terça-feira, 26 de outubro de 2010

Método Dialético - José Chasin

Aulas ministradas durante o curso de pós-graduação em Filoso­fia Política, promovido pelo Dep. de Filosofia e História da Universidade Federal de Alagoas, de 25/01 a 06/02 de 1988. A transcrição é literal.


Algumas características do que chamei de tronco das tendências positivistas no campo gnosiológico do pensamento filosófico e da ciência do homem ou da ciência social.


Se há um tronco positivista, um conjunto de posições, não apenas as posições ligadas a Augusto Comte, há, por outro lado, um tronco dialético. São dois troncos e o tronco positivista tinha gnosiologicamente, epistemologicamente, como filosofia da ciência.

Do ponto de vista dialético não é possível pura e simplesmente adotar a subdivisão teoria do conhecimento, epistemologia, filosofia da ciência que já é por si o produto da perspectiva positivista. Do ponto de vista dialético, sem dúvida existe uma problemática do conhecimento e existe uma problemática da ciência. As coisas são extremamente interligadas. De modo que ao falar em epistemologia ou em gnosiologia eu estou remetendo sempre, simultaneamente, a uma teorética do conhecimento e a uma teorética da episteme. Mas, de modo inverso ao positivismo, estou remetendo a uma teoria da ciência, a uma teoria do conhecimento que não nasce a partir de uma reflexão pura e simples da observação do procedimento científico no campo rigorosamente laboratorial, entre aspas.

Enquanto todas as correntes pensam a gnosiologia e a epistemologia a partir das formas superiores da elaboração do espírito, isto é, tomam como ponto de partida resultados da autonomização da inteligência, do espírito, tomam um momento elevado do produto histórico da elaboração científica. O que eu quero dizer: quando um Kant, quando um Descartes, quando todos os pensadores da história da filosofia tomam a questão do conhecimento para tratar, quando convertem o fenômeno do conhecimento num objeto específico para examinar a partir da elaboração já de nível elevado que a ciência tem atingido, da matemática, da física, passam a refletir sobre o problema do conhecimento como se ele se instaurasse no instante em que o especialista recuasse diante do objeto, no espaço do seu laboratório – o laboratório pode ser a biblioteca – e começasse a refletir sobre o que é o conhecimento a partir desse instante. Tudo funciona como se o conhecimento se instaurasse a partir desse momento, o momento do conhecer sistemático, rigoroso, intelectual, elaborado, etc.

A dialética, não. A dialética toma como ponto de partida um instante muito mais natural e historicamente efetivo. A dialética instaura sua gnosiologia a partir do instante em que ela descobre no homem efetivo, não no homem especialista, no homem filósofo, no homem intelectual, mas no homem comum, no homem na sua cotidianeidade, a partir desse homem que trabalha, e eu grifo a palavra trabalha, é que instaura a problemática gnosiológica. Sendo a ciência, a filosofia, enfim as formas superiores do espírito resultado dessa gênese na cotidianeidade, produto de um distanciamento, produto de uma autonomização do espírito em relação ao cotidiano, há uma independentização deste pensamento. Sobre isto voltaremos. Eu quis apenas caracterizar aqui a diferença de raiz entre uma gnosiologia de ordem marxista e uma gnosiologia de ordem não marxista. Enquanto uma parte do laboratório a outra parte da condição histórico-concreta do homem efetivo, não do homem especulativo.

Na atualidade existem dois grandes ramos de respostas no que tange à problemática do conhecimento. Há dois conjuntos de respostas. Mais simples ainda. Há um conjunto de respostas e estas podem ser classificadas em dois ramos. O ramo positivista e o ramo dialético. Retomo os traços do positivismo. Primeiro a concepção do sujeito. (Trecho sobre as implicações políticas da relação sujeito-objeto).

(Obs: Falta a parte de caracterização do positivismo. Não foi gravada. Mas, foi desenvolvida no dia anterior).

Caracterização do ramo dialético. “A dialética trata da coisa em si”. Com estas únicas palavras se faz a dialética de Marx ser não apenas diferente de todo o tronco positivista, mas ser o seu oposto. Se a dialética trata da coisa em si e o positivismo recusa, evita tratar da coisa em si, nós estamos com dois troncos diametralmente distintos.

Ao se dizer que a dialética trata da coisa em si está-se subentendendo primeiro a possibilidade de o entendimento alcançar a integridade e a integralidade dos objetos postos para o conhecimento. A posição do método dialético concebe um ser cognitivo que alcança a totalidade do objeto. Alcançar o todo essencial do objeto, conhecê-lo no seu núcleo mais íntimo é compreendido como uma possibilidade real do sujeito.

Desde logo, portanto, há uma afirmação ontológica da gnosiologia marxiana. Sujeito que pode conhecer a totalidade do objeto e agora nós temos que parar um pouco sobre este sujeito. Sim, este sujeito pode conhecer a totalidade do objeto, mais do que isto, ele deve conhecer a totalidade do objeto, ainda mais, conhecer é só conhecer quando a totalidade do objeto é compreendida. Só é objetivo o conhecimento da totalidade. O conhecimento só é concreto quando referido ao todo.

A concepção do sujeito já é distinta da concepção do sujeito do positivismo. De um lado, no positivismo, o sujeito é um sujeito de consciência limitada, no caso da dialética, o sujeito é ilimitado. E essa infinitude do sujeito não está remetida pura e simplesmente à individualidade. O sujeito do conhecimento não é entendido como a individualidade singular concreta. O sujeito do conhecimento não é apenas a consciência individual isolada. Mais do que isso. A consciência individual isolada é de fato a consciência real, mas ela expressa um sujeito coletivo de conhecimento, que é o real responsável pela constituição da perspectiva que permite o conhecimento. Em última análise, os indivíduos reais é que consubstanciam esse conhecimento, mas eles consubstanciam em termos e na medida em que eles realizam uma condição de possibilidade objetiva que os ultrapassa.

Aqui o sujeito do conhecimento é, à semelhança do sujeito da história, um sujeito coletivo. Quem é o sujeito da história? São os indivíduos isolados? Não. As classes sociais são os sujeitos coletivos da história. As classes sociais é que realizam a história. Os dirigentes ostensivos individuais, que detêm as alavancas do poder do Estado, são representantes de uma política, quer dizer, de um interesse global de categorias sociais. O sujeito cognitivo é a classe. É no interior do sujeito coletivo que as individualidades realizam a apreensão cognitiva objetiva concreta exata.

Aqui é preciso diferenciar a classe como aquela que cria uma perspectiva do conhecimento, é a sua condição em si, isto é, independentemente da sua consciência. A classe em si, no conhecimento, o contorno da classe, o espaço sócio/histórico que ela ocupa, pela sua raiz de produção e reprodução material, isto é, pela sua raiz econômica, ela tem uma dada perspectiva, ela tem um dado espaço, ela tem uma dada presença que demanda independentemente da sua consciência um desdobramento. Esse desdobramento a que ela alude, no plano do conhecimento é ou não aproveitado pelas individualidades que da perspectiva dela se põem. Assim, o grande pensador, o grande cientista, o grande intelectual objetiva, realiza uma possibilidade tracejada pela existência em si da classe, consubstanciando um conhecimento possível. Mas que a classe enquanto conjunto não delimitado concretamente não efetiva. Quer dizer, a classe é o verdadeiro sujeito cultural, conseqüentemente o verdadeiro sujeito cognitivo, mas quem realiza a cognição são as consciências individuais. Não é uma consciência coletiva.

O que é consciência coletiva? O que se pensa aqui talvez Lucien Goldmann tenha feito uma aproximação interessante, é falar numa intra-subjetividade. Não intersubjetividade, como era em Kant. A objetividade kantiana é a identidade das diferentes consciências individuais. Cada consciência individual confere com a consciência individual do outro. Se viver a mesma situação e se tiver as mesmas informações ele conclui a mesma coisa. Resultado, a intersubjetividade kantiana é uma identidade das diferentes subjetividades individuais. No caso dialético, não é esta intersubjetividade que é aludida. Hegel já tinha feito a crítica da intersubjetividade. Porque a intersubjetividade significaria, pura e simplesmente, da perspectiva hegeliana, que o objetivo é aquilo que é comum à subjetividade. Se o verde me parece vermelho e se a todos o verde parece vermelho, o verde passa a ser objetivamente vermelho. Isto mostra que a intersubjetividade consolida o equívoco. A objetividade não é um parecer de.

A objetividade é realmente uma subordinação da subjetividade. A objetividade implica a regência objetiva sobre a subjetividade. Como o conhecimento, no método dialético, subentende o objeto regendo a cognição, enfim o primado gnosiológico está no objeto não no sujeito, ainda que o sujeito não seja inativo. Em última análise, quem configura a subjetividade é o objeto. Em Kant, é a subjetividade que organiza a objetividade. No caso da dialética, é a objetividade que organiza a consciência. Em vários pontos, pensando ao inverso de Kant temos a dialética.

Este sujeito coletivo, dentro do qual atuam e realizam os seus objetivos os sujeitos individuais, estes sujeitos individuais o realizam na medida em que o fazem da perspectiva de certas classes. Aí então, a objetividade é entendida como uma possibilidade de classe. É entendida como uma possibilidade do sujeito coletivo. E não como uma escolha do sujeito individual. Isso é um ponto decisivo. A objetividade não é o resultado da construção de um discurso rigoroso, mas a objetividade é o resultado de uma condição objetiva de possibilidade social que permite então a geração do discurso rigoroso. Dito de outro modo, a objetividade não é alcançada por um discurso de rigor, mas o discurso de rigor é constituído, possibilitado por uma potencialidade de classe.

Fora da dialética, a objetividade, isto é, a captura do real pelo discurso científico é resultado do encaminhamento de um discurso rigorosamente conduzido. É o discurso que tem o segredo da captura da realidade.

A dialética não nega a necessidade de um discurso rigoroso. Ao contrário, acentua que ele é imprescindível, porém dá um passo mais profundo. O discurso rigoroso é gerado por uma condição de possibilidade objetiva que transcende esse discurso e que é posto pelas necessidades e possibilidades das categorias sociais. As formas do discurso rigoroso não são conseqüência de uma opção do cientista, que escolhe entre o instrumento adequado e o instrumento inadequado. A própria escolha do instrumento é uma condição de possibilidade que ultrapassa o indivíduo e é tornada possível pela categoria social à qual o investigador se liga. Não é a idéia de que o investigador tenha que nascer naquela categoria social, isto é, só o investigador proletário conhecerá a verdade, todo investigador burguês só conhecerá a falsidade. Se o investigador burguês se colocar da perspectiva da categoria social proletária, abre para si a possibilidade da objetividade. O investigador proletário que se perspectiva pelas condições de possibilidade da burguesia, constituirá uma ciência falsa. A maior parte dos investigadores da perspectiva proletária, não são proletários. Não houve, até hoje, nenhum grande dialeta proletário.

Naquele momento, que é um largo momento de alguns séculos, a burguesia tem necessidade da verdade. Ela precisa da verdade para constituir o seu mundo. Ser objetiva corresponde às suas necessidade sociais. Ela então efetiva uma cognição objetiva. A partir de meados do século passado, a burguesia entra numa outra fase, numa fase em que, consolidado o seu poder, estruturada em todos os níveis a sua dominação, o prosseguir da efetuação do conhecimento objetivo leva a abalar a sua posição de dominação. Do ponto de vista intelectual, a verdade passa a ser inimiga de classe. O seu conhecimento tem de passar a ser um conhecimento que veda a possibilidade da objetividade. Não é uma escolha dos indivíduos da burguesia, é uma determinação coletiva de classe. Ela tem que recusar até mesmo os princípios com os quais ela lidou e a partir dos quais ela articulou a sua compreensão efetiva de mundo. Agora a sua compreensão de mundo tem de ser no mínimo uma barragem ao entendimento.

A questão que nós estudamos do entendimento e da razão. O homem limitado, o homem ilimitado. Para o iluminismo, a razão era ilimitada. A razão humana tinha a possibilidade de organizar o mundo do homem e o mundo da sociedade sob a forma racional total. É a mesma burguesia que dirá, com Augusto Comte, já antes um pouco, que o entendimento, a razão é limitada, o espírito é encolhido, o mundo não é capturável no seu todo. Exatamente o oposto do que ela dizia um ou dois séculos antes. É o mesmo sujeito que, em momentos históricos distintos de sua evolução sintetiza o mundo intelectualmente, teoricamente de modos diferentes. Contraditórios, contrapostos, antagônicos.

Um elemento fundamental da prova que você quer é a própria prova histórica. A mesma classe que gera a verdade passa a gerar a falsidade. A verdade ou a falsidade correspondem a necessidades sociais. A verdade não é o luminoso universo maravilhoso dos nossos anseios de verdade pura, nem a falsidade é o mundo obscuro, demoníaco do desejo de obscuridade. Falso e verdadeiro correspondem a necessidades sociais em momento distintos do mesmo sujeito. Este sujeito coletivo gerará os produtores de teoria individuais que vão constituir a verdade ou que vão constituir a falsidade. Verdade e falsidade que serão vistas para esta classe como simples verdade. O falso é visto como verdade. Só uma outra classe, contraposta a essa, é que pode denunciar a falsidade da primeira. Não também porque seja uma classe que ame a verdade acima de tudo. Porque ela tem necessidade da verdade para derrubar a verdade falsa da outra. A luta entre verdadeiro e falso corresponde, no campo da compreensão, do conhecimento teórico, ao mesmo jogo e luta de interesses no sentido infra-estrutural. Conhecer é credenciar-se ao poder. É por aí que fundamentalmente Marx colocava: socialismo é ciência. Não há socialismo sem ciência. Isto é, não há socialismo se conhecimento da própria classe que pode construir o socialismo e de todas as outras classes com as quais a classe revolucionária convive em harmonia contraditória. Ou melhor, em articulação contraditória. A falsidade socialmente necessária é ideologia. O pensamento falso, que é necessário à sobrevivência de certo tipo de sociedade, para a sobrevivência de certo tipo de classe social, é o pensamento falso, que precisa ser produzido e tornado dominante, é o pensamento ideológico.

Há mais de um sentido da palavra ideologia. Há mais de trinta. Mas isso (esse levantamento de sentidos) é baboseira acadêmica. Existem dois sentidos reais e importantes. Um, que é o mais usado, que o Marx usava, de falsa consciência. Ideologia é o pensamento falso, é a consciência falsa. É o pensamento que não corresponde à realidade concreta.

O outro sentido de ideologia, e esse foi instaurado por Lênin, ideologia significa sistema de idéias verdadeiro do proletariado. Quando Lênin dizia ideologia burguesa, ele pensava em termos iguais a Marx, de falsa consciência. Quando ele dizia ideologia do proletariado, ele queria dizer sistema de idéias científico do proletariado. No nascimento do termo ideologia, que foi no século XIX, ideologia pretendia ser, para o seu criador, que foi Destutt de Tracy, ciência das idéias. É um sentido que não pegou. É um sentido que foi derrubado rapidamente. Ele pretendia constituir uma disciplina para conduzir a reflexão de tal forma que o erro ficasse impossibilidade. Um estudo do sistema de causação dos erros para evitá-los. E para ela, inclusive, era uma ciência de origem zoológica.

Aproveitei a passagem da determinação social do pensamento para mostrar que essa verdade ou esta falsidade corresponde a determinações objetivas do ser social. O falso pode ser, em determinados momentos, tão importante para a sobrevivência de uma sociedade, de uma classe, quanto o verdadeiro. O verdadeiro não tem si a força de ser prevalecente. Por isso que a evolução da humanidade não é uma linha reta cultural. Por isso que a cultura não é um sistema cumulativo de conhecimentos. A ciência avança e recua.

Por isso que no início dessa exposição eu pude dizer que hoje estamos muito abaixo do que estávamos enquanto humanidade no começo do século. Como visão, como padrão, como consciência média mundial estamos hoje, com uma diferença de cem anos, num padrão inferior. O que não quer dizer que hoje não poderíamos estar num padrão muito superior. Mas, não estamos. É um zigue-zague. Que haja obras que estejam muito acima do padrão médio, é outra conversa. Mas, elas estão nas prateleiras. Eu dou um exemplo disso. Quanto se estuda de marxismo na academia, seja a nível de Brasil, seja a nível internacional? E irrecusavelmente o marxismo é, esteja ele certo, esteja ele atravessado por equívocos, a expressão mais alta de todo o pensamento ocidental. De Aristóteles aos nossos dias, a fórmula mais avançada de cognição é de Marx. Pode estar incompleta, pode estar cheia de equívocos, contudo não há nenhuma postura mais avançada, mais perfeitamente constituída para a captura da verdade. No entanto, ela não é uma ideologia dominante. No sentido de sistema de idéias. O que é dominante hoje é o neopositivismo e o existencialismo. Ambos, sistemas de idéias constituídos depois de Marx, como reação inclusive a Marx e que constituem parcelas de vedação do real. Portanto, involução, flexão para trás. Por mais sofisticado que apareça o texto e o texto aparece sob alta sofisticação técnica.

Recapitulando: sujeito concebido coletivamente, capaz de um entendimento total do objeto. Sem limites, portanto, e que captura o objeto na sua dimensão integral, portanto indicando e exigindo uma ontologia.

Com relação à empiricidade, reconhece a dialética que o ponto de partida de todo e qualquer conhecimento começa pela janela do fenômeno. Não há outra janela. É a experiência imediata que me traz ao espírito, ao entendimento, à razão, elementos iniciais de contato com o real. E Hegel já compreendia isso e dizia: o empírico é verdadeiro enquanto empírico. Quer dizer, já para Hegel, mas com mais força ainda para Marx, não se recusa o empírico. Parte-se do empírico. Mas, desde logo, compreendendo que o empírico é parte. Não é todo. Mais ainda no Marx, que o empírico, aquilo que se manifesta de imediato, pode estar sob a forma do inverso da essência. Isto é, meu contato inicial do empírico me traduz uma situação dada, a nível fenomênico, e este nível fenomênico, que me é capturável na imediaticidade, pode ser o oposto de verdade. Isto quer dizer, o real pode aparecer sob forma mistificada. Não mistificada pela consciência do outro. Mistificada pela própria realidade objetiva.

