domingo, 29 de junho de 2008

O Capitalismo dos Monopólios

Extraído do livro Introdução ao Marxismo. Traduzido por Gustavo Henrique Lopes Machado, a partir do texto em espanhol disponível em: http://www.ernestmandel.org (grifo meu)

O funcionamento do modo de produção capitalista não permanece idêntico desde as suas origens. Excluindo o capitalismo das manufaturas, que se estende do século XVI ao século XVIII, pode-se distinguir duas fases na história do capitalismo industrial, propriamente dito:
  • a fase do capitalismo de livre concorrência, que vai da revolução industrial (mais ou menos 1760) até aos anos 80 do século passado;
  • a fase do imperialismo, que se estende dos anos de 1880 até os nossos dias.

1. Da livre concorrência aos acordos capitalistas

Durante toda a sua primeira fase de existência, o capitalismo industrial era caracterizado pela existência de um grande número de empresas independentes, em cada ramo industrial. Nenhuma delas podia dominar o mercado. Cada uma procurava vender ao mais baixo preço, na esperança de assim poder escoar a sua mercadoria.
Esta situação modificou-se desde a concentração e a centralização capitalista que permitiram subsistir em uma série de ramos de indústrias em um número reduzido de empresas, produzindo em conjunto 60, 70 ou 80% da produção. Estas empresas podiam desde então entender-se para tentar dominar o mercado, ou seja, cessar de fazer baixar os preços de venda, repartindo entre si os mercados, segundo relações de forças do momento.
Semelhante declínio da livre concorrência capitalista foi facilitado por uma importante revolução tecnológica que se produziu na mesma altura: a substituição pelo motor elétrico e de explosão, do motor a vapor, como principal fonte de energia na indústria e nos principais ramos de transportes. Desenvolver-se toda uma série de indústrias novas – indústrias de eletricidade, indústria de aparelhos elétricos, indústria petrolífera, indústria de automóveis, química de síntese - que exigiram investimentos iniciais muito mais importantes do que nos antigos ramos industriais, o que reduziu à partida o número de concorrentes potenciais.
As principais formas de acordos entre capitalistas são:
a) o cartel e o sindicato, num mesmo ramo de indústria, em que cada firma participante no acordo conserva sua independência;
b) o truste e a fusão de empresas, em que esta independência desaparece no seio duma única sociedade gigante;
c) o grupo financeiro e as sociedades Holding, em que um pequeno número de capitalistas controlam numerosas empresas de vários ramos industriais que se mantêm juridicamente independentes umas das outras.


2. As concentrações bancárias e o capital financeiro

O mesmo processo de concentração e centralização do capital que se realiza no domínio da indústria e dos transportes, produz-se igualmente no domínio dos bancos. No limite desta evolução, um pequeno número de bancos gigantes domina toda a vida financeira dos países capitalistas.
O papel principal dos bancos no regime capitalista é conceder crédito às empresas. Desde que a concentração bancária atinga um estágio avançado, um pequeno número de banqueiros detém um monopólio de fato quanto à concessão de crédito. Isto leva-os a deixar de se comportarem como emprestadores passivos, que se contentam em embolsar os juros sobre os capitais adiantados enquanto aguardam o reembolso do crédito no vencimento fixado.
Com efeito, os bancos que concedem créditos às empresas de atividades idênticas ou anexas, têm um interesse máximo de assegurar a rentabilidade e a solvabilidade de todas essas empresas. Têm interesse em evitar que os lucros desçam a zero, em virtude duma concorrência cortante. Intervêm pois para acelerar – e algumas vezes impor – a concentração e centralização industriais.
Desta forma, os bancos podem tomar iniciativas de formação de grades trustes. Podem igualmente utilizar as suas posições monopolistas, no domínio do crédito, para obter, em troca dos créditos, participações no capital das grandes empresas. Assim se desenvolve o capital financeiro, que consiste na penetração do capital bancário na indústria tomando nesta uma posição predominante.
No topo da pirâmide de poder da época do capitalismo dos monopólios, surgem os grupos financeiros que controlam, a um tempo, os bancos e outras instituições financeiras (como, por exemplo, as companhias de seguros), os grandes trustes da indústria e dos transportes, os grandes armazéns, etc. Um punhado de grandes capitalistas, as famosas “sessentas famílias “ nos Estados Unidos e as “duzentas famílias” na França, têm nas suas mãos todas as alavancas do poder econômico dos países imperialistas. Na Bélgica, uma dúzia de grupos financeiros controlam o essencial da economia, a par de alguns grandes grupos estrangeiros.
Nos Estados Unidos, alguns grupos financeiros gigantes (nomeadamente os grupos Morgan, Rockfeller, du Pont, Mellon, os chamados grupos de Chigado e de Cleveland, o grupo do Bank of America, etc.) exercem um domínio muito extenso sobre toda a economia. O mesmo se passa no Japão, onde os antigos zaibatsu trustes, aparentemente desmatelados após a 2º guerra mundial, facilmente se reconstruíram. Trata-se principalmente dos grupos Mitsubishi, Mitsui, Itoh e Sumitomo.

3. Capitalismo dos monopólios e capitalismo da livre-concorrência

O surto dos monopólios não significa o desaparecimento da concorrência capitalista. E ainda menos significa que cada ramo industrial seja dominado definitivamente por uma só firma. Significa, antes de mais, que nos setores monopolizados:
a) A concorrência deixa de exercer-se normalmente pela baixa de preços.
b) Por este fato, os grandes trustes obtêm sobre-lucros monopolísticos, quer dizer, uma taxa de lucro superior à das empresas de setores não monopolizados.

Por outro lado, a concorrência prossegue:

a) No interior dos setores não monopolizados da economia, que continuam a ser numerosos.
b) Entre monopólios, de modo corrente, pelo uso de técnicas diferentes de baixa de preços de venda (pela via da redução de preço de custo, pela publicidade, etc) e, excepcionalmente, também por uma “guerra de preços”, sobretudo quando as relações de força entre os trustes modificam-se e quando se trata de ajustar a partilha dos mercados a essas novas relações de forças.
c) Entre monopólios “nacionais” no mercado mundial, essencialmente pela via normal da “guerra de preços”. Contudo, a concentração do capital pode avançar até ao ponto de, no mesmo mercado mundial, subsistirem apenas algumas firmas num ramo industrial, o que pode conduzir à criação de “cartéis internacionais” que entre si partilham esses mercados.

4. A exportação de capitais

Os monopólios não podem controlar os mercados monopolizados sem que neste limitem o crescimento da produção e, portanto, a acumulação do capital. Mas, por outro lado, esses monopólios dispõem abundantes, graças sobretudo aos sobre-lucros monopolísticos que realizam. A época imperialista do capitalismo caracteriza-se pois pelo fenômeno do excedente de capitais, nas mãos dos monopólios dos países imperialistas, que buscam novos campos de investimento. A exportação dos capitais torna-se assim traço essencial da era capitalista.
Esses capitais são exportados para países onde rendem lucro superior à média dos setores competitivos dos países imperialistas, e vão estimular produções complementares da indústria metropolitana. São utilizados, antes de mais nada, no desenvolvimento da produção de matérias-primas vegetais e minerais nos países subdesenvolvidos (da Ásia, Africa e America Latina).
Enquanto o capitalismo operou no mercado mundial unicamente no sentido de aí vender as suas mercadorias e comprar matérias-primas e víveres, não tinha interesse maior em abrir caminho pela força militar (conquanto esta fosse utilizada para abater barreiras opostas à penetração das suas mercadorias – caso das guerras do ópio, desencadeadas pela Grã-Bretanha para obrigar o Império chinês a levantar as interdições que afetavam a importação do ópio proveniente da Índia britânica). Mas esta situação modificou-se desde que a exportação de capitais começou a tomar um lugar preponderante nas operações internacionais do capital.
Ao passo que uma mercadoria vendida deve ser paga pelo máximo no espaço de alguns meses, os capitais investidos num país só ao fim de longos anos são amortizados. Por isso, as potências imperialistas passam a ter um interesse máximo em estabelecer um controle permanente sobre os países onde investiram os seus capitais. Este controle pode ser indireto – através de governos a soldo do extrangeiro, no caso de Estados formalmente independentes, como os países semicoloniais. Ou pode ser direto - através de uma administração diretamente dependente da metrópole, como nos países coloniais. A era imperialista assinala-se, pois, por uma tendência para a partilha do mundo em impérios coloniais e em zonas de influências das grandes potências imperialistas.
Esta partilha realizou-se em dado período (sobretudo o de 1880-1900), em função das relações de força existentes nesse período: hegemonia da Grã-Bretanha, força importante dos imperialismos francês, holandês e belga; fraqueza relativa das “jovens” potências imperialistas: Alemanha, Estados Unidos, Itália e Japão.
As guerras imperialistas em série vão ser o meio pelo qual as potências imperialistas “jovens” se esforçarão por utilizar a alteração das relações de força para modificar a partilha do mundo em seu favor: guerra russo-japonesa, 1º guerra mundial, 2º guerra mundial.
São guerras conduzidas com fins de rapina, visando áreas de investimento de capitais, fontes de matérias-primas, mercado de escoamento privilegiados, e não guerras por um ideal político (“a favor ou contra a democracia”, a favor ou contra as autocracias, a favor ou contra o fascismo). O mesmo comentário se aplica às guerras de conquista colonial que balizam a era imperialista (no século XX, sobretudo a guerra ítala-turca, a guerra sino-japonesa, a guerra da Itália contra a Abissínia) ou as guerras colonialistas contra o movimento de libertação dos povos (guerra da Argélia, guerra do Vietnam, etc), nas quais uma das partes prossegue fins de rapina mas em que o povo semicolonial ou colonial defende uma justa causa, procurando escapar à escravatura imperialista.

5. Países imperialistas e países dependentes

Assim, a era imperialista não mostra apenas o estabelecimento do controle de um punhado de magnatas da finança e da indústria sobre as nações metropolitanas. Caracteriza-se também pelo estabelecimento do controle da burguesia imperialista de um punhado de países sobre os povos dos países coloniais. Os seus capitais investidos nesses países obtêm sobre-lucros coloniais, que são repatriados para a metrópole. A divisão mundial do trabalho, assenta na troca de produtos manufaturados metropolitanos por matérias-primas provindas das colônias, conduz a uma troca desigual. na qual os países pobres trocam quantidades de trabalho mais reduzidas (porque mais intensivo) dos países metropolitanos. A administração colonial é paga por impostos arrancados aos povos colonizados, parte significativa dos quais é igualmente repatriada.
Todos estes recursos extraídos dos países dependentes fazem falta quando se pretende financiar o seu crescimento econômico. O imperialismo é assim uma das principais causas do subdesenvolvimento do hemisfério meridional.

