Procuraremos, nesta breve exposição, discutir em que sentido podemos falar de dialética em Marx. Seria a dialética em Marx uma lógica herdada de Hegel? Seria uma filosofia enquanto materialismo dialético? Seria uma ontologia das contradições da realidade? Seria um modo de exposição? Discutiremos essas diversas possibilidades perguntando-nos até que ponto alguma delas pode possuir algum conteúdo consistente em relação aos próprios textos de Marx.
I A DIALÉTICA COMO UMA LÓGICA HERDADA DE HEGEL
Esta hipótese aparece em todo o marxismo vulgar, nos manuais de marxismo e de história da Filosofia, assim como foi retomada e discutida por diversos trabalhos acadêmicos e em múltiplos sentidos. Claro que existem muitos textos de Marx que permitem estabelecer vagamente esta hipótese. As referências à dialética hegeliana são constantes e em diversas direções na obra de Marx: nos primeiros textos de juventude (1), vemos o jovem Marx feuerbachiano criticar de maneira relativamente simplista certos textos de Hegel. No entanto, já em 1845, correndo a ruptura com o discurso especulativo da filosofia idealista, como testemunha A ideologia alemã, vemos a crítica estender-se a Feuerbach, e Marx revisa certas críticas anteriores feitas contra Hegel, percebendo então que, em certo sentido, o idealismo objetivo de Hegel seria superior, em alguns aspectos, à crítica feuerbachiana. Já durante os Grundrisse, em 1857-1858, como se sabe, Marx relia a Ciência da lógica, de Hegel, e essa influência é visível em uma série de formulações que reaparecem no primeiro livro de O Capital, publicado em 1867 (por exemplo, na exposição da forma do valor e na própria questão do método). Esta certa herança hegeliana, quando a certos aspectos da dialética, é incontestável e mesmo reconhecida, abertamente, pelo próprio Marx, sobretudo no célebre posfácio da segunda edição de O Capital, datado de 1873.
Contudo, essa herança hegeliana, tão cara à tradição marxista, é pensada, em geral, de maneira linear, como se houvesse algo assim como “a lógica dialética marxista”, um método que tivesse a sua fonte originária em Hegel, e deste passasse para Marx, de forma desenvolvida e transformada. Seria como se a lógica dialética de Marx fosse um progresso ou uma evolução direta em relação à dialética hegeliana. Essas premissas, em maior ou menor medida, perpassam as diversas abordagens desta hipótese, ou seja, a dialética como uma lógica herdada de Hegel. Centenas de estudos procuram explicar essa passagem da dialética hegeliana para a marxista, centenas de trabalhos procuram dar conta da chamada “inversão” marxista da dialética. No entanto, como se girássemos em círculo, apesar de tantos estudos, há décadas, muito pouco se avança no esclarecimento dessa herança hegeliana e de sua mutação no interior do pensamento de Marx.
Penso que, se isto ocorre, é exatamente porque a própria questão está, em geral, mal-colocada. Em primeiro lugar, vejo um problema no próprio conceito de “dialética” e naquele de “dialética hegeliana”. Os conceitos de “dialética” e de “dialética hegeliana” são incompreensíveis se não forem pensados a partir da tradição pré-hegeliana e, particularmente, a partir da tradição antiga (2). A dialética não nasce em Hegel, sua obra não é a fonte originária da dialética. Hegel é apenas o renascer deste saber que se originou na Antiguidade e que permaneceu esquecido durante alguns séculos. Como diz o próprio Hegel nas suas Lições da história da Filosofia, a dialética teria nascido em Platão e suas formas vagaram baldias por 2 mil anos. Assim, o próprio Hegel anuncia, também no final da Ciência da lógica: a dialética é uma ciência que desde a Antiguidade foi atribuída a Platão. O método absoluto, diz Hegel, a dialética, é o que Platão exigia do conhecer, tomar o objeto em si e por si mesmo e desenvolver o seu conteúdo, sem exemplos ou comparações externas, levando ao extremo a imanência do seu objeto... No entanto, apesar de Hegel reconhecer a