terça-feira, 31 de agosto de 2010

Feminismo, Gênero e Revolução - Lelita Oliveira Benoit

Texto extraído da revista Crítica Marxista, disponível em: http://www.unicamp.br/cemarx
/criticamarxista/05lelita.pdf
. A autora é Doutora em Filosofia Política pela USP e pesquisadora da Fapesp.

"De mãos dadas com o homem de sua classe, a mulher proletária luta contra a sociedade capitalista."
Clara Zetkin (1)

A partir dos anos 80, os chamados "estudos de gênero" revolucionaram todo o campo conceitual em que se situava a questão do feminismo. O próprio conceito de "feminino" - ou de "feminilidade" - passou por uma radical revis ão, particularmente, no sentido de superar e erradicar os referenciais "biológico-sexuais" que envolviam a temática feminista. Procurou-se, desde então, circunscrever as expressões culturais, sociais, psicológicas do feminino e reconstruir o conceito de feminino no campo das suas significações simbólicas; nesse sentido, passou-se a investigar, nos diversos domínios da cultura, da sociedade e da história, as chamadas "relações de gênero" entre mulheres e homens (2).

A partir destas séries de pesquisas acadêmicas, ao menos à primeira vista, parece ter havido um avanço teórico significativo no domínio geral antes ocupado pelo chamado "feminismo". Sobretudo, considera-se importante a superação de um suposto reducionismo biológico que sobredeterminava as diversas categorias da anterior reflexão feminista: conceitos como "luta entre os sexos", "diferenças sexuais entre mulher-homem", entre outras. O pretenso progresso teórico em curso foi bem sintetizado pela historiadora Joan Scott: "Na sua utilização recente, `gênero´ parece primeiro ter feito aparição entre as feministas americanas que queriam insistir sobre o caráter fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. A palavra indicava a rejeição do determinismo biológico implícito no uso dos termos como `sexo´ e `diferença sexual´. O gênero enfatiza o aspecto relacional das definições normativas de feminidade." (3)

Diante disto, pretendemos refletir especificamente sobre a seguinte questão: os chamados "estudos de gênero", enraizados na tese da desnaturalização do social, podem, efetivamente, em algum sentido, contribuir e harmonizarse com a teoria marxista clássica?


1. Feminismo

Reflitamos, inicialmente, sobre o discurso feminista contra o qual se voltam os estudos de gênero. As categorias biológico-deterministas ("opressão sexual", "luta de sexos", "classes sexuais") predominaram no discurso feminista que, durante os anos posteriores às barricadas de 68, autodenominava-se "revolucionário e marxista"(4).

Exemplo significativo do discurso feminista daqueles anos encontra-se em Feminisno e Revolução. Nesta obra, Sheila Rowbotham sustenta a necessidade de uma revisão feminista do marxismo, apoiando-se em categorias que são evidentemente a-históricas e marcadas por um recorte biológico. Argumentava a autora que Marx e também, em certo sentido, a tradição marxista não teriam compreendido a especificidade da opressão feminina. Sendo historicamente anterior à sociedade capitalista, enraizada na própria natureza biológica, a opressão sexual incidiria, com a mesma intensidade, sobre as mulheres de todas as classes sociais. Em outras palavras, para a autora, seria necessário repensar o conceito marxista da história como luta de classes completando-o com o da "luta entre os sexos".

Segundo Rowbotham, inquietações revolucionárias fundamentais poderiam originar-se do entrecruzamento sexo/classe: "Estando dado que a submissão da mulher precedeu à sociedade capitalista, podemos esperar que uma revolução, que transforme os fundamentos econômicos da sociedade no sentido do socialismo, afetará o papel sexual da mulher?"(5). Concluía Rowbotham que, a exemplo da União Soviética e de outros países do Leste Europeu, a transformação da propriedade privada capitalista em propriedade socialista não implicaria, necessariamente, o fim da opressão de sexo. Nesse mesmo sentido, naqueles anos, elaborou-se o conceito de "classes sexuais"(6). Contra Marx, resgatandose, em certo sentido, as análises de Engels de inspiração antropológica, sobretudo de A origem da família, da propriedade privada e do Estado, procuravase entrecruzar a questão da dominação econômica entre classes à questão mais universal da mulher, como "sexo oprimido"(7).

No mesmo período, a teoria das novas vanguardas era elaborada no interior de partidos ditos "marxistas". Lado a lado à classe operária, pensava-se então nas novas vanguardas: a juventude, as chamadas "minorias" raciais, sexuais, etc., assim como a "vanguarda feminista". Mary-Alice Waters, feminista e marxista, justificava o pensamento da nova vanguarda feminista pós-68, com as seguintes reflexões: "O novo ascenso das lutas das mulheres em escala internacional e o surgimento de um forte movimento de liberação da mulher (...) aumentam a força política da classe trabalhadora e tornam mais clara a possibilidade de que a revolução possa ser levada adiante, até a sua tarefa de reconstrução socialista. O surgimento do movimento de liberação da mulher é uma garantia adicional contra a degeneração burocrática de futuras revoluções" (8).