6. A era do capitalismo tardio

A era imperialista pode por sua vez, ser subdividida em duas fases: a era do imperialismo “clássico”, que recobre o período anterior à 1ª guerra mundial bem como o período de entre as duas guerras; e a era do capitalismo tardio, que começa com a 2ª guerra mundial ou com o fim desta.
Nesta era do capitalismo tardio, a concentração e a centralização do capital estende-se cada vez mais à escala internacional. A passo que o truste monopolístico nacional era a “cédula de base” da era imperialista clássica, a sociedade multinacional é a “célula de base” da era do capitalismo tardio. Mas, ao mesmo tempo, a era do capitalismo tardio caracteriza-se por uma aceleração da inovação tecnológica, pelo encurtamento dos períodos de amortização do capital investido em máquinas, pela obrigação, para as grandes firmas, de calcular e planificar de modo mais exato os seus custos e os seus investimentos, e pela tendência à programação econômica do Estado, como conseqüencia natural desta caracterização.
A intervenção econômica do Estado avoluma-se também pela obrigação em que se encontra a burguesia, de reativar, como a ajuda do Estado, os setores industriais tornados cronicamente deficitários; de assegurar pelo Estado uma garantia dos lucros dos grandes monopólios, concedendo a estes encomendas do Estado (sobretudo, mas não só, encomendas militares) bem como subvenções, subsídios, etc.
Esta internacionalização crescente da produção, por um lado, e esta intervenção crescente do Estado nacional na vida econômica, por outro lado, provocam uma série de novas contradições na era do capitalismo tardio, de que a crise do sistema monetário mundial, alimentada pela inflação permanente, é uma das principais expressões.
A era do capitalismo tardio caracteriza-se também pela desintegração generalizada dos impérios coloniais, pela transformação dos países coloniais em semicoloniais, pela reorientação das exportações de capitais, que passam agora primacialmente, de um a outro país imperialista e não dos países metropolitanos para os países coloniais, e por um início de industrialização (sobretudo localizada na esfera dos bens de consumo), nos países semicoloniais. Esta industrialização é não só uma tentativa de a burguesia para travar a revolta popular, mas também um resultado do fato que as exportações de máquinas e bens de equipamento constituem hoje a maior parte das exportações dos próprios países imperialistas.
Nem as transformações ocorridas no funcionamento da economia capitalista, mesmo no interior dos países imperialistas, nem as que respeitam à economia dos países semicoloniais, bem como o funcionamento de conjunto do sistema capitalista, permitem pois pôr em causa a conclusão a que Lenine chegou há mais de meio século quando ao significado histórico do conjunto da época imperialista. Esta época é a de agudização de todas as contradições inerentes ao sistema: contradições entre o Capital e o Trabalho, entre os países imperialistas e os países colonizados, bem como contradições inter-imperialistas. É uma época sob o signo de conflitos violentos de guerras imperialistas, de guerras de libertação nacional, de guerras civis. É a época das revoluções e contra-revoluções cada vez mais explosivas, e não a época de um tranqüilo e pacífico progresso da civilização.
Com mais forte razão se deve recusar os mitos segundo os quais a atual economia ocidental já não seria uma economia capitalista propriamente dita a recessão generalizada da economia capitalista internacional em 1974-75 deu um golpe mortal na tese segundo a qual estariamos vivendo numa pretensa “economia mista”, em que a regulação da vida econômica pelos poderes públicos permitiria assegurar de maneira ininterrupta o crescimento econômico, o pleno emprego e a extensão do bem-estar a todos. A realidade demonstra uma vez mais que os imperativos do lucro privado continuam a reger esta economia, provocam periodicamente o desemprego maciço e a sobre-produção, continuando pois sempre a tratar-se de uma economia capitalista.
Do mesmo modo, a tese segundo a qual já não seriam os grupos capitalistas mais poderosos, mas os gestores, os burocratas, ou mesmo os tecnocratas e os sábios quem dirigiria a sociedade ocidental, não tem fundamento sem qualquer prova científica séria. Muitos destes “senhores” da sociedade viram-se atirados para a rua no decurso das duas recentes recessões. A delegação de poderes que o grande capital aceita e aperfeiçoa no seio das sociedades gigantes que controla, é extensiva à maioria das suas prerrogativas, exceto quanto ao essencial: as decisões de última instância sobre as formas e orientações fundamentais de valorização do capital e de acumulação do capital, ou seja, tudo o que toca ao “santo dos santos”: a prioridade do lucro dos monopólios, à qual pode ser sacrificada a distribuição de dividendos aos acionistas. Aqueles que na referida tese julgaram ver uma prova de que a propriedade privada já não conta quase nada, esquecem a tendência, predominante desde o início do capitalismo, a sacrificar a propriedade privada dos pequenos à de um punhado de grandes.


Bibliografia

Lenine – O imperialismo, estágio supremo do capitalismo.
R. Hilferding – O capital financeiro.
E. Mandel – Tratado de economia marxista (caps. 12-14).
Pierre Jalée – O imperialismo em 1970.
Pierre Salama – O processo de subdesenvovimento.

sábado, 28 de junho de 2008

Da Pequena Produção Mercantil ao Modo de Produção Capitalista - Ernest Mandel

Extraído do livro Introdução ao Marxismo. Traduzido por Gustavo Henrique Lopes Machado, a partir do texto em espanhol disponível em: http://www.ernestmandel.org (grifo meu)

1. Produção para satisfação das necessidades e produção para a troca


Na sociedade primitiva e, depois, no seio da comunidade aldeã, nascida da revolução neolítica, a produção assentava essencialmente na satisfação das necessidades das coletividades produtivas. A troca era uma exceção e somente envolvia uma parte ínfima dos produtos de que dispunha a comunidade.

Uma tal forma de produção pressupõe uma organizção deliberada do trabalho. Por conseqüência, o trabalho é aí imediatamente social. Dizer organização deliberada do trabalho não significa necessariamente organização consciente (nem certamente científica), nem organização minunciosa. Muitas coisas podem ser deixadas ao acaso, precisamente porque a atividade econômica não preside qualquer tendência para o enriquecimento. Os costumes, os hábitos ancestrais, os usos, os ritos, a religião, a magia, podem determinar a alternância e o ritmo das atividades produtivas. Mas estas são sempre essencialmente destinadas à satisfação de necessidades imediatas das coletividades e não à troca ou enriquecimento tornado um fim em si.

De semelhante organização da vida econômica destaca-se pouco a pouco uma forma de organização econômica diametralmente oposta. A partir de um processo de divisão do trabalho, da aparição de um certo excedente, o potencial de trabalho da coletividade vai-se progressivamente fracionando em unidades (grandes famílias, famílias patriarcais) que trabalham independentemente umas das outras. O carater privado do trabalho e a propriedade privada dos produtos do trabalho, ou seja, dos meios de produção, interpõem-se entre os membros da comunidade. E impedem estes de estabelecer relações econômico-sociais deliberadas imediatamente entre si. Estas unidades ou indivíduos deixam de se relacionar uns com os outros na vida econômica, através de uma associação direta. Relacionam-se uns com os outros por intermédio da troca dos produtos do seu trabalho.

A mercadoria é um produto do trabalho social que se destina a ser trocado pelo seu produtor e não a ser consumido por ele ou pela coletividade de que faz parte. Pressupõe pois uma situação social fundamentalmente diferentes daquela em que a massa dos produtos é destinada ao consumo imediato das coletividades que a produzem. Há por certo casos transitórios (por exemplo, na nossa época, as chamadas formas de subsistêcia, que vende no mercado pequenos excedentes). Mas para apreender bem a diferença fundamental entre uma situação social na qual se produz essencialmente para o consumo direto dos produtores, e a situação na qual se produz para a troca, é preciso relembrar a resposta maliciosa do socialista alemão Ferdinand Lassale a um economista liberal da sua época: “sem dúvida, o Sr. Dupont-Dupont, empresáro funerário, fabrica, à partida, caixões para seu próprio uso e dos membros da sua casa, vendendo apenas o excedente que lhe resta...”


2. A pequena produção mercantil


A produção de mercadorias surgiu há 10 ou 12.000 anos no Oriente Médio, no quadro de uma primeira divisão do trabalho fundamental, entre artesão profissionais e camponeses, quer dizer, em conseqüencia da formação das primeiras cidades. Chamamos pequena produção mercantil a organização econômica na qual prevalece a produção para a troca por parte de produtores que continuam senhores de suas condições de produção.

Embora tenha havido múltiplas formas de pequena produção mercantil teve o seu principal desenvolvimento entre os séculos XIV e XVI, na Itália do norte e do centro, bem como nos Países Baixos do sul e do norte, devido ao desaparecimento da servidão nesssas regiões e nessa épocas, e ao fato de que os proprietários de mercadorias, que se reuniam no mercado, eram aí, em geral, livres e mais ou menos iguais em direitos.

É precisamente esse caráter de liberdade e de igualdade relativas dos proprietários de mercadorias, no interior de uma sociedade fundada sobre a pequena produção mercantil, que permite apreender a própria função da troca: permitir a continuidade de todas as atividades produtivas essenciais, apesar de uma já avançada divisão do trabalho, e sem que essas atividades dependam de deliberadas decisões da coletividade ou de seus dirigentes.

A organização do trabalho fundada na repartição deliberada e previamente prevista da mão-de-obra entre os diversos ramos de atividades essenciais para a satisfação das necessidades da sociedade, é agora substituída por uma divisão do trabalho mais ou menos “anárquica” e “livre”, na qual aparentemente o acaso governa esta mesma repartição dos recursos produtivos vivos e mortos (instrumentos de trabalho). A troca e o seu resultado substituem agora a planificação tradicional ou consciente para repartir esses recursos. Mas isso deve fazer-se de tal modo que a continuidade da vida econômica seja assegurada (é certo que com muito “acidentes de percurso”, de crise, de interrupção da produção) que, a grosso modo, todas as atividades essenciais encontrem quem as exerça.