ordem platônica da dialética, esta ressurge no pensamento hegeliano de maneira bastante deformada e desfigurada. Mais precisamente, a dialética antiga ressurge na obra de Hegel de maneira híbrida, marcada pela mescla com a tradição parmenideano-aristotélica da não-contradição e, o que é pior, com a versão mística desse hibridismo, ou seja, aquela que caracteriza o neoplatonismo e, sobretudo, que caracteriza a obra de Proclus, neoplatônico do século V d.C. Da versão procliana da dialética, Hegel retomará um Platão hipostaseado (construído a partir de uma leitura mística do diálogo Parmênides) e mesclado com a tradição parmenideano-aristotélica. Assim, a versão procliana da dialética é uma dialética mitificada e salva para o interior da filosofia da identidade. Em Proclus, como em Hegel, a multiplicidade dos entes sensíveis é deduzida do Ser-Um, entidade teológica, transcendente, inefável, pura indeterminação que se desdobra em Nada e deste em vir-a-ser, movimento, Devir. No entanto, como, sem a hipótese ou ”trapaça” teológica deduzir algo da pura indeterminação? Passagens fundamentais da Ciência da lógica, de Hegel, possuem analogias profundas com diversos trechos dos Elementos de Teologia e da Teologia platônica, de Proclus, sobretudo quanto a ess desdobramento da pura indeterminação para a determinação absoluta. Mas, além desse desdobramento do Ser-Um, Hegel retomará, do mesmo Proclus, um Aristóteles platonizado, que será contrabandeado, de maneira adúltera, em uma série de conceitos, para o interior da dialética. Penso, por exemplo, nos conceitos de dynamis (potência) e enérgeia (ato), tão caros a muitos marxistas para explicar as transformações ditas “dialéticas”, mas compatíveis, na verdade, apenas com uma teoria do movimento embasada na não-contradição e que, assim, separa no tempo a existência de estruturas diferentes, justapõe as contradições, mas jamais as explica pela interpenetração contraditória no interior de um mesmo gênero. Aristóteles, na verdade, é absolutamente não-mesclável com uma lógica da contradição ou com uma dialética de tipo platônico. Para Aristóteles, a dialética é apenas um discurso que trabalha com premissas somente prováveis, e serve, no máximo, apenas para o processo de investigação ou procura. Para Aristóteles, a dialética nada tem a ver com o método absoluto, ou com a ciência suprema, como aparece no domínio platônico. Para Aristóteles, a ciência primeira ou ciência procurada poderia ser, talvez, a ontologia, uma ciência do ser enquanto ser (3), ou então, talvez, a teologia, a ciência do primeiro motor imóvel (4), mas jamais a dialética e, nem mesmo, a lógica, que para ele era apenas um instrumento externo à ciência, uma espécie de pórtico de entrada para a ciência (5).
Aqui, ainda que rapidamente, já aparecem bem as raízes e as dimensões do hibridismo hegeliano em sua Ciência da lógica. A lógica hegeliana é uma fusão fantástica entre a ciência suprema platônica, ou seja, a dialética, com a procurada ciência primeira aristotélica, ou seja, uma onto-teologia (6). Mas, como se não bastassem esses elementos híbridos, a dialética onto-teológica de Hegel é um método supremo no sentido platônico, mas um método que se funde à lógica instrumental, lógica no sentido aristotélico.
Ora, postos estes elementos da tradição dialética, que perpassam a lógica hegeliana, a partir de tal hibridismo conceitual, seria possível construir uma lógica dialética não especulativo-metafísica? Partindo de tal hibridismo metafísico, ainda que fossem feitas inversões e reversões, de qualquer espécie, poderia Marx construir uma lógica que servisse à perspectiva da classe operária? Não acreditamos, e, de fato, Marx jamais escreveu uma tal lógica dialética. Marx, como disse Lenin nos seus Cadernos filosóficos, não nos deixou uma lógica com um grande “L”.
Assim, ainda que Marx dialogue constantemente com a lógica dialética hegeliana, não existe em Marx, propriamente, uma lógica herdada de Hegel.