No Secretariado Unificado da IV Internacional, e particularmente na sua seção americana, o Socialist Workers Party, a organização e luta pelo socialismo deveria ter como eixo, ao mesmo tempo, a questão de classe e a questão de sexo, como atestam diversos documentos daquela época: "A verdade é que as mulheres estão, ao mesmo tempo, unidas pela opressão sexista e divididas pela sociedade de classes. Há [contudo] uma base objetiva sobre a qual é possível unificar a luta das mulheres de diferentes classes e nacionalidades: todas as mulheres são oprimidas enquanto mulheres [sic] pelo capitalismo"(9).


2. Gênero

Desde os anos 80, essas posições teóricas feministas foram sendo, pouco a pouco, abandonadas. As abordagens chamadas "estudos de gênero" - nas quais se fundamenta o discurso atual sobre o feminino - vêm apontando a fragilidade de conceitos tais como opressão sexual, guerra dos sexos, classe sexual, papéis sexuais. Contra o suposto "engano biológico-determinista" da teoria feminista anterior, mas também, em certos casos, para "evitar a redução ao determinismo econômico" do marxismo, defende-se agora que sejam feitas pesquisas específicas sobre o feminino, reconstruindo este objeto a partir de uma multiplicidade de níveis e perspectivas. Deve-se levar em conta os aspectos mais diversos: culturais, literários, sociais, históricos, psicológicos, etc.(10) Além disso, recomenda-se que não se privilegie, como fundamento da opressão feminina, qualquer "causalidade única" (11).

Apesar da multiplicidade dos enfoques disciplinares, "gênero" pode ser entendido, contudo, como o nome de um certo modo ou método de conhecer o "feminino" a partir das significações construídas, de modo relacional, por mulheres e homens. As relações de gênero, sustentam os estudos atuais, devem ser apreendidas ali onde se desenvolve o simbólico, ou seja, nas definições ou imagens do feminino (e do masculino). Trata-se de estudar as significa ções do feminino, ou, nas palavras de Joan Scott: "o aspecto relacional das definições normativas de feminidade".

Se parte do discurso feminista pós-68, de maneira confusa, procurava apoiarse basicamente ainda na teoria marxista, agora, este novo discurso, com o conceito relacional-cultural de gênero, parece possuir outros referenciais teóricos. As categorias "gênero", "relação de gênero" e "feminino", como entes construídos culturalmente, isto é, como elementos simbólicos, parecem nos remeter ao corpus teórico da sociologia da cultura. Em Economia e sociedade, Max Weber desenvolve certas matrizes conceituais que, de certo modo, são reativadas, de maneira evidente, na categoria "gênero", tal como é utilizada pelo discurso atual sobre o feminino. Designamos por "relação social" - escreve Weber - "o comportamento de diversos indivíduos em tanto que, por seu conteúdo significativo [Sinngehalt], o comportamento de uns se regulamenta pelo de outros [auf-einander gegenseitig eingestellt] e se orienta por eles"(12). Prossegue Weber explicando que o "conteúdo significativo" da relação pode ser "luta, hostilidade, amor sexual, amizade, piedade, troca comercial, etc.".(13)

Como o paradigma weberiano (14) de "relação social", a categoria "gênero" delimita o estudo da questão da desigualdade feminina às significações que são construídas nas relações entre indivíduos, especificamente, entre "mulheres" e "homens". Além do mais, como se obedecessem rigorosamente aos preceitos epistemológico-weberianos, as atuais investigadoras do feminino evitam pensar o conceito de relações de gênero como se este fosse uma entidade realmente existente ou "estrutura coisificada"(15). À semelhança dos paradigmas ou "tipos ideais" weberianos, gênero é o nome de uma categoria do entendimento, uma espécie de abstração sem maior realidade ontológica. É nesta abstração que as pesquisas atuais se apóiam para apreender e descrever aspectos ou significações parciais das relações específicas entre mulheres e homens.