3. A lei do valor


É a própria maneira como a troca é governada que assegura seus resultado, pelo menos a médio prazo. As mercadorias trocam-se segundo as quantidades necessárias de trabalho para as produzir. Os produtos de uma jornada de trabalho de um tecelão. Precisamente no alvor da pequena produção mercantil, em que a divisão do trabalho entre o artesão e o camponês não passa de rudimentar, em que muitas atividades artesanais são exercidas ainda no centro rural, é evidente que a troca apenas em semelhante equivalência pode fundar-se. Caso contrário, uma ou outra atividade produtiva menos compensadora do que outra, depressa seria abandonada. Produzir-se-ia então uma penúria neste domínio. Essa penúria faria subir os preços e, logo, a recompensa obtida por esses determinados produtos. Por este fato, as atividades produtivas redistribuir-se-iam entre os diferentes setores de atividade, restabelecendo a regra de equivalência: para uma mesma quantidade de trabalho fornecido, mesma quantidade de valor obtida na troca.

Chamamos “lei do valor” a lei que governa a troca das mercadorias e, por seu intermédio, a repartição da forças de trabalho e de todos os recursos produtivos, entre os diferentes ramos de atividade. Trata-se pois claramente de uma lei econômica que se funda essencialmente sobre uma forma de organização do trabalho, sobre relações estabelecidas entre os homens, distintas daquelas que presidem à organização de uma economia planificada segundo os costumes ou segundo as opções conscientes de produtores associados.

A lei do valor assegura o reconhecimento social do trabalho, tornado trabalho privado. Neste sentido, deve funcionar na base de critérios objetivos, iguais para todos. É pois inconcebível que um sapateiro preguiçoso, tendo necessidade de dois dias de trabalho para produzir um par de sapatos que um sapateiro hábil produziria num só dia de trabalho, produza afinal duas vezes mais de valor que este último. Semelhante funcionamento do mercado, ao recompensar a preguiça ou a indolência e a falta de qualificação, conduziria uma sociedade, fundada na divisão do trabalho e no trabalho privado, à sua rápida regressão ou mesmo à sua extinção.

É por isso que a equivalência das jornadas de trabalho, assegurada pela lei do valor, é uma equivalência de trabalho à media social de produtividade. Esta média, numa sociedade pré-capitalista, é geralmente estável e por todos conhecida, porque a técnica produtora não evolui ou só muito lentamente o faz. Dizemos pois que o valor das mercadorias é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário para as produzir.


4. O aparecimento do capital


Na pequena produção mercantil, o pequeno agricultor e o pequeno artesão vão ao mercado com os produtos do seu trabalho. Vendem-os a fim de comprar os produtos de que necessitam para o seu consumo corrente e que eles próprios não produzem. A sua atividade no mercado pode resumir-se na fórmula: vender para comprar.

Contudo muito rapidamente a pequena produção mercantil exige a aparição de um meio de troca universalmente aceita (chamado também “equivalente geral”) para facilitar a troca, através do qual todas as mercadorias são trocadas indiferentemente, é a moeda. Com o aparecimento da moeda, um outro personagem social, uma outra classe social pode aparecer, em razão de um novo progresso da divisão social do trabalho: o proprietário de dinheiro, separado e oposto ao proprietário de mercadorias simples. É o usurário ou o mercador especializado no comércio internacional.

Este proprietário de dinheiro exerce no mercado uma atividade muito diferente da do pequeno agricultor ou artesão. Como surge no mercado com uma soma determinada de dinheiro, para ele já não se trata de vender para comprar, mas, pelo contrário, de comprar para vender. O pequeno artesão ou camponês vende para comprar uma mercadoria diferente daquela que ele próprio produz; mas a finalidade dessa operação permanece a satisfação de necessidades mais ou menos imediatas. Inversamente, o proprietário de dinheiro não pode “comprar para vender” tendo somente em vista satisfazer as suas necessidades. Para o banqueiro ou o mercador, comprar para vender não tem sentido, se não vende por uma soma que exceda aquela com a qual se apresentou no mercado. O aumento do valor do seu dinheiro de uma mais valia, quer dizer, o enriquecimento como fim em si, eis o sentido da atividade do usurário e do mercador.

O capital – porque é dele que se trata, sob a sua forma inicial e elementar de capital-dinheiro – é todo o valor que procura apropriar-se de uma mais-valia, que é lançado na busca de uma mais-valia. Esta definição marxista do capital opõe-se à definição corrente dos manuais burgueses segundo a qual o capital seria simplesmente todo o instrumento de trabalho, ou até, de forma ainda mais vaga, “todo bem durável”. Por esta definição, o primeiro macaco que tivesse varejado uma bananeira com um pau para apanha uma banana, teria sido o primeiro capitalista.

Sublinhe-se uma vez mais: como todas as “categorias econômicas”, a categoria “capital” não pode ser entendida sem a considerar como fundada sobre uma relação social entre os homens: a saber, uma relação tal que permite a um proprietário de capital apropriar-se de uma mais-valia.


5. Do capital ao capitalismo


A existência do capital não se identifica com o modo de produção capitalista. Pelo contrário, capitais existiram e circularam durante milênios antes da eclosão do modo de produção capitalista na Europa ocidental, nos séculos XV e XVI.

O usurário e o mercador aparecem de início no seio de sociedades pré-capitalistas, escravagistas, feudais ou fundadas sobre o modo de produção asiático. Operam aí fora da esfera da produção. Asseguram aí a introdução do dinheiro numa sociedade natural (dinheiro que em geral aflui do estrangeiro), introduzem produtos de luxo vindos de longe, asseguram um mínimo de crédito às classes possuidoras desprovidas de fortunas mobiliárias, bem como aos reis e imperadores.

Semelhante capital é politicamente vulnerável, sem proteção contra as exações, a rapina e o confisco. Essa é de resto a sua sorte habitual; e é por isso que esse capital protege ciosamente o seu tesouro, escondendo-o mesmo em parte, evitando cuidadosamente investi-lo na totalidade pelo receio de provocar a sua confiscação. Alguns dos grupos de proprietários de capitais mais avultados dos primeiros séculos da Idade Média foram vítimas dessas confiscações: por exemplo, os Templários, no século XIV na França. Os banqueiros italianos, financiadores das guerras dos reis da Inglaterra viram-se desapossados pelo fato desses reis nada os terem reembolsado das suas dívidas.

Foi só quando as relações de força políticas mudaram ao ponto dessas confiscações diretas ou indiretas se tornarem cada vez mais difíceis, que o capital se pôde acumular - crescer -, de maneira cada vez mais contínua. A partir desse momento, a penetração do capital na esfera de produção tornou-se possível e, com ela, o nascimento do modo de produção capitalista, o nascimento do capital moderno.

Agora, o detentor de capitais não é simplesmente usurário, banqueiro ou mercador. É proprietário de meios de produção, alugador de braços, organizador da produção, fabricante, manufaturador ou industrial. A mais-valia deixa de ser extraída da esfera da distribuição. Passa a ser correntemente produzida no decurso do próprio processo de produção.


6. O que é a mais-valia?


Na sociedade pré-capitalista, os proprietários de capitais, quando atuam essencialmente na esfera da circulação, não podem apropriar-se de uma mais-valia senão explorando de forma parasitária os rendimentos de outras classes da sociedade. A origem desta mais-valia parasitária pode ser, ou uma parte do excedente agrário (por exemplo, da renda feudal) de que a nobreza ou o clero são os proprietários iniciais, ou uma parte dos magros rendimentos dos artesãos e camponeses. Esta mais-valia é essencialmente o produto do embuste e da rapina. A pirataria e a pilhagem, o coméricio de escravos, desempenharam um papel essencial na formação das fortunas iniciais de mercadores árabes, italianos, franceses, flamengos, alemães e ingleses, na Idade Média. Mais tarde, o fato de comprar mercadorias em mercados longíquos abaixo do seu valor para os vender acima desse valor em mercados mediterrânicos ou da Europa do Oeste ou Europa central, desempenhou um papel similar.

É claro que uma tal mais-valia resulta apenas de atividades de transferência. A riqueza global da sociedade, tomada no seu conjunto, em nada foi aumentada. Perdem uns o que outros ganham. Em conseqüencia, durante milênos, a riqueza mobiliária global da humanidade pouco aumentou. É diferente o que sucede desde o advento do modo de produção capitalista. E isso porque a partir desse momento, a mais-valia já não é simplesmente subtraída do processo de circulação das mercadorias. É agora correntemente produzida e portanto correntemente também acrescida ampliada, no decurso da própria produção.

Já vimos que em todas as sociedades de classe pré-capitalistas, os produtores (escravos, servos, camponeses) eram obrigados a dividir a sua semana de trabalho, ou a sua produção anual, entre uma parte que ele próprios podiam consumir (produto necessário) e uma parte de que se apropriava a classe dominante (sobreproduto social). Na fábrica capitalista, manifesta-se o mesmo fenômeno, embora velado pela aparência das relações mercantis, que simulam governar a “livre compra e a livre venda” da força de trabalho, entre o capitalista e o operário.

Quando o operário inicia o seu trabalho na fábrica, ao princípio de sua jornada (ou da sua semana) de trabalho, incorpora um valor às matérias-primas que elabora. Ao fim de um certo número de horas (ou de jornadas) de trabalho, reproduziu um valor que é exatamente o equivalente do seu salário quotidiano (ou semanal). Se suspendesse o trabalho nesse preciso momento, o capitalista não obteria sequer um centavo de mais-valia. Mas, em tais condições, o capitalista não teria evidentemente nenhum interesse em comprar esta força de trabalho. Tal como o usurário ou o mercador da idade média, ele “compra para vender”.

Compra a força de trabalho para obter dela um produto mais elevado do que o que gastou para comprar. Este “suplemento”, este “excedente”, é precisamente a sua mais-valia, o seu lucro. Entende-se pois que, se o operário produz o equivalente ao seu salário em 4 horas de trabalho, trabalhará não apenas 4 mas 6, 7, 8 ou 9 horas. Durante essas 2, 3, 4 ou 5 horas “suplementares”, produz a mais-valia para o capitalista, em troca da qual nada recebe.