II A DIALÉTICA MARXISTA COMO FILOSOFIA E COMO ONTOLOGIA
Se a dialética em Marx não é uma lógica retomada de Hegel, seria em algum sentido a parte filosófica do pensamento de Marx, aquela parte que poderíamos chamar “materialismo dialético”? Pensamos que, nos textos de Marx, não existem desenvolvimentos consistentes nessa direção. Na verdade, seriam muito mais textos de Engels – como o Anti-Düring e Dialética da naturaza – que procuraram estender e generalizar, com certeza de maneira excessivamente rápida, certas formulações a respeito da história e da sociedade para o âmbito mais amplo das ciências da natureza. Em nenhum momento, Marx desenvolveu uma filosofia das ciências da natureza ou uma teoria dialética sobre a matéria, pois jamais apareceu, entre as preocupações de Marx, a criação de um sistema de mundo, que seria um chamado “materialismo dialético”, como desenvolvimento modificado do materialismo mecanicista. foram, sem dúvidas, os setores mais dogmáticos do marxismo que consagraram essa divisão da teoria marxista em materialismo histórico (ou ciência marxista da historia) e materialismo dialético ( ou filosofia marxista que se apoiaria nas ciências existentes e procuraria pensar e organizar epistemologicamente as diversas ciências de um ponto de vista dialético). Não por acaso, mesmo os defensores desta dualidade materialismo histórico – materialismo dialético, como Althusser, reconheciam que esta última parte (o materialismo dialético) estava atrasada em relação àquela outra parte (o materialismo histórico). Na verdade, o chamado “materialismo dialético” jamais existiu na obra do próprio Marx, e a redução da filosofia marxista a uma reflexão sobre as ciências nem sequer tem uma inspiração propriamente hegeliana, mas, sim, muito mais uma inspiração positivista (7).
No pólo oposto a essa interpretação epistemologizante da dialética marxista, encontramos aqueles que a consideram como uma espécie de ontologia. Que dizer da dialética como uma ontologia? Parece-me que a tentativa de encontrar uma ontologia na obra de Marx é resultado ainda daquele transpassamento ilegítimo da lógica hegeliana à obra do autor de O Capital. O próprio projeto hegeliano de uma ontologia dialética já era, por si, extremamente problemático. Como um dos piores resultados daquele mesmo hibridismo ocorrido na tradição dialética, esse projeto ontológico parece-me insustentável. Explico alguns aspectos brevemente.
O projeto ontológico, que aparece também na filosofia antiga, é diretamente ligado à tradição parmenideana e, assim, à lógica da não-contradição. (8) Quando no diálogo Sofista, de Platão, chega-se à demonstração do ser do não-ser e, assim, realiza-se o parricídio a Parmênides (o pai da lógica da não-contradição), ao mesmo tempo, como comentou, corretamente, Pierre Aubenque, Platão terna impossível toda teoria centrada a partir da hegemonia absoluta do Ser e arruína, pela raiz, todo o projeto ontológico. Ora, ao demonstrar o ser do não-ser, abria-se no diálogo Sofista o espaço para uma possível lógica da contradição ou lógica dialética. Mas este lógos ali esboçado não seria uma onto-logia, um logos centrado no Ser, no on ou no einais, mas sim, algo como uma koino-logia, ou seja, um lógos do koinón (um lógos do que é comum), um lógos que realiza o transpassamento dos gêneros antagônicos, um lógos da contradição, portanto, arruinaria todo o projeto ontológico. Aristóteles, no entanto, filho fiel à lei da não-contradição e a Parmênides, dá um passo atrás e recupera, em parte, o projeto ontológico nos livros gama e zeta da Metafísica. Mas, sobretudo, com a sua teoria da ousia (substância ou essência), desenvolve toda uma hierarquia dos entes existentes, que permite pensar a multiplicidade dos entes sem recorrer, porém, ao não-ser e à contradição. Todos os entes são dispostos hierarquicamente, voltados analogicamente “para o um” (prós hén), e ordenados sob a hegemonia do Ser teológico que é universal porque é anterior e primeiro. (9) A ontologia aristotélica, como toda ontologia, mostra-se, sobretudo, no livro lambda da Metafísica, como inseparável da teologia. Se hoje lemos Aristóteles distante da interpretação de Santo Tomás de Aquino e distante da teologia, é, entre outras coisas, porque nos habituamos, sob influência das leituras neopositivistas, a ler os livros gama e zeta da Metafísica separados do livro lambda.
