quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Fim do Socialismo, URSS - Eric Hobsbawm

Extraído do livro: ERA DOS EXTREMOS O breve século XX 1914-1991. Tradução: MARCOS SANTARRITA.  Companhia das Letras. Páginas 457-482

II

[...] A diminuição no ritmo da economia soviética era palpável: a taxa de cresci­mento de quase tudo que nela contava, e podia ser contado, caiu constante­mente de um período de cinco anos para outro após 1970: produto interno bruto, produção industrial, produção agrícola, investimento de capital, produ­tividade de trabalho, renda real per capita. Se não eslava de fato em regressão, a economia avançava no passo de um boi cada vez mais cansado. Além disso, muito longe de se tomar um gigante do comércio mundial, a URSS parecia estar regredindo internacionalmente. Em 1960, suas grandes exportações eram maquinaria, equipamentos, meios de transporte e metais ou artigos de metal, mas em 1985 dependia basicamente para suas exportações (53%) de energia (isto é, petróleo e gás). Por outro lado, quase 60% de suas importações consis­tiam em máquinas, metais etc. e artigos de consumo industriais (SSSR, 1987. pp. 15-7, 32-3), Tomara-se algo assim como uma colônia produtora de ener­gia para economias industriais mais avançadas - na prática, em grande parte, para seus próprios satélites ocidentais, notadamente a Tchecoslováquia e a República Democrática Alemã, cujas indústrias podiam contar com o merca­do ilimitado e não exigente da URSS, sem ter de mudar muita coisa para corri­gir suas próprias deficiências.(1)

Na verdade, na década de 1970 era claro que não só o crescimento eco­nômico estava ficando para trás, mas mesmo os indicadores sociais básicos, como o da mortalidade, estavam deixando de melhorar. Isso minou a confian­ça no socialismo talvez mais que qualquer outra coisa, pois sua capacidade de melhorar a vida da gente comum através de maior justiça social não dependia basicamente de sua capacidade de gerar maior riqueza. O fato de a expectati­va de vida na URSS, Polônia e Hungria permanecer quase imutada durante os últimos vinte anos antes do colapso do comunismo - na verdade, de vez em quando chegava a cair - era causa de séria preocupação, pois na maioria dos outros países ela continuava a subir (incluindo, deve-se dizer, Cuba e os paí­ses comunistas asiáticos sobre os quais dispomos de dados). Em 1969, austría­cos, finlandeses e poloneses podiam esperar morrer na mesma média de idade (70,1 anos), mas em 1989 os poloneses tinham uma expectativa de vida cerca de quatro anos mais curta que os austríacos e finlandeses. Isso pode ter toma­ o do as pessoas mais saudáveis, como sugeriam os demógrafos, mas só porque nos países socialistas morriam pessoas que podiam ter sido mantidas vivas em países capitalistas (Riley, 1991). Os reformadores na URSS e em outras partes não deixavam de observar essas tendências com crescente ansiedade (World Bank Atlas, 1990, pp. 6-9; e World Tables, 1991, passim).

Por essa época, outro sintoma de reconhecido declínio na URSS se reflete no surgimento do termo nomenklatura (que parece ter chegado ao Ocidente através de textos de dissidentes). Até então o corpo de oficiais dos cadres do partido, que constituía o sistema de comando dos Estados leninistas, era enca­rado no exterior com respeito e relutante admiração, embora oposicionistas derrotados de dentro, como os trotskistas e - na Iugoslávia - Milovan Djilas (Djilas, 1957), houvessem apontado seu potencial de degeneração burocrática e corrupção pessoal. Na verdade, na década de 1950, e mesmo na de 1960, o tom geral do comentário ocidental, e sobretudo americano, era que ali - no sistema organizacional dos partidos comunistas e seu monolítico corpo de quadros, desprendidos de si mesmo, que cumpriam lealmente (se bem que brutalmente) "a linha" - estava o segredo do avanço global comu­nista (Fainsod, 1956; Brzezinski, 1962; Duverger, 1972).

Por outro lado, o termo nomenklatura, praticamente desconhecido antes de 1980, a não ser como parte do jargão administrativo do PCUS, passou a suge­rir precisamente a fraqueza da interesseira burocracia do partido da era Brejnev: uma combinação de incompetência e corrupção. E, na verdade, tor­nou-se cada vez mais evidente que a própria URSS operava basicamente por um sistema de patronato, nepotismo e suborno.

Com exceção da Hungria, as tentativas sérias de reformar as economias socialistas na Europa tinham sido, na verdade, abandonadas em desespero após a Primavera de Praga. No tocante às tentativas ocasionais de reverter as velhas economias de comando, na forma stalinista (como na Romênia de Ceausescu) ou na forma maoísta, que substituía a economia por voluntarismo e suposto zelo moral (como Fidel Castro), quanto menos se falasse delas, melhor. Os anos Brejnev iriam ser chamados pelos reformadores de "era da estagnação", essencialmente porque o regime parara de tentar fazer qualquer coisa séria em relação a uma economia em visível declínio. Comprar trigo no mercado mundial era mais fácil que tentar resolver a aparentemente crescente incapacidade da agricultura soviética de alimentar o povo da URSS. Lubrificar o enferrujado motor da economia com um sistema universal e onipresente de suborno e corrupção era mais fácil que limpá-lo e ressintonizá-lo, quanto mais substituí-la. Quem sabia o que aconteceria a longo prazo? A curto, parecia mais importante manter os consumidores satisfeitos, ou, de qualquer forma, manter o descontentamento dentro de limites. Daí, provavelmente, na primei­ra metade da década de 1970, a maioria dos habitantes da URSS estar e sentir­-se em melhores condições que em qualquer outra época na memória viva.

O problema do "socialismo realmente existente" na Europa era que, ao contrário da URSS do entre guerras, praticamente fora da economia mundial e portanto imune,à Grande Depressão, agora o socialismo estava cada vez mais envolvido nela, e portanto não imune aos choques da década de 1970. É uma ironia da história o fato de que as economias "socialistas reais" da Europa e da URSS, além de partes do Terceiro Mundo, se tenham tomado as verdadeiras víti­mas da crise pós-Era de Ouro da economia capitalista global, enquanto as "economias de mercado desenvolvidas", embora abaladas, conseguiam atra­vessar os anos difíceis sem grandes problemas, pelo menos até o início da década de 1990. Até então algumas delas, na verdade, como a Alemanha e o Japão, mal tinham tropeçado em sua marcha à frente. O "socialismo real", porém, agora enfrentava não apenas seus próprios problemas sistêmicos inso­lúveis, mas também os de uma economia mundial mutante e problemática, na qual se achava cada vez mais integrado. Isso pode ser ilustrado pelo ambíguo exemplo da crise internacional do petróleo que transformou o mercado de ener­gia mundial após 1973: ambíguo porque seus efeitos foram potencialmente negativos e positivos. Sob pressão do cartel de produtores de petróleo, a OPEP, o preço do produto, então baixo c, em termos reais, caindo desde a guerra, mais ou menos quadruplicou em 1973, e mais ou menos triplicou de novo no fim da década de 1970, após a Revolução Iraniana. Na verdade, a gama real de flutua­ções foi ainda mais sensacional: cm 1970 o petróleo era vendido a um preço médio de 2,53 dólares o barril, mas em fins da década de 1980 o barril valia 41 dólares.

A crise do petróleo teve duas conseqüências aparentemente felizes. Para os produtores de petróleo, dos quais a URSS por acaso era um dos mais impor­tantes, transformou o líquido negro em ouro. Era como um bilhete premiado garantido de loteria toda semana. Os milhões simplesmente rolavam para den­tro sem esforço, adiando a necessidade de reforma econômica e, de quebra, possibilitando à URSS pagar suas importações rapidamente crescentes do Ocidente capitalista com a energia exportada. Entre 1970 e 1980, as exporta­ções soviéticas para as "economias de mercado desenvolvidas" subiram de pouco menos de 19% das exportações totais para 32% (SSSR, 1987, p. 32). Sugeriu-se que foi essa bonança imprevista que tentou o regime de Brejnev a entrar numa política internacional mais ativa de competição com os EUA em meados da década de 1970 enquanto a agitação revolucionária mais uma vez varria o Terceiro Mundo (ver capítulo 15), e em um curso suicida de tentar igualar a superioridade de armamentos americana (Maksimenko, 1991).

A outra conseqüência aparentemente feliz da crise do petróleo foi a inun­dação de dólares que agora esguichavam dos multibilionários Estados da OPEP, muitas vezes com populações minúsculas, e que eram distribuídos pelo siste­ma bancário internacional sob a forma de empréstimos a quem quisesse. Poucos países em desenvolvimento resistiram à tentação de aceitar os milhões assim carreados para seus bolsos, e que iriam provocar a crise da dívida mun­dial de inícios da década de 1980. Para os países socialistas que sucumbiram a ela - notadamente Polônia e Hungria -, os empréstimos pareceram uma forma providencial de ao mesmo tempo pagar o investimento da aceleração do crescimento e elevar o padrão de vida de seus povos.

Isso só tomou mais aguda a crise da década de 1980, pois as economias socialistas - e notadamente a gastadora economia polonesa - eram demasia­do inflexíveis para utilizar produtivamente o influxo de recursos. O simples fato de que o consumo de petróleo na Europa Ocidental (1973-85) caiu 40% em resposta à alta dos preços, mas na URSS e Europa Oriental apenas pouco mais de 20% no mesmo período, fala por si (Köllö, 1990, p. 39). O fato de que os custos da produção soviética subiram acentuadamente, enquanto os campos de petróleo romenos secavam, toma ainda mais impressionante a não-econo­mia de energia. Em princípios da década de 1980, a Europa Oriental se acha­va numa aguda crise de energia. Isso por sua vez produziu escassez de alimen­tos e bens manufaturados (a não ser onde, como na Hungria, o país mergulhou ainda mais maciçamente em dívidas, acelerando a inflação e baixando os salá­rios reais). Essa foi a situação em que o "socialismo realmente existente" na Europa entrou no que revelou ser sua década final. A única maneira efetiva imediata de lidar com essa crise em o tradicional recurso stalinista a estritas ordens e restrições centrais, pelo menos onde o planejamento central ainda atuava (o que não mais acontecia na Hungria e Polônia). Deu certo, entre 1981 e 1984. A dívida caiu 35% a 70% (exceto naqueles dois países). Isso chegou a encorajar ilusórias esperanças de retorno a um crescimento econômico dinâ­mico sem reformas básicas, que "trouxesse um Grande Salto Atrás em relação à crise da dívida e à deterioração das perspectivas econômicas" (Köllö, 1990, p. 41). Foi o momento em que Mikhail Sergueievitch Gorbachev, se tornou o líder da URSS.


III

Neste ponto, devemos retomar da economia para a política do "socialis­mo realmente existente", pois a política, tanto a alta quanto a baixa, é que iria provocar o colapso euro-soviético de 1989-91.

Politicamente, a Europa Oriental era o calcanhar de Aquiles do sistema soviético, e a Polônia (e também, em menor medida, a Hungria) seu ponto mais vulnerável. Após a Primavera de Praga, ficou claro, como vimos, que os regimes satélites comunistas haviam perdido legitimidade como tal na maior parte da região.(2) Tinham sua existência mantida por coerção do Estado, apoiado pela ameaça de intervenção soviética, ou, na melhor das hipóteses – como na Hungria -, dando aos cidadãos condições materiais e relativa liberdade muito superiores à média leste-européia, mas que a crise econômica tomava impossíveis de manter. Contudo, com uma exceção, nenhuma forma séria de oposição política organizada ou qualquer outra era possível. Na Polônia, a conjunção de três fatores produziu essa possibilidade. A opinião pública do país estava esmagadoramente unida não apenas pela antipatia ao regime, mas por um nacionalismo anti-russo (e antijudeu) e conscientemente católico romano; a Igreja retinha uma organização independente nacional; e a classe ope­rária demonstrara seu poder político com greves maciças, em intervalos, desde meados da década de 1950. O regime há muito se resignara a uma tolerância tácita, ou mesmo à retirada - como quando as greves da década de 1970 for­çaram a abdicação do então líder comunista -, enquanto a oposição estivesse desorganizada, embora seu espaço de manobra encolhesse perigosamente.

Mas a partir de meados da década de 1970, teve de enfrentar tanto um movi­mento, trabalhista politicamente organizado, apoiado por uma assessoria de dissidentes intelectuais politicamente sofisticados, sobretudo ex-marxistas, quanto também uma Igreja cada vez mais agressiva, encorajada em 1978 pela eleição do primeiro papa polonês da história, Karol Wojtyla (João Paulo II).

Em 1980, o triunfo do movimento sindical Solidariedade como, na verdade, um movimento de oposição pública nacional, brandindo a arma da greve geral, demonstrou duas coisas: que o regime do Partido Comunista na Polônia chegara ao fim da corda; mas também que não podia ser derrubado por agita­ção de massa. Em 1981, Igreja e Estado concordaram discretamente em adian­tar-se ao perigo de intervenção militar soviética (que foi seriamente conside­rada) com alguns anos de lei marcial sob o comandante das Forças Armadas, que podia, de maneira plausível, alegar legitimidade comunista e nacionalista. A ordem foi restabelecida com pouca dificuldade mais pela polícia que pelo exército, mas na verdade o governo, tão desamparado como sempre para enfrentar os problemas econômicos, nada tinha para usar contra a oposição, que continuou existindo como manifestação organizada da opinião pública do país. Ou os russos decidiam intervir, ou, mais cedo que mais tarde, o regime teria de abandonar a posição-chave dos regimes comunistas, o sistema unipar­tidário sob o "papel dirigente" do partido de Estado, ou seja, abdicar. Mas, com o resto dos governos-satélites observando nervosos o desenrolar desse roteiro, a maioria tentando impedir seu próprio povo de também fazer o mesmo, tomou-se cada vez mais evidente que os soviéticos não mais estavam dispostos a intervir.

Em 1985, um reformador apaixonado, Mikhail Gorbachev, chegou ao poder como secretário-geral do Partido Comunista soviético. Não foi por acaso. Na verdade, não fosse a morte do desesperadamente doente secretário­ geral e ex-chefe do aparato de segurança soviético, Iuri Andropov (1914-84), que fizera de fato o rompimento decisivo com a era Brejnev em 1983, a era de mudança teria começado um ano ou dois antes. Era inteiramente evidente para todos os demais governos comunistas, dentro e fora da órbita soviética, a imi­nência de grandes transformações, embora não fosse nada claro, mesmo para o novo secretário-geral, o que elas trariam.