Com efeito, o capitalista não comprou no mercado “o valor produzido ou a produzir pelo operário”. Não comprou o seu “trabalho”, ou seja, o trabalho que o operário vai efetuar (se o tivesse feito, teria efetivamente praticado um roubo puro e simples; teria pago 1000 escudos pelo que vale 2000 escudos). Comprou a força de trabalho do operário. Esta força de trabalho tem o seu valor. O valor da força de trabalho é determinado pela quantidade de trabalho necesário para a reproduzir, ou seja, para subsistência (no sentido lato do termo) do operário e da sua casa. A mais valia tem origem no fato de manifestar-se um distanciamento entre o valor produzido pelo operário e o valor das mercadorias necessárias para assegurar a sua subsistência. Este distanciamento é devido ao aumento da produtividade do trabalho do operário. O capitalista pode apropriar-se do incremento da produtividade do trabalho porque a força do trabalho se tornou uma mercadoria, pois o operário foi colocado em condições tais que só pode produzir para a sua própria subsistência.


7. As condições do aparecimento do capitalismo moderno


O capitalismo moderno é produto de três transformações econômicas e sociais:


a) A separação dos produtores dos seus meios de produção e de subsistência. Esta separação efetuou-se designadamente na agricultura pela expulsão dos pequenos camponeses das terras senhoriais transformadas em prados; no artesanato pela destruição das corporações medievais; pelo desenvolvimento da indústria domiciliar; pela apropriação privada das reservas de terras virgens, etc.

b) A formação de uma classe social que monopoliza estes meios de produção: a burguesia moderna. O aparecimento desta classe supõe a prévia acumulação de capitais sob a forma de dinheiro, seguida de uma transformação dos meios de produção que torna estes tão caros que somente os proprietários de capital-dinheiro avultado podem adquiri-los. A revolução industrial do século XVIII, baseando doravante a produção sobre o maquinismo, realiza esta transformação de maneira definitiva.

c) A transformação da força de trabalho em mercadoria. Esta transformação resulta do aparecimento de uma classe que nada mais possui que a sua força de trabalho, e que, para poder subsistir, é obrigada a vender essa força de trabalho aos proprietários dos meios de produção.

“ Gentes pobres e laboriosas, muitas das quais suportando o fardo e encargo de mulheres e filhos numerosos e que nada mais possuem além do que podem ganhar com o trabalho das suas mãos”: eis uma excelente descrição do proletariado moderno, extraída de uma petição no fim do século XVI, redigida em Leyde (na Holanda).

Porque esta massa de proletários não tem liberdade de escolha – a não ser a escolha entre a venda de sua força de trabalho e a fome permanente – é obrigada a aceitar como preço da sua força de trabalho o preço ditado pelas condições capitalistas normais no mercado do trabalho, quer dizer, o mínimo vital socialmente reconhecido. O proletariado é a classe dos que são obrigados, por esta coação econômica, a vender a sua força de trabalho de maneira mais ou menos contínua.



Bibliografia


Karl Marx – Salário, preço e lucro.

Rosa Luxemburgo – Introdução à economia política.

Ernest Mandel – Iniciação à teoria economica marxista.

- Tratado de economia marxista

Pierre Salama et Jacques Valier – Introdução à economia política.

terça-feira, 24 de junho de 2008

A Economia Capitalista - Ernest Mandel

Extraído do livro Introdução ao Marxismo. Traduzido por Gustavo Henrique Lopes Machado a partir do texto em espanhol disponível em: http://www.ernestmandel.org (grifo meu)



1. As particularidades da economia capitalista


A economia capitalista funciona segundo uma série de características que lhe são próprias as quais destacamos:

  1. A produção é exclusivamente uma produção de mercadorias; está é destinada a ser vendida no mercado. Sem a venda efetiva das mercadorias produzidas, as empresas capitalistas e a classe burguesa em seu conjunto não podem apropriar da mais-valia produzida pelo trabalhador e contida no valor dar mercadorias produzidas.

  2. A produção efetua-se em condições de propriedade privada dos meios de produção. Esta propriedade não é apenas uma categoria jurídica, mas também uma categoria econômica. Isto significa que o poder de dispor das forças produtivas (meios de produção e forças de trabalho) não pertence a coletividade, mas está dividida entre diferentes empresas, controladas por distintos grupos capitalistas (proprietários individuais, familiares, sociedades anônimas ou grupos financeiros). As decisões sobre investimentos, que condicionam em grande medida a conjuntura econômica, são tomadas também de modo separado, sobre a base do interesse privado e independentemente de cada unidade ou grupo capitalista.

  3. A produção é realizada para um mercado anônimo. É governada pelos imperativos da concorrência. Desde o momento em que a competição não está limitada pelo costume (como nas comunidades primitivas) nem pela regulamentação (como nas corporações da idade média) cada capital particular (cada proprietário, cada forma, cada grupo capitalista ) se esforça em aumentar seus lucros no negócio, em dominar a maior parte possível do mercado, sem levar em conta as decisões análogas de outras firmas que operam na mesma atividade.

  4. O objetivo da produção capitalista é maximizar o lucro. As classes privilegiadas pre-capitalistas viviam do subreproduto social (excedente da produção), consumido a sua quase totalidade de um modo improdutivo. A classe capitalista, também ela, deve consumir improdutivamente uma parte do subreproduto social, do lucro que obtem. Mas para conseguir este lucro, deve conseguir vender suas mercadorias. Isto significa que deve poder oferece-las ao mercado a um preço mais baixo que o do concorrente. Para fazer isto, deve poder baixar os custos da produção. O meio mais eficaz para conseguir isto é aumentando a base de produção, produzir mais com o auxílio de máquinas mais sofisticadas. Mas para tal é necessário cada vez mais capital. Assim, sob o “efeito chicote” gerado pela concorrência, o capitalismo se vê obrigado a buscar sempre o maior lucro para poder desenvolver ao máximo sua produtividade.

  5. Deste modo, a produção capitalista aparece visando não somente o lucro, mas a acumulação de capital. Assim, a lógica do capitalismo implica que a maior parte da mais-valia seja acumulada produtivamente (transformada em capital suplementar, sob forma de máquinas, matéria prima suplementar e mão de obra suplementar) e não consumida improdutivamente (consumo privado da burguesia e de seus servidores).


A produção tendo por fim a acumulação de capital conduz a resultados contraditórios. Por um lado o desenvolvimento constante das máquinas acarreta num arranque das forças produtivas e conseqüentemente da produtividade do trabalho, que cria os fundamentos materiais para a emancipação da humanidade possibilitando a esta deixar de “ganhar o pão com o suor de seu rosto”. Há aqui uma função historicamente progressiva do capitalismo. Mas, por outro lado, tal desenvolvimento sob a regra da busca o lucro máximo e na acumulação sem que o capital pare de crescer, implica numa subordinação cada vez mais brutal do trabalhador a maquina, das massas as laboriosas leis de mercado, que o fazem perder periodicamente a qualificação e o emprego. O desenvolvimento capitalista das forças produtivas é ao mesmo tempo o desenvolvimento da alienação dos trabalhadores (e de maneira indireta de todos cidadãos da sociedade burguesa) dos seus instrumentos de trabalho, dos produtos do seu trabalho, das suas condições de trabalho, numa palavra, das suas condições de vida (incluindo as suas condições de consumo e de utilização dos “tempos livres”) e, ainda, das suas relações realmente humanas com os seus concidadãos.


2. O fundamento da economia capitalista


Para obter o lucro máximo e desenvolver o máximo possível a acumulação de capital, os capitalistas devem reduzir ao máximo a parte do valor adicionado, pela força de trabalho, que reverte a esta sob a forma de salário. Este valor adicionado é determinado no processo de produção em si, independentemente de todo problema de distribuição. É equivalente a soma total de horas trabalhadas proporcionadas pelo conjunto de produtores assalariados. Deste bolo quanto maior for a parte dos salários reais pagados, forçosamente menor será a parte da mais-valia. Quanto mais os capitalistas buscam ampliar a mais-valia, se veem obrigados a reduzir a parte atribuída ao salários.

Os meios essenciais que os capitalistas usam para acrescentar a sua parte, ou seja, a mais-valia, são:

  1. Prolongar a jornada de trabalho (do século XVI até meados do século XIX no Ocidente; em numerosos países semi-coloniais e coloniais até nossos dias), a redução dos salários reais, redução do salário mínimo. É o que Marx chamou de acrécimo da mais-valia absoluta.

  2. O aumento da intensidade e da produtividade do trabalho na esfera dos bens de consumo (que prevalece no ocidente a partir da segunda metade do século XIX). De fato, se por conseqüência de um aumento da produtividade do trabalho na indústrias de bens de consumo e na agricultura, o operário industrial reproduz o valor de um conjunto determinado destes bens de consumo em 3 horas de trabalho em lugar dever trabalhar 5 horas para produzir o mesmo valor, então o produto que ele fornece ao patrão pode passar do produto de 3 horas ao de 5 horas de trabalho, mantendo-se fixa a jornada de trabalho de oito horas. É isto que Marx denomina de crescimento da mais-valia relativa.


Cada capitalista busca maximizar o lucro, mas para ter êxito, busca aumentar ao máximo a produção, e baixar sem cessar o custo e o preço de venda (em unidades monetárias estáveis). Graças a isto, a concorrência realiza uma seleção entre as empresas capitalistas. Somente as mais produtivas e as mais rentáveis sobrevivem. Aquelas que vendem demasiado caro, não somente não conseguem obter o lucro máximo, como este termina por desaparecer por completo. Quebram ou são absorvidas por seus concorrentes.

A concorrência entre os capitalistas termina assim em um nivelamento entre as taxas de lucro. A maior parte das empresas acabam por contentar-se com um lucro médio, determinado em última análise pela massa total do capital social investido e a massa total de mais-valia proveniente do conjunto dos salários produtivos. Apenas as firmas de produtividade muito avançada, ou numa situação de monopólio, obtêm lucros estraordinários, quer dizer, lucros acima da média. Mas, em geral, a concorrência capitalista não permite que os lucros estraordinários ou os monopólios sobrevivam por tempo ilimitado. São as variações em torno deste lucro médio que regem em grande parte os investimentos no modo de produção capitalista. Os capitais abandonam os setores em que o lucro situe-se abaixo da média e concorrem aos setores em que o lucro é superior à média (por exemplo, concoriam ao ramo automóvel nos anos sessenta, e abandonaram este ramo, para concorrer ao setor energético, nos anos setenta do nosso século).