Mas, em suma, quanto ao nosso problema, observo que, ao pensarmos o conteúdo mais originário dos conteceitos envolvidos, a noção de uma ontologia dialética mostra-se como o ponto mais alto desses hibridismo absolutamente insustentáveis. Uma ontologia dialética seria um saber fundado em fusões conceituais incompatíveis que foram desenvolvidas, sobretudo, pelo neoplatonismo, mas que, se tiveram tão longo destino, foi somente graças a toda uma teologia mística que, pelos seus absurdos, certamente seria rejeitada tanto por Platão como por Aristóteles, Parece-me, assim, que a idéia de uma ontologia dialética não-metafísica é algo incongruente do ponto de vista conceitual e, evidentemente, também, nesse sentido, parece-me insustentável uma ontologia dialética marxista. Se Lukács procurou fundar tal elaboração filosófica, não vejo qualquer apoio maior, sobretudo nos textos de O Capital. (10) Somente o desconhecimento do conteúdo originário dos conceitos envolvidos em uma ontologia dialética pode reencontrar esse projeto hegeliano em Marx.
III A DIALÉTICA COMO MODO DE EXPOSIÇÃO OU DARSTELLUNGSWEISE
A dialética como modo de exposição é a forma, aparentemente mais modesta, mas, ao mesmo tempo, a mais documentada e evidente da dialética em Marx. Conforme comenta Marx no posfácio da segunda edição de O Capital (11), após a pesquisa analítica, é preciso representar tudo isso que se estudou de maneira que se consiga da vida à matéria. Aqui, na construção desta representação, desta Darstellung, aparece a necessidade clara da dialética. A dialética é o instrumento metodológico que permite a Marx tentar superar a forma analítica da sua pesquisa, ou seja, a dialética é o método através do qual Marx procura reconstruir a totalidade viva do real. Isto é, a dialética seria o lógos que procura reconstruir a totalidade viva do real como esta se apresenta antes e aquém da ruptura analítica de um sujeito que, por abstrações perceptivas, aproximou-se de partes desta totalidade, dividindo-a e recortando-a. Aqui estaria a necessidade da dialética em Marx: como e enquanto modo de exposição. A dialética seria o retorno sintético do analítico ou a reconstrução concreta do universal.
Mas, podemos perguntar, toda ciência não faz, de alguma forma, após a pesquisa analítica, uma certa representação do seu objeto? Toda ciência, de alguma forma, não expõe uma certa reconstrução geral do seu objeto? Vejamos o caso da Economia Política clássica.
Claro que a perspectiva da Economia Política clássica, como filha direta do empirismo inglês, constrói uma representação do real, mas o seu caminho é o método empírico-indutivo, ou seja, a partir dos dados dos sentidos, assim, a partir de uma consciência empírica, individual, psicológica, realiza uma multiplicidade de percepções, recolhe os dados dos sentidos, que são depois reunidos e justapostos, construindo certas generalizações e, assim, certas constâncias e leis que pretendem representar ou descrever o real. Essa perspectiva científica empirista, porém, corresponde à perspectiva do senso comum olhando o mundo. Coincide, particularmente, com o ponto de vista dos indivíduos que vivem mergulhados no mercado do modo de produção capitalista e que possuem a perspectiva de indivíduos que se pensam a si próprios como livres e proprietários (proprietários da força de trabalho e dos meios de produção), indivíduos que livremente se reúnem pelo contrato de trabalho e pelo contrato social. Nesta perspectiva, o concreto é o que o sujeito individual percebe aqui e agora, e a generalização é o abstrato. A própria representação científica, para o empirismo, aparece sempre como uma mera abstração. Nesse sentido, como tantas vezes ironizou Marx, o paradigma dessa perspectiva é aquele de Robinson Crusoé. O indivíduo que, na verdade, é uma abstração do social, passa por ser o concreto, e o social que antecede o indivíduo passa por ser o abstrato. As “robinsonadas” psicologistas perpassam todo o método, a teoria do conhecimento, as categorias