A "era de estagnação" (zastoi) que Gorbachev denunciou fora na verda­de uma era de aguda fermentação política e cultural entre a elite soviética. Esta incluía não só o grupo relativamente minúsculo de autocooptados chefetes do Partido Comunista no topo da hierarquia da União, único lugar onde verdadei­ras decisões eram, ou podiam ser, tomadas, mas o relativamente vasto grupo de classe média educada e tecnicamente formada, além de administradores econômicos que de fato mantinham o país andando: acadêmicos, intelligentsia técnica, especialistas e executivos de vários tipos. Em certos aspectos, o pró­prio Gorbachev representava essa nova geração de quadros educados - estu­ dou direito, enquanto a clássica escada para o velho quadro stalinista antes era (e ainda, surpreendentemente, continuava sendo muitas vezes) a da oficina da fábrica, via um diploma de engenharia ou agronomia, para o aparato. A pro­fundidade dessa fermentação não se mede pelo tamanho do grupo de fato de dissidentes públicos que agora aparecia - umas poucas centenas, no máximo. Proibidas ou semilegalizadas (pela influência de bravos editores como o do famoso "jornal denso" Novy Mir), críticas e autocríticas impregnavam o ambiente cultural da URSS metropolitana sob Brejnev, incluindo importantes seto­res do partido e do Estado, notadamente nos serviços de segurança e relações exteriores. Dificilmente se pode explicar de outro modo a enorme e súbita res­posta ao apelo de Gorbachev por glasnot ("abertura" ou "transparência").

Contudo, a resposta das camadas política e intelectual não deve ser toma­da como uma resposta do grosso dos povos soviéticos. Para estes, ao contrário dos povos da maioria dos Estados comunistas europeus, o regime soviético era legítima e inteiramente aceito, quando nada porque não conheciam e não podiam conhecer nenhum outro (a não ser sob ocupação alemã em 1941-4, dificilmente atraente). Todo húngaro acima dos sessenta anos em 1990 tinha alguma lembrança adolescente ou adulta da era pré-comunista, mas nenhum habitante da URSS original abaixo dos 88 poderia ter tido tal experiência de pri­meira mão. E se o programa do Estado soviético tinha uma ininterrupta conti­nuidade que se estendia para trás até o fim da Guerra Civil, o próprio país tinha uma continuidade ininterrupta, ou praticamente ininterrupta, que se estendia ainda mais longe, a não ser por territórios ao longo da fronteira ocidental adquiridos ou readquiridos em 1939-40. Era o velho império czarista sob nova administração. Esse, a propósito, é o motivo pelo qual antes da década de 1980 não houve sinal algum de separatismo político sério em parte alguma, a não ser nos países bálticos (que tinham sido Estados independentes de 1918 a 1940), na Ucrânia ocidental (que era parte do império habsburgo, e não do russo, antes de 1918), e talvez na Bessarábia (Moldávia), que fora parte da Romênia de 1918 a 1940. Mesmo nos Estados bálticos havia um pouco mais de dissidência declarada que na Rússia (Lieven, 1993).

Além disso, o regime soviético não era apenas autóctone e com raízes internas - com a passagem do tempo, mesmo o partido, originalmente muito mais forte entre os grandes russos que entre outras nacionalidades, recrutava em grande parte a mesma porcentagem de habitantes nas repúblicas européias e transcaucasianas - mas as próprias pessoas, de formas difíceis de especificar, se encaixavam nele, à medida que o regime a elas se adaptava. Como observou o satirista dissidente Zinoviev, realmente havia um "novo homem soviético" (ou mulher, na medida em que era levada em conta, o que dificilmente aconte­cia), embora não correspondesse mais à sua imagem pública oficial do que qualquer outra coisa na URSS. Ele/ela estava à vontade no sistema (Zinoviev, 1979), que lhe assegurava um meio de vida e uma abrangente seguridade social, em nível modesto mas real, uma sociedade social e economicamente igualitá­ria e pelo menos uma das aspirações tradicionais do socialismo, o "Direito ao ócio", de Paul Lafargue (Lafargue, 1883). Além disso, para a maioria dos cida­dãos soviéticos, a era Brejnev significou não "estagnação", mas os melhores dias que eles e seus pais, ou mesmo seus avós, já haviam conhecido.

Não admira que reformadores radicais se vissem enfrentando, além da burocracia soviética, a humanidade soviética. No tom característico de irrita­do elitismo antiplebeu, um reformador escreveu:
Nosso sistema gerou uma categoria de indivíduos sustentados pela sociedade, e mais interessados em receber do que dar. Isso é a conseqüência de uma política de chamado igualitarismo que [...] invadiu totalmente a sociedade soviética [...] O fato de a sociedade se dividir em duas partes, os que decidem e distribuem e os que são cm,andados e recebem, constituem um dos maiores freios ao desenvolvi­mento de nossa sociedade. O Homo sovieticus [...] é ao mesmo tempo lastro e freio. De um lado, se opõe à reforma, por outro, constitui a base de apoio para o sistema existente (Afanassiev, 1991, pp. 13-4).

Social e politicamente, a maior parte da URSS era uma sociedade estável, sem dúvida, em parte graças à ignorância em relação a outros países mantida pela autoridade e a censura, mas de modo algum só por esse motivo. Será por acaso que não houve um equivalente da rebelião estudantil de 1968 na URSS, Polônia, Tchecoslováquia e Hungria? Que mesmo sob Gorbachev o movimento de reforma não mobilizou os jovens em nenhuma medida importante (exceto alguns grupos nacionalistas ocidentais)? Que tenha sido, como se dizia, "uma rebelião dos de trinta e quarenta anos", ou seja, da geração nascida após o fim da guerra mas antes do confortável torpor dos anos Brejnev? De onde quer que tenha vindo a pressão pela mudança na URSS, das bases não foi.

Na verdade veio, como tinha de vir, do topo. Ainda não está claro de que maneira, exatamente, um reformista comunista obviamente apaixonado e sin­cero veio a ser sucessor de Stalin à frente do PC soviético em 15 de março de 1985, e continuará pouco claro até que a história soviética das últimas décadas se tome tema mais da história do que de acusação e auto-exculpação. De qual­quer modo, o que conta não são os que entram e saem na política do Kremlin, mas as duas condições que permitiram a alguém como Gorbachev chegar ao poder. Primeiro, a crescente e cada vez mais escancarada corrupção da liderança do Partido Comunista na era Brejnev não podia deixar de indignar o setor do partido que ainda acreditava em sua ideologia, mesmo do modo mais oblí­quo. E um Partido Comunista, por mais degenerado que estivesse, já não seria possível sem alguns líderes socialistas, tanto quanto uma Igreja Católica sem alguns bispos e cardeais cristãos, pois ambos se baseiam em genuínos sistemas de crença. Segundo, as camadas educadas e tecnicamente competentes que mantinham de fato a economia soviética funcionando tinham aguda consciên­cia de que sem uma mudança drástica, na verdade fundamental, ela iria inevi­tavelmente afundar mais cedo ou mais tarde, não apenas por causa da inata ineficiência e inflexibilidade do sistema, mas porque a fraqueza era agravada pelas demandas de status de superpotência militar, que não podia ser sustenta­do em uma economia em declínio. A tensão militar sobre a economia na ver­dade aumentara perigosamente desde 1980, quando, pela primeira vez em muitos anos, as Forças Armadas soviéticas se viram diretamente envolvidas numa guerra. Enviaram uma força para o Afeganistão para estabelecer algum tipo de estabilidade naquele país, que desde 1978 era governado por um Partido Democrático Popular comunista dividido em facções conflitantes, ambas antagonizadas por latifundiários locais, o clero muçulmano e outros crentes no status quo, devido a atividades atéias como reforma agrária e direi­tos para as mulheres. O país estivera discretamente na esfera soviética desde o início da década de 1950, sem elevar notadamente a pressão sangüínea ociden­tal. Contudo, os EUA preferiram ou escolheram ver a jogada soviética como uma grande ofensiva militar dirigida contra o "mundo livre". Portanto (via Paquistão), despejou dinheiro e armamentos avançados sem limites nas mãos de guerreiros fundamentalistas muçulmanos das montanhas. Como era de esperar, o governo afegão, com maciço apoio soviético, teve pouca dificulda­de para manter as grandes cidades do país, mas o custo para a URSS foi desor­denadamente alto. O Afeganistão se tornou - como algumas pessoas em Washington sem dúvida pretendiam que se tomasse - o Vietnã da União Soviética.

Mas que podia fazer o novo líder soviético para mudar a situação na URSS, além de pôr fim, o mais cedo possível, ao confronto da Segunda Guerra Fria com os EUA, que estava dessangrando a economia? Esse, claro, era o objetivo imediato de Gorbachev, e foi o seu maior êxito, pois, num período surpreen­dentemente curto, ele convenceu mesmo governos ocidentais céticos de que essa era de fato a intenção soviética. Isso conquistou-lhe uma imensa e dura­doura popularidade no Ocidente, que contrastava de maneira impressionante com a falta de entusiasmo por ele na URSS, pela qual acabou sendo vitimado em 1991. Se algum homem sozinho pôs fim a uns quarenta anos de guerra fria global, foi ele.

Os objetivos dos reformadores econômicos comunistas desde a década de 1950 eram tomar as economias de comando centralmente planejadas mais racionais e flexíveis, com a introdução do sistema de preços de mercado e cál­culos de lucros e perda nas empresas. Os reformadores húngaros haviam se adiantado um pouco nessa direção e, não fosse a ocupação soviética de 1968, os reformadores tchecos teriam ido ainda mais longe: ambos esperavam, com isso, também que fosse mais fácil liberalizar e democratizar o sistema políti­co. Essa foi também a posição de Gorbachev,(3) que ele naturalmente via como uma maneira de restaurar e restabelecer um socialismo melhor do que o "real­mente existente", É possível, mas bastante improvável, que algum reformador influente na URSS pensasse no abandono do socialismo, quando nada porque isso parecia inteiramente impraticável em termos políticos, embora em outros lugares economistas formados, que se haviam associado a reformas, começas­sem a concluir que o sistema, cujos defeitos foram analisados sistematicamen­te em público pela primeira vez na década de 80, não podia ser reformado de dentro. (4)


IV

Gorbachev lançou sua campanha para transformar o socialismo soviético com os slogans perestroika, ou reestruturação (da estrutura econômica e polí­tica), e glasnost, ou liberdade de informação. (5)

Entre eles havia o que se revelou um conflito insolúvel. A única coisa que fazia o sistema soviético funcionar, e podia talvez transformá-lo, era a estrutu­ra de comando do partido/Estado herdada dos dias stalinistas. Era uma situa­ção conhecida na história russa, mesmo nos dias dos czares. A reforma vinha de cima. Mas a estrutura de partido/Estado era, ao mesmo tempo, o principal obstáculo para a transformação de um sistema que ele criara, ao qual se adap­tara, no qual tinha um grande interesse investido, e para o qual achava difícil conceber uma alternativa. (6) Esse sistema estava longe de ser o único obstá­culo, e os reformadores, não apenas na Rússia, sempre foram tentados a cul­par a "burocracia" pelo fato de seu país e povo não responderem às suas ini­ciativas, mas é inegável que grande parte do aparato do partido/Estado recebia qualquer grande reforma com uma inércia que ocultava a hostilidade. A glas­nost destinava-se a mobilizar apoio dentro e fora do aparato contra essa resis­tência. Mas sua conseqüência lógica foi solapar a única força que podia agir. Como se sugeriu acima, a estrutura do sistema soviético e seu modus operan­di eram essencialmente militares. Democratizar exércitos não melhora a sua eficiência. Por outro lado, se não se quer um sistema militar, deve-se cuidar para que haja uma alternativa civil antes de destruí-lo, pois senão a reforma produz não reconstrução, mas colapso. A URSS sob Gorbachev caiu nesse fosso em expansão entre glasnost e perestroika.

O que tomava a situação pior era que, na mente dos reformadores, glas­nost era um programa muito mais específico que perestroika. Significava a introdução, ou reintrodução, de um Estado constitucional e democrático ba­seado no império da lei e no gozo de liberdades civis como comumente enten­didos. Isso implicava a separação de partido e Estado, e (ao contrário de todo acontecimento desde a ascensão de Stalin) a mudança do locus de governo efetivo de partido para Estado. Isso, por sua vez, implicaria o fim do sistema unipartidário e do “papel condutor" do partido. Também, obviamente, signi­ficaria revivescência dos sovietes em todos os níveis, em forma de assem­bléias eleitas genuinamente representativas, que culminariam num Soviete Supremo, uma assembléia legislativa genuinamente soberana, que concederia poder a um Executivo forte mas seria capaz de controlá-la. Essa, pelo menos, era a teoria.

Na verdade, o novo sistema constitucional acabou sendo instalado. O novo sistema econômico da perestroika mal foi esboçado em 1987-8 com a tíbia legalização de pequenas empresas privadas ("cooperativas") - ou seja, de grande parte da "segunda economia" - e com a decisão de, em princípio, deixar que empresas estatais em permanente déficit fossem à bancarrota. Na verdade, o fosso entre a retórica da reforma econômica e a realidade de uma economia visivelmente emperrada se alargava dia a dia.

Essa situação era desesperadamente perigosa, pois a reforma constitucio­nal apenas desmontava um conjunto de mecanismos políticos e substituía-o por outro. Deixava aberta a questão do que iriam fazer as novas instituições, embora os processos de decisão fossem presumivelmente mais incômodos numa democracia do que num sistema de comando militar. Para a maioria das pessoas, a diferença seria simplesmente que, em um caso, elas tinham uma verdadeira opção eleitoral de quando em quando, e também a opção, no meio tempo, de ouvir políticos da oposição criticarem o governo. Por outro lado, o critério de perestroika era, e tinha de ser orientado não pelos princípios que dirigiam a economia, mas como de fato ela atuava todo dia, em formas que pudessem ser facilmente especificadas e medidas. Só podia ser julgada pelos resultados. Para a maioria dos cidadãos soviéticos, estes se mediam pelo que acontecia a suas rendas reais, ao esforço para ganhá-las, à quantidade e gama dos bens e serviços a seu alcance e à facilidade com que podiam adquiri-los. Mas embora fosse muito claro o que os reformadores econômicos combatiam e desejavam abolir, sua alternativa positiva, uma "economia de mercado socia­lista, com empresas autônomas e economicamente viáveis, cooperativas pú­blicas e privadas, macroeconomicamente orientadas pelo "centro de tomada de decisões econômicas", pouco mais era que uma expressão. Significava sim­plesmente que os reformadores desejavam ter as vantagens do capitalismo sem perder as do socialismo. Ninguém tinha a menor idéia de como, na prática, a transição de uma economia de comando de Estado centralizada para um novo sistema seria feita e - igualmente importante - como funcionaria de fato no futuro previsível o que inevitavelmente iria continuar sendo uma economia dupla, estatal e não estatal. O apelo da ideologia de livre mercado ultra-radi­cal, thatcherista ou reaganista, para os jovens reformadores intelectuais, esta­va em sua promessa de proporcionar uma solução drástica mas também alto­mática para esses problemas. (Como se poderia prever, não proporcionou.)
 