Porém, ao convergir pros setores em que a taxa de lucro situa-se acima da média, esses capitais provocam aí um aumento de concorrência, uma superprodução, uma baixa dos preços de venda, uma baixa dos lucros, até que a taxa de lucro se estabeleca mais ou menos ao mesmo nível em todos os ramos.



3. A evolução dos salários


Uma das características do capitalismo é que transforma a força de trabalho humano em mercadoria. O valor da mercadoria-força de trabalho é determinado pelos seus custos de reprodução (o valor de todas as mercadorias cujo consumo é necessário para a reconstituição da força de trabalho). Trata-se aqui pois de uma grandeza objetiva, independentemente das apreciações subjetivas ou eventuais de grupos de indivíduos, sejam operários ou patrões.

Todavia, o valor da força de trabalho possui uma característica particular em relação à de qualquer outra mercadoria: comporta, além de um elemento estritamente mensurável, um elemento variável. O elemento estável é o valor das mercadorias que devem reconstituir a força de trabalho do ponto de vista fisiológico (que devem permitir ao operário recuperar calorias e vitaminas, e a capacidade de gastar uma energia muscular e nervosa determinada, sem a qual seria incapaz de trabalhar ao ritmo “normal”, previsto pela organização capitalista do trabalho, em um dado momento). O elemento variável é o valor das mercadorias incorporadas no “mínimo vital normal” numa época e num país determinados, que não fazem parte do mínimo vital fisiológico. Marx chama esta parte do valor da força de trabalho, a sua fração histórico-moral. Isso quer dizer que também não é eventual. É o resultado de uma evolução histórica e de uma dada situação das relações de força entre o Capital e o Trabalho. Neste preciso ponto de análise econômica marxista, a luta de classe, o seu passado e o seu presente, torna-se um fato co-determinante da economia capitalista.

O salário é o preço de mercado da força de trabalho. Como todos os preços do mercado, flutua à volta do valor da mercadoria em causa. As flutuações do salário são particularmente determinadas pelas flutuações do exército de reserva industrial, ou seja o desemprego, e isso em triplo sentido:

  1. Quando num país capitalista há desemprego permanente (quando é indústrialmente subdesenvolvido), os salários correm o risco de estar, de modo constante, quer abaixo quer ao nível do valor da força de trabalho. Este valor pode chegar a estar próximo do mínimo vital fisiológico.

  2. Quando o desemprego maciço permanente decresce a longo prazo, designadamente como resultado da industrialização em profundidade e da emigração em massa, os salários podem subir, em período de alta conjuntura, acima do valor da força de trabalho. A luta operária pode provocar a longo prazo a incorporação neste valor do equivalente de novas mercadorias. O mínimo vital socialmente reconhecido pode aumentar em termos reais, ou seja, incluir novas necessidades.

  3. As altas e baixas do exército de reserva industrial não dependem somente dos movimentos demográficos (taxas de nascimento de mortalidade) e dos movimentos de migração internacional do proletariado. Dependem também e sobretudo da lógica de acumulação do capital, em si mesma. Assim sendo, na luta para sobreviver face à concorrência, os capitalistas devem substituir a mão-de-obra por máquinas. Esta substituição retira constantemente mão-de-obra para fora da produção. Em contra-partida, nos períodos de alta conjuntura e de “sobreaquecimento”, quando a acumulação do capital cresce a um rito febril, o exército de reserva é reabsorvido.


Não existe, pois nenhuma “lei de bronze” que governa a evolução dos salários. A luta de classe entre o Capital e o Trabalho, determina-a em parte. O capital esforça-se por fazer baixar os salários no sentido do mínimo vital fisiológico. O Trabalho esforça-se por dilatar o elemento histórico e moral do salário, incorporando nele mais necessidades novas a satisfazer. O grau de coesão, de organização, de solidariedade, de combatividade e de consciência de classe do proletariado, são pois fatores que co-determinam a evolução dos salários. Mas a longo prazo, pode-se patentear uma tendência incontestável para a pauperização relativa da classe operária. A parte do valor novo criado pelo proletariado, que cabe aos trabalhadores, tende a baixar (o que pode, de resto, ir de passo com uma alta dos salários reais). O afastamento entre, por um lado, as novas necessidades suscitadas pelo desenvolvimento das forças produtivas e o impulso da própria produção capitalista e, por outra lado, a capacidade de satisfazer as necessidades por meio dos salários obtidos, tende a aumentar.

É um índice claro desta pauperização relativa o afastamento crescente entre o aumento da produtividade do trabalho a longo prazo e o aumento dos salários reais. Do princípio do século XX até ao princípio dos anos 70, a produtividade do trabalho aumentou aproximadamente 5 a 6 vezes, na indústria e na agricultura dos Estados Unidos e da Europa ocidental e central. Os salários reais dos operários não aumentaram mais que 2 a 3 vezes durante o mesmo período.


4. As leis de evolução do capitalismo


Em conseqüencia das características do seu funcionamento, o modo de produção capitalista evolui segundo certas leis de evolução (leis de desenvolvimento) que são por isso parte integrante da sua própria natureza:

a) A concentração e a centralização do capital. - Pela concorrência, os grandes peixes devoram os pequenos. As grandes empresas batem as pequenas, que dispõem de menores meios, que não podem aproveitar das vantagens da produção em grande escala, nem introduzir a técnica mais avançada e dispendiosa. Por isso, a dimensão das empresas de ponta cresce sem cessar (concentração de capital). Há um século, empresas com 500 assalariados eram exceção. Hoje, existem as que já ocupam mais de 100.000 assalariados. Ao mesmo tempo, muitas empresas batidas pela concorrência são absorvidas pelos concorrentes vencedores (centralização do capital).


b) A proletariazação progressiva da população - A centralização do capital implica que a quantidade de pequenos patrões trabalhando por sua própria conta diminua sem cessar. A fração da população laboriosa obrigada a vender a força de trabalho, para poder subsistir, cresce continuamente. Eis os números relativos a esta evolução nos Estados Unidos, que confirmam de maneira impressionante esta tendência?
Evolução da estrutura de classe nos Estados Unidos (em % de toda a população que exerce uma profissão)

Anos

Assalariados

Empresários e Independentes

1889

62

36,9

1890

65

33,8

1900

67,9

30,8

1910

71,9

26,3

1920

73,9

23,5

1930

76,9

20,3

1940

78,2

18,8

1950

79,8

17,1

1960

84,2

14

1970

89,9

8,9



Ao contrário da legenda largamente propalada, esta massa proletária se bem que fortemente estratificada, vê o seu grau de homogeneidade aumentar muito, e não decrescer. Entre um operário manual, um empregado bancário e um pequeno funcionário público, a distância é menor hoje do que era há meio século ou um século, tanto no que diz respeito ao nível de vida, como no que se refere à tendência para sindicalizar-se e entrar em greve, como ainda no que concerne ao acesso potencial à consciência anti-capitalista.

Esta proletarização progressiva da população no regime capitalista deriva particularmente da reprodução automática das relações de produção capitalistas, por efeito da repartição burguesa dos rendimentos, reprodução esta já antes referida. Que os salários sejam baixos ou altos, não servem para mais nada que não seja satisfazer as necessidades de consumo, imediatas ou diferidas, dos proletários. Estes estão incapacidados de acumular fortunas. Por outro lado, a concentração do capital obriga a despesas de instalação cada vez mais elevadas, que impedem o acesso à propriedade das grandes empresas industriais e comerciais não apenas à totalidade da classe operária mas também a imensa maioria da pequena burguesia.

c) O aumento da composição orgânica do capital O capital de cada capitalista e por conseguinte o capital de todos os capitalistas, pode ser dividido em duas partes. A primeira serve para compra de maquinas, de edifícios e matérias-primas. O seu valor mantém-se constante no decurso da produção; conserva-se simplesmente pela força de trabalho, que daquela transmite uma parte para a dos produtos que fabrica. Marx denomina-a capital constante. A segunda, serve à compra da força de trabalho, ao pagamento dos salários. Marx chama-a capital variável. É só ela que produz a mais-valia. A relação entre o capital constante e o capital variável é, a um tempo, uma relação técnica – por utilizar de maneira rentável um ou outro conjunto de máquinas, por ser necessário para isso pôr em ação uns tantos operários – e uma relação em valor: tanto de salários gastos para comprar x trabalhadores a fim de fazer funcionar w máquinas, custando y escudos e transformando por z escudos as matérias-primas. Marx designa esta dupla relação do capital constante e do capital variável, por composição orgânica do capital. Com o desenvolvimento do capital industrial esta relação tende a crescer. Uma massa crescente de matérias-primas e uma quantidade crescente (e cada vez mais complexa) de máquinas, serão postas em movimento por 1 (10, 100, 1000) trabalhadores. A uma mesma massa salarial corresponderá, tendencialmente, um valor cada vez mais elevado gasto na compra de matérias-primas, de máquinas, de energia e de instalações.

d) A baixa tendencial da taxa média de lucro - Esta lei decorre logicamente da precedente. Se a composição orgânica do capital aumenta, o lucro tenderá a baixar em relação ao capital total, visto que somente o capital variável produz a mais-valia, produz o lucro.
Fala-se, a este propósito, de uma lei tendencial e não de uma lei que se impõe de maneira tão “linear como a da concentração do capital ou a da proletarização da população ativa. De fato, existem diversos fatores que contrariam esta tendência. Dentre eles, o mais importante é o aumento da taxa de exploração dos assalariados, o aumento da taxa da mais-valia (a relação entre a massa total da mais-valia e a massa total dos salários). No entanto, é necessário constatar que a baixa tendencial da taxa média de lucro não pode ser neutralizada a longo prazo pelo crescimento da taxa de mais-valia. Desta forma, existe um limite abaixo do qual nem o salário real nem mesmo o salário relativo pode descer sem pôr em causa a produtividade social do trabalho, o rendimento da mão-de-obra, uma vez que não há nenhum limite ao crescimento da composição orgânica do capital (que pode elevar-se até ao infinito nas empresas automatizadas).

e) A socialização objetiva da produção. - No início da produção mercantil, cada empresa era uma célula independente de outra, apenas se estabelecendo relações passageiras com os fornecedores e os clientes. Quando mais o regime capitalista evolui, mais se entretecem laços de interdependência técnica e social duráveis, entre empresas e ramos de um número crescente de países e de continentes. Uma crise num setor repercute em todos os outros setores. Pela primeira vez, desde a origem do genêro humano, cria-se assim uma infra-estrutura econômica comum a todos os homens, base da sua solidariedade no mundo marxista de amanhã.