Dou um exemplo a nível do social. Quanto um operário encosta a barriga no balcão do Departamento de Pessoal de uma fábrica qualquer para pedir emprego, ele está disposto a que? A vender a sua força de trabalho. E o sujeito que o atende no balcão, que representa o capital, está disposto a comprar a força de trabalho. Tendo o balcão por peça de referência. Tendo indivíduos de cada lado que estabelecem um diálogo muito preciso, um querendo vender uma coisa, o outro querendo comprar uma coisa. Qual é o suposto disso? Está suposta uma igualdade. Entre o que compra e o que vende. Um é livre para vender, o outro é livre para comprar. Tudo aparece ali como se fosse uma transação entre iguais. E o é a nível fenomênico. Mas, e a nível essencial, ontológico? Aquela igualdade esconde uma desigualdade de raiz e de essência. Esconde que o sujeito só vai lá vender porque é a única maneira de sobreviver. Portanto, a pseudoliberdade, a aparência fenomênica, tem uma subordinação de raiz, que ele não pode vencer a não ser pela morte. Ele está coagido a vender, mas a aparência é de livre venda. Ora, o fenômeno aparece objetivamente como mistificação. Não é a mistificação da palavra ou da consciência, é da própria realidade. A realidade é mistificada. É uma realidade que em linguagem hegeliana e mesmo marxista se pode dizer falsa. O empírico é falso. Olha como isso acaba com o positivismo de uma vez. Se o dado empírico é o ponto de partida e de chegada, se a partir do dado empírico eu faço ilações em termos de leis abstratas e genéricas, se toda a ciência é a constituição de universais abstratos a partir do fenomênico, num fenomênico falso o que eu tenho? Que a lei abstrata é a generalização da verdade falsa. E o positivismo comete esse engano sempre.

Então, eu tenho que partir do fenomênico. Não há alternativa. Mas, eu tenho que cotejar esse fenomênico com a interioridade ontológica do objeto real e aí então fazer a crítica do fenomênico. Eu tenho que desmistificar o fenomênico. Na maioria das vezes há uma contraposição entre fenômeno e essência. A essência é o oposto do fenômeno. A essência é o inverso daquilo que eu vejo na imediaticidade. Não é que eu não veja objetivamente. Eu vejo objetivamente. Mas, a objetividade em si vista é que é falsa. Eu não estou duvidando dos olhos, dos sentidos, como Descartes. Os órgãos dos sentidos me enganam. Não é isto. Descartes aí está enganado.

Os órgãos dos sentidos me enganam, às vezes, por uma ilusão de ótica. Eu vejo uma chaminé de longe e em vez de um cilindro eu vejo um retângulo. Mas, vejam que na prática, por conhecimento de essência, eu venço o empírico. Eu continuo dirigindo a 120, sabendo que lá embaixo a estrada não fecha. Se eu fosse me basear só na empiricidade, eu ia a cinco. O ontológico me corrigindo na prática as ilusões fenomênicas. A essência corrigindo, portanto, os órgãos dos sentidos. A razão corrigindo o meramente sensorial. Vejam que na prática o ontológico interfere, ao passo que o positivismo nega o ontológico, quando a própria evidência individual de cada um de nós recusa negar o ontológico. A própria experiência individual nos dá exemplos de que nós nos comportamos levando em consideração o ontológico, isto é, o em si das coisas. Depois vem um ramo do conhecimento e me diz que o em si é inalcançável.

É claro que essas formas rudimentares de tomar em consideração o ontológico – atravessar a rua, o navio, a chaminé – são formas elementares. O ontológico que se quer científico tem uma outra estatura, porém não uma outra natureza. Já na vida prática imediata o ontológico atravessa a nossa existência. Por outro lado, no entanto, não é o aspecto dominante. O aspecto dominante é um conhecimento meramente do bom senso. É um conhecimento do cotidiano, que é um conhecimento da superfície das coisas. Dou um exemplo. Nós todos lidamos com dinheiro. Na hora em que entramos num banco e descontamos um cheque, entramos no sistema complexíssimo das finanças, operamos com esse dinheiro cotidianamente. E todavia não sabemos o que é o dinheiro. E não importa, ontologicamente, o que é o dinheiro, o em si do dinheiro, como ele é de fato nos escapa por completo.

Há dois instantes reais de conhecimento. Há mais, mas quero, aqui, fixar dois.Um, que é o instante da imediaticidade, onde a gente se move a nível dos fenômenos, dos fenômenos mistificados. Esta mistificação, esta empiricidade, esta imediaticidade, no entanto, nós formamos algumas idéias a respeito disso e nos movemos. O plano do conceito, o plano da interioridade efetiva, ontológica, do objeto, já é outro campo. É o campo da ciência. Entre um e outro pode, às vezes, haver mesmo um abismo. Mas há, realmente, no sentido mais essencial, uma continuidade superadora.

Novamente recapitulando: o sujeito não é limitado e não limitado é também o conhecimento que se pode ter dos objetos. Ao contrário, o conhecimento é integral. O sujeito não é meramente o sujeito individual. Este é o expressador, o efetuador, mas não é ele que cria as condições de objetividade possível. Isto é a classe. A verdade não é regida pelo objeto, não é regida pela consciência. Daí a necessidade de uma teoria do ser, da ontologia. Daí aquela colocação do Marx desde a juventude, de buscar a idéia no real. Onde eu posso buscar a idéia? Em dois lugares: ou no real, ou na consciência. O que não quer dizer que a consciência não seja um elemento do real. Mas, aqui, está-se distinguindo a interioridade e a exterioridade. A perspectiva da dialeticidade é buscar a idéia no real, o que não quer dizer que se despreze nem a idéia nem a consciência. Mas, a consciência tem a regência, o primado cognitivo do objeto. A objetivação é saber subordinar, ter a possibilidade social objetiva de subordinar a subjetividade à objetividade. Não à empiricidade, mas à ontologia deste objeto, partindo da empiricidade e esta empiricidade sendo desmistificada. Ora, a empiricidade desmistificada pela consciência, basta aí para mostrar a alta importância da consciência; é ela que é a desmistificadora. Ela desmistifica para superar o plano da empiricidade e alcançar o plano da concreticidade. Entre empírico e concreto, uma forte distinção.

A essência também é mutável. No caso da perspectiva dialética, não há uma contraposição radical entre fenômeno e essência. Há uma conjugação dialética. A essência também não é uma imutabilidade, não é uma mônada leibniziana, não é o uno parmenidiano, é um ser real que pode mudar. A própria essencialidade não é uma eternidade. Ao contrário, a eternidade da essência é a sua não eternidade. Donde, o homem não tem uma essência, mas tem uma condição. A essência é a verdade do em si. A essência não é um caroço. A essência atravessa no passado, no presente e no futuro, sob modos diversos da condição diversa, todos os fenômenos, todas as partes do fenômeno.

A idéia de essência, em Parmênides, com relação à dialética, não tem uma contraposição excludente. A potência, em Aristóteles, é uma possibilidade em aberto. É, ao meu ver, a visão medieval de Aristóteles, a calificação do tomismo, não de S. Tomás, mas do tomismo, é a calificação da essência, que em Aristóteles é, no entanto, um princípio móvel. Não é à toa, por exemplo, quando se vai constituir a ontologia do marxismo, que certos aspectos da ontologia de Aristóteles são retomados. Lukács faz isto. E Marx, mesmo, no Capital, referia com muito respeito Aristóteles.

O problema da empiricidade.

Essa empiricidade é ponto de partida. Eu tenho que lixar essa empiricidade, se ela estiver mistificada, eliminar essa mistificação, se ela não estiver mistificada, a partir dela chegar à essencialidade ontológica, isto é, ao concreto. O segredo fundamental do método dialético é exatamente estabelecer a concretude. É exatamente caminhar a partir da visão difusa e confusa, caótica, da completude da empiricidade, para a concretude, passando pela abstração. Parte-se da pletora empírica desordenada, ordena-se por abstrações e destas abstrações se volta à empiricidade, mas agora essa empiricidade não é mais a empiricidade, mas a concretude. O caminho é esse: a empiricidade caótica, a organização abstrata e a concreção a partir do abstrato. O empírico agora é integrado na totalidade do real. Ele passa a ser determinado pela multiplicidade de elementos que o compõem. Esse é o segredo da frase do Marx que “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações” .

Conseqüentemente, o empírico que chega ao concreto, a prova da teoria não é o empírico, mas é o concreto ontologicamente compreendido.

O empírico é a manifestação fenomênica tópica, ele remete às relações fenomênicas mais elementares e superficiais. E pode aparecer, na maioria das vezes aparece sob forma mistificada. Exemplo de empiricidade: toda descrição, no mais vasto rol possível, a respeito, por exemplo, de uma comunidade. Descrevo quantas casas, quantos aposentos existem em cada casa, a alimentação, a organização familiar, as doenças, as festas, os cultos, etc. Faço a enumeração exaustiva de todos os dados que sensibilizam os meus órgãos dos sentidos. Eu tenho uma visão empírica das coisas. O concreto é a descrição do quadro da comunidade, mas que chega ao sentido lógico, íntimo da comunidade. Não é apenas o empírico pensado. É o empírico elevado de nível, para além apenas das suas aparências. Não é apenas aquilo que aparece, mas aquilo que está subjacente e que causa o próprio empírico. O iceberg é um exemplo claro disto. O pedaço de gelo que está acima da água é a porção menor do ser que lá existe e o pedaço que está por cima depende do pedaço que está embaixo.Quanto maior for o pedaço que estiver embaixo d’água, tanto menor o de cima. Se eu fico só no pedaço de cima, me escapa a maior parte do real. Tudo isso são metáforas. O empírico não está fora do concreto, mas o concreto é muito mais amplo do que o empírico. O concreto é essa totalidade, essa integralidade, este em-si capturado pela lógica interna, íntima do objeto. Não uma lógica da minha cabeça conferida ao objeto, mas a lógica do objeto capturada, reproduzida pela consciência. Neste sentido, no meu modo de entender, o melhor modo de dizer o que é dialética é dizer que dialética é a lógica do real.

A retomada, através das reenumerações das características ontem apontadas. A primeira delas, a caracterização da consciência, do entendimento, da inteligência, enquanto interioridade humana capaz da captura da totalidade do objeto e a própria concepção desta consciência como consciência ilimitada. A concepção positivista da consciência é de uma consciência finita. A concepção da consciência na dialética é de uma consciência infinita. Era preciso explicar essa infinitude. Totalidade do objeto é capturável; fenômeno e essência não mais conhecem uma diferença abismal. Ao contrário, a relação entre as duas constitui um dos traços marcantes dessa metodologia.

O elemento empírico é o ponto de partida, mas o ponto de chegada é a individualidade concreta. Do empírico ao concreto estabelece-se uma imensa e rica gama de abstrações. Em contraposição à tendência positivista, que parte do empírico, portanto, da parcialidade do todo e estabelece meramente uma abstração, a pretensão dialética é partir do empírico, da parte, alcançar um nível classificatório através da abstração, através de um segundo movimento de manuseio das abstrações ir recompondo, em determinações cada vez menos abstratas e mais concretas, até chegar ao concreto efetivo. O caminho é completamente diferente. O que é ponto de chegada no positivismo, a abstração, na dialética é a cadeia de concatenações que se faz a partir das abstrações; é pura e simplesmente mediação. Em última instância, na dialética o objetivo não é a lei, mas a lógica da individualidade. Para isso é preciso conhecer a lógica da universalidade.

Ainda quanto ao sujeito, há uma dialética entre o sujeito individual e o sujeito coletivo. Enquanto o sujeito individual é suposto, é concebido como sujeito efetuador, o sujeito coletivo é a classe. (Os agrupamentos sociais não são apenas aqueles constituídos pelas classes. Há outros. O grupo de uma Igreja, o grupo de uma escola, etc. O grupo constitui o sujeito que cria o espaço de. Ex: O grupo de jogadores de futebol. Só é possível jogar futebol num grupo. A classe social é, nesse sentido, o sujeito cultural em potência). Isto se refere à determinação social do pensamento e da razão. A razão é então concebida como um produto histórico. E na medida em que é um produto histórico é um produto social. Isto é, as individualidades não nascem racionais. O ser humano não nasce racional. É a sociedade que faz com que esta possibilidade se converta em efetividade. Em ato real. A razão não é, neste sentido, um dom ou um dote da natureza, mas um produto da própria vida humana. Vale dizer, da própria vida social. Não existe humanidade fora da sociedade. O que confere humanidade ao homem é o fato de ele ser um fragmento, uma individualidade dentro do contexto social.

Tome-se a questão da fome e da sexualidade. A forma de satisfazer a fome e a forma de satisfazer a sexualidade, ambas como pulsões biológicas naturais, são totalmente reformuladas pela história. Nem a fome é uma fome natural. A fome que só se resolve junto a uma mesa, no uso de talheres, com alimentos preparados, cozidos, condimentados, etc. é obviamente uma fome distinta daquela que através do dilaceramento direto e imediato do animal que acaba de ser abatido pode fazer imaginar. Em última análise, a forma de produzir o homem produz as necessidades e as formas de satisfação do homem.

Enquanto o homem é homem, se o homem pode admitir já a denotação de homem, neste instante ele já não é inteiramente natural. Já há uma elaboração do próprio homem. O que não quer dizer que o homem perca por inteiro as suas características de ser natural que evoluiu. Na visão do marxismo, o metabolismo entre homem e natureza é permanente. Cada vez mais ele se distancia da natureza e cada vez mais ele se torna histórico, social, produto da sua própria história, da sua própria atividade. Mas, ele não tem condição, ao limite, de romper com a naturalidade. Sempre haverá um gancho na natureza. A nossa dimensão biológica tem que ser mantida. Ela pode ser transformada, mas deve ser mantida como dimensão biológica. Civilização é progressivo afastamento do natural. Contudo, não há um rompimento absoluto em nenhum momento, nem este rompimento é possível. Mas, há uma transfiguração absoluta. De modo que não há nada no homem que seja puramente natural. Esta história que hoje em dia corre de voltar ao natural, de ser natural, é estupidez de sub-homem.

Este naturalismo é a concepção da espiritualização do homem. O espírito do homem, é aí que eu quero chegar para poder reencadear com a razão, é produto da atividade social do homem. O homem não nasce com um espírito, mas forja um espírito. Esse espírito não é uma realidade metafísica, sobrenatural, mas é a elaboração mais alta possível. Não estou aqui ferindo a questão da transcendência, da religiosidade. O materialismo de Marx tem diante disto uma clara posição. Subentende que a espiritualidade da religiosidade é a forma corrompida, é a forma alienada do verdadeiro espírito do homem. A religião é, para Marx, o espírito de um mundo que joga fora o espírito. A religião é uma forma de reagarrar o espírito, mas é uma forma alienada.

Ora, esse espírito, essa espiritualização do homem, tem imbricado em si um conjunto de características e fatores, entre os quais aqui interessa uma, que é a mais importante delas, a mais decisiva, a mais alta: a razão. A razão não é um ponto de partida, é um ponto de chegada. Ou, melhor ainda, é um ponto de chegada ao qual nunca se chega. Porque a razão é uma possibilidade de efetivação que progressivamente se transforma, amplia, torna mais profunda, complexa e rica. A racionalidade é algo que cresce. Ao mesmo tempo é preciso notar que esse crescimento, esta evolução não é algo que se dá em linha reta. Há regressões na racionalidade. E não é preciso que regrida a racionalidade em todos os setores da vida, ao mesmo tempo, num momento dado. É possível regredir em certas atividades e progredir em outras. No momento atual, a racionalidade que diz respeito ao manuseio, à capacidade de manipulação dos fenômenos da natureza, é progressiva. A capacidade racional de entender a totalidade da dimensão humana, neste sentido social, este é um momento regressivo em termos de média dominante no mundo. A dialética é capaz de explicar precisamente como uma coisa pode ascender e outra descender simultaneamente. Coisa que era um enigma para toda a história do pensamento anterior, onde os historiadores se viam embaraçados com coisas desse tipo: avançou aqui, porém lá não, por quê?

Com todo esse discurso eu quis caracterizar de forma muito nítida a idéia de concepção de racionalidade que não é uma entidade natural. A razão da dialética não é uma razão natural, mas é uma razão histórica. É como tal que se desdobra, que evolui e involui, que se amplia e se reduz. Não há uma única razão humana. Aristóteles: o homem é um animal racional. Parece aqui embutida a idéia de uma razão padronizada, uniforme, que nem decresce nem evolui. Uma razão que tem configurações estabelecidas, configurações estas que não se alteram. Quando a perspectiva que aqui se traduz é precisamente o inverso. E as mutações têm momentos decisivos para ocorrerem. Ocorrem em consonância com a alteração das formas de organização da sociedade. Mais um elemento pelo qual a determinação social do pensamento se justifica.

Neste sentido, inclusive, como elemento entre aspas de prova, o que temos: que até a prova empírica disto existe. A análise mostra que as teorias, por exemplo, gnosiológicas, metodológicas, as formas da ciência, as ciências que aparecem e as ciências que desaparecem, as disciplinas que são consagradas num determinado momento e noutro somem, formas literárias, por exemplo, o romance. O romance não existiu eternamente. Formas de inteligência que são típicas de momentos históricos. Formas de consciência política, social, econômica, etc.

O que eu quero marcar, aqui, é a idéia de uma razão historicamente dada. Uma razão que não é uma faculdade meramente natural, conseqüentemente, é claro que não é uma mera subjetividade. Claro que a razão não existe fora do indivíduo, da inteligência, portanto ela é um elemento interior do homem. Mas, o que eu quero dizer que ela não é pura subjetividade é no seguinte sentido: ela não tem regras próprias, a sua lógica não é gerida por ela. A lógica da cabeça não é um produto da cabeça. É um instante abstrato da lógica da realidade que passou para a cabeça.

É o concreto pensado, mas aí, como forma lógica, um concreto pensado vazio de conteúdo. Retida apenas a logicidade de conteúdos agora não referidos. Então, um silogismo, que parece algo constituído puramente pela mente, é facilmente perceptível como o resultado de encadeamento de afirmações e negações que derivam de afirmações e negações trazidas diretamente de uma longa e milenar exercitação de atividade prática. Se eu tenho A igual a B, B igual a C, portanto, A igual a C, sob esta forma genérica e abstrata total, eu tenho passagens da vida absolutamente concreta e imediata que, abstraídas do seu conteúdo me dão esta forma. Esta forma não é o que gera a possibilidade de operação com elas, mas elas são o resultado de uma operação na realidade. Em última análise, é o resíduo purificado que fica na cabeça depois de milênios de exercício efetivo e real do homem. Que se fixa como um território homogêneo e que é utilizado para mexer nas coisas que antes não eram mexidas.