Provavelmente a coisa mais próxima de um modelo de transição para os reformadores de Gorbachev foi a vaga lembrança histórica da Nova Política Econômica de 1921-8. Essa, afinal, dera "resultados espetaculares na revitali­zação da agricultura, comércio, indústria, finanças, durante várias décadas depois de 1921", e devolvera a saúde a uma economia em colapso, porque "se baseava nas forças de mercado" (Vernikov, 1989, p. 13). Além disso, uma polí­tica de liberalização e descentralização de mercado bastante semelhante produzira, desde o fim do maoísmo, resultados sensacionais na China, cujo cres­cimento do PNB na década de 1980, superado apenas pelo da Coréia do Sul, atingia uma média de quase 10% ao ano (World Bank Atlas, 1990). Contudo, não havia comparação entre a Rússia desesperadamente pobre, tecnologica­mente atrasada e esmagadoramente rural da década de 1920 e a URSS altamen­te industrializada e urbanizada da de 1980, cujo mais avançado setor indus­trial, o complexo científico-industrial-militar (incluindo o programa espacial), de qualquer modo dependia de um mercado que consistia em um único clien­te. É seguro dizer que a perestroika teria funcionado um tanto melhor se a Rússia em 1980 ainda fosse (como a China naquela data) um país de 80% de aldeões, cuja idéia de riqueza, além dos sonhos de avareza, seria um aparelho de televisão. (Mesmo no início da década de 1970, cerca de 70% da popula­ção soviética via televisão durante uma média de uma hora e meia por dia) (Kerblay, 1983, pp. 140-1).

Apesar disso, o contraste entre a perestroika soviética e a chinesa não é inteiramente explicado por tais descompassos de tempo, nem mesmo pelo fato óbvio de que os chineses tiveram o cuidado de manter intacto o seu sistema de comando central. O quanto se beneficiaram das tradições culturais do Extremo Oriente, que revelaram favorecer o crescimento independentemente de siste­mas sociais, é algo que deve ser deixado para historiadores do século XXI investigarem.

Teria sido possível supor seriamente, em 1985, que seis anos depois a URSS e seu Partido Comunista teriam deixado de existir, e na verdade que todos os outros regimes comunistas na Europa teriam desaparecido? A julgar pela completa falta de preparo dos governos ocidentais para o súbito colapso de 1989-91, as previsões do iminente falecimento do inimigo ideológico do Ocidente não passavam de rebotalhos de retórica pública. O que levou a União Soviética com rapidez crescente para o precipício foi a combinação de glas­nost, que equivalia à desintegração de autoridade, com uma perestroika que equivalia à destruição dos velhos mecanismos que faziam a economia mundial funcionar, sem oferecer qualquer alternativa; e conseqüentemente o colapso cada vez mais dramático do padrão de vida dos cidadãos. O país avançava para uma política eleitoral pluralista no momento mesmo em que desabou em anar­quia econômica: pela primeira vez desde o início do planejamento, a Rússia em 1989 não mais tinha um Plano Qüinqüenal (Di Leo, 1992, p. 100n). Foi uma combinação explosiva, porque solapou as rasas fundações da unidade econômica e política dá URSS.

Pois a URSS evoluíra cada vez mais para uma descentralização estrutural, seus elementos mantidos juntos basicamente pelas instituições nacionais do partido, exército, forças de segurança e o plano central, e essa evolução acon­teceu mais rapidamente que nunca nos longos anos Brejnev. De facto, grande parte da União Soviética era um sistema de domínios feudais autônomos. Seus chefetes locais - os secretários do partido das repúblicas da União com seus comandantes territoriais subordinados, e os administradores das grandes e pequenas unidades de produção, que mantinham a economia em operação ­ eram unidos por pouco mais que a dependência do aparato central do partido em Moscou, que nomeava, transferia, depunha e cooptava, e pela necessidade de "cumprir o plano" elaborado em Moscou. Dentro desses limites bastante amplos, os chefetes territoriais tinham considerável independência. Na verda­de, a economia não teria funcionado de modo algum sem o desenvolvimento, feito pelos que realmente tinham de dirigir instituições com funções reais, de uma rede de relações laterais independente do centro. Esse sistema de acordos, arranjos de permutas e trocas de favores com outros quadros em posições semelhantes era outra “segunda economia" dentro do todo nominalmente pla­nejado. Pode-se acrescentar que, à medida que a URSS se tomava uma sociedade industrial e urbana mais complexa, os quadros encarregados de fato da pro­dução, distribuição e cuidado geral dos cidadãos sentiam decrescente simpatia pelos ministérios e pelas figuras puramente partidárias que eram seus superio­res, mas cujas funções concretas não mais eram claras além das de se arrumar seus ninhos, como muitos deles fizeram espetacularmente no período Brejnev. A repulsa à cada vez mais monumental e generalizada corrupção da nomen­klatura foi o combustível inicial para o processo de reforma, e Gorbachev teve apoio bastante sólido dos quadros econômicos à perestroika, sobretudo dos pertencentes ao complexo industrial-militar, que queriam verdadeiramente melhorar a administração de uma economia estagnante e, em termos científi­cos e técnicos, paralítica. Ninguém sabia melhor que eles como tudo ficara realmente ruim. Além disso, não precisavam do partido para prosseguir com suas atividades. Se a burocracia do partido desaparecesse, eles ainda estariam ali. Eram indispensáveis, ela não. Na verdade, eles ainda estavam lá depois do colapso da URSS, agora organizados como grupo de pressão na nova (1990) "União Científico-Industrial" (NPS) e seus sucessores; após o fim do comunis­mo, tomaram-se os donos (potencialmente) legais das empresas que haviam comandado antes sem direitos legais de propriedade.

Apesar disso, por mais corrupto, ineficiente e em grande parte parasita que tivesse sido o partido, este continuava sendo essencial numa economia baseada no comando. A alternativa para a autoridade do partido não era a auto­ridade constitucional e democrática, mas, a curto prazo, autoridade nenhuma. Foi de fato o que aconteceu. Gorbachev, como seu sucessor, Yeltsin, mudou sua base de poder do partido para o Estado, e, como presidente constitucional, acu­mulava legalmente poderes para governar por decreto, em alguns casos poderes maiores em teoria do que qualquer líder soviético anterior desfrutara formalmente, mesmo Stalin (Di Leo, 1992, p. 111). Ninguém deu a menor atenção a isso, fora das recém-estabelecidas assembléias democráticas, ou antes consti­tucionais e públicas, o Congresso do Povo e o Soviete Supremo (1989). Nin­guém governava, ou melhor, ninguém mais obedecia na União Soviética.

Como um gigantesco navio-tanque avariado aproximando-se dos recifes, uma União Soviética sem leme vagava assim para a destruição. As linhas segundo as quais ia rachar-se já estavam traçadas: de um lado, o sistema de autonomia de poder territorial em grande parte corporificado na estrutura fede­ral do Estado, de outro os complexos econômicos autônomos. Como a teoria oficial sobre a qual a URSS se erguera era de autonomia territorial para os gru­pos nacionais, tanto para as quinze repúblicas da União quanto para as regiões e áreas autônomas dentro de cada uma delas,(7) a fratura nacionalista estava potencialmente embutida no sistema, embora, com exceção dos três pequenos Estados bálticos, o separatismo não fosse sequer pensado antes de 1988, quan­do se fundaram as primeiras "frentes" nacionalistas ou organizações de cam­panha em resposta à glasnost (na Estônia, Letônia, Lituânia e Armênia). Contudo, nessa etapa, mesmo nos Estados bálticos, elas eram dirigidas não tanto contra o centro quanto contra os partidos comunistas locais insuficiente­mente gorbachevistas, ou, como na Armênia, contra o vizinho Azerbaijão. O objetivo não era ainda a independência, embora o nacionalismo se radicalizas­se rapidamente em 1989-90, sob o impacto do mergulho na política eleitoral e da luta entre reformadores radicais e a resistência organizada do velho esta­blishment do partido nas novas assembléias, além dos atritos entre Gorbachev e sua ressentida vítima, rival e eventual sucessor, Boris Yeltsin.

Em essência, os reformadores radicais buscaram apoio, contra as entrin­cheiradas hierarquias do partido, entre os nacionalistas nas repúblicas e, ao fazerem isso, ali se fortaleceram. Na própria Rússia, o apelo aos interesses russos contra as repúblicas da periferia, subsidiadas pela Rússia e vistas como cada vez em melhor situação que ela própria, era uma arma poderosa na luta dos radicais para expulsar a burocracia do partido, entrincheirada no aparato central do Estado. Para Boris Yeltsin, um velho chefão da pane que coman­dara, no partido, que combinava os talentos para se dar bem na velha política (dureza e esperteza) com os talentos para se dar bem na nova (demagogia, jovialidade e senso de mídia), o caminho para o topo agora passava pela toma­da da Federação Russa, o que lhe permitiria contornar as instituições da União de Gorbachev. Até então, com efeito, a União e sua principal componente, a RSFSR, não eram claramente distintas. Ao transformar a Rússia numa repúbli­ca como as outras, Yeltsin de facto favoreceu a desintegração da URSS, que uma Rússia sob o seu controle na verdade suplantaria. Foi o que de fato aconteceu em 1991.

A desintegração econômica ajudou a adiantar a desintegração política, e foi por ela alimentada. Com o fim do Plano e das ordens do partido vindas do centro, não havia economia nacional efetiva, mas uma corrida, empreendida por qualquer comunidade, território ou outra unidade que pudesse consegui­-lo, para a autoproteção e auto-suficiência, ou trocas bilaterais. Os comandan­tes das grandes cidades-empresas provinciais, sempre acostumados a tais arranjos, trocavam produtos industriais por alimentos com os chefes das fazen­das coletivas regionais, como fez o chefe do partido de Leningrado, Gidaspov, - um exemplo impressionante - quando resolveu uma aguda crise de grãos em sua cidade com um telefonema a Nazarbaiev, o chefão do partido no Casaquistão, que acenou uma troca de cereais por calçados e aço (Yu Boldyrev, 1990). Mas mesmo esse tipo de transação entre duas das altas fi­guras da velha hierarquia do partido, na verdade, tomava o sistema de distri­buição nacional como irrelevante. "Particularismos, autarquias, retornos a prá­ticas primitivas pareciam ser os verdadeiros resultados das leis que haviam liberalizado as forças econômicas locais" (Di Leo, 1992, p. 101).

O ponto decisivo foi alcançado na segunda metade de 1989, bicentenário da eclosão da Revolução Francesa, cuja inexistência ou irrelevância para a política do século XX historiadores "revisionistas" franceses se agitavam para demonstrar na época. O colapso político seguiu-se (como na França do século XVIII) à convocação das novas assembléias democráticas, ou em grande pane democráticas, no verão daquele ano. O colapso econômico tomou-se irrever­sível dentro de uns poucos meses cruciais entre outubro de 1989 e maio de 1990. Contudo, os olhos do mundo na época estavam fixos num fenômeno relacionado mas secundário: a súbita dissolução dos regimes comunistas saté­lites na Europa, mais uma vez imprevista. Entre agosto de 1989 e o fim daque­le ano, o poder comunista abdicou ou deixou de existir na Polônia, Tchecoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária e República Democrática Alemã - sem que sequer um tiro fosse disparado, a não ser na Romênia. Pouco depois, os dois Estados balcânicos que não eram satélites soviéticos, Iugoslávia e Albânia, também deixaram de ser regimes comunistas. A República Democrática Alemã logo seria anexada à Alemanha Ocidental e a Iugoslávia logo se desfaria em guerra civil. O processo foi visto não só nas telas de televisão do mundo ocidental como também, com muita atenção, pelos regimes comunistas em outros continentes. Embora eles fossem desde os radicalmente reformistas (pelo menos em questões econômicas), como na China, aos implacavelmente centralistas da velha escola, como em Cuba (capí­tulo 15), provalmente todos tinham dúvidas sobre o mergulho soviético numa irrestrita glasnost e sobre o enfraquecimento da autoridade. Quando o movi­mento por liberalização e democracia se espalhou da URSS para a China, o governo de Beijing decidiu, em meados de 1989, após uma óbvia hesitação e dilacerantes desacordos internos, restabelecer sua autoridade da maneira menos ambígua possível, com o que Napoleão, que também usara o exército para eliminar a agitação pública durante a Revolução Francesa, chamara de "uma rajada de metralha". As tropas varreram uma manifestação estudantil de massa da praça principal da capital, com um pesado custo em vidas, provavelmente - embora não haja dados confiáveis quando escrevo - várias cente­nas. O massacre da praça Tienanmen, que horrorizou a opinião pública mun­dial, sem dúvida fez o Partido Comunista chinês perder muito da legitimidade que ainda pudesse ter entre as jovens gerações de intelectuais chineses, incluindo membros do partido, e deixou o regime chinês em liberdade para continuar com a bem-sucedida política de liberalização econômica sem pro­blemas políticos imediatos. O colapso do comunismo após 1989 se limitou à URSS e aos Estados em sua órbita (incluindo a Mongólia Exterior, que escolhe­ra a proteção soviética ao domínio chinês entre as guerras mundiais). Os três regimes comunistas asiáticos sobreviventes (China, Coréia do Norte e Vietnã), assim como a distante e isolada Cuba, não foram imediatamente afetados.


V
 
Parecia natural, sobretudo no ano do bicentenário de 1789, descrever as mudanças de 1989-90 como as revoluções do Leste Europeu e, na medida em que os fatos que levam à completa derrubada de regimes são revolucionários, a palavra é apropriada, mas enganadora. Pois nenhum dos regimes da Europa Oriental foi derrubado. Nenhum, com exceção da Polônia, continha qualquer força interna, organizada ou não, que constituísse uma séria ameaça a ele, e o fato de que a Polônia continha uma poderosa oposição política na verdade assegurou que o sistema não fosse destruído de um dia para o outro, mas subs­tituído por um processo negociado de acordo e reforma, não diferente da ma­neira como a Espanha fez a transição para a democracia após a morte do gene­ral Franco, em 1975. A mais imediata ameaça aos da órbita soviética vinha de Moscou, que deixou claro que não mais iria socorrê-los com a intervenção militar, como em 1956 e 1968, quando nada porque o fim da Guerra Fria os tomava menos estrategicamente necessários à URSS. Se quisessem sobreviver, na opinião de Moscou, seria de bom alvitre seguir a linha da liberalização, reforma e flexibilidade dos comunistas poloneses e húngaros, mas, por esse mesmo motivo, Moscou não forçaria os linhas-duras em Berlim e Praga. Estes estavam sozinhos.