Ainda no corpus teórico da sociologia da cultura, podemos demarcar proximidades do conceito de gênero com certas categorias simmelianas, em particular, nas chamadas de "formas de associação". "Associação" (Vergesellschaftung), para Simmel, é uma espécie de síntese frágil de tendências opostas, como ele próprio explica: "As relações sociológicas são condicionadas de modo absolutamente dualista: a união, a harmonia, a cooperação, que valem enquanto tais como forças socializantes, devem ser atravessadas pela distância, a concorr ência, a repulsão, para dar lugar às configurações reais da sociedade (...)" (16). É preciso ainda que os indivíduos em interação "uns com os outros, para e contra os outros", formem de alguma maneira uma "unidade", uma "sociedade ", e que sejam conscientes disto. Em certo sentido, segundo Simmel, a sociedade seria a "unidade objetiva" das consciências subjetivas, cujo jogo de interações ou associação forma o substrato essencial. Sendo que, como escreveu o próprio Simmel, a compreensão do social, na sua multiplicidade infinita, deve ser elaborada a partir de conteúdos subjetivos da consciência: "Qualquer que seja o acontecimento exterior que designamos como social (...) senão reconhecermos, de modo evidente, as motivações espirituais, os sentimentos, os pensamentos, as necessidades, (...) tratar-se-á de um espetáculo de marionetes" (17).

As formas sociais (conflito, subordinação, divisão do trabalho) pensadas à maneira de Simmel remetem-nos à categoria "gênero", tal como é elaborada pelo discurso atual do feminino. Como as formas sociais de Simmel, gênero é um modelo conceitual do jogo de interações simbólicas, neste caso, esta forma social gênero é constituída pela polaridade "feminino/masculino"(18). Aliás, a própria forma feminino/masculino é essencializada por Simmel, como modelo significativo da "tragédia da cultura". Na teoria da cultura simmeliana, o "masculino" está vinculado à cultura objetiva (lugar da alienação das significa ções individuais) e o feminino, à cultura subjetiva (imanência individual das significações preservadas), sendo que a tragédia da cultura (perda do sentido) é apresentada como "tragédia feminina"19. Como as categorias simmelianas, também as "relações de gênero", no discurso atual do feminino, são pensadas, de certo modo, como oposição não-contraditória e apenas relativa. Nesse sentido, as relações de gênero são apenas relações entre pólos complementares, não permitindo que seja pensada qualquer superação do processo de divisão do trabalho que subordina e oprime a mulher, a partir da oposição contraditória entre classes sociais.

Ao mesmo tempo, se a categoria "gênero" se enraíza na compreensão weberiana e simmeliana das oposições sociais, afasta-se da teoria marxista clássica(20). Para Marx, a análise e a síntese teórica das relações sociais não podem ter como elemento essencial as significações que os indivíduos lhes atribuem, ou seja, as realidades discursivas da consciência. Aquilo que os indivíduos pensam não coincide, em geral, com o seu ser real, conforme Marx escreveu no Prefácio à crítica da economia política: "O modo de produção da vida material domina, em geral, o desenvolvimento da vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina a sua existência, ao contrário, é sua existência social que determina sua consciência."(21) Ao contrário de ser reveladora de conteúdos, a consciência - na sociedade de classes - seria o lugar privilegiado das deformações ideológicas das relações sociais. Portanto, do ponto de vista de Marx, pode-se dizer que os estudos atuais sobre o feminino, ao tomarem construções simbólico-sociais de gênero como fio condutor de suas análises, recaem no engano comum a todas as manifestações do idealismo conceitual.

Mas se gênero, como "categoria de análise" (22), não coincide com o método marxista, podemos dizer que a teoria anterior, da chamada "nova vanguarda feminista", aparece, do ponto de vista de Marx, como igualmente problemática. Também aquela teoria feminista, que se autodenominava "revolucionária e marxista", quando dava realidade indiferenciada e indeterminada às diferenças biológico-sexuais, fundava o universal "mulher" de maneira puramente abstrata; naturalizava elementos históricos e cortava, em diagonal, a concreticidade da luta de classes, totalidade, esta sim, real para Marx.

Aliás, talvez por isso mesmo, aquela teoria da chamada "nova vanguarda feminista", dos anos 60, apesar de comprometida com setores ditos "marxistas ", não obteve resultados objetivos significativos no movimento revolucionário das mulheres operárias, repercutindo muito mais nos setores burgueses e pequeno-burgueses. Em sentido contrário, lembremos que, no quadro da II Internacional, Clara Zetkin defendeu, em uma infinidade de textos teóricos e políticos, a independência de classe do movimento das mulheres operárias, em relação ao "feminisno burguês"(23). Contra vanguardas feministas acima das classes, Clara Zetkin escreveu: "Certamente, Marx não se ocupou da questão feminina `enquanto tal´ e `em si mesma´. Entretanto, sua contribuição é insubstituível, ela é essencial na luta levada pelas mulheres para conquistar seus direitos. (...) Em O capital, acumula-se uma profusão de fatos, de idéias e de sugestões sobre a questão do trabalho feminino, sobre a situação das trabalhadoras, sobre a justificação da proteção legal do trabalho, etc. É um arsenal intelectual inesgotável para nossa luta, tanto para as nossas reivindicações imediatas como para nosso objetivo socialista."(24) A própria Clara Zetkin discute amplamente em seus escritos, a importância, no final do século XIX e começo do XX, da agitação e da propaganda de questões específicas que atingiam, em massa, a mulher da classe operária (direito ao voto, legislação trabalhista, assistência à maternidade, etc.), ou seja, aqui a mulher é pensada como força de trabalho explorada pelo capital, isto é, como e enquanto Marx a analisou.