Todas as categorias do entendimento seriam abstrações de operações que a realidade prática estabeleceu.

Essa razão que se constitui historicamente tem agora que ser vista na relação entre conhecimento absoluto e conhecimento relativo e que está ligado ao que já foi aludido como infinitude e finitude da razão. A concepção da infinitude da razão significa para a dialética o seguinte: o homem é capaz de apreender o significado, conhecer portanto todas as coisas do mundo na sua máxima interioridade e profundidade. O homem individual, sua consciência real objetiva é uma consciência que pode se expandir. Está ligado isto à constituição histórica da razão. E esta infinitude da razão individual não significa que a nível de cada individualidade seja realizada efetivamente. Porque é que ela não é realizada efetivamente? Porque o conhecimento absoluto não depende pura e simplesmente da individualidade. Segundo, todo e qualquer conhecimento depende do estágio histórico em que os entes já tenham se explicitado. Eu não posso efetivamente conhecer o segredo do trabalho antes que o trabalho tenha chegado à sua forma mais completa e fundamental. Aristóteles, que aludiu à questão do trabalho e aludiu com muito rigor, esta noção de trabalho que ele tinha era uma noção limitada na medida em que a forma trabalho é uma forma limitada. Só quando se chega ao trabalho mais alto que a história já gerou, que é a forma do capitalismo, é que eu posso entender a totalidade ou a quase totalidade do trabalho. Que quer dizer então isso? Que a infinitude da consciência está delimitada pelas aquisições possíveis a cada momento histórico dado. Significa que a infinitude da consciência, em realidade, para cada instante histórico, é uma finitude, mas essa finitude não se fecha em si, é uma finitude aberta para a infinitude do gênero. Se eu tomo agora a noção já apresentada de sujeito coletivo, a infinitude é uma possibilidade do sujeito do conhecimento. Do sujeito coletivo do conhecimento, não simplesmente da singularidade. Ainda que esta singularidade, em Marx, seja concebida como cada indivíduo sendo o elemento que reproduz em si o seu gênero. Isto é, cada homem é, ao mesmo tempo, a totalidade da humanidade à qual pertence. Ele pode reproduzir em si; não quer dizer que ele reproduza sempre porque há o problema da alienação que o priva disso. Cada indivíduo traduz dentro de si o gênero, a totalidade da humanidade. Mas esta humanidade tem, como sujeito coletivo do conhecimento, também os seus limites historicamente postos. É a isto que se chama relação dialética entre conhecimento relativo e conhecimento absoluto. O relativo não é aqui sinônimo de relativismo. No sentido de que o sujeito A conhece A’, o sujeito B conhece B’, o sujeito C conhece C’ e são conhecimentos diferentes, cada um conhece um pedaço, cada um tem uma certa apreensão, mas não é o todo, conseqüentemente cada pedaço é relativo e eles se equivalem. Para a dialética está inteiramente excluído o relativismo. Ou a verdade está aqui ou está ali. Ela não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. A verdade é uma. Eu posso ter dez posições diferentes. Ou todas as dez estão erradas, ou uma das dez está certa. E não é preciso que a maioria acredite nesta única. Pode ser que seja a minoria. O fato de a maioria acreditar em alguma coisa não é nenhuma prova de que aquilo seja a verdade. Pode provar simplesmente que a maioria está alienada.

Essa relação relativo/absoluto tem esse caráter: o conhecimento, em cada momento histórico, é delimitado, mas ele abre para o conhecimento integral que é o absoluto. Absoluto não é imóvel, eterno, inamovível, perene. Absoluto é totalidade.

Esta última palavra me abre para um novo subcapítulo da exposição. A noção, o conceito fundamental no marxismo, no plano metodológico, da totalidade. O conceito de totalidade é absolutamente decisivo. Em última análise, o método dialético é a pretensão de reproduzir na cabeça a totalidade do objeto inquirido. E, do ponto de vista da dialética, só a totalidade contém e revela a verdade. Fora da totalidade não há verdade. Um exemplo: se eu pego minha orelha, corto fora e ponho em cima da mesa, essa orelha em cima da mesa já não é mais orelha. Porque ela se define como orelha enquanto está numa posição dentro do todo que lhe permite ser a especificidade do seu elemento peculiar. A orelha recortada e colocada na mesa, ela não ouve mais, ela perdeu a sua essência.

A totalidade é um todo, porém um todo ordenado. Mas, seu eu pego esse mesmo cão, antes de tê-lo retalhado, e o acompanho desde o seu nascimento até à sua morte, eu hei de notar claramente que de início ele é um cãozinho, que se desenvolve, muda permanentemente. Entre o cãozinho e o cão já velho que morre há uma só totalidade, mas eu tenho aspectos diferentes em cada momento. Como fica isso? Portanto, a totalidade é um todo ordenado em processo.O todo não é apenas um conjunto estável, ao contrário, dialeticamente pensando, não existe nada estável. O todo está em processo, o todo é, por excelência, esse conjunto de mutações. Assim, eu pergunto: aquela árvore, aquela árvore é uma totalidade? É apenas um instante da totalidade. A totalidade dessa árvore vai da semente à morte da árvore. Esse é apenas um instante empírico. Essa árvore, na imagem imediata dela é uma abstração porque é um pedaço. Eis um dos grandes erros da fenomenologia: tomar a experiência imediata fenomênica como todo o real.

De modo que a totalidade é um todo matrizado, é um todo ordenado em processo e o real tem momentos distintos de determinação. Nessa totalidade total eu posso perfeitamente distinguir totalidades momentâneas ou parciais. A totalidade desta árvore neste momento.

Eu falei de conceitos que. Se a totalidade é esse conjunto, o conhecimento é a reprodução deste conjunto. Com todas aquelas características ontológicas anteriormente anunciadas, a concepção de ciência, da dialética em Marx é ser capaz de reproduzir a totalidade na cabeça. Aquela idéia: o sujeito infinito; o objeto capturável na sua totalidade, historicamente determinada, na relação de essência e aparência, na relação de conhecimento relativo e absoluto.

Retomando por onde havíamos deixado o percurso do raciocínio. Que era precisamente a idéia de constelação. Que era para abrir um momento decisivo no método dialético que são as determinações recíprocas. A idéia de constelação conceitual ganha na dialética de Marx uma importância capital. A ponto de não ser possível a compreensão de um rol de conceitos como é feito noutras tendências. Aliás, muitos cursos de introdução iniciam com um longo capítulo sobre as noções e conceitos fundamentais de. Isso é absolutamente impossível em termos de dialética. Uma listagem de conceitos metodológicos, apresentados um a um, isoladamente, levaria a uma visão inteiramente paralisante da própria concepção.

Sempre a necessidade está, expondo no mínimo dois ou três conceitos ao mesmo tempo, o que não quer dizer que não se possa deter-se com o máximo de rigor sobre cada conceito, mas esse deter-se sobre cada conceito implica falar simultaneamente de mais algum. Sempre a idéia na arquitetura conceitual da constelação. Porque na medida em que se toma a sério a noção de totalidade, onde uma ordenação do conjunto das partes é que preside a instalação efetiva do significado, isto é, o sentido real da coisa vem pelo conjunto interligado.

O conceito isolado é uma coisa totalmente abstrata no pior sentido do termo, no sentido de parte unilateralizante, de parte que faz o peso cair para um dos lados, com um peso indevido. Mesmo a idéia de modo de produção, a gente está compreendendo no modo de produção ao mesmo tempo um conjunto muito grande constelar de conceitos. Se não o compreendo assim ele vira uma forma. Ele vira exatamente o que Marx não quer que vire, uma mera abstração.

Alguém poderia perguntar: mas, então, o marxismo na opera com abstrações? Sim, opera. A grande dificuldade do método dialético, o elemento da prova, é precisamente o seguinte: cada conceito pode ser usado em níveis distintos. Que níveis são esses? São os níveis, são os planos de concreção. Que plano de concreção é esse? É o espaço entre dois pólos. Entre o abstrato abstrato e o concreto concreto. Entre a abstratividade e a concreticidade. A concreticidade como objeto real, como efetividade da existência, a coisa existente efetivamente na realidade e o abstrato, isto é, algo que diz respeito a isso, mas diz respeito de forma genérica, conseqüentemente eliminadora de um conjunto de suas partes.

Entre esses dois pólos da máxima concretude possível e da abstratividade possível, que caminhando entre as duas, todos os instantes em que concreto e abstrato estão misturados. Mas, cada um desses infinitos pontos é uma condensação onde o elemento abstrato e o elemento concreto estão simultaneamente presentes. Isto é, cada um destes pontos corresponde a dois níveis: a determinação muito rigorosa em que nível se fala é muito decisiva no método dialético. Se eu estou falando no nível abstrato, se eu estou falando no nível concreto.

Com as constelações acontece o mesmo. Eu posso ter a constelação na concretude máxima e posso ter a constelação no pólo da máxima abstratividade. Entre esses dois pólos, a própria constelação, que não é apenas objeto, ou uma idéia que pode estar nos pólos, mas o conjunto das idéias é que pode estar neste contínuo puntiforme. A grande dificuldade é nunca perder de vista, por quem faz a investigação, em que níveis ele está pondo a constelação. Mais ainda: os diferentes conceitos de uma constelação não precisam estar todos ao mesmo tempo no mesmo nível. Alguns dos conceitos entram com maior concreticidade, outros entram com maior abstratividade.

A gente está muito agarrado a ter noções rigidamente firmadas, como formas vazias, onde atira os dados empíricos. No método dialético isso tudo tem que ser esquecido, porque concreto e abstrato, dado empírico e caminho para a concreção, permeado pela abstratividade que está pulsando em todos os sentidos. Discernir precisamente os níveis é controlar a “aplicabilidade” do método. Por que isto ocorre? Por que é uma exigência do método? Não. Porque a realidade procede deste modo. As constelações conceituais chegam a ganhar esta forma porque a realidade se comporta desta forma.

Exemplo: a forma mais concreta do trabalho só surgiu no capitalismo. Mas, um conceito em nível abstrato muito mais amplo do que o próprio trabalho concreto surgiu no escravismo. O fenômeno real trabalho só ganha a sua plenitude no capitalismo. O trabalho nos modos de produção anteriores é, em relação à forma trabalho concreta do capitalismo, uma forma mais primária, portanto, pode-se dizer mais abstrata, menos complexa e menos rica. Mas, o conceito que Aristóteles tinha do trabalho era mais amplo do que a concretude do trabalho no seu tempo.


A exigência lógica ao tratar o conceito de trabalho imediatamente o obrigou a perceber certos componentes universais que não estavam ali, mas só vão aparecer no capitalismo. Quando ele distinguiu trabalho efetivo e o momento de apreensão mental. A consciência do trabalho e o trabalho. O trabalho compreende sempre dois momentos: consciência e trabalho efetivo. Está presente na dimensão teleológica do trabalho o elemento consciência. A consciência, o por teleológico no escravismo é muito rarefeito. O escravo não tem teleologia nenhuma. Mas, Aristóteles percebeu que o trabalho tem teleologia. Ele percebe que o trabalho não é mera atividade física. Que a atividade física compreende um momento de consciência. Assim, o trabalho é muito mais abstrato no escravismo e muito mais concreto no capitalismo. Como realidade, em nível de conceito, a noção trabalho, em Aristóteles, é muito mais ampla que o próprio trabalho que ele conseguiu ver. Por exigência do próprio conceito. O grão de teleologia que existe implica trabalhar a teleologia.

O abstrato é parte, é algo segmentado, é algo que perdeu a diferenciação. Nesse caso, o trabalho concreto do escravismo é mais incipiente e mais abstrato. Mas, o verdadeiro trabalho abstrato só aparece no capitalismo, que expressa o verdadeiro trabalho concreto. Trabalho abstrato do capitalismo é um concreto abstrato da realidade. Exemplo: eu tenho uma fábrica num setor da economia, que produz mercadorias do tipo metalurgia, outro setor que produz artefatos de madeira, um terceiro, roupas, um quarto, alimentos, etc. Para que possa haver a troca de parafuso por arroz, de arroz por calça, de calça por remédio, deve haver alguma coisa que igualize tudo isso. A igualdade é o trabalho abstrato. Que quer dizer isso? Não interessa mais se eu mexo com madeira, com ferro ou com tecido. O que interessa agora, para poder medir essa igualdade, é saber qual o tempo social consumido para fazer qualquer dessas atividades. O trabalhador da fábrica não trabalha mais concretamente. E sob nenhum aspecto. Em primeiro lugar, ele trabalha pedaços. Já é uma abstração. O que importa não é o que ele faz, mas quanto tempo ele consome para fazer aquilo. Conseqüentemente, o trabalho tem como essência a abstração do trabalho concreto e a retenção do tempo social consumido. Isto é que é o valor. O ser do trabalho concreto é o trabalho abstrato.

Toda esta questão foi posta relativamente ao problema das abstrações que estão sempre permeando as constelações. O que é praticamente interessante de reter: quando se constitui o trabalho orientado pelo método dialético, em primeiro lugar busca-se a totalidade. A totalidade garrafa, como forma de conhecimento é uma constelação conceitual. Essa totalidade conceitual vai ficar em níveis distintos de abstração e concreção. Quando eu disse: a essência da garrafa é ser mercadoria, esse é um instante de determinação abstrata. É a essência abstrata dela. Sem o que o restante não dá para ser devidamente amarrado. Por sinal, o copo também é mercadoria, o cigarro também. Se eu ficar só na determinação mercadoria, todos esses objetos viram um só. É que a chave abstrata aqui me permite, na seqüência, fazer a determinação concreta. A determinação concreta não significa superar a noção de mercadoria, mas concretá-la. Eu não vou mais perder de vista a noção de mercadoria. Por que ela imediatamente me dá o que? O fato de este objeto não ser um objeto natural, mas um objeto histórico. Se é um objeto histórico, ela me dá o conjunto de operações necessárias para chegar à mercadoria garrafa, a esta mesa. Significa um ciclo produtivo, um ciclo distributivo, um ciclo de aquisição. A determinação concreta disso implica trazer à tona todas as formas de concreção. Agora, a concreção absoluta é desnecessária cientificamente. A concreção absoluta implicaria tomar todos os detalhes, mesmo ínfimos, e integrá-los na teoria construída. Porém, isto não é necessário, na medida em que graus ainda não tão concretos já me traduzem toda a concreção necessária para a compreensão. Então, eu me limito àquele instante. Como é que eu sei que o limite chegou? É quando a reconstrução conceitual ganhou um corpo de identidade concreta, que tem consciência de certos buracos abstratos, mas sabe que o preenchimento destes buracos abstratos já não altera o conjunto. Como eu sei isto? Nunca antes de fazê-lo.

Não há um requisito formal, na dialética, para dizer você chega até tal ponto, senão nós cairíamos novamente no método formalizante. A completude formal. Como a completude não é formal, quem rege a completude é o próprio objeto.

Alguém dirá: mas isso é inteiramente incontrolável! Absolutamente. É rigorosamente controlável. É muito mais controlável do que a forma, porque a forma é um atendimento artificial, ao passo que o atendimento concreto deriva de estar permanentemente revendo o suposto da própria concreção. Isto é, o método, em cada instante, está sendo revisto. A prova não nasce formalmente de fora, a prova se põe pela constituição concreta. A prova não me vem como alguma coisa que eu tenho fora do meu trabalho e seu eu chegar a este padrão eu concluí. A prova me vem pelo próprio texto constituído. É quando o texto ganhou uma identidade de reprodução que eu posso parar.

Agora, eu posso me enganar. Onde, então, a outra prova ontológica se porá? Ela se porá na famosa palavra práxis. Mas, não na forma em que ela é comumente utilizada. Vulgarmente, a palavra práxis é entendida como a prática imediata empírica. Resultado: se eu tenho uma teoria, se eu monto uma teoria e testo pela prática, se empiricamente ela dá resultados positivos, ela é verdadeira. Se empiricamente, ela dá resultados negativos, ela é falsa. Isto não é dialética, é pragmatismo. Assim se eu tenho uma teoria sobre um conjunto social num momento eleitoral, se eu ganho as eleições eu tinha lido a sociedade direito, se eu perco, eu tinha lido errado. Isto é falso, dialeticamente. Eu posso estar certo perdendo as eleições e posso estar errado ganhando.

A práxis é uma prova, mas não concebida como empiricidade, mas como ontologia. Isto é, não é funcionalmente concebida, como resultados positivos ou negativos, mas é a compreensão dos resultados da prática pela lógica dos seres em movimento. Prova ontológica (não no sentido medieval do termo), significa a compreensão, pela interioridade do objeto, daquilo que lhe ocorreu. Perder ou ganhar uma eleição em si não prova nem desmente uma teoria.A própria teorização, ontologicamente posta, é tomada como prova.

Seria mais interessante, mais compreensível se em vez de prova se usasse demonstração. Como a corrente positivista tem no dado empírico a prova, ela transforma problema em prova, porque o dado empírico é sempre problema, é algo que tem que ser explicado, ela mistifica e diz: a prova está pelo dado empírico, ela não demonstra, mas aponta algo externo à teoria como prova.

A demonstração dialética é de outro tipo. Ela não se satisfaz em recolher pura e simplesmente algumas evidências empíricas, externas à construção teórica. Exemplo: ela toma uma teoria, que não é algo entendido como hipótese (na dialética a teoria não é hipótese de explicação, ela subentende que é a reprodução conceitual do real) através dela, a realidade terá que se comportar provavelmente de um jeito ou de outro. Seja qual for o comportamento desta realidade, se a reprodução deste segundo comportamento estiver em articulação adequada com aquilo que a primeira teoria reproduziu do movimento, está provado. Quer dizer que eu tenho a idéia de que a luta de classes é o motor da história. E tenho a atualidade, por exemplo, os Estados Unidos. Nessa luta de classes, para Marx, o agente transformador é o proletariado. Eu pego na empiricidade, nos EUA, e a classe operária é uma das camadas menos inquietas e mais conformistas. Se eu tomar a prova empírica para este caso, o marxismo é falso. Porque o país mais altamente desenvolvido do ponto de vista capitalista, com o seu proletariado mais desenvolvido e organizado, é o menos revolucionário. Portanto, a teoria de Marx é falsa.