A própria retirada -da URSS acentuou sua bancarrota. Continuaram no poder apenas graças ao vazio que haviam criado a sua volta, que não deixara alternativa para o status quo, a não ser (onde isso era possível) a emigração, ou (para uns poucos) a formação de grupos marginais dissidentes de intelec­tuais. O grosso dos cidadãos aceitara as coisas como eram porque não tinha alternativa. Pessoas de energia, talento e ambição trabalhavam dentro do siste­ma, pois qualquer posição que exige essas coisas, e de fato qualquer expressão pública de talento, estava dentro do sistema ou existia por sua permissão, mesmo em campos inteiramente não políticos como salto com vara e xadrez. Isso se aplicava até mesmo à oposição permitida, sobretudo nas artes, que pôde desenvolver-se no declínio dos sistemas, como descobriram por si próprios os escritores dissidentes que preferiram não emigrar após a queda do comunismo, quando foram tratados como colaboradores. (8) Não admira que a maioria das pessoas optasse por uma vida tranqüila, que incluía os gestos for­mais de apoio a um sistema em que ninguém acreditava, com exceção das crianças de escola primária, como votar ou fazer manifestação, mesmo quan­do os castigos pela dissidência não eram mais aterrorizantes. Um dos motivos pelos quais o velho regime foi denunciado com tanta fúria após a sua queda, sobretudo em países linha-dura como a Tchecoslováquia e a ex-RDA, era que a grande maioria votava nas falsas eleições para evitar conseqüências desagradá­veis, embora não muito sérias: eles participavam das marchas obrigatórias [...] Os informantes da polícia eram facilmente recrutados, conquistados por privilégios miseráveis, muitas vezes concordando em servir como resultado de uma pressão muito branda. (Kolakowski. 1992, pp. 55-6)

Contudo, dificilmente alguém acreditava no sistema ou sentia qualquer lealdade a ele, nem mesmo os que o governavam. Ficaram sem dúvida surpresos quando as massas, por fim, abandonaram sua passividade e manifestaram sua dissidência - o momento de espanto foi captado para sempre no videotei­pe do presidente Ceausescu, em dezembro de 1989, diante de uma multidão que vaiava, em vez de aplaudir lealmente -, mas foram surpreendidos não pela dis­sidência, mas pela ação. No momento da verdade, nenhum governo do Leste Europeu ordenou às suas forças que atirassem. Todos abdicaram tranqüilamen­te, exceto na Romênia, e mesmo ali a resistência foi breve. Talvez não pudes­sem ter readquirido o controle, mas ninguém nem sequer tentou. Nenhum grupo de ultracomunistas em parte alguma se dispôs a morrer no bunker por sua fé, nem mesmo pelo registro muito pouco impressionante de quarenta anos de governo comunista em vários desses Estados. O que eles poderiam ter de­fendido? Sistemas econômicos cuja inferioridade em relação aos vizinhos oci­dentais saltava aos olhos, que estavam parando e se haviam mostrado irrefor­máveis, mesmo onde se haviam feito tentativas de reforma sérias e inteligentes? Sistemas que tinham visivelmente perdido a justificativa que mantivera seus quadros comunistas no passado, ou seja, de que o socialismo era superior ao capitalismo e destinado a substituí-lo? Quem podia mais acreditar nisso, embo­ra não tivesse parecido implausível na década de 1940 ou mesmo na de 1950? Como os Estados comunistas não se achavam mais sequer unidos, e às vezes, na verdade, combatessem uns aos outros com armas (por exemplo, China e Vietnã no início da década de 1980), não se podia mais nem mesmo falar de um "campo socialista" único. Restava apenas das velhas esperanças o fato de que a URSS, país da Revolução de Outubro, era uma das duas superpotências glo­bais. Com exceção talvez da China, todos os governos comunistas, e muitos partidos, Estados e movimentos comunistas no Terceiro Mundo, sabiam muito bem o quanto deviam a existência desse contrapeso à predominância econômi­ca e estratégica do outro lado. Mas a URSS, visivelmente, arriava um fardo polí­tico-militar que não mais agüentava, e mesmo Estados comunistas que não eram em sentido algum dependentes de Moscou (Iugoslávia, Albânia) não podiam deixar de compreender que o seu desaparecimento iria enfraquecê-los.

De qualquer modo, na Europa como na URSS, os comunistas, outrora sus­tentados pelas antigas convicções, eram agora uma geração do passado. Em 1989, poucos deles, com menos de sessenta anos, podiam ter partilhado da experiência que ligava comunismo e patriotismo em vários países, ou seja, à Segunda Guerra Mundial e à Resistência, e poucos abaixo dos cinqüenta podiam sequer ter lembranças de primeira mão dessa época. O princípio que legitimizava Estados era, para a maioria das pessoas, a retórica oficial ou o anedotário dos velhos cidadãos. (9) Era provável que mesmo membros do parti­do, entre os não idosos, não fossem comunistas no sentido antigo, mas homens e mulheres (infelizmente, demasiado poucas mulheres) que faziam carreira em países que por acaso se achavam sob governo comunista. Quando os tempos mudassem, e se pudessem mudar, eles estavam dispostos a virar a casaca de uma hora para outra. Em suma, os que dirigiam os satélites soviéticos haviam perdido a fé em seus próprios sistemas, ou jamais a haviam tido. Enquanto os sistemas eram operacionais, eles o operavam. Quando ficou claro que a pró­pria URSS estava cortando as amarras com eles, os reformadores (como na Polônia e Hungria) tentaram negociar uma transição pacífica; e os linhas-duras (como na Tchecoslováquia e RDA) tentaram resistir até tomar-se evidente que os cidadãos não mais obedeciam, embora o exército e a polícia ainda o fizes­sem. Nos dois casos, eles se foram tranqüilamente quando compreenderam que seu tempo se esgotara, vingando-se assim, inconscientemente, dos propa­gandistas do Ocidente, que diziam que isso era precisamente o que regimes "totalitários" jamais poderiam fazer.

Foram substituídos, brevemente, por homens e (mais uma vez, demasiado raramente) mulheres que haviam representado a dissidência e a oposição, e que tinham organizado, ou talvez melhor, convocado, com sucesso manifestações de massa que deram o sinal para a abdicação pacífica dos velhos regimes. Com exceção da Polônia, onde a Igreja e os sindicatos formaram a coluna dorsal da oposição, consistiam em uns poucos e muitas vezes bastante corajosos intelec­tuais, um exército de opereta de líderes que se viam por um breve instante à testa de povos: freqüentemente eles eram - como nas revoluções de 1848 que vêm à mente do historiador - acadêmicos ou pertencentes ao mundo das artes. Por um momento, filósofos dissidentes (Hungria) ou historiadores medievais (Polônia) foram considerados como presidentes ou primeiros-minis­tros, e um dramaturgo, Vaclav Havel, realmente se tornou presidente da Tchecoslováquia, cercado por um excêntrico corpo de assessores que ia desde um músico de rock americano, chegado a um escândalo, a um membro da alta aristocracia dos habsburgos (o príncipe Schwarzenberg). Houve uma onda de conversas sobre a "sociedade civil", isto é, sobre a possibilidade de o conjun­to de organizações de cidadãos voluntários ou atividades privadas assumir o lugar dos Estados autoritários, e sobre o retomo aos princípios das revoluções antes de o bolchevismo distorcê-los.(10) Infelizmente, como em 1848, o momen­to de liberdade, e verdade não durou. A política e os que dirigiam os assuntos do Estado reverteram aos que em geral cuidam de tais funções. As "Frentes" e "movimentos cívicos" ad hoc se desfizeram tão rapidamente quanto haviam surgido.

Esse também se mostrou ser o caso na URSS, onde o colapso do partido e do Estado prosseguiu mais devagar até agosto de 1991. O fracasso da peres­troika e a conseqüente rejeição de Gorbachev pelos cidadãos eram cada vez mais óbvios, embora não reconhecidos no Ocidente, onde a popularidade dele permaneceu justificadamente alta. Isso reduziu o líder da URSS a uma série de manobras de bastidores e mudanças de alianças com grupos políticos e de po­der que haviam surgido da parlamentarização da política soviética, o que o tomou igualmente suspeito para os reformistas que inicialmente se haviam reunido à sua volta - os quais ele de fato convertera numa força para a mudança do Estado - e para o fragmentado bloco do partido cujo poder ele quebrara. Ele foi uma figura trágica, e assim vai entrar na história, um "czar-libertador" comunista, como Alexandre II (1855-81), que destruiu o que queria reformar e foi destruído ao fazer isso. (11)

Charmoso, sincero, inteligente e verdadeiramente movido pelos ideais de um comunismo que via corrompido desde a ascensão de Stalin, Gorbachev era, paradoxalmente, demasiado um homem de organização para o burburinho da política democrática que criara; demasiado um homem de comitê para uma ação decisiva; ele estava demasiado distante das experiências da Rússia urba­na e rural, que jamais administrou, para ter o senso das realidades nas bases que dispunha um velho chefão do partido. Seu problema era não tanto o de não ter estratégia efetiva para reformar a economia - ninguém tinha, mesmo depois de sua queda - quanto estar distante da experiência do cotidiano de seu país.

O contraste com outro membro da geração pós-guerra de destacados comunistas soviéticos na casa dos cinqüenta anos é instrutivo. Nursultan Nazarbaiev, que assumiu na república asiática do Casaquistão em 1984 como parte do esforço de reforma, chegara à vida pública em tempo integral vindo da oficina da fábrica (como muitos outros políticos soviéticos, e ao contrário de Gorbachev e de praticamente qualquer estadista nos países não comunistas). Passou do partido para o Estado, tornando-se presidente da República, levou à frente as reformas exigidas, incluindo descentralização e mercado, e sobre­viveu à queda de Gorbachev e do partido da União, nenhuma das quais rece­bera bem. Após a queda, continuou sendo um dos homens mais poderosos na vaga "Comunidade de Estados Independentes". Mas Nazarbaiev, sempre pragmático, tinha seguido sistematicamente uma política de otimização da posição de seu feudo (e sua população), e tivera o máximo cuidado para que as reformas de mercado não fossem socialmente perturbadoras. Mercado sim, aumentos descontrolados de preços não. Sua própria estratégia preferida eram acordos comerciais bilaterais com outras repúblicas soviéticas (ou ex-sovié­ticas) - defendia um mercado comum centro-asiático soviético - e empreen­dimentos conjuntos com o capital estrangeiro. Não fazia objeção a econo­mistas radicais e contratou alguns da Rússia, até mesmo não comunistas, pois importou um dos cérebros do milagre econômico sul-coreano, que mostrou um senso realista de como as economias capitalistas pós-Segunda Guerra Mundial realmente bem-sucedidas funcionavam de fato. A estrada para a sobrevivência, e talvez para o sucesso, era pavimentada menos com boas intenções do que com as duras pedras do realismo.

Os últimos anos da União Soviética foram uma catástrofe em câmara lenta. A queda dos satélites europeus em 1989 e a relutante aceitação por Mos­cou da reunificação alemã demonstraram o colapso da União Soviética como potência internacional, mais ainda como superpotência. Sua absoluta incapa­cidade para desempenhar qualquer papel na crise do golfo Pérsico de 1990-1 simplesmente acentuou isso. Em termos internacionais, a URSS era como um país abrangentemente derrotado, como após uma grande guerra - só que sem guerra. Apesar disso, manteve as Forças Armadas e o complexo industril-­militar da ex-superpotência, uma situação que impunha severos limites à sua política. Contudo, embora a débâcle internacional estimulasse o secessionis­mo nas repúblicas onde o sentimento nacionalista era forte, notadamente nos Estados bálticos e na Geórgia - a Lituânia testou as águas com uma provoca­tiva declaração de independência total em março de 1990(12)-, a desinte­gração da União não se deveu a forças nacionalistas.

Deveu-se essencialmente à desintegração da autoridade central, que obri­gou toda região ou subunidade do país a cuidar de si mesma e, não menos, a sal­var o que pudesse das ruínas de uma economia que escorregava para o caos. A fome e a escassez estão por trás de tudo o que aconteceu nos últimos dois anos da URSS. Reformistas em desespero, sobretudo entre os acadêmicos que tinham sido os tão óbvios beneficiários da glasnost, foram empurrados para um extre­mismo apocalíptico: nada se podia fazer enquanto o velho sistema, e tudo nele, não fossem absolutamente destruídos. Em termos econômicos, o sistema devia ser completamente pulverizado pela total privatização e pela introdução de um mercado 100% livre, imediatamente e a qualquer custo. Propuseram-se planos dramáticos para fazer isso em questão de semanas ou meses (havia um "progra­ma de quinhentos dias"). Essas políticas não se baseavam em algum conheci­mento de livres mercados ou economias capitalistas, embora fossem vigorosa­mente recomendadas por economistas e especialistas financeiros americanos e britânicos visitantes, cujas opiniões, por sua vez, não se baseavam em algum conhecimento do que de fato se passava na economia soviética. Ambos estavam corretos ao supor que o sistema existente, ou melhor, enquanto existia, a econo­mia de comando, era muito inferior a economias baseadas primariamente na propriedade e na empresa privadas, e que o velho sistema, mesmo numa forma modificada, estava condenado. Contudo, deixavam de enfrentar o verdadeiro problema de como uma economia centralmente planejada seria, na prática, transformada numa ou noutra versão de economia dinamizada pelo mercado. Em vez disso, repetiam demonstrações de primeiro ano de curso de economia sobre as virtudes do mercado no abstrato. Diziam que ele iria encher automati­camente as prateleiras das lojas com produtos retidos por produtores, a preços acessíveis, assim que se deixasse em liberdade a oferta e a procura. A maioria dos resignados cidadãos da URSS sabia que isso não ia acontecer, e depois que ela deixou de existir, quando se aplicou por um breve momento o tratamento de choque da libertação, de fato não aconteceu. Além disso, nenhum observador sério do país acreditava que no ano 2000 o Estado e o setor público da econo­mia soviética não seriam ainda substanciais. Os discípulos de Friedrich Hayek e Milton Friedman condenavam a própria idéia de uma tal economia mista. Não tinham conselho a oferecer sobre como ela devia ser operada, ou transformada.

Contudo, quando veio, a crise final não foi econômica, mas política. Para praticamente todo o establishment da URSS, do partido, dos planejadores e cientistas, do Estado, às Forças Armadas, ao aparato de segurança e às autori­dades coadjuvantes, a idéia de um colapso total da URSS em inaceitável. Não podemos dizer se esse colapso era desejado, ou mesmo concebido por qual­quer grande corpo de cidadãos soviéticos fora dos Estados bálticos, mas não é provável: quaisquer que sejam as reservas que tenhamos em relação às cifras, 76% de eleitores num referendo de março de 1991 votaram pela manutenção da URSS, "como uma renovada federação de repúblicas soberanas e iguais, em que os direitos de liberdade de toda pessoa de qualquer nacionalidade sejam plenamente salvaguardados" (Pravda, 25/1/91). Sem dúvida o colapso não fa­zia oficialmente parte da política de nenhum político importante da União. Contudo, a dissolução do centro parecia inevitavelmente revigorar as forças centrífugas e tornar o desmoronamento inevitável, não menos por causa da política de Boris Yeltsin, cuja estrela subia enquanto a de Gorbachev se apaga­va. A essa altura, a União era uma sombra; as repúblicas, a única realidade. No fim de abril, Gorbachev, apoiado pelas nove maiores repúblicas, (13) negociou um  “Tratado de União" que, um tanto à maneira do Compromisso Austro-Húnga­ro de 1867, pretendia preservar a existência de um poder federal central (com um presidente federal eleito diretamente) no comando das Forças Armadas, da política externa, da coordenação da política financeira e das relações econômi­cas com o resto do mundo. O tratado entraria em vigor em 20 de agosto.

Para a maior pane do velho partido e do establishment soviético, esse tra­tado era mais uma das fórmulas de papel de Gorbachev, condenada como todas as outras. Daí o verem como a lápide mortuária da União. Dois dias antes daquele em que o tratado deveria entrar em vigor, praticamente todos os pesos pesados da União, ministros de defesa e do interior, chefes da KGB, vice-presi­dente e primeiro-ministro da URSS e pilares do partido, proclamaram que um Comitê de Emergência assumiria o poder na ausência do presidente e secretá­rio-geral (sob prisão domiciliar nas férias). Não era tanto um golpe – ninguém foi preso em Moscou, nem mesmo as estações de rádio e TV foram tomadas ­quanto uma proclamação de que a maquinaria do verdadeiro poder se achava mais uma vez em operação, na confiante esperança de que os cidadãos acolhes­sem, ou pelo menos aceitassem tranqüilamente, um retorno à ordem e ao gover­no. Tampouco foi derrotado por uma revolução ou levante do povo, pois a população de Moscou permaneceu quieta, e uma convocação à greve geral não foi atendida. Como na maior pane da história soviética, foi um drama interpre­tado por um pequeno corpo de atores acima das cabeças do povo resignado.