Em O capital, Marx esboçou a tese que fundamenta a organização e a luta independentes das mulheres trabalhadoras. Naquela obra, no capítulo "Maquinaria e Grande Indústria", Marx observa que a mecanização crescente do processo de trabalho torna progressivamente dispensável a força muscular do trabalhador, possibilitando a incorporação "de trabalhadores sem força muscular ou com desenvolvimento corporal imaturo, mas com membros de maior flexibilidade" (25). Concretiza-se assim, conclui Marx, um trágico paradoxo: a maquinaria, poderoso meio de substituir trabalho humano, em sua utilização capitalista, transformou-se em seu oposto, ou seja, em poderoso meio de multiplicar infinitamente o número dos que podem trabalhar, ao destruir concretamente todas as diferenças entre a força de trabalho masculina e feminina, instaurando a mais absoluta e brutal igualdade, a da força de trabalho disponível para a exploração. Além disso, prossegue Marx, "a maquinaria, ao lançar todos os membros da família do trabalhador no merca o de trabalho, reparte o valor da força de trabalho do homem por toda sua família", rebaixa o valor do trabalho masculino e conseqüentemente, dali para diante, todos "os membros da família precisam fornecer não só trabalho, mas mais-trabalho para o capital, para que uma família possa viver." (26) Desse modo, para Marx, a maioria das mulheres é reduzida (como os homens e também os jovens e crianças da classe trabalhadora) à condição de simples força de trabalho, ou seja, matéria de exploração do capital.

Marx não aprofunda de fato, como disse Zetkin, a questão específica das mulheres, ou seja, a questão da divisão "natural" do trabalho no interior da família e da subordinação "natural" ao homem. Mas, exatamente porque, para Marx, a superação das classes sociais, a instauração do comunismo, resulta na superação da exploração da força de trabalho tanto do homem como da mulher e, portanto, na superação de todas as formas opressoras de divisão do trabalho, inclusive as familiares, que recaem particularmente sobre as mulheres. Para Marx, as questões específicas de opressão das mulheres - que atingem as mulheres em geral e não só as operárias - estariam vinculadas à sobrevivência, na sociedade atual, de formas pré-capitalistas de relações sociais que a sociedade burguesa, na sua fase já de decadência, jamais será capaz de superar.

Para Marx, ao contrário, legitimadas por supostos enraizamento na natureza, as determinações biológico-sexuais (mas também raciais, nacionais, de idade, etc.) da divisão do trabalho permaneceriam indefinidamente sob o capitalismo, mesmo porque a burguesia sabe instrumentalizá-las para alargar ainda mais o tempo de trabalho não-pago da classe operária e conservar a sua dominação de classe. Em O capital, Marx se refere à divisão natural do trabalho existente "no limiar de todos os povos civilizados", sem contudo, tomar o ponto de vista antropológico, ou seja, o ponto de vista da investigação de supostos fundamentos universais, intemporais da divisão do trabalho. O que interessa, para Marx, é pensar a atual divisão do trabalho, como lemos nos Grundrisse: "Não é a unidade dos homens vivos e ativos com as condições naturais e inorgânicas de seu metabolismo com a natureza que tem necessidade de ser explicada; é, ao contrário, a separação entre as condições inorgânicas da existência humana e de sua atividade, separação que é total na relação entre o trabalho assalariado e o capital."(27) Nesse sentido, pode-se concluir que, para Marx, a questão específica das mulheres trabalhadoras, e não só delas, se reduziria, finalmente, à questão da superação revolucionária do modo de produção capitalista.