5. As contradições inerentes ao modo de produção capitalista


Na base destas leis de desenvolvimento do regime capitalista, uma série de contradições fundamentais do modo de produção em questão podem ser evidenciadas:

a) A contradição entre a organização cada vez mais e mais deliberada, e a anarquia cada vez mais pronunciada do conjunto da produção capitalista, resultante da sobrevivência da propriedade privada e da produção mercantil generalizada.

b) A contradição entre a socialização objetiva da produção e a manutenção da apropriação privada dos produtos, do lucro e dos meios de produção. É na altura em que a interdependência das empresas, dos ramos, dos países e dos continentes se evidencia a mais avançada, que o fato de todo este sistema apenas funcionar segundo as ordens e os cálculos de lucro de um punhado de magnatas capitalistas, revela plenamente o seu caráter, a um tempo, economicamente absurdo e socialmente odioso.

c) A contradição entre a tendência do regime capitalista para desenvolver as forças produtivas de maneira ilimitada e os limites estreitos que o mesmo deve obrigatoriamente impor ao consumo individual e social da massa de trabalhadores, visto que o fim da produção permanece sendo o máximo de mais-valia, o que forçosamente implica limitação dos salários.

d) A contradição entre um impulso enorme da ciência e da técnica – com o seu potencial de emancipação do homem – e a sujeição dessas forças produtivas potenciais aos imperativos de venda de mercadorias e do enriquecimento dos capitalistas, o que periodicamente transforma essas forças produtivas em forças de destruição (especialmente no caso das crises econômicas, das guerras, do advento dos regimes de ditadura fascistas sangrenta, mas também pelas ameaças que pesam sobre o meio ambiente natural do homem) confrontando assim a humanidade com o dilema: socialismo ou barbárie.

e) O desenvolvimento inevitável da luta de classe entre Capital e o Trabalho, que mina periodicamente condições normais de reprodução da sociedade burguesa.


6. As crises periódicas de sobre-produção


Todas as contradições inerentes ao modo de produção capitalista culminam periodicamente em crises de sobre-produção. A tendência para as crises periódicas de sobre-produção segue uma marcha cíclica da produção, que atravessa sucessivamente as etapas de reanimação econômica, de alta conjuntura, de “sobre-aquecimento”, de crise e de depressão, todas inerentes a este modo de produção e só a ele. a amplitude destas flutuações pode variar de época para época, mas a sua realidade é inevitável no regime capitalista.

Houve crises econômicas (no sentido de interrupção da produção normal) em sociedades pré-capitalistas; existem também na sociedade pós-capitalista. Mas nem num caso nem no outro se trata de crises de sobre-produção de mercadorias e de capitais, antes de crises de sub-produção de valor de uso. O que caracteriza a crise de sobre-produção capitalista é que os rendimentos baixam, o desemprego cresce, a miséria (e amiúde a fome) instalam-se, não porque a produção física baixe, mas, ao contrário, porque aumenta de maneira excessiva em relação ao poder de compra disponível. É porque os produtos são economicamente impossíveis de vender que a atividade econômica baixa e não porque são fisicamente escassos.

Na base das crises periódicas de sobre-produção estão, ao mesmo tempo, a baixa da taxa média de lucro, a anarquia da produção capitalista e a tendência a desenvolver a produção sem ter em conta os limites que o modo de distribuição burguês impõe ao consumo das massas laboriosas. Em conseqüencia da baixa da taxa de lucro, uma parte crescente dos capitais já não pode obter um lucro suficiente. Os investimentos reduzem-se. O desemprego cresce. A falta de venda de um número crescente de mercadorias combina-se com este fator para precipitar a queda geral do emprego, dos rendimentos, do poder de compra e da atividade econômica no seu conjunto.

A crise de sobre-produção é simultaneamente, o produto destes fatores e o meio de que dispõe o regime capitalista para lhe neutralizar parcialmente os efeitos. A crise provoca a baixa do valor da mercadoria e a falência de numerosas empresas. O capital total sofre pois uma redução em valor. Isso permite uma recuperação da taxa de lucro e da atividade acumulativa. O desemprego maciço permite aumentar a taxa de exploração da mão-de-obra, o que conduz ao mesmo resultado.

A crise econômica acentua as contradições sociais e pode desembocar numa crise social e política explosiva. Assinala que o regime capitalista está maduro para ser substituído por um regime mais eficaz e mais humano, que deixe de dissipar os recursos humanos e materiais. Mas a crise não provoca automaticamente a derrocada deste regime. Deve ser derrubado pela ação consciente da classe revolucionária que ele fez nascer: a classe operária.



Bibliografia


Karl Marx – Salário, preço e lucro

Marx e Engels – O Manifesto comunista

Fr. Engels – Anti-Düring (2º parte)

Karl Kautsky – A doutrina econômica de Karl Marx

Rosa Luxemburgo – Intrudução à economia política

Ernest Mandel – Iniciação à teoria economica marxista

    - Tratado de economia marxista

Ernest Mandel e George Novack – A teoria marxista da alienação

Pierre Salama e J. Valier – Intrudução à economia política

domingo, 22 de junho de 2008

A Dialética Materialista - Ernest Mandel

Extraído do livro Introdução ao Marxismo. Traduzido por Gustavo Henrique Lopes Machado, a partir do texto em espanhol disponível em: http://www.ernestmandel.org (grifo meu)


1. O Movimento Universal

Da sociedade primitiva sem classes, a humanidade passou a sociedade dividida em classes; esta da lugar a sociedade socialista sem classes do futuro. Os modos de produção sucedem-se. Inclusive antes de desaparecerem, estão submetidos a constantes mudanças. A classe dominante de hoje é muito diferente da classe proprietária de escravos que dominava o Império romano. O proletariado contemporâneo é por sua vez diferente do servo medieval. Entre um pequeno fabricante do inicio do século XIX, e o senhor Rockefeller o chefe do truste Rhóne-Poulenc de hoje, há todo um mundo de diferenças. Tudo muda, tudo está em perpetuo movimento.

Este movimento universal podemos encontra-lo em todos os níveis da realidade, e não somente na história das sociedades humanas. Os indivíduos mudam, submetidos a um destino inexorável. Nascem, crescem, tornam-se adultos, depois começam a envelhecer e finalmente morrem. Este destino aflinge tantos as espécies vivas como os indivíduos. A espécie humana não existiu sempre. Espécies que povoaram outrora nosso planeta como os répteis gigantes da época terciária, desapareceram. Outras espécies de animais e vegetais desaparecem atualmente diante de nossos olhos, em parte resultado de perturbações anárquicas que o modo de produção capitalista tem provocado na ecologia terrestre.

Nosso planeta, por sua vez, não tem vida eterna e não existiu sempre. A segunda lei da termodinâmica, a lei sobre a perda de energia, condena-o inexoravelmente a desaparecer um dia. Nasceu de uma constelação interplanetária que não é nada mais que uma das inumeráveis constelações análogas do universo.

O movimento, a evolução universal, governa toda existência. Esta é material. E a base da matéria são os átomos que por sua vez são compostos por partículas ainda mais pequenas. A combinação de átomos constituem as moléculas, que formam entre elas os diferentes elementos básicos da crosta terrestre e da atmosfera. O oxigênio e o hidrogênio, em uma combinação determinada – H2O - constituem a água. Outra moléculas formam as bases sobre as quais se estabelecem a formação dos metais, os ácidos, as bases.

A evolução da matéria inorgânica deu lugar, deste modo, ao nascimento da matéria orgânica, quando se deram as condições determinadas. Os aminoácidos formam as proteínas. Isto desencadeou a evolução das espécies vivas, vegetais e animais. No curso desta evolução nascem os seres vivos superiores, os mamíferos, dos que fazem parte, os símios, de onde nasceria a espécie humana.


2. A Dialética, lógica do movimento


Posto que o movimento universal caracteriza toda a existência, pode-se dizer que existem traços comuns entre o movimento da matéria (da natureza), o movimento da sociedade humana, e o movimento de nossos conhecimentos (da ciência, do espírito humano). Assim sendo, a dialética de Marx e Engels pretende reunir estes traços comuns do movimento universal.

A dialética, a lógica do movimento, se manifesta em três níveis:

  • A dialética da natureza, dialética completamente objetiva, ou seja, independente de projetos, das intenções ou das motivações do homem e que não afeta diretamente a história dos homens. Isto não exclui que com o desenvolvimento das forças produtivas, a humanidade possa utilizar leis da natureza para remodelar seu meio natural.

  • A dialética da história, dialética amplamente objetiva em princípio, mas que contem uma mudança revolucionária segundo a execução de um projeto preestabelecido, embora a elaboração e realização deste projeto está ligada a condições materiais, objetivas, preexistentes, independentes da vontade dos homens;

  • A dialética do conhecimento (do pensamento humano) que é a dialética objeto-sujeito por excelência, uma interação constante entre os objetos a conhecer (os objetos de cada uma das ciências) e a ação dos sujeitos que tratam de conhece-los, e que estão condicionados por sua situação social, os meios de investigação herdados e a transformação destes meios pela ação social cotidiana, etc.

Na medida que o descobrimento da dialética objetiva é ela propria uma fase na história do conhecimento e do pensamento humano (a dialética, tal qual concebemos hoje, foi elaborada por filósofos gregos como Heráclito, posteriormente retomada por Spinosa e aperfeiçoada por Hegel) poder-se-ia cair na tentação de referir toda dialética à dialética objeto-sujeito. Isso seria um erro. É claro que tudo que sabemos, compreendido o que concerne à dialética da natureza, sabemos por intermédio de nosso cérebro e de nossas idéias, de nossa práxis social, determinada por nossas condições de existência social. Este fato evidente, entretanto, não impede que possamos saber – e verificar e ver confirmado por múltiplas provas práticas – que a vida é mais velha que o pensamento humano; que o universo é mais velho que a terra; que todo este movimento é independente da ação e da existência do homem; que o mesmo pensamento humano é produto deste movimento. É este o sentido preciso que tem a noção: “dialética materialista objetiva”.