Mas não tão resignado assim. Trinta anos antes, ou mesmo dez, a mera proclamação de onde se achava de fato o poder teria sido o bastante. Mesmo do jeito que foi, a maioria dos cidadãos da URSS manteve a cabeça abaixada: 48% das pessoas (segundo uma pesquisa) e - menos surpreendentemente 70% dos comitês do partido apoiaram o "golpe" (Di Leo, 1992, pp. 141 e 143n). Igualmente importante, governos no exterior tinham esperança de que o golpe desse certo(14) mais do que gostariam de admitir. Contudo, a reafima­ção ao velho estilo de poder do partido/Estado dependia mais do consentimen­to universal e automático do que da contagem de cabeças. Em 1991, não havia nem poder central, nem obediência universal. Um golpe de verdade poderia muito bem ter tido êxito na maior pat1e do território e população da URSS e, quaisquer que fossem as divisões e incertezas dentro das Forças Armadas e do aparato de segurança, provavelmente se poderiam encontrar tropas de confian­ça suficientes para um putsch bem-sucedido na capital. Mas a reafirmação sim­bólica de autoridade não era mais suficiente. Gorbachev tinha razão: a perestroika derrotara os conspiradores mudando a sociedade. Também o derrotara.

Um golpe simbólico podia ser derrotado por uma resistência simbólica, pois a última coisa para que os conspiradores estavam preparados ou queriam era uma guerra civil. Na verdade, seu gesto destinava-se a deter o quis a maioria das pes­soas temia: uma escorregada para um conflito assim. Portanto, enquanto as vagas instituições da URSS cerravam fileiras com os conspiradores, as dificilmente menos vagas instituições da Federação Russa sob Boris Yeltsin, recém-eleito como seu presidente por uma substancial maioria de votos, não o faziam. Os conspiradores nada tinham a fazer senão mostrar sua mão de jogo, depois que Yeltsin, cercado por alguns milhares de seguidores vindos para defender seu quartel-general, desafiou os constrangidos tanques à frente do prédio, represen­tando para as telas de televisão. Corajosamente, mas também em segurança, Yeltsin, cujos talentos políticos e capacidade de decisão contrastavam sensacio­nalmente com o estilo de Gorbachev, aproveitou logo a oportunidade para dissol­ver e desapropriar o Partido Comunista, e tomar para a Federação Russa o que restava dos bens da URSS, formalmente liquidada poucos meses depois. O próprio Gorbachev foi empurrado para o esquecimento. O mundo, que estivera disposto a aceitar o golpe, agora aceitava o muito mais eficaz contragolpe de Yeltsin, e tra­tou a Rússia como sucessora natural da morta URSS nas Nações Unidas e em ou­tras partes. A tentativa de salvar a velha estrutura da União Soviética acabara por destruí-la mais súbita e irrevogavelmente do que se poderia esperar.

Contudo, não resolvera nenhum dos problemas da economia, do Estado e da sociedade. Num aspecto, piorara-os, pois as outras repúblicas agora temiam a grande irmã Rússia como não tinham feito em relação a uma URSS não nacio­nal, sobretudo desde que o nacionalismo russo era a melhor carta que Yeltsin podia jogar para conciliar as Forças Armadas, cujo núcleo sempre ficara entre os grandes russos. Como a maioria das repúblicas continha grandes minorias de russos étnicos, a insinuação de Yeltsin de que as fronteiras entre as repúbli­cas poderiam ter de ser renegociadas acelerou a corrida para a separação total: a Ucrânia imediatamente declarou sua independência. Pela primeira vez, po­pulações acostumadas à imparcial opressão de todos (incluindo grandes rus­sos) pela autoridade central tinham motivos para temer a opressão de Moscou nos interesses de um país. Na verdade, isso liquidou a esperança de manter mesmo uma aparência de união, pois a vaga "Comunidade de Estados Inde­pendentes" que sucedeu à URSS logo perdeu toda a realidade, e mesmo a últi­ma sobrevivente da União, a (extremamente bem-sucedida) Equipe Unida que competiu nos Jogos Olímpicos de 1992, derrotando os EUA, não parecia des­tinada a ter longa vida. Assim, a destruição da URSS conseguiu a reversão de quase quatrocentos anos de história russa, e a volta do país à era de antes de Pedro, o Grande (1672-1725). Como Rússia, sob um czar, ou como URSS, fora uma grande potência desde meados do século XVIII, sua desintegração deixou um vazio entre Trieste e Vladivostok que não existim antes na história moderna, exceto por pouco tempo durante a Guerra Civil de 1918-20: uma vasta zona de desordem, conflito e catástrofe potencial. Essa era a agenda para os diplomatas e militares do mundo no fim do milênio.


VI

Duas observações podem concluir este estudo. A primeira é para notar como se mostrou superficial o domínio do comunismo sobre a enorme área que conquistou mais rapidamente que qualquer outra ideologia desde o isla­mismo em seu primeiro século. Embora uma versão simplista do marxismo­-leninismo se tomasse a ortodoxia dogmática (secular) para todos os cidadãos entre o Elba e os mares da China, desapareceu de um dia para outro com os regimes políticos que impôs. Podem-se sugerir dois motivos para esse fenôme­no historicamente muito surpreendente. O comunismo não se baseava na con­versão em massa, mas era uma fé de quadros ou (nos termos de Lenin) "van­guardas". Mesmo a famosa frase de Mao sobre guerrilheiros movendo-se em meio à vida camponesa como peixes na água implica a distinção entre o ele­mento ativo (o peixe) e o passivo (a água). Movimentos trabalhistas e socialistas não oficiais (incluindo alguns partidos comunistas de massa) podiam ser coextensivos com sua comunidade e eleitorado, como nas aldeias de minera­ção. Por outro lado, todos os partidos comunistas governantes eram, por opção e definição, elites de minorias. A aceitação do comunismo pelas "massas" dependia não das convicções ideológicas ou outras semelhantes, mas de como julgavam o que a vida sob regimes comunistas fazia por elas, e como compa­ravam sua situação com a de outros. Assim que não foi mais possível isolar essas populações do contato e conhecimento com outros países, seus julga­mentos foram céticos. Também aqui o comunismo era essencialmente uma fé instrumental: o presente só tinha valor como um meio de alcançar um futuro indefinido. Exceto em raros casos - por exemplo, guerras patrióticas, em que a vitória justifica tais sacrifícios -, um tal conjunto de crenças serve melhor a seitas ou elites do que a igrejas universais, cujo campo de operação, sejam quais forem suas promessas de salvação última, é e tem de ser o alcance diá­rio da vida humana. Os próprios quadros de partidos comunistas começaram a concentrar-se nas satisfações comuns da vida assim que o objetivo milenar de salvação terrestre, ao qual dedicaram suas vidas, passou para um futuro inde­finido. E - muito caracteristicamente -, quando isso aconteceu, o partido não deu orientação para o seu comportamento. Em suma, pela natureza de sua ideologia, o comunismo pedia para ser julgado pelo sucesso, e não tinha pro­teção contra o fracasso.

 Mas por que fracassou, ou melhor, desabou? O paradoxo da URSS é que, em sua morte, ofereceu um dos mais fortes argumentos para a análise de Karl Marx, que dizia exemplificar. Marx escreveu em 1859:
Na produção social de seus meios de existência, os seres humanos entram em relações definidas, necessárias, independentes de sua vontade, relações de pro­dução que correspondem a um estágio definido no desenvolvimento de suas for­ças produtivas materiais [...] Em determinado estágio de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que é apenas uma expressão legal destas, com as relações de propriedade dentro das quais antes se movimentavam. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, essas relações se transformam em seus grilhões. Entramos então numa era de revolução social.

Raramente houve um exemplo mais claro das forças de produção de Marx en­trando em conflito com a superestrutura social, institucional e ideológica que transformara economias agrárias atrasadas em economias industriais avança­das - a ponto de se transformarem, de forças produtivas, em grilhões da pro­dução. O primeiro resultado da "era de revolução social" assim iniciada foi a destruição do velho sistema.

Mas o que iria substituí-lo? Aqui não mais podemos seguir o otimismo do século XIX de Marx, que dizia que a derrubada do velho sistema devia condu­zir a um sistema melhor, porque "a humanidade sempre se propõe apenas pro­blemas que pode resolver". Os problemas que "a humanidade", ou antes os bolcheviques, se propuseram em 1917 não eram solúveis nas circunstâncias de seu tempo e lugar, ou apenas muito incompletamente. E hoje seria preciso um alto grau de confiança para afirmar que no futuro previsível se delineie uma solução para os problemas surgidos do colapso do comunismo soviético, ou que alguma solução surgida dentro da próxima geração pareça aos habitan­tes da ex-URSS e dos Bálcãs comunistas uma melhora óbvia.

Com o colapso da URSS, a experiência do "socialismo realmente existen­te" chegou ao fim. Pois, mesmo onde os regimes comunistas sobreviveram e tiveram êxito, como na China, abandonaram a idéia original de uma economia única, centralmente controlada e estatalmente planejada, baseada num Estado completamente coletivizado - ou uma economia de propriedade coletiva pra­ticamente operando sem mercado. Será essa experiência, algum dia, renovada? Claramente não o será na forma desenvolvida na URSS, nem provavelmente em qualquer outra, a não ser em condições de uma guerra econômica total ou algo semelhante, ou em alguma outra emergência análoga.

Porque a experiência soviética foi tentada não como uma alternativa glo­bal ao capitalismo, mas como um conjunto específico de respostas à situação particular de um país imenso e espetacularmente atrasado, numa conjuntura histórica particular e irrepetível. O fracasso da revolução em outros lugares deixou a URSS comprometida em construir sozinha o socialismo, num país onde, pelo consenso universal dos marxistas em 1917, incluindo os russos, as condições para fazê-lo simplesmente não estavam presentes. A tentativa de construir o socialismo produziu conquistas notáveis - não menos a capaci­dade de derrotar a Alemanha na Segunda Guerra Mundial -, mas a um custo humano enorme e inteiramente intolerável, e daquilo que acabou se revelando uma economia sem saída e um sistema político em favor do qual nada havia a dizer. (Não previra Gheorghi Plekhanov, o "pai do marxismo russo", que a Revolução de Outubro só poderia levar, na melhor das hipóteses, a um "império chinês pintado de vermelho"?) O outro "socialismo realmente exis­tente", surgindo sob as asas da União Soviética, operou sob as mesmas des­vantagens, embora em menor medida, e com muito menos sofrimento huma­no - em comparação com a URSS. Uma revivescência ou renascimento desse padrão de socialismo não é nem possível, nem desejável, nem mesmo - su­pondo-se que as condições o favorecessem - necessário.

Até onde o fracasso da experiência soviética lança dúvida sobre todo o pro­jeto de socialismo tradicional, uma economia baseada essencialmente na pro­priedade social e administração planejada dos meios de produção, distribuição e troca, já é outra questão. Que um tal projeto é economicamente racional em teoria é algo aceito por economistas desde antes da Primeira Guerra Mundial, embora, muito curiosamente, a teoria fosse elaborada não por economistas so­cialistas, mas pelos não socialistas. Que teria deficiências práticas, quando nada pela burocratização, era óbvio. Que tinha de funcionar, pelo menos em pane, através de preços, tanto de mercado quanto de "preços contábeis" realistas, tam­bém estava claro, se o socialismo supunha levar em conta mais os desejos dos consumidores do que dizer-lhes o que era bom para eles. Na verdade, os econo­mistas socialistas no Ocidente que pensavam nessas questões na década de 1930, quando naturalmente elas eram muito discutidas, adotaram uma combinação de planejamento, de preferência descentralizado, com preços. Demonstrar a exeqüibilidade de uma tal economia socialista não é, claro, demonstrar sua superioridade necessária sobre, digamos, uma versão socialmente mais justa da economia mista da Era de Ouro, e menos ainda afirmar que as pessoas a prefe­ririam. É simplesmente separar a questão do socialismo de forma geral da expe­riência específica de "socialismo realmente existente". O fracasso do socialis­mo soviético não se reflete sobre a possibilidade de outros tipos de socialismo. Na verdade, a própria incapacidade de a economia sem saída de planejamento central do tipo soviético reformar-se em "socialismo de mercado", como se queria, demonstra o fosso entre os dois tipos de desenvolvimento.

A tragédia da Revolução de Outubro foi precisamente a de que ela só pôde produzir seu tipo de socialismo de comando implacável e brutal. Um dos mais sofisticados economistas socialistas da década de 1930, Oskar Lange, voltou dos EUA para a sua Polônia natal para construir o socialismo, até ir para um hospital de Londres, para morrer. Em seu leito de morte, conversava com amigos e admiradores que iam visitá-la, inclusive eu. Eis, como me lembro, o que ele disse:

Se eu estivesse na Rússia na década de 1920, teria sido um gradualista bukhari­nista. Se houvesse opinado sobre a industrialização soviética, teria recomendado um conjunto mais flexível e limitado de metas, como na verdade fizeram os pla­nejadores russos capazes. E, no entanto, quando repenso, pergunto-me repetidas vezes: havia uma alternativa para a corrida indiscriminada, brutal, basicamente não planejada do primeiro Plano Qüinqüenal? Gostaria de dizer que havia, mas não posso. Não encontro uma resposta.