3. Revolução

A partir de tais colocações, diante da teoria marxista clássica, manifestamse claramente os limites conceituais do feminismo e das matrizes sociológicas utilizadas pelo discurso de gênero. Por outro lado, neste caso, como em tantos outros aspectos, as análises de Marx não parecem totalmente envelhecidas, como propaga a ideologia burguesa. Aqueles limites conceituais, aliás, são confirmados, em parte, pela história mais recente. Se é verdade que mesmo no interior do capitalismo os direitos das mulheres têm sido contemplados, nas últimas décadas, isto ocorreu de modo bem unilateral. É inegável que, particularmente após os anos 60, significativos avanços democráticos foram obtidos pelas mulheres da burguesia e da pequena burguesia (intelectuais, artistas, profissionais liberais, políticas, etc.). Desta época em diante, este setor social vem conquistando direitos civis e igualdade de oportunidades de trabalho. Se isto não deu ainda a estas mulheres a cidadania burguesa absoluta, ao menos, configura significativo avanço na direção da completa igualdade, de forma jamais sonhada em outras épocas históricas. No entanto, estas mulheres emancipadas, em geral, situam-se nas relações de produção, entre aqueles que extraem mais-valia das próprias mulheres, as operárias(28).

As mulheres da classe trabalhadora, ao contrário, nada conquistaram nas últimas décadas. A estas, muito pelo contrário, cada vez mais amplamente, têm sido negados direitos democráticos, mesmo aqueles conquistados pela luta do movimento operário, desde o século XIX, como o simples direito ao trabalho, hoje retirado, em nome da chamada "modernização capitalista"(29) Tendo, com muita astúcia, feito o corte de classes na questão das mulheres, a burguesia ainda vê a mulher da classe operária como simples "instrumento de trabalho", para usarmos a expressão de Marx(30).

Realmente, a igualdade das mulheres, em sentido não-unilateral, parece ter limites bem concretos, no âmbito da sociedade capitalista e da democracia burguesa. Contudo, a superação de todas as desigualdades culturais, sociais, psicológicas, sexuais e da própria divisão natural do trabalho, não pode ser considerada tão-somente uma utopia adiada para uma hipotética sociedade socialista do futuro. Sob nossos olhos, concretamente, muitas vezes, já foi e é iniciada a superação, mais ampla, da desigualdade feminina. Ali onde a negação revolucionária da sociedade capitalista é iniciada, percebem-se claros avanços nas relações cotidianas entre mulheres e homens, no sentido de uma sempre crescente igualdade democrático-socialista. Assim é que, significativamente, nos primeiros anos da Revolução Russa, efetivou-se uma ampla legislação igualitária, acompanhada do esclarecimento revolucionário e da organização política das trabalhadoras russas, no sentido da real concretização de seus direitos (31). Mesmo que tenha sido aprisionado nos limites do "socialismo em um só país", e fracassado, o projeto democrático-socialista para as trabalhadoras russas permanece, enquanto gênese e modelo radical de outras experiências possíveis.

Atualmente, os movimentos populares da América Latina, na concreticidade de práticas político-revolucionárias cotidianas, recolocam a questão democrático-socialista das mulheres. Veja-se a experiência igualitária no interior das FARC-EP, organização marxista que controla parte da Colômbia: homens e mulheres dividem todo o trabalho revolucionário, político e cotidiano, mesmo o doméstico (32). Da mesma forma, nos acampamentos do MST, no processo de luta social, as mulheres trabalhadoras adquirem consciência política e direitos que a sociedade burguesa lhes nega. Também em momentos mais esporádicos de luta, por exemplo em grandes greves, as mulheres trabalhadoras, freqüentemente, já ali vivem a experiência da igualdade que está contida na própria oposição operária à exploração burguesa da força de trabalho.