e a representação científica da Economia Política. As robinsonadas não são, no entanto, apenas erros teóricos, mas, sim os limites teóricos de uma classe social, a burguesia, para a qual o concreto é o indivíduo, uma classe social que percebe o mundo a partir da perspectiva de indivíduos, proprietários privados, cuja representação do social, do comum, do universal, e assim do científico, é e sempre será abstrato. Para Marx, essa é apenas a representação aparente e ideológica do real. Mas, apesar de aparente, essa representação burguesa permite descrever o domínio dos fenômenos, e atinge um certo conhecimento da superfície desse real. Este é o ponto de vista da Economia e, em parte, das chamadas ciências humanas, que se diferenciam do empirismo, em geral, apenas por possuírem formas às vezes um pouco mais elaboradas de indução e, assim, robinsonadas menos evidentes. As ciências humanas constroem, em geral, as suas representações também a partir da generalização de dados empíricos, mas, com a mediação de certas estruturas abstratas, por exemplo, os tipos ideais weberianos ou modelos quantitativos de origem matemática, e a partir destes conceitos abstratos, as ciências humanas envolvem o material empírico e o organizam. Ainda que nestas robinsonadas os “robinsons” tenham pretensões, às vezes, a uma universalidade de sujeito transcendental kantiano, estamos ainda diante de uma representação burguesa do real, ou seja, onde o concreto é a percepção do indivíduo e onde o universal será sempre abstrato. Jamais se chega e jamais se pretende chegar à representação “viva da matéria”, como dizia Marx, ou seja, jamais se chega à representação da totalidade concreta em movimento.
Para Marx, tomando como perspectiva a classe operária, no entanto, trata-se de construir uma representação do real que negue a representação da Economia Política, que negue a aparência empírico-indutiva do real, as robinsonadas da Economia burguesa. Por isto, o método de Marx não pode ser a perspectiva dos indivíduos que percebem de maneira psicológica o mundo, e que constroem a sua representação do mundo a partir do método empírico-indutivo, ou se certas variantes positivistas ou kantianas, todas expressões, em última instância, da perspectiva de classe burguesa e de suas diversas fases de dominação.
Como construir, então, outra representação do real que corresponda à perspectiva de uma classe social não-dominante, o proletariado? Como construir uma representação que desvele a estruturação contraditória de classes que caracteriza o modo de produção capitalista? Para isto, é necessário abandonar a representação empírico-indutiva da Economia Política, superar os dados dos sentidos, negar a consciência psicológico-empírica como base para a construção de universais, e fazer uma construção do real que seja, ao mesmo tempo e na mesma relação, a representação lógica e histórica da totalidade. Se esta representação fosse somente lógica, seria uma forma neokantiana ou neopositivista de representar o real. Se fosse uma representação somente histórica, por outro lado, seria uma forma de historicismo e, assim, de reprodução dos dados empíricos, se maior negatividade conceitual. Mas, como tornar possível essa difícil unidade entre o lógico e o histórico? Não se trata de pensar separadamente ou de maneira justaposta uma estrutura sincrônica e outra diacrônica, mas, de pensar o tempo lógico e o histórico no interior de um mesmo gênero. Essa unidade entre o lógico e o histórico é, por excelência, contraditória, pois é pensar que as categorias lógicas podem transformar-se, negar-se a si próprias, serem postas em devir (permanente) e conservarem, ainda assim, um valor de verdade. Isto significa dar “vida” às categorias lógicas e mostrar que o tempo conceitual não é incompatível com o tempo histórico. Significa que algo pode ser e não ser ao mesmo tempo e, na mesma relação, A e não-A. Mas aqui, justamente, encontramonos com a dialética:trata-se de pensar a identidade do não-idêntico.