NOTAS:

(1): "Parecia aos formuladores de política soviéticos que o mercado soviético era inexaurível, e que a União Soviética podia assegurar a quantidade de energia necessária para um continua­do e extenso crescimento econômico" (Rozsati & Mizsci, 1989. p. 10).
(2): As partes menos desenvolvidas da península Balcânica - Albânia, sul da Iugoslávia, Bulgária - podem ser uma exceção, pois os comunistas ainda ganharam as primeiras eleições multipartidárias após 1989. Contudo, mesmo ali a fraqueza do sistema logo se tomou patente.
(3): Ele se identificara em público com a posição extremamente "ampla" e praticamente social-democrata do Partido Comunista italiano mesmo antes de sua eleição oficial (Montagni, 1989. p. 85).
(4): Os textos fundamentais aqui são do húngaro Janos Kornai, notadamente A economia da escassez (Amsterdã, 1980).
(5): Constitui um interessante sinal da interpenetração do pensamento dos reformadores oficiais e dos dissidentes da era Brejnev o fato de que glasnost era o que o escritor Alexander Soljenitsin pedira em sua carta aberta ao Congresso da União de Escritores Soviéticos em 1967, antes de ser expulso da URSS.
(6): Como disse a este autor um burocrata comunista chinês em 1984, no meio de uma "reestruturação" semelhante: "Estamos reintroduzindo elementos de capitalismo em nosso siste­ma. mas como podemos saber no que estamos nos metendo? Desde 1949, ninguém na China, exceto talvez alguns velhos em Xangai, teve qualquer experiência do que é o capitalismo".
(7): Além da RSFSR (Federação Russa), de longe a maior, territorial e demograficamente, havia também Armênia, Azerbaijão, Bielo-Rússia, Estônia, Geórgia, Casaquistão, Quirguízia, Letônia, Lituânia, Moldávia. Tadjiquistão, Turcomenistão, Ucrânia e Uzbequistão.
(8): Mesmo um adversário apaixonado do comunismo como o escritor russo Alexander Soljenitsin teve sua carreira como autor estabelecida através do sistema que pemitiu/estimulou a publicação de seus primeiros romances para fins reformistas.
(9): Obviamente, isso não se aplicava a Estados comunistas terceiro-mundistas como o Vietnã, onde as lutas de libertação haviam continuado até meados da década de 1970, mas ali as divisões civis das guerras de libertação provavelmente também estavam mais vívidas na mente das pessoas.
(10): O autor lembra uma dessas discussões numa conferência em Washington, em 1991, traduzida de volta à realidade pelo embaixador espanhol nos EUA, que lembrou aos jovens estudantes e ex-estudantes (na época sobretudo comunistas liberais) que sentira fortemente a mesma coisa após a morte do general Franco, em 1975. "Sociedade civil", ele achava, significava apenas que jovens ideólogos que realmente se viram, por um momento, falando em nome de todo o povo, estavam tentados a encarar tal fato como uma situação permanente.
(11): Alexandre II libertou os servos e empreendeu várias outras reformas. Mas foi assassina­do por membros do movimento revolucionário, que se tomara pela primeira vez uma força em seu reino.
(12): O nacionalismo armênio, embora provocasse o colapso da União reclamando a região da montanha Karabakh do Azerbaijão, não era louco o bastante para desejar o desaparecimento da URSS, sem cuja existência não haveria Armênia.
(13): Isto é, todas, com exceção dos Estados bálticos, Moldávia e Geórgia, além de, por moti­vos obscuros, a Quirguízia.
(14): No primeiro dia do "golpe", o resumo oficial de notícias do governo finlandês comuni­cou a prisão do presidente Gorbachev em poucas palavras, sem comentário, na metade da página 3 de um boletim de quatro páginas. Só passou a exprimir opiniões quando a tentativa já havia evidentemente falhado.

domingo, 11 de setembro de 2011

O outro 11 de Setembro: a tragédia chilena - Waldo Mermelstein

Extraído do site: http://www.pstu.org.br/internacional_materia.asp?id=13331&ida=0

Exilado no Chile, militante brasileiro viveu os meses que precederam o golpe e a derrubada do governo Allende, em 1973

• O golpe militar que derrubou Salvador Allende vitimou milhares de pessoas, destruiu os partidos políticos e as organizações dos trabalhadores e impôs o modelo precursor do neoliberalismo. Não por acaso, os estudantes e o povo que se manifestam nestes dias às centenas de milhares pelas ruas de Santiago levantam a bandeira de “Se va caer, se va caer, la educación de Pinochet”. Assim como a educação, a saúde e a previdência são privadas em sua esmagadora maioria, assim como as empresas que exploram o cobre, sua principal riqueza. Tão profunda foi a derrota imposta em 1973. A melhor homenagem aos caídos, aos centenas de milhares de exilados é essa demonstração de força das massas chilenas. Mas como se chegou a um desfecho tão terrível? Havia outra possibilidade? Como tão poderoso movimento social foi derrotado praticamente sem combates?

 
 O Chile em 1970
 

O Chile tinha cerca de 10 milhões de habitantes, uma alta taxa de urbanização (75%), uma trajetória de quase cem anos de organização do movimento operário, o mais antigo e poderoso partido comunista das Américas, ao lado de um também antigo e forte partido socialista, que tinha uma forte ala esquerda. A democracia burguesa era bastante antiga e estável para os padrões latino-americanos: desde 1932 não havia golpes militares. O movimento de massas contava com uma poderosa central sindical, a CUT, cujos filiados representavam cerca de 25% dos assalariados.

Na década de 60, o Chile conheceu um profundo processo de mobilizações operárias, populares e estudantis, devido ao estrangulamento do modelo econômico de substituição de importações à influência da revolução cubana. Não por acaso, a Democracia Cristã (DC), em 1964, foi às eleições para enfrentar a coalizão de esquerda com a bandeira de “Revolução em liberdade”. Seu programa focava a reforma agrária, a incorporação dos pobres da cidade à economia e a “chilenização” do cobre”. Esse partido contou com o forte apoio do imperialismo americano, que àquela época implementava seu programa da Aliança para o Progresso a fim de tentar deter a tremenda influência da revolução cubana.

Após vencer as eleições, o governo Frei, da DC, mostrou abertamente sua cara patronal, repressiva, pró-imperialista. Inicialmente, sua estrategia parecia ter êxito, mas após dois anos, a inflação subiu, a reforma agrária estagnou, a chilenização do cobre mostrou-se um ótimo negócio para as companhias americanas. Com isso, o movimento de massas começou a aumentar significativamente suas lutas, havendo o aumento exponencial das greves, especialmente as ilegais. Houve três greves gerais até o processo eleitoral em 1970; os camponeses, estimulados pela promessa de reforma agrária, começaram a ocupar terras e aproveitaram-se da recente permissão de sindicalização antes negada para fazê-lo aos milhares.

 
A Unidade Popular (UP)
 
Em 1970, realizam-se as eleições e a coalizão de partidos de esquerda, a UP, consegue a primeira maioria, com Salvador Allende à cabeça. A UP era composta pelo Partido Comunista (PC), o Partido Socialista (PS)-, mais um pequeno partido dissidente da DC, o Movimento de Ação Popular Unificado (MAPU) e pequenas agrupações burguesas, como o Partido Radical), consegue a primeira maioria (36%). Para que o candidato vitorioso tivesse sua eleição confirmada ainda teria que passar pela aprovação do parlamento. Intensas pressões e negociações precederam essa votação. O imperialismo americano procura estimular os setores que não queriam a posse de Allende. O ex-secretário de Estado Henry Kissinger resumiu a consideração do imperialismo americano com a vontade popular, ao comentar com seus colegas “não vejo por que temos que ficar parados e assistir a um país tornar-se comunista devido à irresponsabilidade do seu próprio povo».

A extrema direita chegou a tentar sequestrar o comandante do Exercito, Rene Schneider, partidário de aceitar os resultados eleitorais, para forçar uma mudança na opinião das forças armadas e da burguesia, mas o general resistiu e morreu, e o resultado foi que o setor mais golpista da burguesia perdeu espaço. Antes de votar, no entanto, a DC obrigou a UP a aceitar um estatuto de garantias constitucionais que reafirmava o compromisso de manter as instituições centrais do regime capitalista.
Antes de começarmos a fazer o balanço do governo, duas palavras sobre Allende. Era um antigo parlamentar socialista que concorreu pela quarta vez a presidente. Ele era um reformista convicto e nunca o escondeu. As concessões reais feitas na primeira parte de seu governo, a implacável oposição que seu governo sofreu por parte da burguesia e do imperialismo e sua morte trágica provocada pelos golpistas assassinos fizeram com que seja idolatrado pelas massas. Mas não devemos nos confundir: seu grande valor pessoal no último ato ao enfrentar com coragem os gorilas chilenos não redime seus erros, a escolha equivocada da chamada via institucional ao socialismo e sua responsabilidade na derrota.

 

O primeiro ano
 

A UP tinha um programa de reformas básicas que incluía a aceleração da reforma agrária segundo a mesma lei aprovada no governo Frei e principalmente a nacionalização completa do cobre, que representava 80% das receitas de exportação do país. Quanto à indústria seria dividida em três áreas, privada, mista e área de propriedade social (APS). A esta última, seriam incorporadas as empresas monopólicas. Nas áreas não estatais a única participação dos trabalhadores seria através dos pouco definidos comitês de vigilância da produção. Os bancos seriam também nacionalizados.
O programa da UP fazia uma referência vaga a uma transição ao socialismo respeitando as leis e a institucionalidade vigentes, sem especificar seus ritmos e métodos. Allende em vários discursos como presidente falava de uma segunda forma de transição ao socialismo, supostamente defendida por Marx, ou seja, uma transição respeitando as regras estabelecidas pelo regime burguês, pacífica, enaltecendo a suposta “flexibilidade” das instituições do estado chileno.

Outro elemento no programa da Unidade Popular que estimulou o movimento a lutar foi a declaração de que “as transformações revolucionárias de que o país necessita somente poderão ser realizadas se o povo chileno tomar em suas mãos o poder e o exercer real e efetivamente”. Era uma declaração genérica, uma concessão à sua ala esquerda, sem maiores precisões, mas mesmo assim era uma linguagem distinta dos demais governos e foi tomada ao pé da letra pelos trabalhadores e pelos setores populares e acabou ultrapassando em muito as ações e intenções do governo e com ele se chocou em vários momentos.

O governo Allende foi um clássico governo de colaboração de classes em um país dependente do imperialismo, marcado por uma profunda instabilidade, particularmente a partir do locaute patronal de 1972.

Para tornarmos mais clara essa definição, cedemos à tentação de fazermos algumas analogias históricas, como uma aproximação a uma realidade viva e complexa. Pelo seu conteúdo programático, pela sua prática de tentar manter o movimento de massas como um apoiador controlado do governo, mais além das menções retóricas, para “dias de festa” a uma transição ao socialismo, assemelhava-se a outros governos nacionalistas burgueses da América Latina, entre eles o de Goulart no Brasil. Pela composição predominante dos partidos que o compunham e pelo apoio da principal organização sindical do país, a CUT chilena, tinha semelhança com outros regimes de colaboração de classes, chamados de frente popular pela denominação dada pela Internacional Comunista sob domínio de Stálin. A proposta era a de organizar uma aliança anti-monopolista, antioligárquica e anti-imperialista entre a classe trabalhadora, setores da classe média e uma suposta burguesia nacional, oposta aos monopólios e ao imperialismo para completar uma primeira fase democrático-burguesa do processo revolucionário.

A partir de outubro de 1972, o governo, além das características anteriores, começa a se assemelhar aos governos no auge de situações revolucionárias, e logo nos vêm à mente o exemplo de Kerensky na Rússia em 1917, em que, sem deixar de ter projetos nem de existir, cada vez mais é totalmente impotente entre as duas classes fundamentais que se enfrentavam, entre revolução e contrarrevolução. De qualquer forma, era um governo que explicitamente não rompia nem pretendia romper com os marcos da dominação estatal capitalista.

Mas não nos adiantemos. Vejamos como evoluiu o processo. O Chile que Allende recebeu vivia uma profunda crise econômica, recessão e inflação na casa dos 35% e a maior dívida externa per capita do mundo. A UP aplicou uma estratégia inicial de reativar a economia com medidas de estímulo keynesiano, aumentando os salários pelo menos no nível da inflação, elevando os benefício sociais (entre eles, a entrega gratuita de meio litro de leite para cada criança do país) e , em especial os previdenciários, aumentando o crédito para a economia, diminuindo o desemprego, estimulando a construção de casas populares, acelerando a reforma agrária, começando a nacionalizar os principais monopólios industriais e bancários por meio da compra e muito especialmente nacionalizando as riquezas naturais básicas, entre elas, claro, em primeiro lugar, o cobre, o chamado “salário do Chile”. O efeito foi imenso, em 1971 houve uma grande transferência de renda para o trabalho assalariado, que alguns dizem ter atingido 10% da renda nacional (o que é verdadeiramente extraordinário), o desemprego baixou quase à metade, para 3,9%. A ideia era de, a partir do aumento da popularidade advinda dessas medidas, lançar medidas de democratização do Estado, em particular a Assembleia Popular, espécie de câmara legislativa única para poder prosseguir com as reformas. Com isso, cinco meses após assumir o poder, a UP conseguiu 51% dos votos nas eleições municipais.

Mas as coisas não corriam exatamente como previam os dirigentes da UP: a burguesia obtinha enormes lucros com a reativação da economia, mas não investia quase nada, por seu caráter parasitário e principalmente por um cálculo político: até que ponto os dirigentes da UP poderiam controlar os trabalhadores? A mesma desconfiança teriam os setores privilegiados das classes médias urbanas e rurais.

Por outro lado, as massas, depositavam enormes expectativas no governo e o apoiavam, sentindo que havia chegado o momento de conquistar seus direitos tanto tempo postergados: as ocupações de terras explodiram, inclusive superando os limites da reforma burguesa herdada da DC: ao contrário de respeitar o limite de 80 hectares de irrigação básica, o que deixaria cerca de 40% das melhores terras nas mãos dos grandes e médios proprietários, os camponeses resolveram se adiantar e começaram a ocupá-las, organizando-se em conselhos camponeses autônomos dos oficiais e propondo a radicalização da reforma agrária. Papel importante tiveram os mapuches, povo indígena conquistado e espoliado desde a época dos espanhóis, que pediam a restituição de suas terras. A reação do governo foi dupla : condenou, inclusive pela palavra do próprio Allende, a radicalização, mas, para não perder o controle acelerou a reforma agrária, a tal ponto que em dois anos se cumpriram as metas para seis anos...

É interessante que tenha sido do campo, da província de Linares, de onde tenha surgido a primeira contestação organizada, pela esquerda, à política do governo: o congresso de camponeses daquela província, em 1971, exigiu o aprofundamento da lei de reforma agrária herdada da DC que deixava as melhores terras nas mãos dos grandes proprietários, pedindo a diminuição do limite expropriável para 40 hectares de irrigação básica e o fim da possibilidade de os latifundiários reservarem as melhores terras para eles, assim como suas máquinas e animais.

Nas cidades, os trabalhadores começaram a reivindicar melhores salários e condições de trabalho, as greves continuam aumentando exponencialmente. Muitas empresas foram ocupadas para forçar a sua nacionalização, mesmo aquelas que não preenchiam os critérios definidos pela UP (não havia uma lista definida nem havia possibilidade de passar uma lei pelo congresso, dominado pela direita). Por exemplo, a tecelagem Yarur, de propriedade de uma das famílias mais ricas do país, era uma das candidatas, mas o governo não havia anunciado sua nacionalização. Os dirigentes sindicais da fábrica que eram da UP e os trabalhadores de base precipitaram um conflito laboral, ocuparam a empresa e pediram a sua passagem para a APS. Como conta o historiador Peter Winn (“Tecedores da Revolução), depois de muito pressionar o governo e contando com a oposição pessoal de Allende, os trabalhadores o dobraram e o governo utilizou uma das chamadas brechas legais, utilizando legislação antiga e em desuso para intervir a empresa. Segundo o autor, nos ásperos diálogos, Allende foi claro e disse: “se eu ceder a vocês, outros farão o mesmo”. E efetivamente, várias outras empresas seguiram o mesmo caminho.

Os moradores sem teto que, entre ocupações e favelas, constituíam cerca de 20/25% da população de Santiago seguiram ocupando terrenos e exigindo a construção de casas e melhorias. Chamados genericamente de “pobladores”, este movimento atingiu um alto grau de organização e consciência, chegando a ter verdadeiras comunas populares, como a ocupação “Nueva La Habana”, que chegou a reunir 9 mil pessoas sob a influência de um organismo para-partidário do Movimento de Esquerda Revolucionário - MIR, o MPR (Movimiento de Pobladores Revolucionários).