Mas, nenhum marxista aceita que a classe operária não seja a classe revolucionária. Só que a maioria não sabe o que dizer com relação à classe operária norte-americana. Porque ela passou a pensar também a prova como empírica. Quando, para Marx ela jamais foi. Aliás, nos Manuscritos econômico-filosóficos, ele começa uma crítica à economia política. Então, lá ele diz que a Economia Política parte da propriedade privada, mas não nos diz nada a respeito da sua constituição. Portanto, a Economia Política nada nos explica a respeito da propriedade privada. Eis aí um lance metodológico-ontológico. Não adianta partir do dado empírico e provar pelo dado empírico. Eu tenho que explicar, que demonstrar. A prova é demonstração.

Então, a classe operária americana. Se eu tomar empiricamente, eu estou diante de uma factualidade que me recusa o caráter revolucionário dessa classe. Ora, para obter uma demonstração eu preciso explicar esta factualidade. Então, se o método dialético tem a capacidade de me permitir explicar porque a classe operária norte-americana tem esse comportamento durante esse período, não só eu entendo porque ela tem, mas continuo a afirmar o caráter revolucionário caso eu possa demonstrar que esse estágio atual é resultado de uma integração ontológica que não é permanente, mas é circunstancial e nesse instante leva a um amordaçamento da consciência desta classe e leva a uma situação de equilíbrio material onde ela não tem como nem porque reagir. Então a prova não está pela derivação do seu comportamento imediato, mas pela sua essencialidade ontológica. Para dar o remate. Não é porque a classe operária norte-americana, hoje, não levanta a bandeira revolucionária que esteja resolvida a contradição capital-trabalho.

Eu vou finalizar agora tentando mostrar como se faz essa concreção. Para que não se pense que o método dialético é apenas uma atitude. É um procedimento exatamente rigoroso e exatamente preciso porque ele não é formal. Exatamente porque ele não tem um conjunto de regras, um conjunto de procedimentos. Mas, ele tem isto sim, um conjunto de referenciais ontológicos. Eu vou tentar articular uma súmula dos referenciais ontológicos e num ponto tentar trabalhar no plano lógico a exigência de concreção.

Uma evidência espero ter constituído: que o método, na dialética de Marx, está rigorosamente colado à ontologia. Não existe método sem ontologia. Lukács dizia que qualquer questão séria de metodologia desemboca em ontologia. Todas as questões de metodologia que não desembocam em ontologia são baboseira. O que há de sério, no método, está na sua essencialidade ontológica. Resultado: o método dialético dá um conjunto de equipamentos operacionais que são os instantes de abstratividade ontológica que norteiam os passos de modo decisivo. Primeiro equipamento é um conjunto crescente, nunca estabilizado, de parâmetros ontológicos, que, pela sua abstratividade, configura itinerários metodológicos.

O conjunto de noções abstratas, nunca formais. O que é uma abstração nesse sentido? É uma parte de um conteúdo seccionado de outros. Uma abstração é um seccionamento conteudístico e genérico. É um conteúdo genérico. Não é uma forma vazia, como a forma matemática. O método não trabalha com a noção de forma vazia, forma matemática, mas com nódulos genéricos conteudísticos, abstração, resumo genérico de alguma coisa.

Primeiro, o ser é uma totalidade, ordenada, em processo. Qualquer objeto, para que possa ser estudado, tem que ser tomado na sua integridade. Quer dizer, então, que só posso estudar o mundo todo de uma vez? Não. Eu posso recortar no mundo elementos que, mantidos na sua integralidade, sejam possíveis de concreção. Se só na totalidade é possível a descoberta da lógica interior que a rege, um recorte inadequado mutila a lógica interna e impossibilita a descoberta da lógica interna que aquilo possui. A ontologia dá os lineamentos dos objetos. A ontologia seria, pelo menos no seu nível abstrato, os lineamentos mais gerais do ser. Então, o ser social. O ser social é uma forma da materialidade, é matrizado pelas formas de produção e reprodução material da existência. Estas formas são a carapaça, o solo matrizador desse todo, que não é constituído apenas pela base material, mas gera outras especificidades. O corpo humano não é apenas a coluna vertebral, mas também braços e pernas que são derivados dessa coluna, ou melhor, só têm sentido em relação a esta coluna.

Nesses modos de produção, as categorias sociais se recortam e entre elas há sempre dois ramos antagônicos. O conflito entre elas gera a história desse modo de produção, gera, por determinação não linear e não mecanicista, as idéias, gera a consciência. Ora, se eu vou estudar uma ideologia, essa parametração ontológica me faz localizar a ideologia obrigatoriamente nesse contexto. De modo que eu tenho que descobrir a gênese daquele sistema de idéias, a função social daquele grupo de idéias e tenho que obrigatoriamente fazer aquilo que nós chamamos o plano filosófico, que é a análise imanente dessas idéias. É o conjugado dessas três coisas que permite entender a ideologia. Se eu arranco a ideologia fora desse contexto, eu passo a ter um sistema de idéias incompreensível. Nem na sua estrutura lógica, porque esta depende do modo de produção. Não é ter a matriz social, mas ter a matriz ontológica do ser social. A linguagem não é uma linguagem fora do homem. A linguagem é uma linguagem no homem e o homem só é homem na sociedade. Não existe linguagem pura, só existe linguagem humana. Isto não é um pressuposto tranqüilo. Tranqüilo é que a linguagem está num contexto social. Mas, que a linguagem seja produto ontológico do social, já é diferente. Qualquer filósofo não marxista admitiria hoje que a economia é um fator. Mas, para o marxista, a economia não é fator, é matriz. Não é nem causa, é matriz. A política é a forma do econômico ao nível do poder de Estado. Não quer dizer que haja uma derivação como uma corrente linear. A linguagem. O que é a linguagem? A linguagem é a consciência prática. É a consciência que se comunica, mas não no sentido de passar informações, mas passa informações porque propõe ações ao outro.

Esses elementos norteadores, que demarcam o caminho, são fundamentos filosóficos da investigação científica do objeto. Se a ciência busca alguma coisa, ela tem que saber o que busca. É o preconceito positivista que supõe um investigador que desconhece tudo em relação ao objeto, ser capaz de investigar o objeto. Se ele desconhece tudo do objeto, nem este objeto existe para ele. O positivismo configura uma mistificação grosseira de supor um investigador dentro da sala escura, procurando um gato escuro que lá não está. Se eu não sei algo do objeto, não sei o que procurar. Então, o que eu sei de início? Eu sei uma abstração ontológica. Mínima que seja. Essa abstração ontológica, configurada por todos os elementos mais ou menos aflorados, me permite buscar a concreção. A concreção seria o momento de ciência deste saber que começou ao nível filosófico-ontológico.

Para a dialética, não existe diferença entre ciência e filosofia. Ambas são apenas momentos distintos de um mesmo saber. O saber das coisas. Então, agarrar as coisas subentenderia a existência de um vai-e-vem entre o momento filosófico e o momento científico – o filosófico como mais abstrato e o científico como mais concreto – ainda que as coisas possam ter momentos mais abstratos do concreto científico e momentos mais concretos do abstrato filosófico. Esta malha que vai se formando, busca desse perfil, desse desenho preliminar ontológico, percorrer o caminho de concreção e chegar ao objeto efetivamente concreto. Isto é, transformar a ontologia abstrata em ontologia concreta. A ontologia concreta, se pensada em termos de uma ciência autônoma, “independente”, nós temos o produto científico.

Sintetizar todos os dados, integrar sob todos os ângulos, por aquilo que eu chamei de determinações recíprocas e por constituição constelar conceitual, eu chego ao concreto.

Acontecem várias coisas. Duas mais importantes: uma, eu concretei; outra, a abstração ontológica inicial agora pode se converter num perfil ontológico mais abstrato e mais concreto. Portanto, quando eu faço ciência eu não abandono a filosofia. E a retomada, no plano ontológico, permite engordar esse ontológico, significa torná-lo mais complexo, mais rico, mais concreto, e ele passa servir para uma segunda investigação de forma mais profunda. Mais do que isso. Em última análise, aquela idéia de aproximação do conhecimento que eu coloquei tem aqui um dos seus momentos importantes. Eu parto de uma abstração ontológica, chego ao produto científico concreto. Mas, com esse produto científico eu realimento a minha ontologia. Então, eu posso agora fazer novamente o percurso e melhorar a minha ciência. Aí, quando eu cheguei, pela segunda vez, ao final da ciência, eu posso, pela terceira vez, melhorar a ontologia. Eu posso fazer de novo o caminho da ciência. De forma que cada um desses círculos é um círculo de maior amplitude concreta. Hegel falava que a ciência é um círculo feito de círculos. Nesse sentido, estamos aqui numa plataforma hegeliana. Para passar para o marxismo, é preciso substituir círculos por espirais. Então, eu digo: uma espiral de espirais. Onde se vai elevando o nível. E a elevação do nível não está na fixação de generalidades, mas na retratação concreta das singularidades. Mas, para que isso possa ser feito, as tuas generalidades são generalidades agora que abandonam o terreno pura e simplesmente da generalidade abstrata e são generalidade concreta.

O que é generalidade concreta? É a generalização que não contém apenas as igualdades de elementos diversos, mas contém a igualdade e as diferenças. O universal, para Hegel, e especialmente para Marx, não é aquilo que contém apenas o denominador comum de objetos do mesmo tipo, mas contém os elementos diversos. A ciência usa a abstração como mediação. A abstração não é o ponto de chegada, na dialética. É meio. É instrumento.

(Marilu: generalidade concreta é um absurdo! Ou é concreto ou é abstrato).

Isto é o preconceito lógico do positivismo. Isto está estourado desde Hegel. O universal concreto é um conceito decisivo em Hegel. Comte também fez de conta que não existia. O universal concreto é o universal que contém em si, enquanto conceito, a igualdade e a desigualdade e supõe a sua existência na realidade. Trabalho abstrato é um universal concreto.

O momento do perfil ontológico norteia os passos do andamento científico. O arcabouço ontológico me instrui sobre o que fazer no terreno científico. Primeira coisa: o recorte legítimo. Como é que eu recorto legitimamente um objeto? Se eu tomar uma laranja e recortá-la empiricamente, eu posso passar a faca de qualquer lado e de qualquer jeito. Essa talhada corta não ao nível orgânico da laranja e seu eu começo a estudar assim, eu tenho uma arbitrariedade. Qual foi a lógica que me inspirou o corte? Nenhuma. A casualidade. A coleta de dados empíricos é uma causalidade arbitrária. O que eu colho é um caos que não tem ordenação.

(Marilu: depois eu arrumo)

Eis o crime. Eu começo a ordenar pela cabeça e não pela lógica que eles tinham na realidade. Eu dou a ordem, ainda que eles estivessem numa ordem dada. A coleta de dados empíricos desinstrumentalizada ontologicamente significa arrancar manchas empíricas, factualidades de uma lógica à qual eles pertencem sem respeitar essa lógica. E depois arrumá-las.

Se eu tomo a laranja e a recorto de acordo com a lógica orgânica dela própria, aí então eu respeito o seu em si. Este passo é também o passo que esclarece como se gera a ontologia.Ora, se o método deriva da ontologia, a ontologia norteia o método. De onde vem a ontologia?

Se eu tomo a laranja e me aproximo dela já com a atitude de quem a respeita. Supondo que ela tem uma lógica dela, que não sou eu que vou dar a lógica a ela, através da minha cabeça, mas que a minha cabeça vai descobrir a lógica dela, eu já tenho uma atitude completamente diferente da do coletor de dados empíricos. Tiro a casca da laranja; tiro a película que resta; vejo que ela é formada de gomos. Em vez de dar um corte, eu separo os gomos. Eu mantive unidades, eu mantive recortes de integralidade do fruto. Abro a película de um dos gomos e descubro que lá dentro existem aqueles grânulos, que separados são unidades reais. Só nesse descascar, só nessa dissecação eu estou descobrindo as partes da sua integralidade. Eu não vou reinventar depois uma lógica, mas eu já sei que debaixo da casca há gomos, dentro dos gomos há aquelas cápsulas...

O recorte legítimo está em vários níveis. O gomo é um recorte legítimo; a cápsula é outro; a semente é outro...e o meu estudo de integralização que vai do suco que está na cápsula, passando pela cápsula, pelo gomo, pela articulação dos gomos, na junção dentro da cápsula, da casca que se fecha e solta o galho, que se prende à árvore e se liga a um tronco, que desce a uma raiz, que está num solo. A laranja na sua integralidade é esse todo. Esta é a totalidade, o que não quer dizer que eu tenha que estudá-la toda de uma vez. Posso estudar por partes se cada parte estiver referida ao conjunto, se não é uma abstração. Se eu estudo uma parte, em diferentes camadas de concreção eu fico. É legítimo, numa tese, dizer: vou ficar mais abstrato aqui e mais concreto acolá.

Na sociedade, o recorte legítimo obedece a um procedimento muito semelhante. Eu preciso partir da configuração ontológica, que me dá os lineamentos (os modos de produção, as categorias sociais...).

Seguindo, na sociedade, a questão ontológica, eu tenho a possibilidade de recortar. Recortar sempre remetendo ao todo. A primeira coisa das duas últimas que eu quero mencionar é a seguinte: os seres reais se põem na existência e para o pensamento, em três categorias de generalização. Para o pensamento e para a realidade, essas três formas são existentes, isto é, essas três categorias: singularidade, particularidade e universalidade. Não são apenas conceitos, mas são existência. São categorias da consciência e da realidade. Exemplo: cada uma das pessoas aqui presentes é uma singular da universalidade humanidade. Exemplo de particularidade: os homens de um lado, as mulheres de outro.

Na sociedade, na vida humana no seu conjunto, essas três formas, tem três formas muito importantes e o pensamento não dialético elimina uma delas. Faz uma operação de eliminação no plano lógico para poder eliminar a nível sociológico. Entre a singularidade indivíduo e a universalidade humanidade estabelece-se em geral o vácuo, isto é, entre a individualidade e a universalidade não aparece nenhuma mediação. O indivíduo é remetido à universalidade da humanidade diretamente. Contudo, em termos reais, este elemento é a mediação que liga o indivíduo à humanidade. A particularidade que é eliminada por um golpe mágico das correntes não dialéticas é a classe. A classe é, do ponto de vista histórico, a mais importante das particularidades. O indivíduo pertence à humanidade passando pela sua pertinência à classe. A lógica das ciências humanas, em geral, aboliu a lógica da particularidade precisamente para poder abolir a efetividade das classes sociais. Ou apenas preserva a particularidade como forma lógica da mediação ao estilo aristotélico onde o particular é pura e simplesmente um elo de ligação. No silogismo, o termo médio só funciona como mediação conceitual. Na dialética, a particularidade é concebida como existência real e por isso ela redunda, na consciência, numa categoria que é lógica, mas é lógica porque é real. E a concreção tem nesta particularidade toda a chave do método.

Quando eu quero designar um objeto, uma coisa qualquer (o método dialético se posta diante da coisa – aqui coisa não necessariamente entendida como pedra – a coisa social é muito diferente de uma coisa pedra, mas da coisa enquanto coisa que não está convertida ainda em objeto – eu dizia que o método dialético presta atenção a este momento e busca a conversão da coisa em objeto. O que é a coisa? É aquilo que ainda não entrou numa relação com um sujeito qualquer que a transforma em objeto. Objeto é a designação da coisa quando há um sujeito que se relaciona com ela. O em si de um objeto é a coisa. É algo que a dialética de Marx quer apanhar independentemente da relação com o sujeito cognoscente. Através do objeto ela vai buscar a coisa. Por aí estão eliminadas todas aquelas colocações bachelardianas da construção do objeto. Marx é o oposto de Bachelard. Bachelard é uma sofisticação da retomada do construto racionalista. E está naquele ramo dos positivismos. Se Bachelard quer construir o objeto, Marx quer, através do objeto, que não é construído, mas tomado, chegar à coisa. Chegar à coisa é operar a concreção.

Partindo de Hegel, que na Fenomenologia do espírito aponta isto com muito talento: a mudez da singularidade imediata. A singularidade imediata é muda. Significa: diante de uma coisa dada singularmente na sua imediaticidade essa coisa não pode ser dita nem pensada. Tente-se pensar essa garrafa sem pensar na palavra garrafa. Para dizê-lo, eu determino: esta é garrafa. O que é garrafa do ponto de vista lógico? É uma universalidade abstrata. Para designar a singularidade eu tenho que lançar mão imediatamente da universalidade. O objeto singular concreto, na sua imediaticidade, ganha voz pelo seu contrário, pela sua abstração. O objeto, uma vez atado a esse universal, passa a ser dizível, passa a ser pensável. Mas, note que para passar a ser pensável e dizível ele perdeu todo o seu conteúdo concreto. Quando, numa ciência, eu parto da visão caótica de mundo, para começar a falar desse caos de coisas eu começo a classificá-las através de abstrações. Exemplo: sociedade: o sistema de produção, o sistema de distribuição, o sistema bancário, etc. Para falar delas, eu fujo para um universo vazio de conteúdo, mas que é significante. A operação científica do positivismo se encerra aqui. Claro que a partir dessas abstrações a ciência começa a fazer o que. No positivismo? Começa a procurar articular estas palavras pelas palavras, não mais pela sua realidade. Os modelos são isso. Por isso que o marxismo não trabalha com modelos. A dialética rejeita completamente a noção de modelo. Par Marx, este momento que foi da singularidade muda à universalidade abstrata, que designa, que fala, esse é o instante preliminar classificatório ainda não científico. A ciência é um outro movimento, que partindo dessas abstrações faz o caminho de volta para reencontrar a singularidade concreta não mais na imediaticidade da sua mudez, mas na voz multifacética da sua concretude, que é a síntese de todas as determinações colhidas no percurso que vai da abstração à concreção. Como isto é feito? Isto é operado pela lógica da particularidade.