Notas

(1) Zetkin, C. “Relatório para o congresso de Gotha”, 1896. In Ausgewählte Reden und Schriften. 3 vols. Berlim (R. D. A.): Dietz Verlag, 1957-60, T. 1, p. 103-5.
(2) Deve-se a constituição teórica do conceito de “gênero” à socióloga Ann Oakley, em trabalhos que remontam à década de 70 (cf. Sex, gender and society, 1972; The sociology of housework, 1974, Housewife, 1976), sendo, mais recentemente, rediscutido pela historiadora Joan Scott em “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Tradução de G. Lopes Loro. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, 16 (2):5:22, jul./dez. 1990, p. 5-22; Idem. Gender and Politics of History. New York: Columbia University Press, 1994.
(3) Scott, Joan. “Gênero: uma categoria útil… ”, op. cit., p. 5. O suposto progresso teórico é apontado na extensa bibliografia de “gênero”, também no Brasil: “Gênero tem sido (… ) o termo usado para teorizar a diferença sexual. (… ) A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como ‘sexo’ ou ‘diferença sexual’. O gênero sublinha o aspecto relacional entre homens e mulheres, ou seja, nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir através de um estudo que os considere totalmente em separado.” (Soihet, Rachel.”História, mulheres, gênero: contribuições para um debate”. In Aguiar, Neuma (org.). Gênero e Ciências Humanas, desafios às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1997, p. 101).
(4) Sobre o feminismo da década de 70, cf. Fougeyrollas, Dominique. “Les féministes des années 1970”. In Fauré, Christine (org.). Encyclopédie politique et historique: Europe, Amérique du Sud. Paris: PUF, 1997; Thébaud, François. Écrire l’histoire des femmes. Col. “Sociétes, temps”. Fontenayauxroses: ed. Fontenay-Saint-Cloud, 1998.
(5) Rowbotham, S. Féminisme et Révolution [Women, Resistance and Revolution, 1972]. Paris: Payot, 1973, p. 86.
(6) Cf. Firestone, Shulamith. A dialética do sexo, um estudo da revolução feminista [ The dialectic of Sex, 1970]. Rio de Janeiro: Ed. Labor do Brasil, 1976, p. 14.
(7) Até hoje, A origem da família… é uma referência necessária aos estudos do feminino e feministas. Para uma leitura feminista clássica do pensamento de Engels, cf. Delmar, Rosalind. “Looking again at Engels’s ‘Origins of the family, private property and State’”. In Mitchell, Juliet e Oakley, Ann (org.). The rights and wrongs of women. Londres: Penguin Books, 1976, p. 271-287.
(8) Water, M.-A. “La revolución socialista y la lucha por la liberación de la mujer”. In Trotski, Leon. Escritos sobre la cuestión femenina. Barcelona: Anagrama, 1977, p. 133.
(9) “Un programme socialiste pour la libération des femmes: vers un mouvement féministe de masse (Résolution de congrès du Socialist Workers Party)”. In F. Le Cavez, Françoise. (tradução e apresentação). Féminisme et socialisme aux États-Unis. Col. “10/18”. Paris: U.G.E, 1979 ( 1a ed., 1971); este documento se insere na linha política “inovadora” do setor dito “pablista” do trotskismo que, na década de 50, já “inovara” sustentando uma possível “regeneração dos PCs” e do “stalinismo”.
(10) Para uma descrição da abrangência teórica da categoria “gênero” cf. Scott, Joan, “Gênero: uma categoria útil...”, op. cit.
(11) Sobre o relativismo imanente aos estudos de gênero, comenta uma das pioneiras na temática: “Sendo escrupulosa em meu uso das palavras, utilizaria o termo ‘sexo’ apenas para falar da diferença biológica entre macho e fêmea, ‘gênero’ quando me referisse às construções sociais, culturais, psicológicas que se impõem sobre essas diferenças biológicas. Gênero designa um conjunto de categorias às quais outorgamos uma mesma etiqueta ( crosslinguistically, ou crossculturally), porque elas têm alguma conexão com diferenças sexuais. Estas categorias, no entanto, são convencionais ou arbitrárias. Elas não são redutíveis e não derivam diretamente de fatos naturais, biológicos, e variam de uma linguagem a outra, de uma cultura a outra, na maneira em que ordenam experiência e ação” (Shapiro, Judith. ”Anthropology and study of gender”. In Soudings, an Interdisciplinary Journal, 64, n. 4, 1981, p. 446-65).
(12) Weber, M. Économie et Société (Wirtschaft und Gesellschaft), 1 e 2 . Tradução de Julien Freund e outros. Paris: Plon, 1971, T. 1: “Les catégories de la sociologie”, p. 58.
(13) Idem, ibidem. A seguir, Weber explica que “o conceito nada diz sobre a existência de uma ‘solidariedade’ entre os agentes ou o contrário”.
(14) É o próprio Weber que se refere aos “paradigmas sociológicos” ou “tipos”, explicando: “A sociologia – como pressupomos em vários momentos, por ser evidente – elabora conceitos de tipos e põe-se à procura das regras gerais do devir (… ). A elaboração de conceitos, que é característica da sociologia, toma seus materiais, sob a forma de paradigmas, nas realidades da atividade as quais são igualmente importantes para os pontos de vista da história” (op. cit., p. 48-49, grifos do autor).