Esta questão aparece claramente já na origem mesma da dialética. No diálogo Sofista de Platão, ao demonstrar-se o Ser do Não-Ser, mostra-se que é possível pensar o próprio devir como algo que participa do Ser. O ser quando é o Mesmo que si é pensado como Outro que o Mesmo. O ser é diferente do Mesmo. O Ser é diferente de Identidade. É possível, então, não somente a justaposição meramente analítica das formas lógicas, mas o transpassamento sintético entre elas; é possível o desenvolvimento da dynamis koinológica (um lógos que apreende a potência do ser-em-comum das próprias formas ou gêneros). Somente assim é possível também o transpassamento entre as formas lógicas e a multiplicidade sensível mergulhada em incessante devir. Somente pela unidade contraditória entre o Ser e o Devir, entre o lógico e a sua gênese pode-se pensar uma teoria dialética da verdade, uma teoria de desvelamento do mundo que não é somente representação abstrata do real, mas, sim, representação concreta, viva, logos perpassado pelo histórico e que retorna a este como movimento do negativo, como negação da negação, como práxis.
Nessa direção, cabe reconhecer, sem dúvida, que em Hegel ocorre, em certo sentido, a unidade entre o lógico e o histórico, e este é seu grande mérito: redescobrir essa possibilidade teórica, inaugurada no pensamento antigo, redescobrir essa possibilidade teórica de unificar o lógico e o devir, o tempo conceitual e o tempo da gênese. No entanto, em Hegel, a ênfase dessa unificação entre o lógico e o histórico situa-se no âmbito do lógico, pois o histórico, em Hegel, nada mais é do que a exteriorização do lógos, a ex-posição do espírito absoluto, o desdobramento do Ser-Um, Deus. Ser, puro Ser que é igual a Nada e daí Não-ser e Devir. Como, perguntamos, mais uma vez, no entanto, do Nada, sem metafísica, deduzir o Devir? Nesse sentido, a representação hegeliana jamais rompeu plenamente a identidade teológica do Ser-Um, e assim jamais deu existência plena à não-contradição. Mas, ainda assim, Hegel, do interior do seu idealismo objetivo, desvela a possibilidade de pensar uma noção de universal que não coincide plenamente com a mera representação pragmática da burguesia inglesa expressa na Economia Política clássica. (12)
Em Marx, ao contrário do que ocorre em Hegel, a gênese histórica é pressuposto inscrito nas próprias formas lógicas. A gênese histórica sendo o pressuposto para a lógica, o “motor das categorias”(13) , ou melhor, a “potência dos gêneros” não é o Ser-Um, o lógos divino que se desdobra, mas, sim, o que foi posto historicamente como fundamento. Nesse sentido, o modo de exposição de O Capital é uma obra-prima de manifestação do fundamento. Marx mostra que o desdobramento das contradições da forma mercadoria, valor de uso e valor, trabalho concreto e trabalho abstrato, mercadoria e dinheiro, trabalho e capital, o desdobramento das contradições históricas representadas logicamente, ou seja, as contradições lógicas possuem como seu conteúdo essencial as contradições histórica e, em última instância, todas as contradições históricas são redutíveis conceitualmente às contradições da luta de classes. Mas, assim, ao abandonar qualquer sujeito metafísico de tipo hegeliano, qualquer espírito absoluto e mesmo qualquer sujeito transcendental de tipo kantiano, não cai o marxismo num relativismo historicista, que torna impossível qualquer universalidade científica?