Falávamos em universal, particular, singular. O singular é uma unidade, é um ponto. O universal também é um ponto. O particular é diferente. O particular é um campo infinito. A particularidade é o instrumento da concreção. É um instrumento que vai limitando, determinando a universalidade.

Mesmo a universalidade, na medida em que ela é tomada como universalidade concreta, então ela não é mais entendida apenas como a súmula das desigualdades, mas ela é a súmula das desigualdades e das diferenças. Então, a própria universalidade contém em si a desigualdade. Vale aqui, por aproximação, lembrar de um dos princípios básicos da lógica hegeliana retomado por Marx: a identidade da identidade e da não identidade, isto é, o idêntico entre o igual e o diferente. Isto é que dá origem à noção de contradição. Elementos contrapostos, idênticos entre si e diferentes entre si. O importante é esta volta daqui para o concreto através do particular, que é um campo. Um campo significa que ele não é unitário, ele é multifacético. Ele traz para a universalidade o recorte da determinação. A universalidade é uma indeterminação. A particularidade vai conferindo determinação a algo indeterminado. O processo puntiforme opera que progressivamente a universalidade vai perdendo universalidade porque ela vai sendo determinada e ganhando concretude, exatamente porque ela está perdendo generalidade. Ao perder generalidade, ela está ganhando uma consubstanciação de determinantes da sua limitação. A síntese de componentes distintas que constituem o total neste campo de mediação e neste campo de efetivação do real faz com que o particular vá costurando os diferentes pedaços na medida certa da identidade e da não identidade, articulando o igual e o desigual a ponto de que todas as abstrações que estavam recambiadas para cá, mas não na indeterminação em que estavam aqui, mas sim na extensão, na qualidade e no tamanho que elas têm efetivamente sob o singular concreto. Resultado: os conceitos assim articulados fazem agora com que reencontrem o singular não mais mudo, mas sim falante e falante sob todas as abstrações, mas abstrações na medida certa em cada singular. Isto é a concreção.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Exposição e Método Dialético em "O Capital" - Marcos Lutz Müller

Professor do Depto. de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), UNICAMP. Extraído do Boletim Seaf, nº 2, Belo Horizonte, 1982, p. 26 (grifo meu)


A progressiva perda de especificidade metodológica do conceito de dialética, paralela à generalização do seu uso e à sua ampliação semântica, desembocou, hoje, nas versões não ortodoxas ou humanistas do marxismo, numa comprometedora diluição teórica do conceito, reduzido, muitas vezes, a um adjetivo pleonástico que qualifica um substantivo inexistente, ou, no marxismo-leninismo convertido em visão de mundo, no seu alinhamento ideológico, que evita voluntariamente aquela diluição pela invocação dogmática das três leis de Engels, reabilitadas em 1956.

Mas nenhum dos elementos constitutivos ou dimensões da dialética como método foi tão atingida por esta dissolução teórica e soterrada pelo esquecimento quanto a caracterizada pelo conceito de “exposição” ('Darstellung'), que indicava para Hegel e para o Marx d'O Capital a explicitação racional imanente do próprio objeto e a exigência de só nela incluir aquilo que foi adequadamente compreendido(1). Quando não se desprezou ou recusou pura e simplesmente o caráter dialético do método d'O Capital como um hegelianismo comprometedor, descartando simultaneamente o conceito de uma exposição dialética enquanto método, como já fizera o primeiro resenhista russo d'O Capital a que Marx se refere no Postfácio à segunda edição(2), e como fizeram muitos outros, posteriormente (BõhmBawerl, Schumpeter), seja para louvar o verdadeiro trabalho científico de Marx e distingui-lo da exposição dialética, seja para julga-lo comprometido por esta e rejeitar ambos, quando não ocorreu isso, apagou-se, aos poucos, a consciência da especificidade filosófica da 'exposição' enquanto conceito inserido numa determinada tradição, retomando-se a conhecida contraposição de Marx entre 'método de exposição' e “método de investigação
"(3), para acentuar apenas a necessidade de um esforço prévio de apropriação analítica do objeto anterior à sua exposição metódica. Sobre o caráter desta exposição metódica existe a maior falta de clareza. Quando não se toma o termo 'exposição' no seu sentido comum de discurso, de texto escrito (ou falado) que se organiza metodicamente conforme o encadeamento das proposições, transferindo-se o ônus da dialética para o método de pesquisa, presta-se uma homenagem encabulada ou puramente verbal ao caráter dialético da exposição, concebido vagamente como um método genético. Já Hegel dizia que o mais difícil é produzir a exposição da coisa, enquanto ela deve unificar a sua crítica e a sua apreensão(4).

Face a essa dissolução do conceito de dialética, contrabalançada apenas pelo seu enrijecimento dogmático correspondente ao seu alinhamento ideológico na ortodoxia marxista-leninista, impôs-se, nos últimos anos, como já em circunstâncias históricas anteriores, a tarefa de banhar, mais uma vez, a dialética marxista nas suas fontes filosóficas imediatas, para questionar a interpretação canônica iniciada por Engels e Lenin. Trata-se de melhor compreender a motivação original que levou Marx a comprometer-se com o “caroço racional'(5) da dialética hegeliana e a conceber-a exeqüibilidade de uma transformação materialista da dialética, através da crítica frontal aos seus pressupostos idealistas em Hegel e através da mutação que ela sofre enquanto instrumento de exposição sistemática e crítica da economia política. É claro que este empreendimento só teria a sua justificação plena passando por uma desconstrução hermenêutica da “história da atuação' da dialética na tradição teórica e prática do marxismo enquanto pensamento que se pretende ligado à história do movimento operário. Mas esta é uma tarefa quase interminável e que ultrapassa os propósitos desta abordagem.

O caminho aqui proposto é antes um atalho: ele mantém na lembrança, como uma espécie de bastidor, os avatares dessa história da atuação do conceito da dialética, para abordar com mais justiça o intrincado problema da incorporação por Marx da dialética como método de exposição crítica dos resultados de uma ciência social emergente, a economia. Quais os aspectos da dialética hegeliana da Ciência da Lógica que foram paradigmáticos para o projeto marxiano de transformação materialista da dialética na reconstrução sistemática e crítica da economia política burguesa, apresentada n'O Capital?(6). Quais as transformações que o “caroço racional” da dialética hegeliana sofre na tentativa marxiana de desvinculá-la dos pressupostos idealistas da metafísica do conceito da Ciência da Lógica e de virá-la materialistamente ao avesso, tornando-a, assim invertida, numa fonte de inteligibilidade das estruturas econômicas da sociedade capitalista? Qual a importância do conceito hegeliano de “exposição” para o método d'O Capital e qual o sentido da retomada deste conceito numa dialética que se quer materialista?

As duas primeiras questões serão abordadas na medida em que elas incidem sobre este elemento constitutivo ou dimensão do método dialético designada pelo conceito de “exposição”. Pergunta-se o que é a dialética enquanto método de exposição d'O Capital?(7). A abordagem restrita a este aspecto, se insere contudo no quadro mais amplo de uma tentativa de analisar, a partir de um confronto entre certas características metodológicas globais da Ciência da Lógica e d´O Capital, quatro características ou, melhor, dimensões principais do método dialético d'O Capital, que poderiam ser concisamente designadas pelos conceitos de: exposição, procedimento progressivo-regressivo, contradição e crítica. O método d'O Capital se caracterizaria por ser uma exposição crítica, progressivo-regressiva das contradições do capital a partir de sua contradição fundamental.

.....

Dialética significa n'O Capital primeiramente e, também, predominantemente, o “método/modo de exposição” crítica(8) das categorias da economia política, o método de “desenvolvimento do conceito de capital”(9) a partir do valor, presente na mercadoria, enquanto ela é a categoria elementar da produção capitalista que contém o “germe” das categorias mais complexas. O conceito fundamental, aqui, para o Marx crítico da economia política, é o de “exposição”, “método de exposição”, que designa o modo como o objeto, suficientemente apreendido e analisado, se desdobra em suas articulações próprias e como o pensamento as desenvolve em suas determinações conceituais correspondentes, organizando um discurso metódico.

“Exposição” é, também, um conceito central da dialética especulativa de Hegel. A Ciência da Lógica se apresenta como a exposição sistemática das categorias do pensamento puro enquanto formas de concepção da realidade, com o intuito de fundar o próprio conceito de ciência (filosófica) e de método(10). Ela pretende, assim, justificar o seu único pressuposto, o de que a razão, especificamente, o conceito enquanto idéia, tem em si a força infinita de sua auto-realização(11). O conceito de “exposição” na Ciência da Lógica está, assim, vinculado intimamente a um projeto de autofundação da razão e do próprio método, enquanto este nada mais é do que a forma do automovimento do conteúdo enquanto ela tem consciência de si(12). Dialética designa, aqui, genericamente, a exposição do movimento lógico do conteúdo (da coisa concebida, “Sache”) enquanto é este movimento que preside ao desdobramento das determinações do conteúdo e se constitui, desta maneira, como o seu método. E o próprio Hegel quem dá ao conceito de “exposição” a conotação metafísica da “explicatio Dei” para acentuar o aspecto simultaneamente subjetivo e objetivo da exposição(13). Mais especificamente, a dialética designa “o princípio motor do conceito”(14), o princípio do movimento que preside à exposição das determinações, que se produzem a partir do universal e nele se dissolvem. Estritamente falando, apenas o segundo dos três momentos em que se articula, conforme a Enciclopédia, a dimensão lógica, o momento negativo-racional é qualificado de dialético(15).

O conceito de “método de exposição” em Marx guardará não só reminiscências do conceito hegeliano de exposição, mas um dos seus elementos essenciais. Quando Marx, em 1857, se lança às primeiras tentativas de uma crítica sistemática da economia política, que vão resultar nos Grundrisse, e se põe a questão de como organizar sistematicamente os resultados de suas investigações críticas dos teoremas e das categorias da economia política burguesa, ele recorre explicitamente ao conceito hegeliano de dialética enquanto método de exposição(16). A dialética enquanto método caracteriza um procedimento que pretende expor construtivamente o “desenvolvimento conceitual do capital”(G, 405) enquanto “capital em geral” (G, 217), o “capital enquanto tal, isto é, o capital social total” (G, 252) a partir de sua “forma elementar” (K, I, 49), a mercadoria (enquanto objeto imediato da circulação e forma econômica dos produtos do trabalho humano), e das determinações progressivas das formas de manifestação do valor, presente na mercadoria: forma-valor simples, forma-valor total, forma-valor universal, dinheiro em suas determinações fundamentais. Ela reproduz, assim, idealmente, o movimento sistemático (lógico) através do qual o capital se constitui naquilo que é, autovalorização do valor. Mas enquanto na Ciência da Lógica a exposição das determinações progressivas do pensamento puro, enquanto conceito, é simultaneamente o processo de sua autodeterminação e de sua auto-realização, até ele emergir como sujeito último e atividade pura (idéia) que perpassa todo o processo como o seu método (WL, II, 484 e 486), n'O Capital, que tematiza uma relação social inserida na materialidade da produção, a exposição enquanto método não é ela mesma, simultaneamente, nem o processo de constituição histórica dessa relação, nem o processo de sua reprodução enquanto sistema de produção capitalista. Por isso, a exposição marxiana reconstrói, no plano ideal, o movimento sistemático do capital enquanto diferente, logicamente, de sua emergência e universalização históricas e diferente, como método, de sua reprodução real sistêmica(17). A exposição dialética não é, portanto, nem o processo diacrônico através do qual o capital se constitui em totalidade, subordinando a si todas as relações sociais de produção (G., I89), nem o processo sincrônico de sua reprodução como sistema. Por isso o desenvolvimento conceitual do capital em geral, no método dialético, não engendra o capital no sentido em que o conceito hegeliano se autodetermina criando a esfera de sua realização e manifestação, mas ele é, primeiro, a condição de compreensão adequada do devir histórico do capital e da sua constituição em totalidade, e segundo, ele pretende ser apenas, isto é, tão só e cabalmente, a exposição das articulações sistemáticas de todas as relações econômicas que se implicam reciprocamente numa sociedade submetida à dominação do capital(18). Como método de exposição dialética, portanto, distinto do “movimento efetivo”, ele supõe a apropriação analítica prévia do material econômico pesquisado, a investigação das “suas formas de desenvolvimento” e da “sua conexão interna”, para então reconstruir discursivamente (enquanto procedimento do expositor) a lógica objetiva do material. Mas enquanto exposição dialética, ela expressa, reproduz, apenas (tão só e cabalmente), em conformidade com a apropriação analítica, o “movimento efetivo” do material, de modo que este se “espelhe idealmente” no método(19).

Com o recurso à dialética como método de exposição, no sentido indicado, Marx procura integrar no seu programa de transformação materialista da dialética especulativa hegeliana, que se realiza através da crítica à economia política, o elemento especificamente dialético naquela presente, e que ele julga racional, desde que desvinculado dos seus compromissos idealistas com a especulação(20), enquanto unidade resolutiva das contradições e integradora do negativo e do positivo (WL, I, 38).

O que caracteriza o conhecimento dialético é, primeiramente, que o verdadeiro (Hegel), o racional e o concreto (Hegel, Marx), não são de acesso imediato a qualquer tipo de intuição intelectual ou experiência direta, que intuiria ou tomaria o objeto no seu ser dado imediato, mas que eles são o resultado de um movimento de pensamento, do que Hegel chama de “trabalho do conceito”, que expõe progressivamente, a partir das determinações mais simples e abstratas do conteúdo, suas determinações cada vez mais ricas, complexas e intensas, até o ponto de sua unidade, que não é uma unidade formal, mas uma unidade sintética de múltiplas determinações(21). Esta caracterização vale, em princípio, tanto para Hegel, como para Marx. Conforme a esta exigência, o verdadeiro concreto da realidade capitalista não é dado pela, experiência direta da circulação de mercadorias e pelo movimento dos preços, isto é, pelas categorias da circulação, mas é o resultado de um processo de pensamento que reconstrói a constituição sistemática do capital a partir das determinações mais simples, abstratas e aparentes da produção capitalista (mercadoria, valor, dinheiro, circulação), para chegar as mais ricas concretas e essenciais, através da explicitação das categorias da produção a partir da lei da valorização (mais-valia, exploração, tempo de trabalho, trabalho necessário e excedente, mais-valia absoluta e relativa, cooperação, divisão do trabalho, maquinaria, trabalho assalariado, reprodução e acumulação, para indicar algumas das principais categorias do Livro I d´O Capital).

E uma das críticas principais e constantes de Marx ao método da economia política burguesa, inclusive a Smith e Ricardo, a de que ela permanece exterior ao seu objeto por ser incapaz de desenvolver as suas determinações categoriais a partir do seu movimento essencial, a lei do valor, enquanto determinações cada vez mais complexas do trabalho abstrato objetivado. Não sabendo utilizar o método genético, a economia política burguesa toma as suas categorias diretamente da empiria e as emprega como conceitos descritivos(22) das formas econômicas em sua aparência imediata, sem conseguir penetrar em suas relações essenciais. Por isso ela termina expondo o processo de reprodução global do capital na Ótica do capitalista individual e não sabendo conectar esta descrição, feita da perspectiva do agente econômico individual, com a explicação do processo global a partir de sua lei essencial. Isso vai refletir-se na “arquitetônica errônea” da obra de Smith e Ricardo, que são incapazes de revelar a articulação das categorias no próprio movimento do valor. Além disso, ela não consegue explicitar as categorias de mediação entre a lei do valor e os fenômenos da esfera da concorrência entre os capitais individuais, por exemplo, a formação da taxa geral de lucro e dos preços de mercado (em Ricardo por causa identificação entre valor e preço de custo), limitando-se, então, a subsumir diretamente os fenômenos da concorrência sob a lei do valor ou a abandona-la para salvar os fenômenos.

O método dialético quer superar essa exterioridade do conhecimento em relação ao objeto e a concepção instrumental de método ai presente. Ele exige que o conhecimento apreenda as determinações do conteúdo no próprio movimento pelo qual elas se desdobram, estabelecendo a conexão necessária e imanente entre elas(23). Ele é neste sentido apenas ex-posicao da lógica objetiva da coisa, exprimindo tão só e cabalmente aquele movimento. Além disso, a dialética é concebida por Hegel como o princípio ativo do desenvolvimento das determinações e como o seu vinculo necessário. “Esta dialética não é um fazer externo de um pensamento subjetivo, mas a própria alma do conteúdo, que faz brotar organicamente seus ramos e seus f1utos.”(24). Ela não é o instrumento de um conhecimento que busca, mas “o ser determinado em si e para si do conceito” no conhecimento verdadeiro (WL, II, 487). Por isso ela é, para Hegel, não só o conhecimento do absoluto, mas o conhecimento de si do próprio absoluto no processo de sua determinação (particularização e juízo, partição, ‘Urteil’) e de superação e dissolução das determinações opostas numa unidade integradora. Este é o sentido da especulação na dialética especulativa: autoconhecimento do absoluto na oposição das suas determinações e na unidade ‘positivo-racional’ que integra o negativo e o positivo.

Aqui surge a questão crucial do projeto marxiano de transformação materialista da dialética especulativa: como retomar a idéia de conhecimento dialético sem comprometer-se com a componente especulativa da exposição dialética e sem romper com a crítica do jovem Marx aos seus aspectos mistificadores e harmonizantes? A questão se impõe de maneira tanto mais aporética quanto Marx partilha positivamente com Hegel o ‘esforço do conceito’, isto é, o esforço de um pensamento que deve se despojar de suas opiniões, preconceitos e hipóteses externas ao objeto, e que deve abdicar, como diz Hegel, daquela desenvoltura “que paira vaidosamente acima do conteúdo”, para mergulhar decididamente no objeto e “considerar apenas o movimento próprio do conteúdo”(25) e “apenas trazer à consciência este trabalho próprio da razão da coisa”(26). Se a dialética, também para Marx, não é uma técnica de intervenção externa no objeto, um saber metodológico que o manipularia conforme hipóteses que o analista traz consigo, como conservar a sua componente autoexpositiva, o ‘trabalho da razão da coisa’, apreendido por uma visão pura (teoria) no sentido literal da especulação enquanto ‘espelhamento’, sem comprometer-se com a sua componente propriamente especulativa (vinculada ao ‘sistema’), de um autoconhecimento do absoluto na superação positiva das contradições em uma unidade integradora e sistemática? Numa palavra: como no ‘método de exposição’ não se desfazer da dialética ao rejeitar a especulação? Como expor a logica do capital (no sentido do ‘espelhamento’, da ‘transposição/tradução’ ideal do ‘movimento efetivo’ K, I, 27) sem o acesso a um equivalente do saber absoluto, que deixaria “o conteúdo mover-se segundo a sua própria natureza, ou seja, por meio de Si como Si do mesmo conteúdo” e apenas contemplaria esse movimento(27)? Como conceber uma ‘dialética real’ do capital sem a explicitação prévia das estruturas racionais do real na Ciência da Lógica? Como compreender, para formular quase absurdamente, que o que é resultado do pensamento, o verdadeiro concreto, possa impor seu movimento próprio a um esforço conceitual que deve tão só ‘considerar’, ‘contemplar’ este movimento?