Ou melhor, na medida em que nossos conhecimentos se aperfeiçoam e tornam-se cada vez mais científicos, na medida em que se aproximam da realidade (uma identidade total do conhecimento e da realidade é impossível, já que a última encontra-se em contínua mudança) seu passo seguirá cada vez mais o movimento contínuo da matéria. A dialética do nosso pensamento científico, a dialética materialista, pode apreender o real justamente porque o seu próprio movimento corresponde cada vez mais ao movimento da matéria, graças à prática social que expressa uma dominação crescente das forças da natureza, uma vez que as leis do conhecimento e do aprendizado espiritual do real correspondem cada vez mais às leis que governam o movimento universal da realidade objetiva.

É necessário explicitar uma diferença importante entre o desenvolvimento das ciências naturais e o desenvolvimento das ciências sociais ( dos conhecimentos que se referem a tudo que tem a vida social como objeto de investigação, compreendendo neles nosso conhecimento sobre as origens e a dialética do desenvolvimento de todas as ciências , incluídas as ciências naturais). O desenvolvimento das ciências naturais está também determinado social e historicamente.

Os homens, incluindo os gênios mais intrépidos, não podem considerar e resolver nada mais que um certo número de problemas científicos em cada época. São condicionados pelas idéias e educação recebidas. Os novos problemas nascem neste contexto, relacionados às transformações materiais, especialmente as do trabalho, dos instrumentos de trabalho, dos instrumentos de investigação científica, etc. Mas trata-se de uma determinação indireta, não mediatizada de modo imediato por interesses materiais de classe. Não pode-se contrastar teorias científicas que assentem sobre provas experimentais referindo-se à origem social ou posições políticas dos sábios que as formularam. Não é possível contrastá-las senão em relação a outras teorias científicas experimentalmente comprovadas e que melhor se aproximam a uma realidade complexa.

É diferente o que ocorre com as ciências sociais. Estas tocam de muito mais perto a organização e estrutura da sociedade de classes. O peso das idéias recebidas e herdadas é tanto maior quando estas não são mais do que expressão, no plano ideológico, de interesses, seja da conservação social, seja da revolução social, interesses que se referem, em definitivo, a posições de classes antagônicas.

Sem querer transformar os filósofos, os historiadores, os economistas, os sociólogos, os antropólogos, em “agentes” deliberados desta ou daquela classe social, empenhados em uma “conspiração” seja para defender a ordem estabelecida ou para “organizar a subversão”, é evidente que a determinação social do desenvolvimento das ciências sociais é muito mais direta e imediata que o das ciências naturais. No mais, o objeto das ciências sociais, pela força das coisas, está imediatamente determinado pela estrutura e pela história das sociedades a que se referem os fatos, o que não sucede com as ciências naturais.


3. Dialética e Lógica Formal


A dialética, a lógica do movimento, se distingue da lógica formal ou a lógica estática. A lógica formal assenta em três leis fundamentais:

  1. A lei da identidade: “A” é igual a “A”; uma coisa permanece igual a si mesma.

  2. Lei da contradição: “A” é diferente de “não-A”; “A” não pode ser igual a “não-A”.

  3. Lei do terceiro excluído: ou “A” ou “não-A”; nada pode ser nem “A” e nem “não-A”.

Um momento de reflexão permite concluir que o que caracteriza a lógica formal é o intento de deter o movimento, a mudança. Todas as leis que acabamos de enumerar são verdadeiras, desde que se faça abstração do movimento. “A” permanece igual a si mesmo e portanto não muda. “A” é diferente de “não-A” e portanto não se transforma em seu contrário. Existe ou “A” ou “não-A”, portanto não tem um movimento que combina “A” com “não-A” , etc. Ante fatos como a transformação da lagarta em borboleta e do adolescente em adulto, a lei da identidade revela-se insuficiente.

O fato de fazer uma abstração do movimento, da transformação, das mudanças é util dependendo do pondo de vista. Primeiro para poder estudar os fenômenos de maneira isolada e continua, o que permite sem dúvida alguma aprofundar no estudo deste fenômenos. Depois, do ponto de vista prático, quando as mudanças que se produzem são de natureza infinitesimal e podem ser desconsideradas.

Se compro 1 kilo de açúcar empacotado em um supermercado, a igualdade estabelecida pela balança, um kilo de açúcar = um kilo, é válida para mim, tendo em conta o fim prático da compra. Porém, para poder adoçar o meu café, pouco importa se o peso real de tal pacote é de 1 kilo ou 999 gramas. Diferenças deste tipo podem ser desconsideradas do ponto de vista prático.

Por isso, a lógica formal continua válida tanto na teoria quanto na prática. Por isso, a dialética materialista não recusa a lógica formal, senão que a integra, a considera como instrumento de analise e conhecimento válido – mas validade em condições que seus limites sejam estabelecidos: é inaplicável a fenômenos de movimento e processos de mudança. Na presença de tais fenômenos, o o recurso são as categorias da dialética, a lógica do movimento, categorias diferentes das que a lógica formal, nos coloca.


4. O movimento, função da contradição

O movimento é, por sua natureza, uma passagem, uma ultrapassagem. A partir de um ponto de vista estático, um objeto não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo (mesmo sendo um movimento infinitamente curto). Partindo de um ponto de vista dinâmico, o movimento de um objeto é precisamente seu passo de um ponto a outro.

A dialética estuda as leis do movimento e as formas que adota. Examinaremos abaixo dois aspectos: o movimento, função da contradição; o movimento, função da totalidade.

Todo movimento é sempre causado. A causalidade é uma das categorias fundamentais da dialética, como é em qualquer ciência. Negar a causalidade é, em definitivo, negar a possibilidade do conhecimento.

A causa última de todo movimento, de toda mudança são as contradições internas do objeto que muda. Todo objeto, todo fenômeno, muda, modifica-se, transforma-se sob o efeito de suas contradições internas, e das contradições que surgem com suas relações com outros fenômenos (contradições) do sistemas de objetos. Neste sentido chamamos com freqüência, e a justo título, a dialética de ciência das contradições. Lógica do movimento e lógica das contradições são definições praticamente idênticas de dialética.

Na análise de qualquer objeto, de qualquer fenômeno ou de qualquer conjunto de fenômenos deve permitir, em conseqüência, determinar quais são os elementos que constituem a contradição, a dinâmica desencadeada por estas contradições.

Assim nós temos indicado até que ponto a luta de classes resultante da existência de classes antagônicas, governa o movimento da história das sociedades divididas em classes. De um modo mais amplo , englobando de uma vez a sociedade primitiva sem classes, a sociedade dividida em classes e a sociedade socialista futura, podemos dizer que as contradições entre o nível alcançado, em certas épocas, pelo desenvolvimento das forças produtivas (o nível de dominação do homem sobre a natureza) e as relações de produção nascidas, em última analise, de níveis de desenvolvimento anterior a estas mesmas forças produtivas, governa toda evolução da humanidade.

Simplificando, e esquematizando de maneira excessiva, podemos indicar as seguintes leis do movimento, ou as formas principais que adota, e que proporcionam categorias fundamentais da lógica dialética, ou a lógica do movimento:

  1. A unidade, a interpenetração e luta de contrários: Fala-se sobre movimento, sobre contradição. Por contradição entende-se a coexistência de elementos opostos uns com os outros, que leva a coexistência e luta entre este elementos. Com homogeneidade integral, na ausência total de elementos que se oponham uns aos outros, não há contradição, não há movimento, não há vida, não há existência. A existência é constituída pela unidade, interpenetração e luta de contrários, em outra palavras, pelo movimento. A existência destes elementos contraditórios incluído sua coexistência em uma totalidade estruturada. Neste conjunto cada um destes elementos tem seu lugar, e a luta entres estes elementos tente a romper este conjunto. O capitalismo não é possível sem a existência simultânea entre capital e trabalho assalariado, da burguesia e do proletariado. Uma coisa não pode existir sem a outra. Mas isto não significa em absoluto que uma coisa não possa rechaçar a outra, e que o proletariado não trate de suprimir o capital e o regime salarial, tentando superar o capitalismo.

  2. Mudanças quantitativas e mudanças qualitativas: O movimento toma a forma de mudanças mantendo as estruturas (a qualidade) dos fenômenos. Neste caso dizemos que as mudanças qualitativas são pequenas. A partir de um determinado “limite”, a mudança quantitativa se transforma em mudança qualitativa. Neste “limite” a mudança além de ser gradual, se efetua por um “salto”, uma nova qualidade aparece. Uma pequena vila pode transformar-se gradualmente em uma grande cidade, ou em um povoado, ou ainda em uma pequena cidade. Mas entre um povoado em uma vila não existe apenas diferenças de qualidade (população, espaço construído etc...). Existe também diferenças de qualidade. A atividade profissional da maioria dos habitantes se modificou. No lugar de agricultores são operários e empregados que prevalecem. Nasceu um novo meio social, com novos problemas sociais que não existiam em absoluto no povoado; por exemplo, os transportes comunitários. Aparecem novas classes sociais, com novas contradições entre elas.

  3. Negação da negação e superação: Todo movimento tende a produzir a negação de alguns de seus fenômenos, a transformar os objetos em seu contrário. A vida produz a morte. O calor não se compreende senão em função do frio. A sociedade sem classes produz a sociedade dividida em classes, que por sua vez produz uma nova sociedade sem classes. Mas é necessário distinguir a negação pura e a negação da negação, ou seja, a superação da contradição há um nível superior, que implica por sua vez em uma negação, uma conservação e uma elevação a um nível superior. A sociedade primitiva sem classes tinha um alto nível de coesão interna, precisamente em função de sua pobreza, de sua subordinação quase total as forças da natureza que consistia em sua contradição. Na sociedade socialista futura, esta negação será superada. Uma forma ainda mais elevada de domínio do homem sobre a natureza se combinará com uma forma igualmente elevada de coesão social e de cooperação, graças a então existência de uma sociedade sem classes.


