será alcançado com a união de todos os explorados e não com a união das forças femininas das duas classes opostas. E termina chamando todas as mulheres trabalhadoras a terem uma participação ativa e direta nas ações de massas, tanto no marco nacional como em escala internacional.


A IV Internacional (1938)

O programa e os métodos revolucionários dos primeiros tempos da III não morreram com a stalinização da IC e a contra-revolucão política da URSS nos finais dos anos 20. Tiveram continuidade na Oposição de Esquerda Soviética e depois na Oposição de Esquerda Internacional, que deram origem à IV Internacional, dirigida por Leon Trotsky.

Com Stalin, a burocracia impôs à revolução um regime de opressão cada vez mais destrutivo, em todas as esferas, que resultou num retrocesso enorme de todas as conquistas feitas pela mulher na Revolução de Outubro. A família foi recolocada em seu pedestal, o aborto voltou a ser ilegal, o divórcio se tornou cada vez mais difícil, a prostituição e a homossexualidade voltaram a ser considerados crimes, as creches foram fechadas ou tiveram seus horários reduzidos.

Em seu livro A Revolução Traída, Trotsky dedicou um capítulo inteiro às conseqüências da reação stalinista sobre a mulher e a família, intitulado "A família, a juventude e a cultura". Explica as causas materiais que impediram a revolução de proporcionar as alternativas necessárias ao sistema familiar, e porque a burocracia se via obrigada, em seu próprio interesse, a reforçar a família e aprofundar a opressão da mulher. Depois de afirmar que "a Revolução de Outubro cumpriu honradamente sua palavra em relação à mulher", lembra que

"Não foi possível tomar de assalto a antiga família, e não por falta de boa vontade; tampouco porque a família estivesse tão firmemente arraigada nos corações. Pelo contrário, depois de um curto período de desconfiança em relação ao Estado e suas creches, jardins de infância e seus diversos estabelecimentos, as operárias e, depois delas, as camponesas mais avanças, apreciaram as imensas vantagens da educação coletiva e da socialização da economia familiar".

Mas lembra que todos esses avanços sofreram um retrocesso com a burocratização do Estado operário:

" Por desgraça, a sociedade foi demasiado pobre e demasiado pouco civilizada. Os recursos reais do Estado não correspondiam aos planos e às intenções do partido comunista. A família não pode ser abolida: é preciso substituí-la. A verdadeira emancipação da mulher é impossível no terreno da 'miséria socializada'. A experiência revelou muito rapidamente esta dura verdade, formulada há cerca de 80 anos por Marx."
E Trotsky continua explicando porque esses avanços sofreram um retrocesso:

"Durante os anos de fome, os operários se alimentaram tanto quanto puderam - com suas famílias em certos casos - nos refeitórios das fábricas ou nos estabelecimentos análogos, e este fato foi interpretado oficialmente como o advento dos costumes socialistas. Não há necessidade de nos determos aqui nas particularidades dos diversos períodos - comunismo de guerra, NEP, o primeiro plano quinquenal - a este respeito. O fato é que desde a supressão do racionamento de pão, em 1935, os operários melhor pagos começaram a voltar à mesa familiar. Seria errôneo ver nessa retirada uma condenação do sistema socialista que não havia sido posto à prova. No entanto, os operário e suas mulheres julgaram implacavelmente 'a alimentação social' organizada pela burocracia. A mesma conclusão de impõe para as lavanderias socializadas, nas quais se rouba e se estraga a roupa mais do que se lava. Volta ao lar! Mas a cozinha e a lavagem de roupas em domicílio, atualmente defendidas de forma confusa pelos oradores e os jornalistas soviéticos, significam o retorno das mulheres às panelas e tanques, ou seja, à velha escravidão. É muito duvidoso que a resolução da Internacional Comunista sobre 'a vitória completa e sem retrocesso do socialismo na URSS' seja, depois disso, muito convincente para as donas de casa da periferia".
Em 1938, em um artigo intitulado "O governo soviético ainda segue os princípios adotados há vinte anos?", Trotsky resumia o processo pelo qual foram anuladas as conquistas obtidas pela mulher depois da revolução:

"A posição da mulher é o indicativo mais claro e eloqüente para avaliar um regime social e a política do Estado. A Revolução de Outubro inscreveu em sua bandeira a emancipação da mulher e criou a legislação mais progressiva da história sobre o casamento e a família. Isto não quer dizer, claro, que só isso bastasse para a mulher soviética ter, imediatamente, uma "vida feliz". A verdadeira emancipação da mulher é inconcebível sem um aumento geral da economia e da cultura, sem a destruição da unidade econômica familiar pequeno-burguesa, sem a introdução da elaboração socializada dos alimentos e sem a educação. Enquanto isso, guiada por seu instinto de conservação, a burocracia se assustou com a "desintegração" da família. Começa a fazer elogios à vida em família, ou seja, à escravidão doméstica da mulher. Como se não bastasse, a burocracia restaurou a penalização criminal do aborto, fazendo a mulher retroceder oficialmente à posição de animal de carga. Em completa contradição com o ABC do comunismo, a casta dominante restabeleceu desse modo o núcleo mais reacionário e obscurantista do regime classista, ou seja, a família pequeno-burguesa" (Escritos, 1937-38)
No final dos anos 60 e durante a década de 70 ocorreu na Europa e nos Estados Unidos (com reflexos nos países do Terceiro Mundo) uma onda de lutas das mulheres por seus direitos, que conquistou em muitos países importantes reivindicações, entre elas o direito de divórcio na Itália e o direito ao aborto na França, Itália, Inglaterra e Estados Unidos. Essas mobilizações geraram um intenso debate dentro do marxismo sobre o caráter das lutas das mulheres, as raízes de sua opressão e o caminho para eliminá-la.

Mary-Alice Waters, dirigente do SWP (Socialist Workers Party), dos Estados Unidos, elaborou um documento que foi, posteriormente, adotado pelo Secretariado Unificado da IV Internacional, encabeçado por Ernest Mandel. Nele, Waters propunha uma unidade de todas as mulheres em um movimento autônomo policlassista e independente. Segundo ela, as mulheres de todas as classes lutarão cada dia mais unidas entre si frente ao capitalismo, que é o inimigo comum, em uma dinâmica que não parará até derrotá-lo.

Para retomar as posições do trotskismo, a Fração Bolchevique da IV Internacional, antecessora da LIT-QI, lançou em 1980 o documento, intitulado "As tarefas do trotskismo entre as mulheres", que não só respondeu à altura o documento de Waters como até hoje serve de orientação para o trabalho e as posições marxistas sobre a questão. Esse documento afirma que a unidade das mulheres por cima das classes é impossível devido as contradições políticas e sociais da luta entre a revolução e a contra-revolução. Os trotskistas devem apoiar e fazer unidade de ação nas lutas pelas reivindicações democráticas específicas das mulheres, mas sua participação em tais movimentos tem como objetivo ganhar as mulheres, principalmente as operárias, através da mobilização, para que rompam com a burguesia e o reformismo e se unam à sua classe e ao partido revolucionário. Reafirma que os trotskistas estão na primeira fila da luta pelas reivindicações contra a opressão da mulher, e para isso, seu programa deve contemplar as demandas democráticas como aborto livre e gratuito, divórcio, plena igualdade legal etc. Pelas demandas das operárias e mulheres pobres, como salário igual para trabalho igual, redução da jornada, creches, restaurantes e lavanderias coletivos, por um salário para a dona de casa e pleno emprego para a mulher. Exige representação das mulheres nas direções sindicais e criação de comissões femininas nos sindicatos. Pela defesa das condições de vida da família operária e camponesa; por serviços públicos de saúde, educação e recreação gratuitos, e por subsídios para os filhos. E conclui afirmando que esse programa democrático e transicional tem um único objetivo: a mobilização das mulheres operárias e pobres junto a sua classe, pela tomada do poder pelo proletariado e a revolução socialista mundial, que é a única que poderá garantir a igualdade plena e permanente das mulheres e de todos os oprimidos.

Sob novas bases, o mesmo combate que se travava na I Internacional entre os marxistas revolucionários e os reformistas de todos os matizes, sobre o papel da mulher na sociedade, se seu lugar predestinado é o lar ou o mundo inteiro, continua até hoje. Firmes na defesa da revolução socialista e da organização das mulheres trabalhadoras e pobres nas fileiras revolucionárias, ao lado de sua classe, os marxistas revolucionários mantêm vivo o combate do movimento socialista internacional pela liberação da mulher. Em contrapartida, ao afirmar que o problema da mulher é um problema de gênero, que pode ser resolvido dentro do capitalismo, e que por isso as mulheres trabalhadoras e pobres devem estar junto com todas as mulheres, afastadas da luta de classes, o feminismo reformista retoma o mais atrasado do passado da luta dos trabalhadores, de que lugar de mulher é no lar. Porque, como disse Lenin, a única forma de emancipar a mulher é emancipar o conjunto da classe trabalhadora pela revolução socialista e a construção de novas bases sociais, sem exploração, sem opressão e com igualdade plena entre homens e mulheres.