Ora, na verdade, aqui em Marx, o sujeito empírico psicológico-individual, o sujeito transcendental e o espírito absoluto, são superados dialeticamente por uma classe social, a classe operária. E é o ponto de vista desta classe, suas experiência (no mercado, na produção, na negociação e na luta de classes), é o seu discurso, como classe em luta, que nega e desvela a estrutura contraditória da Economia Política burguesa, como ciência e como realidade. Podemos dizer, como praticamente afirma Marx, que, em certo sentido, é esta classe, ela própria, que escreve O Capital. (14) Mas, nesta direção, esta representação contraditória do que é o real, esta representação chamada “marxismo”, o que é? Seria ciência? Como chama-la de “científica”? Certamente, não é ciência do ponto de vista empirista da Economia Política clássica, nem do ponto de vista positivista das ciências sociais, nem do ponto de vista kantiano, nem do ponto de hegeliano, pois todas estas representações de ciência, para o marxismo, seriam variantes de posições epistemológicas burguesas que expressam diferentes situações históricas de dominação da burguesia. O marxismo, particularmente e especificamente, como e enquanto dialética, é um modo de exposição da realidade que reconstrói esta própria realidade, em “lógos contraditório”, em “lógos que caminha e discursa contra si próprio”, um logos a-lógico que se contradiz, uma ciência que se constrói pela desconstrução negativa: ou seja, uma representação em lógos que procura não só lançar uma ponte contraditória entre o lógico e o histórico como também entre o próprio lógos como representação do real e o lógos como uma nova disposição dos próprios elementos do real. Não se trata, no marxismo, evidentemente, de uma nova disposição localizada ou uma mera administração dos elementos do real; esta concepção técnica e burocrática de disposição e de ordenamento, no interior da própria gramática existente, é não-contraditória, e tanto o empirismo como o positivismo fazem isto melhor que o idealismo alemão e que o próprio Marx. Mas, para Marx, não se trata, verdadeiramente, de discursar neste lógos que vai ao mesmo tempo superando dialeticamente a própria gramática geral da realidade, que vai dissolvendo as categorias que utiliza, que vai negando dialeticamente a morfologia e a própria sintaxe do modo de produção existente. Neste sentido, o lógos de Marx é dialético, procura negar e contradizer não só a representação da Economia Política, mas também o próprio lógos a partir do qual ele próprio fala. Na verdade, nisto, nada mais faz do que reproduzir o discurso revolucionário da própria classe operária, que ao pregar a revolução socialista, uma revolução que abole as classes sociais, nega a si mesma como classe e assim o seu próprio ponto de vista de representar e de discursar sobre a realidade.
Concluindo, podemos dizer que a dialética, em Marx, é um modo de exposição revolucionário, o modo de exposição de O Capital: como pressuposto de toda a exposição está posta a totalidade histórica como luta de classes, e esta é a verdadeira impulsão das categorias. Posta esta totalidade como pressuposto, Marx parte, no entanto, de fato, na sua exposição. como algo posto, da análise da mercadoria como valor de uso e valor de troca (e não valor de uso e valor, que serio o “correto”); esta mercadoria contraditória, por sua vez, aparece mergulhada na abstração da circulação simples, onde não existem ainda classes, mas, sim, pessoas, indivíduos (são as representações abstratas da Economia Política que serão negadas). Pouco a pouco, estas representações mostram-se contraditórias e, através do seu desdobramento, Marx avança na sua exposição; chegando ao domínio da produção, entra no interior da fábrica, desvela o segredo da mais-valia, descreve a mais-valia absoluta e a relativa, aparecem as classes sociais como postas, e as categorias meramente lógicas vão-se transformando e sendo negadas como formas exclusivamente lógicas. Marx chega ao processo de acumulação de capital: estuda primeiramente a reprodução simples, depois a conversão da mais-valia em capital, as leis de produção mostram-se como leis de apropriação capitalista, as categorias vão ganhando cada vez mais historicidade, até que, sobretudo no capítulo XXIV, desvela-se a violência da luta de classes como o segredo da acumulação originária e de todo o modo de produção capitalista. A luta de classes, que era, desde o começo, o motor pressuposto em todas as contradições categoriais, finalmente, aparece agora posta como fundamento, e ainda, a acumulação originária, por sua vez, mostra-se como tendendo para a negação da negação, a expropriação dos expropriadores. O livro I começa, assim, com as representações categorias da Economia Política burguesa e termina apontando para a práxis revolucionária, para a negação não só das categorias como de todo o modo de produção capitalista e da própria classe proletária, que fora, em certo sentido, o sujeito deste próprio logos realizado até aqui. (15)
Esta apresentação, esta Darstellnsweise, este modo de exposição é exatamente à dialética que me parece existir, de maneira consistente, na obra de Marx. Trata-se de um lógos que se transforma em história, ou melhor, que reencontra a sua gênese histórica; trata-se de uma lexis que se transforma em práxis, ou melhor, que se redescobre como práxis; trata-se de um logos que nega a sua fundação ontoteológica e que se abre, como enquanto projeto de um novo mundo. O segredo deste modo de exposição consiste apenas em ordenar rigorosamente as palavras. de forma que se palavras ordenadas rigorosamente elas se transformem em palavras-de-ordem, base para um programa revolucionário. raios do céu azul que apontem o caminho histórico do proletariado. Nesse sentido. para terminar, ainda podemos evocar, mais uma vez, os Cadernos filosóficos de Lênin que, profundamente, apontavam: “Marx não nos deixou uma lógica com um grande “L”, deixou-nos a lógica de O Capital”.