O MIR era uma organização que não pertencia formalmente à Unidade Popular e havia sido formado originalmente por dissidentes do PS, trotskistas e independentes e depois seguiu uma linha castrista sob a direção de Miguel Enriquez.

Todos esses novos acontecimentos apareciam ainda como se fossem apenas um pouco mais do clima de ascenso e crise que se vivia antes da posse de Allende, com uma maior confiança por parte dos trabalhadores porque sentiam que o governo estava supostamente ao seu lado ou pelo menos que não usaria a repressão, como havia prometido solenemente.

Em julho de 1971 o Congresso aprovou por unanimidade a nacionalização completa das minas de cobre e Allende propôs que as empresas (americanas) fossem compensadas financeiramente, mas que os lucros extraordinários auferidos nos últimos 15 anos fossem descontados, o que por pressão popular acabou sendo confirmado pelos órgãos do estado. Na verdade, o cálculo que se fazia à época é que as empresas mineradoras haviam lucrado tanto como todo o investimento em capital fixo no país durante sua história!

Com isso, o imperialismo americano decide impor o chamado “bloqueio invisível” do país, cortando os créditos para as importações, bloqueando a renegociação da dívida externa do país, entrando em juízo para confiscar as exportações de cobre chilenas e financiando cada vez mais os movimentos de oposição ao governo. O nervosismo do imperialismo se explica pela situação na América Latina naquele período, com a desestabilização de vários países, como Argentina, Uruguai e Bolívia, no marco da iminente derrota no Vietnã e os reflexos da crise de 68 ainda bem presentes.

A situação em direção ao final de 1971 vai lentamente mudando: a oposição burguesa se reorganizou, foi feita a primeira manifestação de massas contra o governo, com as senhoras de classe média orquestrando a “marcha das panelas vazias”, que coincidiu com a visita de um mês de Fidel Castro ao país, quando deu seu apoio à chamada “via pacífica ao socialismo”; a produção começou a cair por falta de investimentos, a inflação recomeçou a subir , as divisas do país se esgotaram, dificultando a importação de bens de consumo e insumos para a produção, o que levou o governo suspender o pagamento da dívida externa pela simples impossibilidade de continuar pagando.

Frente a isso a UP começou a deliberar para mudar de rumo. Foram várias reuniões na primeira metade de 1972, quando finalmente a linha econômica do governo foi mudada. Foi demitido o ministro Pedro Vuskovic, independente, e assumiu Orlando Millas, do PC, com a orientação de frear as nacionalizações e os aumentos salariais e negociar um acordo com a DC sobre a extensão da APS.

Pois foi naquele ano de 1972 em que tudo realmente começou a mudar de curso no que toca à disposição de luta das massas e à radicalização da oposição burguesa.
É preciso dizer que as nacionalizações previstas pelo governo da UP não representariam mais do que 20% dos trabalhadores industriais do país, ou seja a política de alianças proposta deixava de fora o restante dos trabalhadores industriais, sem contar os trabalhadores da construção civil, os desempregados, os artesãos, e um largo percentual de trabalhadores rurais não integrados à reforma agrária. Um autor chileno, Fernando Mires, calcula que ficavam de fora 1,7 milhões de pessoas, em uma força de trabalho que era de cerca de três milhões de pessoas...

Além disso, o método preferido da UP para nacionalizar era o de comprar as ações das empresas, o que foi feito em especial com os bancos; isso não tinha nenhuma semelhança com uma nacionalização de caráter socialista, expropriatória daqueles que tinham se apoderado por muitos anos da riqueza produzida por seus trabalhadores. Por pressão dos trabalhadores e pela resistência da patronal, as nacionalizações por esse método não mais foram possíveis e o governo utilizou os métodos de intervenção e requisição das empresas, que tinham o inconveniente de perpetuar o conflito com os antigos proprietários nos meandros do aparato legal do país.

Por outro lado, o segundo o convênio CUT-governo de 1971, sobre a participação nas empresas da APS, o modelo de gestão seria dominado pelo Estado: a direção das empresas ficou nas mãos de um diretório com maioria nomeada pelo governo e a participação dos trabalhadores resumia-se em geral aos comitês de produção que ajudavam a implementar a política preferida do governo, impulsionada em especial pelo PC, a chamada “batalha da produção”, que levou a que a produção das empresas da APS tivesse resultados espetaculares antes que a crise econômica e o mercado negro não se tornassem dominantes.

Na própria APS começaram a haver muitas críticas ao modelo, exigindo aumento da participação real dos trabalhadores, apontando em direção ao controle efetivo das empresas, como se expressou, por exemplo, no Encontro de Empresas Têxteis da APS, o principal setor industrial nacionalizado, realizado em meados de 1972.

Começou a se formar, ao calor dos acontecimentos e da pressão das massas, uma polarização dentro da própria UP: contra a posição de Allende e do PC, alinhou-se a ala esquerda, majoritária, do PS, mais o MAPU, a Esquerda Cristã (uma nova cisão da DC ocorrida após a eleição de Allende) e de fora da Unidade Popular, o MIR. Os lemas da época eram “consolidar para avançar” e “avançar sem conciliar”, o que parece um jogo de palavras, mas significava que amplos setores das massas começaram a manifestar um enfoque diferente sobre a forma de enfrentar os patrões e a reação, sem deixar de apoiar o governo.

Em maio, a direita se propõe a ocupar as ruas de Concepción, a segunda cidade industrial do país; a ala esquerda da UP e o MIR lideraram uma das maiores manifestações na historia da cidade a fim de impedi-los, sendo reprimidos pela polícia sob as ordens do prefeito do PC. Mais tarde, em julho, realiza-se a chamada Assembleia Popular de Concepción, na verdade um fórum público onde a esquerda debateu os rumos do processo chileno, com a presença independente, pela primeira vez, de vários organismos sociais, onde se pediu essencialmente a convocação de uma Assembleia Popular para implementar o programa da UP. Mesmo assim, foram publicamente desautorizados por Allende que reclamou da tentativa de se criar uma nova direção para o movimento popular.

Em junho um acontecimento de grande magnitude ocorreu: a energia das massas começa a se expressar em lutas mais radicais, como já acontecia em todo o país, com o aumento ainda maior do número de greves ilegais, ocupações, barricadas nas ruas. Como em todos os grandes processos revolucionários, começaram a surgir organismos mais amplos, para dirigir as lutas, que haviam se ampliado e não mais poderiam ser levadas a bom termo pelas estruturas tradicionais, no caso da CUT. E isso se produziu, como costuma ocorrer sempre em situações semelhantes, da forma menos esperada.



O primeiro cordão industrial: Cerrillos-Maipu
 

A região de Cerrilos, ao sul da capital, era a principal concentração fabril de Santiago, contando com 46 mil trabalhadores espalhados por 250 fábricas (o país contava com 550 mil operários industriais). A maior parte das fábricas da região era moderna e não estava contemplada nos planos de nacionalização do governo, muito menos com a redução de seu número sob a nova orientação econômica da UP. Algumas dezenas de fábricas se mobilizaram, e os trabalhadores ocuparam as ruas do distrito, chegaram a ocupar o ministério do trabalho, dirigido por Mireya Baltra, comunista. Esse movimento se chocava frontalmente com os novos planos da Unidade Popular de frear as nacionalizações e ainda uniu-se às mobilizações dos camponeses da região. O cordão Cerrillos foi formado como uma coordenação entre os sindicatos de fábrica da região (os sindicatos chilenos eram organizados por fábrica), passando por cima da compartimentação imposta pela lei sindical e pela estrutura da CUT que não tinha organismos locais para coordenar as lutas, adotando uma forma territorial de organização. A plataforma de fundação do cordão já anuncia uma clara pressão para radicalizar o processo, pedindo além da passagem de muitas fábricas para a APS, o controle operário sobre todas as demais empresas na cidade e no campo, o estabelecimento de uma assembleia popular em substituição ao parlamento burguês e, sem deixar de reafirmar a legitimidade popular do governo, consideravam apoiá-lo “na medida em que este interpretasse as lutas e as mobilizações dos trabalhadores”, o que dava uma nota bem mais crítica ao movimento social. Posteriormente organizaram-se mais cerca de 30 cordões industriais em Santiago e ao longo do país. Eles contaram com um grau desigual de adesão e massividade, dependendo das conjunturas. Assim, durante as grandes crises que analisaremos a seguir tiveram um papel destacadíssimo, assumindo, a partir de sua origem sindical tarefas claramente políticas, refluindo posteriormente para reuniões de dirigentes sindicais com militância em partidos mais à esquerda (esquerda do PS, MIR) sem se independizarem do governo, funcionando como uma espécie de pressão de massas para tentar radicalizá-lo.

 

O locaute de outubro e o surgimento de uma situação abertamente revolucionária
 

A burguesia e o imperialismo, utilizando métodos que já haviam experimentado em outros países e conjunturas, como no Brasil de Jango, começaram a estimular os setores de classe média e todos os descontentes com o governo e se propuseram a lançar uma ofensiva final para derrubar ou fazer capitular a UP.

Tudo começou com uma greve de caminhoneiros privados contrários à criação de uma empresa regional de transportes estatal no sul e que se estendeu a todo o Chile. Em um país tão longo e estreito, o cálculo é que isso faria o governo capitular rapidamente. Somaram-se as associações de profissionais liberais, em especial os médicos, os estabelecimentos comerciais, o transporte urbano e a patronal industrial. Era o locaute patronal massivo...

O governo e a CUT reagiram formalmente, sem muita energia nem iniciativa, mas as massas deram uma resposta impressionante. Os trabalhadores decidiram que a conspiração burguesa para paralisar o país não prosperaria e decidiram tomas a produção em suas mãos. As fábricas foram ocupadas, os meios de transporte foram em muitos casos requisitados, muitos comércios foram abertos à força, começaram a se organizar formas de controle de preços e de distribuição direta em forma massiva, contra o cada vez mais florescente mercado negro. (calcula-se que cerca de metade da população de Santiago era abastecida pelos organismos populares em 1973, apesar de que 70% da distribuição atacadista estava nas mãos privadas e abastecia o mercado negro). Ah, sim, sem esquecer os comitês de vigilância para enfrentar os bandos fascistas e proteger as indústrias. Além dos cordões, surgiram comitês de coordenação com as lutas de bairros, os comandos comunais. Nas fábricas e bairros, pouco importava a filiação política, mesmo os trabalhadores democrata-cristãos aderiram a esta frente única de classe que tinham um caráter muito mais amplo que os setores organizados pela CUT e os partidos de esquerda. O locaute patronal havia fracassado! E nunca antes a classe trabalhadora chilena havia expressado tal combatividade, união e energia!

Mas os dirigentes da UP não estavam à altura dos seus liderados. Em vez de se apoiarem na mobilização para encurralarem e derrotarem a burguesia e seus partidos, optaram pelo caminho da conciliação. Um processo que tinha começado como uma série de reformas, todas compatíveis com o sistema capitalista, havia chegado pouco a pouco a um impasse por força da intensa polarização de classes para chegar um novo auge em outubro. Sem chegar ainda a uma situação tão explosiva como em outras situações revolucionarias como na Espanha em 1936 ou a Bolívia em 1952, mas com um grau de mobilização inédito na América Latina há muito tempo, havia as condições para romper as amarras do legalismo e do programa autorestritivo da UP. Mas não foi essa a conclusão da maioria da liderança da UP. E mesmo os que pediam o avanço, na ala esquerda da própria UP, não percebiam que era preciso forjar uma alternativa independente à UP. Na verdade, constituíam-se em outro empecilho para a radicalização necessária, pois insistiam que o poder popular não deveria ser realmente independente, procuravam utilizá-lo como um elemento de pressão pela esquerda nos marcos do apoio ao governo.

Allende concluiu um acordo com a DC para incluir os comandantes das forças armadas ao gabinete com a principal missão de garantir as eleições parlamentares de março de 1973 e devolver as fábricas ocupadas durante o locaute de outubro. Do ponto de vista econômico, isso veio a ser conhecido como o plano Prats-Millas (seus formuladores haviam sido o general Prats, comandante do Exército, e Orlando Millas, comunista e ministro de Economia) que previa reduzir a Área de Propriedade Social das 120 empresas inicialmente previstas para somente 49. Recordemos que cerca de 200 estavam ocupadas àquele momento como fruto do locaute de outubro. Este número chegou a mais de 300 em 1973, agrupando cerca de 40% dos trabalhadores industriais do país. Quando foi oficialmente lançado foi duramente combatido pelos cordões industriais com novas manifestações no centro de Santiago e barricadas nos distritos industriais. O plano teve que ser convenientemente engavetado, pois o governo não tinha forças para impô-lo.

 

As eleições de 1973, o tancazo e a preparação do golpe
 

Contrariamente a todas as expectativas, a oposição burguesa não conseguiu os 2/3 dos votos para declarar o impedimento de Allende, mesmo com os milhões de dólares despejados pelo imperialismo americano, o galopante mercado negro, a inflação que fechou 1972 ao redor de 200%. Com os 44% dados à UP, a via institucional do processo chileno estava fechada, como reconheceu o principal assessor político de Allende, o catalão Joan Garcés. Era voz corrente que o enfrentamento entre o processo revolucionário e a contrarrevolução era inevitável.

O padrão após a metade de 1972 se repetiu de forma acentuada: a oposição utilizou todas as suas armas legais, o poder Judiciário, o Congresso, a Controladoria da República, o seu poder econômico, financiando o mercado negro, o desabastecimento, os locautes patronais, as associações de classe média e seus meios extralegais, os bandos armados fascistas.

Em 29 de junho se dá o penúltimo ato do processo, já prenunciando o desastre: um regimento de tanques se levanta em Santiago, cerca o palácio presidencial, mata cerca de 22 pessoas, mas não consegue a adesão das demais unidades das Forças Armadas. A reação popular é espetacular, novamente, e num tempo concentrado: naquele dia, outra vez, a grande maioria das empresas foi ocupada. Uma grande manifestação comandada pelos cordões industriais vai a uma concentração em frente ao palácio exigindo o fechamento do Congresso e a punição aos golpistas. Mas Allende foi inflexível e se apegou desesperadamente à institucionalidade, deixando até de aplicar medidas elementares de saneamento dentro das corporações militares, coisa que muitos governantes pelo mundo já o fizeram sem serem revolucionários. Ao final da manifestação apresentou os generais que, junto com Prats haviam sido os heróis que haviam impedido o triunfo do golpe (entre eles, incrivelmente, o próprio Pinochet) e declarou o estado de emergência, o que dava aos militares o controle do país.

Os meses seguintes mostraram a oposição preparando o terreno para o golpe: a Suprema Corte e o Congresso declararam a ilegalidade do governo, abrindo o caminho “legal” aos golpistas.

Os militares começaram a se exercitar e coesionar suas fileiras. O pretexto foi a Lei de Controle de Armas aprovada após o locaute de outubro, sem que Allende a vetasse, e que permitia que os militares realizassem operações de busca e apreensão em qualquer lugar. Com essa desculpa foram acostumando os soldados rasos a se enfrentarem aos trabalhadores, foram testando a resistência dos cordões industriais.