(15) Como diz Weber, rejeitando o realismo conceitual dos universais ou das totalizações: “Não é somente a natureza particular da linguagem, mas também aquela de nosso pensamento que faz com que os conceitos, pelos quais apreendemos uma atividade, deixem que esta apareça sob a forma de uma realidade durável, de uma estrutura coisificada ou de uma estrutura ‘personificada’, tendo uma existência autônoma. É assim igualmente, e mesmo bem particularmente, em sociologia. Conceitos como aqueles de ‘Estado’, ‘associação’, ‘feudalismo’ ou outros semelhantes, designam, de uma maneira geral, do ponto de vista da sociologia, categorias representando formas determinadas da cooperação humana; [a] tarefa [da sociologia] consiste em as reduzir a uma atividade ‘compreensível’, o que quer dizer, sem nenhuma exceção, a uma atividade dos indivíduos isolados que delas participam.” (Weber, M. “Essai sur quelques catégories de la sociologie compréhensive” (“Über einige Kategorien der verstehenden Soziologie”, 1913). Tradução de J. freund. In Weber, M. Essais sur la théorie de la science ( Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre). Paris: Plon, p. 318-19.
(16) Simmel, G. Soziologie. Untersuchungen über die Formen der Vergesellschaftung, in Gesamtausgabe, v. 11. Frankfurt, Suhrkamp, 1992, p. 28, cit. por Vandenberghe, F. Une histoire critique de la sociologie allemande. Aliénation et Réification. 2 T. Paris: La découverte/M.A.U.S.S, 1997. T 1, p. 117.
(17) Idem, ibidem, p. 35.
(18) Simmel propõe que as formas de associação sejam reconstruídas conceitualmente fazendo-se o inventário das polaridades que as constituem, ou seja: distinção/imitação, oposição/integração, resistência/submissão, diferenciação/expansão, distanciamento/proximidade. Assim, por exemplo, o conflito, como forma social, deve ser pensado (reconstruído conceitualmente) como síntese entre “subordinação e resistência”; a troca, como forma social “que separa e une os indivíduos”, etc.
(19) Simmel, G. “Culture féminine”. In: Philosophie de l’amour. Paris: Rivages, 1988, p. 69-109; Idem. “Ce qui est relatif et ce qui est absolu dans le problème des sexes”. In: Philosophie de la modernité. La femme, la ville, l’individualisme, I. Paris: Payot, 1989, p. 69-112.
(20) Para uma análise comparada de Marx e Weber, além do estudo clássico de Löwith, K. Marx and Weber. Londres: Allen & Unwin, 1982, cf. Weiss, J. Weber and the marxist world. Londres: Routledge, 1986; Wiley, N. (direção de). The Marx-Weber debate. Bervely Hills: Sage, 1987; Sayer, D. Capitalism and modernity. An excursus on Marx and Weber. Londres: Routledge, 1991; Vincent, J.-M. Fétichisme et société. Paris: Anthropos, 1973.
(21) Marx, K. “Avant Propos”. In Critique de l’Économie Politique [ Zur Kritik der politischen Oekonomie, 1859]. Tradução de M. Rubel e L. Évrard. In Marx, K., Oeuvres. T: Economie I. Col. “Bibliothèque de la Pléiade”. Paris: Gallimard. p. 273.
(22) A expressão é de Joan Scott.
(23) Amiga de Rosa Luxemburg, de Franz Mehring e de Karl Liebknecht, Clara Zetkin (1857-1933) foi uma das figuras marcantes da ala esquerda da social-democracia alemã; em 1907, tornou-se dirigente do Movimento internacional das mulheres socialistas. Organizou, em 1915, uma conferência internacional das mulheres, em Berna. Foi dirigente da Liga spartakista, e mais tarde do partido comunista alemão; em 1921, eleita para o Comitê executivo da III Internacional. Como Rosa, após 1906, denunciou o reformismo da direção social-democrata, que, segundo pensava, não lutava com bastante energia contra a sociedade capitalista. Clara criou aquele que foi então o mais importante e único órgão de propaganda e agitação socialista dirigido às mulheres trabalhadoras: Die Gleichheit ( A Igualdade), cujo subtítulo era: “Revista dos interesses das trabalhadoras” que circulou amplamente, na Europa, de 1891 a 1917. Em sua luta política pela independência de classe do movimento das mulheres trabalhadoras, enfrentou a ala feminista reformista dentro da própria social-democracia alemã; comenta Badia que, para Clara, “(… ) o partido não tem que desenvolver uma propaganda feminina específica, mas uma ‘propaganda socialista entre as mulheres’. Sendo que sua tarefa essencial é despertar ‘nas mulheres a consciência de classe e fazê-las participar da luta de classes’.” Badia, Gilbert. “Préface”. In: Zetkin, C. Batailles pour les femmes. Paris: Ed. Sociales, 1980, p.35; sobre a atividade política de Clara Zetkin, cf. Badia, G. Rosa Luxemburg, journaliste, polémiste revolutionnaire. Paris: ed. Sociales, 1975; Idem. Les spartakistes, 1918: l’Allemagne en révolution. Col. “Archives”. Paris: Julliard-Gallimard. 2a ed., 1974; Dornemann, Luise. Clara Zetkin. Leben und Wirken. Berlim: Dietz Verlag, 1973. Constituída por uma infindável série de escritos teóricos e políticos, a obra de Clara Zetkin foi reunida, parcialmente, em Ausgewählte Reden und Schriften. 3 vols. Berlim: Dietz Verlag, 1957.