Como evitar o duplo escolho de uma dialética materialista, tributaria em sua inteligibilidade da dialética hegeliana, a única a possuir inteligibilidade própria e autônoma, graças ao seu idealismo conseqüente(28), e o do achatamento vulgar-materialista da dialética em termos de ‘espelhamento´ (‘Widerspiegelung’), este bastardo positivista da especulação hegeliana, que assolou a tradição marxista fazendo-a regredir a uma posição pré-kantiana? O que significa que a dialética hegeliana esta de ponta-cabeça e como entender adequadamente o programa marxiano do ‘umstülpen’ (inverter e virar ao avesso) da dialética especulativa?

Marx o legitima, num primeiro momento, ao afirmar a possibilidade de uma distinção de princípio entre o potencial critico(29) e de inteligibilidade da dialética hegeliana e as implicações idealistas que a falseiam e a mistificam. Mas o abuso da metáfora da extração do 'caroço racional' do seu “envoltório místico”, como único esclarecimento à questão posta, acabou por exauri-la e tomá-la um expediente. E associada à outra metáfora da 'Umstülpung', traduzida insuficientemente por “inversão”, ela termina por tornar aquela extração uma operação de mágica trivial, como se bastasse por, novamente, a dialética hegeliana de pé, restabelecendo os direitos do realismo da consciência natural face ao idealismo de especulação, para que a pérola saísse sozinha da ostra. Não basta inverter, uma segunda vez, aquilo que a especulação já inverteu, com a intenção de fazer a dialética hegeliana andar com os próprios pés, para que ela revele um potencial de racionalidade que a projete além de seus limites idealistas. E preciso, além de invertê-la, virá-la ao avesso, como exige a outra significação presente na palavra alemã “umstülpen”, mostrando que as contradições presentes nos fenômenos não são a aparência de uma unidade essencial, mas a essência verdadeira de uma “objetividade alienada” (e não da “objetividade enquanto tal”)(30), e que a sua resolução especulativa na unidade do conceito é que representa o lado aparente, mistificador, de uma realidade contraditória. Virando ao avesso a realidade invertida, alienada pelo capital, “enquanto figura objetiva consumada da propriedade privada” (31), a contradição, que estava do lado de fora, transforma-se no seu verdadeiro interior, na pérola racional desta realidade, e o que estava por dentro, a unidade resolutiva e integradora das contradições, revela-se como o seu exterior aparente, o seu envoltório não só místico, mas mistificador(32). Daí a importância de reler O Capital também numa perspectiva de continuidade da crítica do jovem Marx a Hegel, particularmente da crítica ao duplo aspecto mistificador do idealismo: ao aspecto “positivista”, enquanto o dado imediato, o existente, transfigurado pela especulação, é assumido acriticamente e ratificado em sua positividade pelo sistema, e ao aspecto especulativo, propriamente idealista, enquanto resolução harmonizante das contradições numa unidade essencial, que se torna para Marx aparente, ideológica. E preciso interpretar a “Umstülpung” neste horizonte, para que a crítica ao idealismo dê plenamente os seus frutos. Marx fala do “positivismo acrítico” e do “idealismo acrítico” das obras posteriores à Fenomenologia(33), do “falso positivismo” e do “criticismo aparente”(34) do idealismo, para denunciar este estranho e surpreendente conluio entre especulação e positivismo na lógica especulativa. A inversão que ela provocou ao atribuir a verdadeira atividade e subjetividade à idéia, impõe a Hegel, diz Marx, não mais a tarefa de conduzir a existência empírica à sua verdade, mas, inversamente, de realizar empiricamente a verdade lógica, assumindo, assim, acriticamente, uma existência empírica como verdade efetiva da idéia(35). Mas nesta perspectiva da continuidade entre a crítica ao idealismo do jovem Marx e a d'O Capital, é preciso, contudo, não esquecer duas mudanças capitais: primeiro, o compromisso definitivo n`O Capital com a dialética antes de tudo enquanto método de exposição dos resultados das investigações da economia política e da crítica a ela, e não mais, primariamente, com a dialética enquanto estrutura objetiva do devir histórico (do desenvolvimento do gênero humano, como nos Manuscritos), embora este sentido de dialética não esteja ausente em certos contextos d´O Capital(36); segundo, a retomada do programa especulativo de Hegel de pensar a substância como sujeito e como atividade pura(37), não, certamente, enquanto processo de auto-realização do conceito, mas aplicado como instrumento de concepção e exposição da estrutura do capital: de uma substância (o valor enquanto trabalho abstrato objetivado e “substância social' (G., 183) das mercadorias) que se transforma em sujeito (relação do valor consigo mesmo, enquanto processo de autovalorização). Mas esta retomada do programa de Hegel em direção oposta à crítica do jovem Marx à subjetividade da idéia não rompe inteiramente com aquela. Por isso, mantém-se uma continuidade fundamental entre a crítica “aristotélica” do jovem Marx à subjetividade da idéia hegeliana e a critica propriamente metodológica da Introdução aos Grundrisse e d'O Capital à 'confusão' feita por Hegel da dialética como método com a dialética como gênese do real (G., 22), e à idéia como “demiurgo do real” (K, I, 27). Esta continuidade profunda da crítica se revela, como mostrou agudamente Theunissen(38), no conceito marxiano de trabalho como “atividade objetiva”, em que Marx, por um lado, incorpora o conceito hegeliano de atividade enquanto exteriorização e retorno a si, atribuindo-a, contudo, por outro lado, a um substrato material, a uma “essência objetiva” que é “natureza” e que exterioriza suas “forças essenciais objetivas” ao transformar a natureza(39). A retomada do programa hegeliano, n'O Capital, como instrumento de caracterização do capital enquanto autovalorização, implica, portanto, na revogação apenas parcial da crítica a Hegel: a revogação ocorre apenas na medida em que a crítica dos 'Manuscritos' se apoiava ainda no imediatismo de Feuerbach para afirmar, contra a subjetividade da idéia, o gênero humano como o sujeito último no sentido de um positivo que repousa sobre si mesmo. Esta positividade do sujeito se dissolverá na pseudo subjetividade do capital e no esvaziamento e na repressão da subjetividade individual pelo capital.

A distinção entre um potencial racional da dialética especulativa e suas implicações idealistas preside, de resto, a única reflexão metodológica mais longa de Marx, na Introdução aos Grundrisse, sobre o “método cientificamente correto” (G., 21) de exposição crítica da economia política. Somente o método dialético pode conduzir ao verdadeiro concreto, porque ele o expõe na forma de um resultado desenvolvido pelo pensamento a partir das categorias mais simples e abstratas (e aparentes), que se determinam e enriquecem progressivamente em categorias mais complexas e intensivas (e essenciais), até chegar ao concreto total, “à totalidade concreta enquanto totalidade de pensamento”, ao “concreto de pensamento” (G., 22). Mas ao assumir o componente propriamente dialético da exposição, Marx faz valer, ao mesmo tempo, sua crítica à Fenomenologia do Espírito a partir do seu conceito de trabalho: depois de ter elogiado a “grandeza” da obra que apreendeu “o auto-engendramento do homem como um processo”, que é a “essência do trabalho”, cujo resultado é “homem objetivo”, Marx censura a Hegel o conhecer apenas o “lado positivo do trabalho”, o “trabalho espiritual” e o conseqüente desconhecimento do “lado negativo do trabalho”, e o trabalho de transformação da natureza sob as condições da propriedade privada (FS, 645-646). Se esta é a determinação histórica fundamental da atividade humana, então a pretensão ontológica da dialética especulativa, que “contém o pensamento enquanto ele é igualmente a coisa em si mesma, ou, a coisa em si mesma, enquanto ela é, igualmente, o pensamento puro”(40), não pode ser assumida. Marx marca a sua diferença fundamental face a Hegel distinguindo a exposição dialética enquanto método através do qual o pensamento se eleva do abstrato ao concreto e o expõe como resultado (“concreto de pensamento”) e a exposição dialética enquanto seu “processo de surgimento” (G., 22) como manifestação de uma razão que se realiza, isto é, para Marx, como “ato de produção real” (G.,22). Tudo se passa para Hegel, diz Marx, como se o próprio real fosse o “resultado do pensamento que sintetiza e se aprofunda em si e que se movimenta a partir de si mesmo” (G., 22). O que para a dialética especulativa é a auto-exposição do movimento imanente do conteúdo, a forma desse movimento enquanto ela tem consciência de si na idéia (WL, I, 35), método no sentido subjetivo e objetivo (“alma e substância”, WL, II, 486), torna-se para Marx, de um lado, “método de reprodução do concreto”, “movimento das categorias”, e de outro, gênese real, “ato de produção efetivo”: “para a consciência - e a consciência filosófica é determinada de tal modo que, para ela, o pensamento que concebe é o homem efetivo, e o mundo concebido como tal, o único efetivo, o movimento das categorias aparece, portanto, como o ato de produção efetivo”(41). Donde a crítica frontal de Marx, segundo a qual Hegel confunde o processo lógico com o processo real, transformando este em fenômeno daquele, escamoteando, assim, as contradições reais através da sua resolução especulativa numa “essência aparente” (FS, 655). Contra esta “confusão”, que é apenas o resultado conseqüente e inevitável do que para Hegel é inseparável, e que representa o ponto em que o método se amplia num sistema (WL, II, 500), Marx faz valer, no sentido do realismo aristotélico, a prioridade ontológica do concreto empírico, imediato, face ao concreto reproduzido dialeticamente no pensamento. Aquele constitui não só o ponto de partida, mas permanece o pressuposto da exposição(42). E o concreto verdadeiro, que resulta da exposição, “não é de modo nenhum o produto do conceito que pensa separado e acima da intuição e da representação, e que se engendra a si mesmo, mas da elaboração da intuição e da representação em conceitos.” (G., 22; trad. loc. cit.p. 117). A ressonância kantiana da linguagem faz Colletti dizer que Marx retoma ao conceito gnoseológico, e não ontológico, de “conceito” e à afirmação do papel constitutivo e permanente da multiplicidade da experiência para a elaboração do conceito(43). Neste sentido, o método de Marx é “não só diverso, mas o oposto direto” (K, I, 27) do método de Hegel(44). A própria terminologia de Marx acusa este deslocamento realista, 'materialista', da dialética enquanto método, revelando uma certa oscilação entre expressões que indicam antes o caráter reconstrutivo da dialética como procedimento 'subjetivo', e expressões que traem a sua proveniência especulativa como forma de autoexposição do conteúdo: a dialética é um “modo de apropriação do concreto pelo pensamento” (G. 22), um “método de elaboração”(45) que “reproduz” (G. 22) o concreto que as ciências empíricas analisaram e prepararam para a exposição, que então “transpõe”, “traduz”, “expressa” idealmente o movimento efetivo do conteúdo e “espelha idealmente a vida do material” (K, I, 27). Se algumas expressões marcam a diferença irredutível entre a dialética enquanto método de exposição e o movimento efetivo do conteúdo, outras acentuam a pretensão propriamente dialética de uma forma de exposição que expresse integralmente e exclusivamente o movimento efetivo do material, desde que este tenha sido analiticamente investigado e a sua maturação histórica o tenha levado a um ponto de diferenciação e organicidade suficientes para a exposição(46). Dialética transforma-se, assim, em método no sentido subjetivo de um procedimento de reconstrução categorial, em oposição ao método enquanto “atividade universal absoluta”, enquanto sujeito da própria forma de movimento (idéia) (WL, II, 486). O método não é mais a forma do automovimento do conteúdo que se expõe, mas um procedimento de reconstrução categorial que pressupõe o trabalho prévio de investigação das ciências empíricas e a maturação histórica do objeto para então expor a sua lógica interna de acordo com os nexos que a análise apreendeu entre suas determinações.

Como lembra Fulda(47), também Hegel conhece este conceito 'subjetivo' de método e dele trata no início da Filosofia da Natureza a propósito da relação entre a Física como ciência empírica e a Filosofia da Natureza como “modo de exposição filosófico”. Esta, enquanto “consideração conceptiva” da natureza, pressupõe as investigações da ciência física e seus resultados como condição, embora estes não devam aparecer como fundamento, pois nela deve impor-se exclusivamente a necessidade do conceito, para a qual não há apelação' para a experiência(48). Este conceito de método, observa Fulda, que pressupõe a apropriação analítica do objeto prévia à sua exposição em suas articulações necessárias, toma-se para Marx o conceito determinante e central de dialética.

É aqui que se revela plenamente o sentido e a importância da distinção de Marx entre “método/modo de exposição” e “método/modo de pesquisa” (K,I, 25/27). A dialética pode ser o modo de exposição racional de um objeto depois que a investigação o conduziu pela análise e pela crítica ao ponto sem que ele esteja maduro para a exposição. Em carta a Engels, de 1 de fevereiro de 1858, Marx critica a ingenuidade teórica da Lassalle ao pretender “expor a economia política hegelianamente”, aplicando diretamente a lógica hegeliana aos conceitos econômicos. “Ele tomará conhecimento, para seu próprio dano, que é uma coisa totalmente diferente conduzir uma ciência, através da crítica, ao ponto em que ela pode ser exposta dialeticamente, e aplicar um sistema da lógica abstrato e acabado a pressentimentos de um tal sistema”(49). A função paradigmática da dialética hegeliana para Marx não consistiu em põr à disposição uma caixa de ferramentas polivalentes, prontas a serem utilizadas para organizar os resultados de uma ciência social, tomada no seu estado atual, mas em antecipar em sua lógica especulativa estruturas racionais que Marx, em sua análise do capitalismo, reconheceu como exprimindo de maneira críptica algumas dimensões econônricas fundamentais da sociedade burguesa dominada pela relação capitalista de produção. Para exemplificar, menciono três dessas estruturas, cuja atuação n'O Capital deveria ser objeto de análises específicas: 1.) o já citado conceito de atividade enquanto -exteriorização e retorno a si (este redefinido por Marx como “reapropriação” com todas as conseqüências nisso implícitas), decisivo para compreender a teoria do valor; 2.) o conceito de sujeito como auto-relação, não mais de uma atividade pura e absoluta, mas de um substrato, o valor, que na sua relação consigo se torna processo de autovalorização, capital; 3.) a dialética da dominação presente na lógica das “determinações da reflexão”, relações em que um pólo contém em si o outro pólo e o rebaixa a momento de si mesmo, tornando-se o todo da relação, estrutura paradigmática para a ,concepção da pretensão de dominação do capital sobre o trabalho assalariado, como mostrou Theunissen(50). Mas esta decifragem das estruturas econômicas da sociedade burguesa nas relações conceituais da lógica hegeliana só ocorreu através de longo trabalho de apropriação e crítica do pensamento econõmico burguês, que transformou profundamente a economia política como ciência ao mostrar os vínculos de classe em sua estrutura categorial, permitindo, por um lado, uma compreensão sistemática dos fenômenos econômicos a partir de sua lei essencial, a lei do valor e da valorização do capital e possibilitando, por outro, a inteira reconstrução do sistema categorial da economia política conforme um determinado paradigma de dialética, cuja força heurística só foi tão avassaladora, porque Marx viu antecipadas em certas relações conceituais da Ciência da Lógica estruturas econômicas que seu diagnóstico do capitalismo já reconhecera como determinantes da “anatomia da sociedade burguesa”. É preciso, portanto, uma apropriação crítica prévia dos resultados da economia política como ciência social para que a sua reconstrução categorial seja efetivamente uma exposição do desenvolvimento conceitual (G, 405) do material pesquisado, isto é, uma apresentação discursiva daquela organização das suas determinações que resultam do movimento do seu conceito, “do trabalho próprio da razão da coisa” (cf.nota 24). Só que em Marx este movimento imanente do conceito de capital é a lógica contraditória da sua valorização, cuja exposição implicará na tematização das contradições da produção capitalista e caracterizará aquela como uma exposição crítica da realidade econômica. Daí porque a dialética “materialista a dialética enquanto método de reconstrução categorial de uma ciência social com vínculos de classe, como a economia política, não é diretamente um procedimento de descoberta, uma lógica da invenção. Em Hegel a dialética enquanto forma de automovimento do conceito é o “método absoluto” (WL, II, 490), que contém em si toda riqueza das determinações do conceito (os conceitos enquanto “sistema de determinações do pensamento puro”, WL, I, 46) e 0 principio da sua descoberta(5l). E sendo o método a forma imanente da coisa em seu movimento, o seu começo, o simples e o universal imediato, já é concebido como carência do seu desenvolvimento ulterior e como “animado pela pulsão” (WL, II, 489) de se autodeterminar. Neste sentido pode dizer-se que a lógica especulativa é uma lógica heurística. Em Marx a situação é outra. Como o método não é a forma de auto-exposição da coisa, mas o modo de exposição critica de uma ciência social e, através dela, de uma realidade (econômica) cuja determinação última é uma contradição real e não a automanifestação da razão, ele pressupõe um trabalho anterior de investigação e critica que assegure a penetração racional do objeto em suas determinações essenciais. E preciso, assim, que o “método de pesquisa” (K, I, 25) assuma o ônus idealista da lógica especulativa apropriando-se analítica e criticamente do conteúdo, antes que a exposição possa exprimir seu “desenvolvimento conceitual”, prescindindo de hipóteses que o analista ou o crítico trariam consigo, e “espelhar” exclusivamente o seu “movimento efetivo”.