5. Alguns problemas suplementares da dialética do conhecimento

  1. Conteúdo e forma: Todo movimento toma forçosamente formas sucessivas as quais podem variar segundo um grande número de circunstanciais. Não pode desfazer-se automaticamente de qualquer maneira que tenha sido previamente adotada. Esta resistência deve romperse. A forma deve corresponder ao conteúdo, e corresponde até certo ponto. A sua natureza mais rígida opõe-se a tuda a correspondência absoluta e permanente a um moviemnto que é oposto a tudo que é rígido.

    Um bom exemplo desta relação contraditória entre a forma e o conteúdo é o que oferece a dialética entre as relações de produção e as forças produtivas.

    Para poderem desenvolver-se, as forças produtivas devem necessariamente inserir-se em certas formas de organização social humanas: as relações de produção escravagistas, feudais, capitalistas, etc. Desde logo, cada nova forma de organização do trabalho e da produção, superiores à forma anterior do ponto de vista da produtividade média do trabalho, estimula a expansão da forças produtivas. Mas, a partir de certo ponto, essa forma torna-se por sua vez um entrava a um progresso ulterior das forças produtivas. Deve, pois, ser destruída e substituída por um novo conjunto de relações de produção superiores, a fim de permitir um novo “salto a frente” do progresso material e intelectual da humanidade.

  2. Causas e efeitos: Todo movimento se apresenta como uma cadeia que se entrelaçam causas e efeitos. A primeira vista, esta interações parecem fechadas, definidas. A causa do regime salarial é a apropriação privada dos meios de produção por uma classe social. Mas esse monopólio mantem-se como um efeito do regime salarial. Uma vez que os salários não permitem a aquisição de meios de produção por parte dos operários. O regime salarial produz a mais valia, apropriada pelo capitalista, transformando em propriedade burguesa dos meios de produção suplementares. E assim continuamente.

    Para não nos perdermos, e caiemos em um ecletismo estéril, é necessário aplicarmos um método genérico, ou seja, buscar as origens do movimento em questão. Veremos deste modo, que o capital e a mais-valia são anteriores ao regime salarial, que nasceram fora da esfera de produção; que houve uma acumulação primitiva de capital, que rompe o círculo aparentemente fechado das causas e efeitos regime salarial – capital – regime salarial.

  3. O geral e o particular: Cada movimento, cada fenômeno possuem características próprias, particulares. Todavia apesar destas particularidades, não podemos compreende-los ou explica-los sem levar em conta um quadro mais amplo, mais geral. O capitalismo britânico do século XIX não é igual ao capitalismo britânico da segunda metade do século XX, nem ao capitalismo americano de hoje em dia. Cada um deles representa uma formação social particular, com uma inserção particular na economia mundial que tanto mudou neste espaço de um século. Porém, nem o capitalismo britânico da época victoriana, nem o capitalismo britânico decadente de hoje nem o capitalismo americano contemporâneo podem ser compreendidos fora das leis gerais do desenvolvimento que marcam capitalismo. A dialética do “geral” e do “particular” não se conforma em combinar analises do “geral” e o “particular”. Também se esforça em explicar o particular em função das leis gerais, em modificar as leis gerais em função de um certo número de fatores particulares.

  4. O relativo e o absoluto: Compreender o movimento, a mudança universal, é compreender a existência de uma infinidade de situações transitórias. “O movimento é a unidade da continuidade e da descontinuidade” (Hegel). Por isso, uma das características fundamentais da dialética é a compreensão da relatividade das coisas, é a recusa a erigir barreiras absolutas entre as categorias, é a investigação das mediações entre os elementos opostos. A evolução universal implica a existência de fenômenos híbridos, situações e casos de “transição” entre a vida e a morte, entre as espécies vegetais e animais, entre as aves e os mamíferos, entre os macacos e o homem – que tornam relativas as distinções entre estas categorias.

    Contudo, a dialética tem sido muitas vezes utilizada de maneira subjetivista, como “arte de confundir” ou “arte defender paradoxos”. A diferença entre a dialética científica, instrumento de conhecimento real, e a dialética subjetivistica ou sofística, consiste particularmente em que a relatividade dos fenômenos e das categorias se torna, por sua vez, qualquer coisa de absoluto para os sofistas. Esquecem estes (ou fingem esquecer) que a relatividade das categorias é apenas uma relatividade parcial e não uma relatividade absoluta, e que é preciso por sua vez, relativizar a relatividade. A diferença “absoluta” entre a vida e a morte é contestada pela existência de situações transitórias, diz a dialética científica. Tudo é relativo, logo a diferença entre a vida e a morte não passa de muito relativa quando não inexistente, prossegue o sofista. Não, replica o dialético: há qualquer coisa de absolut e não somente de relativo na diferença entre vida e a morte. Do fato incontestável de haver múltiplas etapas intermediárias, não se pode tirar a bsurda conclusão que consiste emnegar que a morte permanece a negação da vida.


6. O movimento, função da totalidade – o abstrato e o concreto

Vimos que todo o movimento é sempre função de contradições internas do fenômeno ou do conjunto de fenômenos considerados. Cada fenômeno – seja uma célula vivia, um meio natural onde diversas espécies coabitem, uma sociedade humana, um sistema interplanetário ou um átomo – comporta, no entanto, uma infinidade de aspectos, de componentes, de elementos constitutivos. Estes elementos não se aglomeram uns com os outros de maneira eventual e constatemente modificada. Formam conjuntos estruturados, uma totalidade construída seguindo uma lógica determinada. Assim, no seio da sociedade burguesa, as relações mútuas e antagônicas entre o Capital e o Trabalho, de modo nenhum são eventuais. São determinadas pela obrigação econômica em que se encontra o assalariado de vender a sua força de trabalho ao capitalista, detentor dos meios de produção e de subsisitência, sob forma de mercadorias. Relações mútuas qualitativamente diferente daquelas, produziram outras sociedades fundadas sobre a exploração; mas não se tratava de sociedades capitalistas.

A dialética materialista deve pois abordar cada fenômeno, cada objeto de análise e de conhecimento, não apenas para disso determinar as contradições internas que determinam a sua evolução (as suas “leis de desenvolvimento”). Deve igualmente esforçar-se por abordar o fenômeno de maneira global, por evitar toda a aproximação unilateral, que isola de maneira arbitrária um ou outro aspecto particular da realidade, suprime, não menos arbitrariamente, um ou outro aspecto, e é, por esse fato, incapaz de apreender as contradições no seu conjunto e, logo, de compreender o movimento na sua totalidade.

Esta capacidade da dialética para integrar na sua análise o método “universalista” (Allseitigkeit, diz lenin em alemão e em russo), é um dos seus méritos principais. De resto, há praticamente sinonímia entre “lógica do movimento”, “lógica da contradição”, “lógica da totalidade”. É fechando os olhos perante certos elementos contraditórios do real, que aparecem como “tornando demaisado complexa” a análise, que alguns pensadores não-dialéticos vão do total ao parcial, expelindo, a um tempo, a contradição e a totalidade.

Evidentemente que é inevitável uma certa simplificação, uma certa “redução” da “totalidade” ao seus elementos constitutivos decisivos, como primeira tentativa de aproximação de toda a análise científica. Esta é, à partida, necessariamente abstrata. Mas é necessário ter presente que este inevitável processo de abstração empobrece o real; quando mais se aproxima do real. mais se aproxima de uma totalidade rica de uma infinidade de aspectos, que a análise científica e o conhecimento devem explicar, ao mesmo tempo, nas suas relações recíprocas e nas relações contraditórias: “A verdade é sempre concreta” (Lenin). “O verdadeiro é a totalidade” (Hegel).


7. Teoria e prática

A dialética é uma teoria, um instrumento do conhecimento. Historicamente, pode-se definir a dialética materialista como a teroria do conhecimento do proletariado ( o que em nada diminui o seu caráter objetivamente científico, que necessita uma verificação constante igualmente no terreno científico).

Toda a teoria do conhecimento é submetida a uma prova implcável: a prova da prática.

Em última análise, o próprio conhecimento não é um fenômeno separado da vida e dos interesses dos homens. É uma arma para a conservação da espécie, uma arma que permite aos homens dominar as forças da natureza, uma arma para compreender (mais tarde) as origens da “questão social” e os meios de as resolver. O conhecimento nasceu pois da prática social do homem; tem por função aperfeiçoar asta prática. A sua eficácia mede-se, em última análise, pelos seus efeitos práticos. A verificação prática permanece a melhor arma de última instâancia contra os sofistas e os céticos.

Isto não quer dizer que a teoria se dissolve num pragmatismo inepto, de vistas curtas. Muito freqüentemente, a eficácia prática, o caráter “verdadeiro” ou “falso” de uma hipótese científica não aparecem imediatamente. É preciso tempo, um certo recuo, novas experiências, uma série de sucessiva “provas da prática”, antes que o caráter científico de uma teoria se imponha efetivamente na prática. Prisioneiros das aparências de uma visão parcial e superficial do real, de uma visão temporária do processo histórico (que é, por seu turno, determinado em última instância pela ideologia de classes ou camadas sociais não revolucionárias), numerosos homens e mulheres podem duvidar, apesar das suas melhores intenções e convicções socialistas, uns do caráter burguês da democracia parlamentar, outros da necessidade da ditadura do proletariado, outros ainda da necessidade da vitória da revolução internacional para acabar a construção de uma sociedade realmente socialista na URSS, ou não importa qual outro país.

Mas no fim das contas, os fatos acabam por confirmar qual teoria foi realmente científica, quer dizer, capaz de apreender o real em todas as suas contradições, todo o seu movimento de conjunto, e quais hipóteses se encontram erradas, ou seja, capazes de apreender somente partes do real, isolando-os da totalidade estruturada, e por isso incapazes de apreender o movimento a longo prazo na sua dialética fundamental. A vitória da revolução socialista mundial, o advento de uma sociedade sem classes, confirmará na prática a validade da teoria marxista revolucionária.


Bibliografia

Fr. Engels – Ludwing Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã.

    - Anti-Dühring – 1º parte.

Henri Lefebvre – Lógica formal, lógica dialética.

G. Plekanov – Questões fundamentais do marxismo

George Novack – Uma introdução a lógica do marxismo.

N. Boukharine – O materialismo histórico.

G. Luckács – História e consciência de classe (2 primeiros capítulos).