Uma última e patética negociação foi patrocinada por Allende e o PC: um novo diálogo com a DC, já claramente voltada para a derrubada do governo. O jornal do PC, El Siglo, estampava a manchete, “depois de um tancazo, por que não um dialogazo?” E por intermináveis cerca de 30 dias perderam tempo com uma campanha contra a guerra civil, quando havia é que se preparar para ela...A DC exigiu a capitulação total (um gabinete só de militares, a devolução de todas as empresas ocupadas, a promulgação de reforma constitucional que limitava drasticamente a APS e a repressão aos cordões industriais), o que Allende não podia aceitar.

Os trabalhadores ficaram confusos e desmoralizados pela negativa do governo em contra-atacar a direita e pelas concessões feitas. Uma última, simbólica e inútil concessão foi a entrega do Canal 9 de TV, ocupado por seus trabalhadores e que conseguiam furar um pouco o bloqueio jornalístico dos monopólios televisivos. Prevendo qualquer ataque os trabalhadores por meio de seus sindicatos designavam guardas permanentes para proteger o canal 9.

O resto já é conhecido. O golpe de 11 de setembro teve pouca, mas heróica resistência, em especial em algumas fábricas dos cordões. Cabem algumas considerações finais sobre o caráter do governo da Unidade Popular, seu programa e as alternativas que se estavam gerando ao final do processo, mas que não tiveram tempo de amadurecer.

O programa da Unidade Popular (UP) revelou-se equivocado, pois não contemplava a união das amplas camadas de explorados e oprimidos do país e propunha a aliança com uma suposta burguesia nacional antimonopolista que se demonstrou estar mais ligada aos interesses do grande capital e ter uma clara concordância ideológica com este, mesmo no momento em que auferiu imensos lucros, arrastando setores importantes da classe média.

Há na caudalosa polêmica sobre a experiência chilena: uma corrente majoritária dentro da esquerda e fora dela argumenta que o desastre se deveu à falta de acordo com o centro político (que supostamente representava a classe média e a burguesia “nacional”), ou seja, a DC. Sem poder entrarmos profundamente no tema, uma observação. A DC era o partido mais importante do capital no Chile, seus setores mais progressistas haviam rompido pela esquerda e sua base trabalhadora estava disposta a enfrentar o patronato como se demonstrou no locaute de outubro. Por outro lado, o limitado programa de reformas da Unidade Popular em uma sociedade dependente do imperialismo e tremendamente desigual abriu as comportas da luta social em uma sociedade extremamente desigual, o que desembocou em um grandioso processo revolucionário, que não comportava soluções parlamentares, nem a conciliação. As classes sociais fundamentais estavam em movimento e só o confronto poderia saldar contas. Revolução e contrarrevolução se enfrentavam nas ruas, fábricas campos e minas do país. O acordo com a DC significaria claramente a capitulação de todo o movimento social e a repressão de sua vanguarda, o que a UP não se atreveu a fazer. Ficou na metade do caminho, tentando desesperadamente conter o movimento que de certa forma provocou e que a ultrapassou completamente.

 

A política militar da Unidade Popular
 

O conjunto da orientação da UP já explica o porquê de ter havido tão pouca resistência ao golpe militar. Mas no terreno da sua atitude frente às forças armadas as coisas chegaram a um ponto incrível. Durante os três anos de governo em nenhum momento houve uma política frente à inevitável oposição da oficialidade à qualquer reforma social mais profunda. Inclusive se incutiu um mito que depois ficou claro que não tinha nenhum fundamento, o suposto caráter profissional e legalista das forças armadas chilenas. Na verdade, elas intervieram de forma sangrenta sempre que foram chamadas, como nas greves e mobilizações no governo Frei, com mortos e feridos. Em 1969 houve uma tentativa de golpe comandada pelo general Viaux, o mesmo que prepararia o assassinato do general René Schneider, mas isso não mudou uma vírgula esta orientação suicida. Não levantaram um programa de reivindicações básicas e muito sentidas na base e na suboficialidade contra os privilégios dos oficiais, a brutalidade e a falta de direitos democráticos, entre eles o direito de voto, e por melhorias no nível de vida, já que sofriam, como o conjunto de seus irmãos de classe, com a tremenda crise econômica exacerbada pela luta distributiva entre as classes fundamentais da sociedade, o flagelo do mercado negro e o desabastecimento. Nenhum controle das promoções militares, nenhuma depuração de oficiais golpistas e o principal, nenhuma propaganda antigolpista que passasse por cima da rígida estrutura militar e apelasse diretamente aos trabalhadores sob uniforme. Nem é preciso dizer que em nenhum momento se alentou a defesa armada do governo, única garantia que os soldados, marinheiros e suboficiais poderiam se atrever a rebelar-se, sem que isso significasse suicídio...

A mentalidade legalista levou a que nem houvesse uma estratégia de resistência, as rádios de esquerda foram silenciadas e não havia transmissores alternativos, a orientação de ficar nos locais de trabalho não servia mais para uma situação extrema...mas era tudo consequência de três anos perdidos, de não ter a clareza e a coragem de enfrentar a realidade do enfrentamento, coisa que a burguesia demonstrou ter de sobra.

Estamos em um terreno em que há poucas informações, mas hoje conhecemos melhor um episódio simbólico: o caso dos marinheiros antigolpistas.

Desde a eleição de Allende, a tremenda divisão de classes que existia na Marinha chilena fez com que os marinheiros e suboficiais comemorassem intensamente a eleição e os oficiais a considerassem uma grande derrota. Por mais de dois anos centenas de marinheiros organizados nos barcos e em terra controlavam a atividade dos oficiais e quando viram que estavam abertamente organizando o golpe tentaram alertar o governo e pedir a ajuda aos partidos de esquerda para tomarem os barcos, como havia acontecido com a revolta da Armada em 1931. “Depois do golpe será impossível”, diziam, profeticamente. Não receberam resposta e foram presos e barbaramente torturados.

Allende, no dia 5 de agosto de 1973, formava um novo e final gabinete cívico-militar, ironicamente chamado de “Gabinete de Segurança Nacional”, e, para apaziguar a oficialidade da Marinha, denunciou a subversão feita pela ultra-esquerda, fiel à sua estratégia de não afrontar a hierarquia militar. Somente 15 dias depois dos fatos retratou-se. Que poderia ter ocorrido se fossem alentados todos os filhos da classe trabalhadora sob uniforme a que rechaçassem as ordens golpistas e que o movimento sindical e popular fizesse uma campanha de massas com esse eixo sobre a base das forças armadas?

Por uma dessas casualidades da vida, os marinheiros antigolpistas, em especial o principal dirigente, o sargento Cárdenas, sobreviveram, pois já estavam presos e os meandros burocráticos das prisões da ditadura fizeram com que não fossem assassinados e fosse ao exílio. Mais de 30 anos depois, um pesquisador chileno, Jorge Magasich, produziu um belo livro, “Los que dijeron no”, em que conta essa história e entrevista os marinheiros.

Nos dias do golpe, juntamente com os bolsões de resistência, houve fuzilamentos nos quarteis e houve resistência ativa na escola de suboficiais da polícia, mas foram poucos, muitos menos dos que poderiam ter sido se a política da UP tivesse sido distinta. Claro que sempre uma derrota como essa parece inevitável e seria impossível provar com certeza o contrário, mas o conjunto das condições da época, os vasos comunicantes que havia entre um exército de conscritos e um movimento de massas que ocupava como nunca antes o centro político do país não poderiam deixar de influir para que as divisões surgissem. Mas para isso faltou uma política por parte do governo e do conjunto da esquerda com um tempo suficiente, e não os últimos chamados desesperados da esquerda do PS e do MIR para que os soldados desobedecessem às ordens golpistas.

O poder popular – esta foi a expressão chilena para um fenômeno recorrente nos grandes processos revolucionários, que é o surgimento de organismos de poder dual que se enfrentam à institucionalidade burguesa. A originalidade chilena é que o termo poder popular consta no programa da UP, com uma conotação de apoio ao governo e como tal foi reivindicado por Allende e pela direita da UP, o PC e setores do PS. O proletariado e a esquerda chilenos tinham uma enorme tradição política, fruto de quase um século de atividade socialista quase ininterrupta, com seus altos e baixos. Por isso, na vanguarda havia debates interessantes, ao calor dos acontecimentos. Somente para citar, havia uma interpretação de que havia um poder dual dentro do aparelho de Estado, entre o governo e as demais instituições, numa grosseira deturpação do conceito tradicional do poder dual como um poder independente e oposto ao estado e suas instituições como se viu em tantos processos revolucionários. Mas, mesmo os mais radicais dentro da UP e o MIR consideravam o governo como um aliado vacilante, mas um aliado.

De novembro de 1972 até o golpe existiram vários foros nos quais se debateu o poder popular, com a presença de seus dirigentes e/ou de dirigentes dos partidos de esquerda. Basicamente esboçavam-se duas posições.

A primeira, era a de Allende e do PC que primeiro atacaram fortemente os cordões industriais, mas frente ao seu fortalecimento acabaram reconhecendo-os e aos comandos comunais formalmente, mas os concebiam como subordinados ao governo. Os comunistas somente neles ingressaram nos cordões a partir de julho de 1973 e mesmo assim sem muita força.

A segunda posição era apoiada por quase todos os dirigentes dos cordões e sustentava que eles deveriam ser autônomos do governo, mas não a ele se opor. Nenhuma corrente expressiva se colocava a perspectiva de organizar uma força política e/ou social fora da UP, inclusive para melhor lutar contra os golpistas.

Uma polêmica dentro desse campo era entre os que defendiam a primazia dos cordões industriais e os que defendiam os comandos comunais, como o MIR, argumentando que estes agrupavam ao conjunto dos explorados e que os cordões somente poderiam ter um papel sindical. Muito ainda está por ser escrito sobre os detalhes do movimento real, de base, dentro da revolução chilena, mas nos limitamos a observar que, mesmo sendo uma posição correta em abstrato, não respondia à realidade daquele momento, em que os cordões industriais tinham um peso muito maior. Na verdade, estranhamente, esta posição do MIR coincidia na prática com a opinião dos comunistas de integração dos cordões à CUT, desconhecendo o papel claramente político, muito além do meramente sindical, que tinham adquirido e como única alternativa real de exercerem um papel de vanguarda social naquele momento. Uma das razões que possivelmente influiu para essa posição do MIR foi a sua maior implantação nos setores de “pobladores”, enquanto sua inserção no proletariado industrial era bem reduzida ainda.

A falta de independência dos cordões e dos órgãos de poder popular foi dramática quando se tratou de enfrentar o golpe que se preparava, pois se aguardavam as iniciativas do governo, que nunca vieram...por tudo isso, os cordões somente podem ser classificados como os mais avançados organismos embrionários, potenciais, de poder dual, que poderiam ter se desenvolvido como tais se o tempo permitisse o amadurecimento das suas posições.

O mais próximo que se chegou a uma posição independente foi a carta da coordenação dos cordões industriais endereçada a Allende dias antes do golpe, em que o tom já era de bastante distância. Após refletirem sobre o significado do programa e da eleição da UP, sobre as concessões feitas à direita, enumeravam as medidas mínimas para lutar e terminavam com essas palavras que consideramos serem o ponto mais avançado a que ia chegando a vanguarda revolucionária chilena, mas que infelizmente não teve o tempo necessário para amadurecer e se fazer de massas. Outra poderia ter sido a história da classe trabalhadora e do povo do Chile e da América Latina se isso tivesse ocorrido.

Dizia a carta:

“Nós lhe advertimos camarada, que com o respeito e a confiança que ainda lhe temos, se não cumprir com o programa da Unidade Popular, se não confiar nas massas, perderá o único apoio real que tem como pessoa e dirigente e que será responsável por levar o país não à guerra civil que está já está em pleno desenvolvimento, mas ao massacre frio, planificado da classe operária mais consciente e organizada da América Latina. E [nós o advertimos] que será responsabilidade histórica deste Governo, levado ao poder e mantido com tanto sacrifício pelos trabalhadores, habitantes, camponeses, estudantes, intelectuais, profissionais, a destruição e descabeçamento, quiçá a tal prazo, e a tal custo sangrento, não só do processo revolucionário chileno, mas também o de todos os povos latino-americanos que estão lutando pelo Socialismo”.

No entanto, essa evolução era lenta, limitada ainda a uma vanguarda ampla e dificultada pelas posições ambivalentes da esquerda do PS, que procurava conciliar o apoio aos cordões e a necessidade de superar a institucionalidade capitalista com a participação no governo, sem colocar a necessidade de forjar uma alternativa à UP. Se em um primeiro momento serviram de estímulo à mobilização, depois serviram como um freio, uma justificativa elaborada desde a “esquerda”, impedindo os trabalhadores de avançarem politicamente. Tinham a seu favor a enorme tradição de legalismo dentro do movimento de massas do Chile, na crença no que seus dirigentes lhe diziam sobre a imparcialidade dos militares e, fundamentalmente a confiança em seus dirigentes, a quem atribuíam muitas de suas conquistas. Sabemos como custou cara essa tradição...

Falta dizer algumas palavras sobre o MIR, visto como a única alternativa à esquerda em relação à UP. Em que pese sua extrema juventude teve um crescimento importante durante os anos do governo Allende (calcula-se sua militância orgânica em cerca de 10 mil militantes, ainda que seja difícil determinar com precisão este número). No entanto, tinha limitações claras:

do ponto de vista político, não tinha uma estratégia clara frente à UP, na verdade, suas caracterizações apostavam em pressionar o governo para que radicalizasse suas posições. Isso explica o seu acordo eleitoral e programático com a esquerda do PS para as eleições parlamentares de 1973 e para a atuação dentro do movimento de massas.

Do ponto de vista da organização para atuar no movimento de massas, fez uma transição incompleta de um partido de quadros, militarista, para um partido que aspirava conquistar influência de massas. Não conseguia incorporar organicamente uma grande quantidade de militantes que se sentiam atraídos por suas posições, pelos seus métodos internos bastante burocráticos (seu congresso de 1968 foi sucessivamente adiado até o golpe, em que pese o acúmulo de novos problemas e debates criados pela novíssima situação do país), o que aumentou a sua incoerência e as tensões internas.

Seu ultimatismo no movimento dificultou sua estruturação no movimento operário (só teve 1,5% dos votos na eleição da CUT de 1972), mantendo sua força essencialmente entre os estudantes e favelados das cidades. Isso não nega, como no caso das demais organizações políticas de esquerda do pais, a abnegação e heroísmo de seus militantes.

No momento mais difícil, apareceu com toda a sua força a principal deficiência do processo chileno: a inexistência de uma corrente revolucionária que tivesse acumulado as experiências e os quadros durante o processo revolucionário para poder propor à vanguarda e às massas a construção de uma alternativa à UP, com base na própria experiência da luta de classes, e não de forma doutrinária ou ultimatista. Uma alternativa à sua variante mais reformista, PC-Allende, como às suas variantes mais à esquerda – a esquerda do PS e o MIR.