Aqui surge mais uma vez e inadiavelmente a questão da legitimidade de uma dialética não idealista, “materialista', para assumir o, conceito e a dicotomia consagrados. Como se mantém, se é que se mantém, o elemento especificamente dialético da exposição em face desta transformação da dialética em método no sentido “subjetivo', enquanto procedimento reconstrutivo de um expositor? Quid juris de um método que pretende ser teoria stricto sensu, ciência, não só no sentido do paradigma moderno de ciência, mas também no sentido hegeliano, dentro do pressuposto materialista de uma realidade prévia e irredutível à sua reconstrução lógica no pensamento? O que legitima uma dialética materialista que não pode ser mais a exposição de uma realidade que seria a própria manifestação e auto-realização da razão?

O que a legitima e toma, assim, em última análise, válida a desvinculação, reivindicada por Marx, entre o núcleo racional da dialética e seus compromissos com a metafísica hegeliana do conceito, é o diagnóstico histórico do capitalismo como modo de produção dominado pela abstração real do valor e do seu fundamento, o trabalho abstrato capitalizado. E o diagnóstico histórico de uma sociedade cujas relações sociais de produção estão dominadas por um universal que se auto-adjudica uma subjetividade pseudo-concreta às expensas da atividade concreta dos indivíduos reais: o capital enquanto valor que se autovaloriza, princípio determinante da reprodução material de uma sociedade que repõe todas as suas condições históricas e lógicas como momentos internos da sua reprodução.

A exposição crítica da economia política n'O Capital contém um diagnóstico histórico da sociedade capitalista que a situa como a “última fase opositiva do processo social de produção”(52), porque ela leva às últimas conseqüências a separação entre o trabalho e as suas condições objetivas de realização (G., 375), o antagonismo de classes, como pressuposto e instrumento históricos do desenvolvimento da produtividade do trabalho social, isto é, da plena socialização do trabalho e da completa dominação da natureza. Esta separação, a mais radical historicamente, na qual as condições de efetivação do trabalho se defrontam opositivamente ao trabalhador, juridicamente livre e não mais proprietário(53), como capital, consolida a dissolução dos laços orgânicos do indivíduo trabalhador com a comunidade na qual ele se inseria como proprietário e instaura a sua individualidade nua, despojada da propriedade. (G. 375) A dupla constituição histórica do individuo, enquanto livre da apropriação alheia(54) e livre da propriedade, transforma-o, então, em “pura capacidade de trabalho subjetiva”, que vai se defrontar com as condições de produção “como sua não-propriedade, como propriedade alheia, como valor existente para si, como capital” (G, 397; 203). A emergência histórica do trabalhador assalariado e a transformação da sua capacidade de trabalho em mercadoria no decorrer do processo de acumulação originária torna-se assim o pressuposto histórico e sistemático da autonomização dos meios de produção de propriedade alheia em capital, em principio de subjugação do trabalho vivo para os fins da valorização do capital. E a progressiva subsunção do processo de trabalho sob o processo de valorização, e a sua transformação sistemática pelos diferentes métodos de obtenção de mais-valia relativa, asseguram a redução progressiva do trabalho vivo e concreto a trabalho abstrato, isto é, a trabalho considerado apenas enquanto dispêndio de uma atividade, medida quantitativamente pelo tempo cronológico, e que se tomou indiferente ao seu sujeito. Esta redução já está logicamente pré-definida na constituição do trabalho assalariado.

Assiste-se, assim, à emergência e à expansão históricas de um tipo de sociedade em que atua um processo de redução da atividade concreta dos indivíduos a uma atividade abstrata e indiferente a eles e, conseqüentemente, como outra face, um processo de autonomização das condições objetivas de efetivação do trabalho enquanto capital. Esta redução de atividade concreta de atividade concreta do trabalho, a uma atividade abstrata e universal, geradora de riqueza abstrata, o valor, que vai assumir uma autonomia real e oposta aos sujeitos do trabalho, é o que define a dinâmica da relação capitalista. Uma relação em que um extremo, o capital, pretende, subjugando o outro e contendo em si como momento o trabalho, constituir-se como o todo da relação, a qual se transforma, assim, enquanto tal, num sujeito autônomo, cuja dinâmica aparece como propriedade imanente e natural do substrato material desta relação, agora dotada de vida própria: a propriedade privada alheia dos meios de produção enquanto valor, que entra em relação consigo mesmo como mais-valia e se propulsiona através da dominação e absorção do trabalho vivo reduzido a atividade formadora de valor. (K, I, 169). E a relação de produção capitalista transformada no verdadeiro sujeito social da produção e no princípio determinante de todas as estruturas econômicas da sociedade. A descrição metafórica do capital como um vampiro que suga, enquanto trabalho morto, o trabalho vivo do trabalhador, ressalta estes dois aspectos da relação capitalista: l.) redução da atividade concreta do trabalho à atividade formadora de valor; 2.) a sua pseudo-subjetivação num substrato alheio, que domina aquela pelo poder de dominação que resulta do trabalho vivo(55). Constitui-se um sujeito que, pela sua pretensão de tomar-se o todo da relação, incorpora e transforma em sua autoatividade o trabalho vivo previamente reduzido a trabalho abstrato, fazendo aparecer como propriedades suas, imanentes e naturais, todas as dimensões técnicas e sociais do processo de trabalho. O conteúdo social desta relação hipostasiada e das formas em que ela articula a sua reprodução e se organiza como sistema de produção é o valor enquanto trabalho abstrato objetivado, que se toma, pela universalização desta relação, a “substância social comum” (G, 183) das mercadorias e das relações entre os agentes da produção. Constitui-se, desse modo, uma sociedade perpassada em sua base econômica pela universalidade real do trabalho abstrato, “forma imediatamente social dos trabalhos privados” (K, I, 91) e, enquanto capitalizado, conteúdo de todas as relações sociais de produção capitalistas. Estas relações são verdadeiros universais reais, não concretos, que só mediatizam os agentes individuais subordinando-os a estas relações autonomizadas. Enquanto formas de manifestação do trabalho abstrato elas negam o seu caráter relacional para se afirmarem como “relações que repousarn em si mesmas” (G, 81) e que se opõem aos indivíduos nelas implicados na qualidade de “potências coisais”(56). Por isto, antes de serem abstrações teóricas do analista, as categorias da economia política são pensadas por Marx como expressões teóricas da abstração real presente nestas relações, que se opõem aos indivíduos como um poder de dominação. O fetiche das categorias da economia política, que exprimem a abstração real destas relações, implica dois momentos que consolidam a sua falsa imediatidade: primeiro, sua autonomização face aos indivíduos e sua transformação em “abstrações” (G, 82) que os dominam, e, segundo, a sua incorporação, assim subjetivadas, como propriedades objetivas (“coisais”) dos substratos econômicos materiais ( o valor como propriedade natural da mercadoria, a comensurabilidade das mercadorias como resultante da ação mediadora do dinheiro, a produtividade como qualidade inerente ao capital). O fundamento dessas relações coisificadas e da sua expressão teórica nas categorias da economia política é o movimento de autovalorização do capital (para as categorias de produção imediata, antes de tudo); mas seu conteúdo comum é o trabalho abstrato objetivado que se toma, assim, o próprio conteúdo lógico da exposição dialética e o responsável pelo nexo imanente entre as categorias da exposição(57). As categorias são compreendidas como formas de exposição do trabalho abstrato objetivado e como formas de articulação do seu movimento autônomo enquanto autovalorização.

Portanto, a capitalização progressiva do trabalho (a constituição histórica do trabalho assalariado e a sua redução a trabalho abstrato), desencadeada pela separação histórica mais radical entre o trabalho e as condições objetivas de sua efetivação, constitui a valorização do capital, em finalidade não só do processo de produção, mas de toda reprodução material da sociedade. E a transformação da valorização em finalidade do sistema acarreta um “desenvolvimento incondicionado” da produtividade do trabalho social que vai implicar uma apropriação progressivamente total da natureza por uma produção convertida em fím de si mesma, e uma dominação, também tendencialmente e total, dos indivíduos e da sua socialização pela valorização do capital. Uma produção autofinalizada pela expansão do valor converte-se, por sua vez, na finalidade e no conteúdo únicos do trabalho, reduzindo a atividade formadora do valor. Esta a condição histórica objetiva para a apreensão adequada da própria 'razão do capital'(58) e da sua exposição efetivamente dialética que, primeiro, espelha(59) tão só e cabalmente a estrutura econômica da sociedade enquanto ela está, em princípio, exaustivamente determinada e dominada pela lei da valorização do capital (aspecto mimético da exposição, oriundo da componente auto-expositiva da dialética especulativa, cf. p. ll), segundo, reconstrói a lógica objetiva do modo de produção capitalista a partir do conceito de capital, mas enquanto método, distinto da sua reprodução e/ou destruição enquanto sistema real (aspecto propriamente dialético, e também crítico, da exposição). O diagnóstico histórico do capitalismo enquanto sistema total (na sua pretensão) de apropriação da natureza e de dominação social pela lógica de valorização, possibilita uma reconstrução categorial de uma ciência social, a economia política, que preenche, metodicamente, a exigência de considerar apenas (exclusivarnente e integralmente) o “desenvolvimento do conceito de capital”, isto é, de organizar sistematicamente, sem hipóteses exteriores a ele, todas as categorias da economia politica enquanto “determinidades formais econômicas”(60), do capital e do seu movimento de autovalorização. Esta reconstrução categorial expõe as estruturas econômicas da reprodução da sociedade capitalista enquanto elas são, em seu conteúdo, constituídas por essas “determinidades formais econômicas” capitalista. Preenche-se, assim, na exposição da estrutura econômica da sociedade capitalista, a exigência da dialética especulativa hegeliana: assim como as categorias da Ciência da Lógica, enquanto formas de pensamento puro, são, simultaneamente, o conteúdo real do pensamento, analogamente as determinidades formais econômicas do capital, expressas nas categorias d'O Capital, constituem, assintoticamente, na medida do poder do capital, sobre a sociedade, o próprio conteúdo real das relações sociais de produção. Se para Hegel a dialética especulativa da Ciência da Lógica só é possível quando a consumação histórica do espírito permite que a consciência, através do percurso integral de todas as formas opositivas na Fenomenologia, se alce ao patamar do pensamento puro, no qual o ser-si-mesmo do objeto não se diferencia mas do si-mesmo do pensar (Phãn., 48; trad. loc.cit., 38), para Marx a dialética materialista d'O Capital torna-se historicamente possível quando o capital tornou-se “a potência econômica da sociedade burguesa, que domina tudo”, seu “ponto de partida e o seu ponto de chegada” (G, 27; Trad. loc. cit., 122) e quando a apropriação crítica da economia política a tiver conduzido ao ponto em que suas categorias possam ser desenvolvidas sistematicamente a partir de sua lei essencial.

E esta pretensão de dominação total do capital sobre a sociedade e a natureza (diacrônica e sincronicamente) que permitiu a Marx ver antecipada na idéia hegeliana enquanto “método absoluto” um análogo especulativo da lei de valorização e da reprodução sistemática do capital. A idéia especulativa como método é o movimento do conceito que sabe que ele é tudo e que seu movimento se determina e realiza enquanto`“atividade universal absoluta”, “força infinita pura e simplesmente” (WL, II, 486), a que nenhum objeto, enquanto exterior e independente da razão, pode resistir. Qualquer coisa só pode ser concebida “enquanto ela está integralmente submetida ao método” (ibid.), que é, simultaneamente, “o método próprio de cada coisa, porque a sua atividade (da coisa) é conceito” (íbid.). Analogamente em Marx, o movimento de valorização e de acumulação do capital assume uma espécie de subjetividade absoluta enquanto o valor se toma “o sujeito englobante de um processo” (K, I, l69), a que nenhuma relação pré-capitalista pode resistir indefinidamente (se ela resiste, ela é integrada, em sua própria exterioridade resistente, às finalidades da reprodução capitalista), e que pretende estabelecer uma correspondência plena entre o conceito de capital e a sua realidade efetiva (a formação social capitalista). Esta correspondência de princípio é resultado histórico da crescente universalização do trabalho assalariado e da redução sistemática do trabalho concreto a trabalho abstrato, concomitantes à transformação do capital em “poder social universal” submetido à apropriação privada de capitalistas individuais (K, III, 274). Ela é condição objetiva da reconstrução categorial da economia política, enquanto teoria do modo de produção capitalista(6l) que procede à exposição sistemática das formas de reprodução econômicas da sociedade capitalista submetidas ao “poder subjugador” da valorização e da acumulação do capital. A diferença principal entre a “força infinita e irresistível” da idéia enquanto método e o “poder subjugador” do capital está em que naquela, cada coisa, como conceito, reconhece a sua atividade mais própria e profunda, o seu si mesmo, enquanto o capital como sujeito e princípio de movimento da substância econômica, o valor, só tem consciência de si na multiplicidade dos seus agentes individuais, nos capitalistas enquanto representantes dos capitais individuais, que só “reconhecem” o movimento de reprodução global do capital enquanto ele atende o imperativo da valorização do capital individual. Embora ele tenha a sua finalidade em si mesmo, o capital não se sabe como sujeito, eh; é cego, é “um sujeito automático” (K, I, l69), cujo poder de dominação não consegue estabelecer a plena correspondência entre a realidade capitalista e o seu conceito(62).

Embora, portanto, a teoria d´O Capital, conforme postulado metodológico explicado por Marx, só exponha as relações de produção capitalistas na medida em que elas correspondem ao seu conceito(63), as formações sociais capitalistas não correspondem historicamente de maneira plena ao conceito de capital, porque ele mesmo contém uma pretensão de dominação total irrealizável, uma estrutura de poder contraditória: se formalmente o capital pode ser a totalidade da relação entre si mesmo e o trabalho assalariado, subjugando-o como momento (o trabalho enquanto capital variável), materialmente ele não pode prescindir da sua oposição sempre renovada ao trabalho vivo, já que enquanto trabalho objetivado, morto, o capital não tem outro conteúdo social que não o trabalho. Se na idéia hegeliana a realidade se torna adequada ao conceito, que se alastra sobre ela e a domina para torná-la correspondente a si, nas formações capitalistas a realidade nunca corresponde plenamente ao conceito de capital, porque a sua realização integral como “sujeito automático” da produção, através da “aplicação tecnológica das ciências naturais” e na forma mais próxima de seu conceito, como capital fixo, tende a subverter a sua própria base de valorização, o tempo de trabalho(G, 587, 593). Por isso, se a pretensão de dominação total do capital sobre a estrutura econômica da sociedade é condição histórica e lógica da dialética como exposição adequada de uma realidade, na medida em que ela corresponde a esse conceito, a frustração essencial e recorrente dessa pretensão é, simultaneamente, condição da dialética como crítica, que expõe, através da reconstrução sistemática da economia política, o movimento autodestrutivo da contradição presente nesse poder de dominação.

Respondendo à questão sobre a legitimidade de uma dialética materialista. - mais precisamente, sobre a possibilidade de uma exposição dialética (no sentido preciso desses conceitos) da reprodução material de uma sociedade dominada pelo poder do capital (a sociedade burguesa), através da reconstrução sistemática da ciência social que tem por objeto o movimento econômico dessa sociedade - apontou-se para o diagnóstico histórico dessa sociedade como condição de possibilidade e de legitimação. Mas se a teoria d'O Capital. - enquanto exposição dialética (e crítica) do movimento efetivo do capital através da reconstrução categorial da economia política como ciência, - tem o princípio de sua legitimação apenas num determinado diagnóstico histórico do presente, isto é, do modo de produção capitalista como sistema de produção dominado pelo trabalho abstrato, poderia objetar-se que a teoria se funda, em última análise, dogmaticamente, pelo recurso à história. O que desarma esta objeção é que este diagnóstico se insere, por sua vez, no quadro de uma teoria geral da história, que O Capital esboça, negativamente ('encreux'), a partir e dentro dos limites do próprio diagnóstico do presente contido na crítica à economia política, cujo horizonte é a teoria da revolução(64). Sendo a reconstrução categorial de uma ciência social que analisa a estrutura econômica da “organização histórica mais desenvolvida e diferenciada da produção” (G, 25; trad. loc. cit., l`20), a teoria d'O Capital desempenha uma função paradigmática para a compreensão das sociedades pré-capitalistas(65) e contém, nessa medida, no seu bojo, uma teoria da história (o materialismo histórico) que reconstrói às condições de gênese e aponta as condições de superação do modo de produção capitalista a partir do diagnóstico do presente implícito na crítica à economia política. A lógica das relações sociais capitalistas funciona, assim, como um apriori interpretativo das sociedades pré-capitalistas e como um fio condutor regressivo da reconstrução histórica. A teoria do materialismo histórico - enquanto reconstrução lógica do desenvolvimento histórico-social, em termos de uma seqüência de modos de produção, a partir da questão da gênese histórica do capitalismo na separação entre o trabalho livre e as condições objetivas de sua efetivação - fornece, por sua vez, o horizonte de legitimação do próprio diagnóstico histórico. Haveria uma mediação recíproca entre dialética enquanto teoria e história, em que nenhuma seria pressuposto último da outra. A legitimação de uma dialética materialista pelo diagnóstico histórico da sociedade capitalista - que reconhece nas suas estruturas econômicas, enquanto dominadas pela abstração real do valor, análogos reais de algumas relações conceituais explicitadas por Hegel na Ciência da Lógica - se insere, portanto, numa teoria mais ampla, que resulta da reconstrução regressiva das condições históricas do surgimento de um sistema de produção, que termina por tornar “praticamente verdadeiro” o realismo ontológico de Hegel, enquanto instrumento de detectação do universal real do trabalho abstrato(66). A exposição dialética das categorias da economia política enquanto “formas de manifestação” das relações sociais dominadas pelo universo real do valor, pode coincidir, assim, com o movimento efetivo do capital enquanto “abstração in actu”. “Aqueles que consideram a abstração do valor como uma mera abstração esquecem que o movimento do capital é esta abstração in actu”(K, II, 109). Neste sentido pode-se dizer, provocativamente, que a subjetivação do valor como capital e a sua expansão histórica e sistemática tornaram o realismo ontológico de Hegel um sistema cifrado das relações sociais capitalistas, permitindo a Marx “extrair” da metafísica do concerto hegeliana o “caroço racional” de uma dialética materialista. “O idealismo de Hegel é a sociedade burguesa enquanto ontologia.”(67) . Portanto o recurso a um diagnóstico histórico para legitimar a dialética d´O Capital não é a invocação dogmática de um fato, de uma determinada compreensão do presente no quadro de uma teoria da história, que pretende ser apenas a reconstrução lógica das etapas e modos de organização econômico-social que conduziram a este presente, e que tem nele o seu horizonte – a resolução revolucionária e não especulativa da contradição real da relação de produção burguesa –, o seu paradigma de inteligibilidade.