(24) Zetkin, C. “Ce que les femmes doivent à Karl Marx”, 1890 [“O que as mulheres devem a Karl Marx”, 1890]. In Idem. Batailles pour les femmes. Paris: ed. Sociales, ed. cit., p. 90-94; cf. Idem. La cuestión femenina y la lucha contra el reformismo. Barcelona: Anagrama, 1976.
(25) Marx, K. O capital. Crítica da Economia Política. Tradução de R. Barbosa e F. Kothe. 3 Livros. Col. “Os Economistas”. São Paulo, Abril, 1983. Livro I, (1/2), p. 23 .
(26) Idem, ibidem.
(27) Marx, K. Fondements de la critique de l’économie politique [ Grundrisse der Kritik der politischen economie, 1857-58]. Tradução de R. Dangeville. Paris: Anthropos, 1968; 2bis. “Supplément au Chapitre du Capital”, p. 24.
(28) Neste sentido, não parece sem fundamento a crítica segundo a qual os estudos de gênero fariam parte da contra-ideologia atual: “Essa ‘contra-ideologia’ raramente desafia as prescrições da política liberal (… ). Dentro dessa contra-ideologia (que é generosamente financiada pelas instituições de pesquisa), estudiosos do desenvolvimento encontram um confortável nicho. Seu papel é gerar (internamente a esse contra-discurso) uma aparência de debate crítico sem tocar nos fundamentos sociais do sistema de mercado global. O Banco Mundial desempenha um papel-chave nesse particular, promovendo a pesquisa sobre a pobreza e as chamadas ‘dimensões sociais do ajuste’. Esse enfoque ético e as categorias subjacentes (por exemplo, a diminuição da pobreza, questões ligadas a gênero, eqüidade, etc.) fornecem uma ‘face humana’ às instituições de Bretton Woods e uma aparência de compromisso com a mudança social. Todavia, uma vez que está funcionalmente divorciada das principais reformas macroeconômicas, essa análise raramente constitui uma ameaça para a agenda econômica neoliberal.” (Chossudovsky, Michel. A globalização da pobreza. Impactos das reformas do FMI e do Banco Mundial. Trad. de M. Pinto Michel. São Paulo, Moderna, 1999, p. 35.)
(29) Em pesquisa da própria ONU, constatou-se: “O relatório provisório das Nações Unidas deixa também perceber que as práticas ligadas à globalização se apoiaram em uma ideologia patriarcal que existia anteriormente mas que a globalização soube integrar, quando não a reforçou. Desta forma, três dos fenômenos ligados à globalização – a multiplicação dos ‘sweat shops’ (fábricas onde o trabalhador é superexplorado), empregos em tempo parcial e formas de trabalho precárias – atingem principalmente as mulheres, em especial as do Sul e as imigrantes: a globalização soube, desta forma, incorporar e utilizar uma divisão do trabalho e um sistema de valores baseado, entre outros, na desvalorização das funções desempenhadas pelas mulheres.” (Callamard, Agnès. “Pequim, cinco anos – avanços e obstáculos: um balanço”. Traduzido por C. Marcondes. In Le Monde Diplomatique, ed. bras., ano 1. n. 4, 2000, p. 4; cf. da mesma autora: Méthodologie de recherche séxospécifique. Montreal: Anistia Internacional e Centro Internacional dos Direitos da Pessoa e do Desenvolvimento Democrático, 1999).
(30) No Manifesto Comunista (1848), lemos que “aos olhos dos burgueses, a mulher [da classe proletária] é apenas um instrumento de trabalho”, quanto às mulheres da própria burguesia, escrevem Marx e Engels, pode-se dizer que estão, mais ou menos veladamente, destinadas à “prostituição oficial ou não-oficial”.
(31) “As medidas avançadas que foram tomadas no início [da revolução de 1917], com relação ao casamento, ao divórcio, ao aborto, ao cuidado das crianças e da família, foram suprimidas totalmente e a reação se impôs a tal ponto que, em 1943, estava proibida a co-educação na União Soviética. Sufocada a revolução sexual, triunfava a contra-revolução. Durante as décadas seguintes, a opinião conservadora mundial se regozijou em mostrar que a União Soviética permanecia totalmente atrasada a este respeito.” (Millet, Kate. Sexual Politics. Nova Iorque: Doubleday, 1970, p. 176)
(32) Observe-se, no entanto, que em interessante artigo intitulado “Feminismo y Genero”, da revista da FARC, utiliza-se a equívoca categoria “gênero”, porém neutralizada pelo recorte de classe: “Categorías que han omitido el género, tales como ‘campesinos’, ‘desposeídos’, ‘desplazados’ siguen prevaleciendo a pesar que dentro de estos grupos las mujeres han sido las más prejudicadas, al grado de que se habla de la ‘feminización de la pobreza’.” (Documento eletrônico).

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