(1) Na Crítica à filosofia do Direito de Hegel, de 1843 e nos Manuscritos econômicos-filosóficos, de 1844.
(2) No marxismo vulgar isto se faz, superficialmente, atribuindo a Heráclito a paternidade da dialética, e esta é entendida como a unidade dos contrários. A origem desta tradição está, em grande parte, no livro de Lassale Heráclito, o obscuro.
(3) Livro gama da Metafísica.
(4) Livro lambda da Metafísica.
(5) A lógica em Aristóteles é bem um “instrumento”, um “organon”.
(6) Onto-teo-logia: um discurso sobre o on (o Ser) fundado no divino.
(7) O esquema “materialismo histórico-materialismo dialético”, tal como foi apresentado algumas vezes, por exemplo, por Althusser, é muito mais uma transposição da teoria positivista de Augusto Comte, onde a Historia é reduzida a história da ciências e epistemologia.
(8) Parmênides, em seu Poema, é o primeiro formulador do principio de não-contradição, proibindo a via do não-ser.
(9) Livro kapa, da Metafísica.
(10) Por exemplo, se os luckacsianos gostam tanto do primeiro item do capitulo X de O Capital (Processo de trabalho), vendo ali uma antropologia filosófica marxista, embasada na ontologia do ser social do homem, na verdade, isso é resultado da não compreensão da abstração metodológica que Marx ali realiza do próprio modo de produção capitalista.
(11) “É, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição, formalmente, do método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído este trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real. Caso se consiga isso, é espelhada idealmente agora a vida da matéria, talvez possa parecer que se esteja tratando de uma construção a priori” MARX, Karl. Das Kapital. Berlim: Dietz Verlag, 1962, p. 27 (MEW, v. 23). [O Capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 20. (Col. Os economistas)].
(12) O que estaria por trás desta representação hegeliana seria o ponto de vista da burguesia ascendente, mas ainda assim, reproduzido externamente e distante da luta de classes real; trata-se da contemplação distante da revolução Francesa, trata-se da contemplação da Revolução francesa da perspectiva da Alemanha atrasada. Hegel encarna somente o lado universal abstrato da consciência burguesa e não o seu lado privado e pragmático. Por isso, sobretudo o jovem Hegel, expressa bem um caráter progressista e revolucionário da burguesia, com uma representação universal do mundo e da História, mas que, na verdade, não possui um correspondente real. Por isso mesmo, a representação hegeliana não serve para administrar o capital e para fazer uma economia política prática. Para isto, é muito melhor o empirismo inglês ou mesmo o positivismo sociológico.
(13) O “motor das categorias” é já uma expressão da tradição aristotélica. Seria melhor a “dynamis dos gêneros”, ou a “potência dos gêneros” que nos remete a uma potência vivia que está em devir e que nasce (verbo giginomai).
(14) Como escreve Marx: “O desenvolvimento histórico peculiar da sociedade alemã excluía a possibilidade de qualquer desenvolvimento original da economia burguesa, mas não a sua crítica. Na medida em que tal crítica representa, além disso,uma classe, ela só pode representar a classe cuja missão histórica é a derrubada do modo de produção capitalista e a abolição final das classes – o proletariado” (O Capital. Posfácio da 2º ed., Abril Cultura, 1983, p. 18; MEW, 1983, p.22).
(15) Isto vale não só para o livro I, mas também para o plano inteiro da obra, que no capitulo LII do livro III termina exatamente com as classes sociais.