Notas

(1) A exigência de que a exposição, fiel à natureza da especulação, deve manter a forma dialética e só incluir nela o que foi concebido e enquanto é conceito, foi formulada no Prefácio à Fenomenologia do Espirito: “Fiel à visão que atinge a natureza do especulativo, a exposição deverá manter a forma dialética e nada incluir nela senão na medida em que é concebido e é conceito.” HEGEL, Phänomenologie des Geistes, Ed. l-loffmeister, Meiner, Hamburg, 1952, p. 54; trad. Lirna Vaz, em: Hegel, Os Pensadores, Abril, São Paulo, 1975, p. 42. A seguir citado como Phän.
(2) MARX, Das Kapital, l. Band, Dietz, Berlim, 1968, p. 25. A seguir citado como K,I.
(3) K,I,p. 25.
(4) “O que há de mais fácil é julgar o que possui conteúdo e densidade. Mais difícil é apreendê-lo e o mais difícil é produzir a sua exposição, que unifica a ambos.” Phän., p. 1l;trad. loc. cit., p. 13.
(5) K, 1, p. 27. '
(6) Não é só a dialética lógica, própria da exposição do auto-movimento do conceito na Ciência da Lógica, que atua no texto e na arquitetônica d´O Capital, mas, também, a dialética fenomenológica, exposta por HEGEL na Fenomenologia do Espírito, como por exemplo no Livro I, capítulo 1, d´O Capital, a propósito da dedução da forma valor e do ponto de partida com a mercadoria, como um imediato também fenomenológico, e não só lógico, e, principalmente, no movimento geral da exposição do Livro III d´O Capital, que conduz à reconstituição da gênese necessária das categorias imediatas da esfera da circulação (as formas de rendimento) a partir do movimento do capital social total. Aqui a contraposição se limitará à Ciência da Lógica.
7) Cf. o título de um artigo de H.F.FULDA, Dialektik als Darstellungsmethode im “Kapital” von Marx, in: Ajatus 37, Yearbook of the Philosophical Society of Finland, 1978. O presente trabalho deve muito a este artigo, embora não concorde com ele em todos os pontos.
( 8) “Darstellungsmethode”, “Darstellungsweise” K, I, p. 25 e 27. A análise do elemento “exposição” no método dialético d'O Capital não pode, em nenhum momento levar ao esquecimento de que a exposição das categorias da economia política está indissociavelmente unida à crítica, e que é este um dos aspectos em que a exposição dialética de Marx se distingue da de Hegel. A exposição é essencialmente crítica porque ela só reconstitui a totalidade sistemática das determinações do capital, através da tematização da sua estrutura e do seu movimento contraditórios, a partir da pretensão de dominação total do capital sobre o trabalho e do seu malogro sistêmico (crise), visto que o capital depende do trabalho, formalmente, enquanto trabalho assalariado, e materialmente, enquanto o trabalho objetivado, morto, constitui o único conteúdo social do _capital. Enquanto exposição das contradições do capital ela é essencialmente crítica, embora a crítica se exerça exatamente e apenas (enquanto teoria) através da exposição sistemática da sua instabilidade estrutural e da necessidade da sua superação.
( 9) MARX, Grundrisse der Kriük der politischen Ökonomie, Dietz, Berlin, 1974, P-405. A seguir citado como na exposição do conceito de capital, diz Marx, não se trata de uma forma particular do capital, nem do capital individual entre outros capitais individuais, mas do “capital em geral” como “o conjunto de determinações que distinguem o valor, enquanto capital, de si mesmo como mero valor ou dinheiro”. G., p. 217. “As reações posteriores devem ser consideradas como desenvolvimento a partir deste germe.” Ibid. - As traduções, quando não houver indicação contrária, são do autor.
(10) HEGEL, Wissenschaft der Logik, Ed. Lasson, Meiner, Hamburg, 1963, vol. I, p. 23 e 31. A seguir citada como WL, I e II.
(11) WL,II, p. 486-487. 4
(12) WL, I, p. 35: “A exposição do que somente pode ser o método da ciência filosófica pertence ao próprio tratado da Lógica, pois o método é a consciência sob a forma do movimento interno do próprio conteúdo.”
(13) WL, I, p. 31: “A Lógica deve ser tomada, portanto, como o sistema da razão pura, como o reino do pensamento puro. Este reino é verdade, como ela é em si e para si mesma sem véu. Pode-se, por isso, dizer, que este conteúdo é a exposição de Deus, como ele é em sua essência eterna antes da criação da natureza e de um espírito finito.” ,
(14) HEGEL, Rechtsphilosophie, § 31. Anmerkung, Theorie Werkausgabe Suhrkamp Verlag, 7, p. 84. '
(15) HEGEL, Enzykloplidie der philosophischen Wissenchschaften, §§ 79 e 81, Theorie Werkausgabe Surhkamp Verlag, 8, p. 168, 172-176.
(16) Em carta a Engels de 14 de janeiro de 1858, Marx se refere ao “acaso” que o levou a “folhear novamente a Lógica de Hegel”, por receber de presente de Freiligrath os exemplares que pertenceram a Bakunin, e menciona o “grande préstimo” que ela lhe trouxe no “método de elaboração” da crítica da economia política. Neste contexto ele exprime seu grande desejo de, futuramente, se tiver tempo, “tomar acessível ao entendimento comum” “o que há de racional no método que Hegel descobriu, mas simultaneamente mistificou.”. Marx-Engels, Briefe über 'Das Kapital', Dietz, Berlim, 1954, p. 79. Se foi o acaso que devolveu as suas mãos a Lógica, não é mero acaso que a sua releitura tenha atuado em aspecto tão decisivo da sua teoria. Quanto â expressão 'método dialético”, relembra H.F. Fulda (art. cit. na nota (7), Ajatus, 37, p. 192, nota (36)), ela não existe em Hegel e seria mesmo imprópria para designar o que ele compreendia como seu “método especulativo". A expressão 'método dialético' foi provavelmente. formulada pela primeira vez, Cf. Fulda, em 1840, por Trendelemburg, em suas Investigações Lógicas, no contexto da crítica ao 'método especulativo' de Hegel.
(17) “Meu método dialético é, quanto ao seu fundamento, não só diverso do de Hegel, mas o seu oposto direto. Para Hegel, o processo de pensamento, que ele converte, inclusive, sob o nome de idéia, num sujeito autônomo, é o demiurgo do real efetivo, que constitui apenas a sua manifestação externa. Para mim, inversamente, o ideal nada mais é do que o material transposto e traduzido na cabeça humana.” K, I, 27.
(18) Neste sentido é legítimo dizer que o conceito de capital precede, logicamente, o capital como processo histórico e como sistema que se reproduz. “Se no sistema burguês completo cada relação econômica pressupõe a outra na forma econômica burguesa e assim tudo o gue é posto é simultaneamente pressuposto, o mesmo acontece com todo sistema orgânico. Este sistema orgânico tem seus pressupostos mesmo enquanto totalidade, e seu desenvolvimento para a totalidade consiste em subordinar a si todos os elementos da sociedade, ou em criar a partir da totalidade os órgãos que ainda lhe faltam. Ele torna-se, assim, historicamente uma totalidade. O devir para esta totalidade constitui um momento do seu processo, do seu desenvolvimento.” G., p. 189.
(19) “A pesquisa deve apropriar-se detalhadamente do seu material, analisar as suas diversas formas de desenvolvimento e rastrear o seu nexo interno. Somente após consumado este traballio pode ser adequadamente exposto o movimento efetivamente real. Conseguido isso, e se a vida do material se espelha idealmente, pode parecer que se tem a ver com uma construção apriori.” K, I, p. 27.
(20) Trata-se da conhecida distinção, afirmada por Marx, entre o 'envoltório místico' e o “caroço racional' da dialética hegeliana. K, I, 27 “Tanto é verdade que esta dialética é a última palavra de toda a filosofia, quanto é necessário liberta-la da aparência mística que ela possui em Hegel.” Carta de Marx a Lassalle, de 31 de maio de 1858, Marx-Engels Werke, Dietz, Berlim, 1973, vol. 29, p. 561.
(21) “1. A dialética tem um resultado positivo porque ela possui um conteúdo determinado ou porque o seu resultado é, verdadeiramente, não o nada vazio, abstrato, mas a negação de certas determinações, que estão contidas no resultado exatamente porque este não é um nada imediato, mas um resultado. 2. Este racional é, por isso, embora algo pensado e também abstrato, simultaneamente um concreto, porque ele não é a unidade formal, simples, mas a unidade de determinações diferentes.” HEGEL, Enzyklopädie § 82, Suhrkamp, 8, p. 176-177. “O concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como processo de síntese como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e da representação.” G., p. 21-22. Trad. Giannotti/Malagodi em: Marx, Os Pensadores, Abril, São Paulo, 1978, p. 116.
(22) 'Verstandesbegriffe', “conceitos do entendimento”, como diz Marx, aludindo à diferença entre entendimento e razão, nas Teorias sobre a Mais-Valia. Marx-Engels Werke, vol. 26/2, p. 156. .
(23) “O dialético constitui, por isso, a alma motora do avançar cientifico e é o princípio pelo qual, unicamente, advém ao conteúdo da ciência conexão imanente e necessidade, assim como no elemento dialético em geral esta a elevação verdadeira e não exterior sobre o infinito.” Enzyklopkidie, § 8lA, Suhrkamp, 8, p. 173.
(24) HEGEL, Rechtsphilosophie, § 31A, Surhkamp, 7, p. 84 e 85. “O pensamento enquanto subjetivo apenas olha este desenvolvimento da idéia enquanto desenvolvimento da própria atividade da sua razão. Considerar algo racionalmente não signitica trazer de fora ao objeto uma razão que se lhe acrescenta e trabalha-lo por ela, mas, sim, que o objeto é racional para si. Aqui é o espírito, em sua liberdade, a ponta extrema da razão autoconsciente, que se da a realidade efetiva e se produz como mundo existente. A ciência tem apenas a tarefa de trazer a consciência este trabalho próprio da razão da coisa.” Ibid.
(25) HEGEL, Phän., 48. Trad. Lima Vaz, loc. cit., p. 38. Compare-se Phän., p. 45.
(26) HEGEL, Rechtsphilosophie, § 31A, Suhrkamp, 7., p. 85.
(27) HEGEL, Phän., p. 48. Trad. Lima Vaz, loc. cit., p. 38.
(28) Posição defendida com solidez e espirito de sistema por Klaus Hartmann, Die Marxsche Theorie, De Gruyter, Berlim, 1970, embora não irretorquivelmente.
(29) Tanto a critica de Marx à Filosofia do Direito de Hegel quanto a crítica a Fenomenologia do Espirito do terceiro manuscrito dos Manuscritos Econômico-Filosóficos destacam o potencial critico da filosofia hegeliana, no primeiro caso, o da Ciência da Lógica, no segundo, o da Fenomenologia, mostrando que apesar da ‘mistificação idealista’, a filosofia de Hegel não se limita a transfiguração do real e a resolução ideológica das contradições. Cf. Marx, Friihschriften, Ed. Furth/Lieber, Cota Stuttgart, 1962, vol. I, p. 644.
(30) MARX, Frühschriften, vol. I, 654. A seguir abreviado FS.
(31) MARX, FS,p.589.
(32) Devo a H.F. Fulda, ao artigo citado na nota (7), p. 186-187, a análise do duplo significado da 'Umstülpung' e das suas implicações críticas.
(33) MARX, FS,p.644.
(34) MARX, FS,p. 654.
(35) MARX, FS, p. 306. Nesta passagem Marx menciona, como tema a ser mais detalhadamente abordado, “esta inversão/passagem necessária da empiria em especulação e da especulação em empiria”.
(36) No Posfácio à segunda edição d'O Capital, Marx menciona, a propósito dos ciclos periódicos em que o movimento contraditório da sociedade capitalista se manifesta ao burguês prático, a “crise geral” que “novamente se aproxima” e que pela sua universalidade e intensidade “irá inculcar dialética mesmo aos felizardos do novo sacro império prussiano-alemão”. K, 'l, p. 28. E analisando “a tendência histórica da acumulação capitalista”, no cap. 24 do Livro I d'O Capital, Marx fundamenta sua teoria da revolução como uma “negação da negação”, que atua no processo histórico “com a necessidade de um processo natural” para destruir o capitalismo e que restabelecerá não a prioridade privada, “mas a propriedade individual sobre a base das conquistas da era capitalista” (K, I, p. 791).
(37) HEGEL, Phän., p. 19. Trad. Lima Vaz, Ioc. cit., p. 18.
(38) THEUNISSEN, M., Sein und Schein. Die kritische Funktion der Hegelschen Logik, Surhkamp, Frankfurt/M., 1978, p. 483.
(39) MARX, FS., p. 650: “Ele (o ser objetivo) cria, põe apenas objetos, porque ele é posto por objetos, porque ele é originariamente natureza. No ato de pôr não cai, pois, de sua “atividade pura” em uma criação do objeto, senão que seu produto objetivo apenas confirma sua atividade objetiva, sua atividade de um ser natural e objetivo.” Trad. Bruni cm: Marx, Os Pensadores, Abril, São Paulo, 1978, p. 40.
(40) HEGEL, WL. 1, p. 30.
(41) MARX, G, p. 22. Trad., loc. cit., p. 117.
(42) “O sujeito real permanece subsistindo, agora como antes, em sua autonomia, fora do cérebro, isto é, na medida em que o cérebro não se comporta senão especulativamente, teoricamente. Por isso, também, no método teórico (“da economia política” trad.), o sujeito - a sociedade - deve figurar sempre na representação como pressuposição." (Ibid.)
(43) E interessante ter presente, como contraponto, a posição oposta de Hegel a propósito das condições empíricas do conceito: “A filosofia, entretanto, dá a visão conceitual sobre o que se passa efetivamente com a realidade do ser sensível e faz as etapas do sentimento, da intuição, da consciência sensível, etc., preceder ao entendimento, na medida em que elas são as condições do devir do conceito, mas são condições somente enquanto ele emerge da sua (delas) dialética e da sua nadidade (“Nichtigkeit') como o fundamento delas, mas não como se ele fosse condicionado pela realidade daquelas.” Hegel, WL, II, 225-226. Mas basta ler a seqüência imediata do texto de Hegel - tendo presente a análise marxiana do fenômeno da troca equivalente na esfera da circulação, e a sua redução a mera aparência formal de um conteúdo diferente na passagem à análise da produção, e enfim, ao seu desvendamento temático como aparência na reprodução, quando se toma clara a lei da apropriação capitalista, para perceber a maneira sutil e astuciosa como Marx utilizou a doutrina do conceito hegeliana, transformando-a em regra metódica: “O pensamento abstrato não deve ser considerado como um mero pôr de lado o material sensível, que desse modo não sofreria nenhum dano, mas ele é antes a supressão e a redução do mesmo, como mera aparência, ao essencial, que se manifesta só no conceito.” (Ibid.)
(44) Outro sentido, talvez mais específico, desta oposição frontal a Hegel é a crítica, já mencionada, ao aspecto mistificador da resolução especulativa da contradição, que se toma em Marx a “fonte geradora de toda dialética” (K, I, 623).
(45)Carta de Marx a Engels de 14 de janeiro de 1858, em Briefe uber 'Das Kapital', ed. cit., p. 79.
(46) Este último aspecto aparece na Introdução aos Grundrisse, a propósito da função estratégica que Marx atribui à sociedade capitalista como “chave” da interpretação das formações 'pré-capitalistas'. (G., p. 25-26; Trad. loc. cit., p. 120), e nas Teorias sobre a Mais-Valia , em relação ao pleno desenvolvimento das “potências sociais do trabalho” (cooperação, divisão do trabalho e produção por máquinas, até a realização tendencial da plena automação) enquanto ele 6 a condição objetiva. _ do ponto de vista da maturação histórica de uma produção plenamente socializada. - de uma correspondência adequada entre método dialético e processo real.
(47) Artigo citado na nota (7), p. 193.
(43) “Não só a filosofia deve concordar com a experiência da natureza, mas também o surgimento e a formação da ciência filosófica (da natureza, MLM) tem a física empírica como pressuposto e condição. Uma coisa, entretanto, é 0 caminho de surgimento da ciência e seus trabalhos preparatórios, outra, é a própria ciência; nesta aqueles não mais podem aparecer como base, a qual, só mais tarde pode ser a necessidade de conceito.” Hegel, Enzyklopãdie, § 246, Suhrkamp, 9, p. 15,
(49) Marx-Engels Werke, vol., 29, p. 275.
(50) THEUNISSEN, M., Krise der Macht, Thesen zur Theorie des dialektischen Widerspruchs, in: Hegel Jahrbuch, 1974, Pahl-Rugenstein Verlag, Köln, 1974.
(51) “O método absoluto não se comporta como uma reflexão exterior, mas toma o determinado do seu próprio objeto que o próprio método é seu principio imanente e sua alma.” (WL, II, 491).
(52) Marx-Engels Werker, Vol. XIII, p. 9; Trad. in: Os Pensadores , p. 130.
(53) Proprietário nem da terra, nem dos instrumentos do trabalho, nem do próprio fundo de consumo.
(54) Quer dizer, livre da subsunção imediata sob as condições objetivas de produção. G. p. 397.
(55) “O capital é traballio morto que só se anima como um vampiro sugando o trabalho vivo, e ele vive tanto mais quanto mais suga trabalho vivo.” (K, I, p. 247). Cf também G., p. 357.
(56) “sachliclie Mächte”. “Estas relações de dependência coisais, em oposição às relações pessoais, aparecem também de tal maneira que os indivíduos são agora dominados por abstrações, enquanto antes dependiam uns dos outros. (A relação de dependência coisa consiste tão só nas relações sociais que se defrontam, enquanto automatizadas, com os indivíduos aparentemente independentes, isto é, suas relações de produção recíprocas autonomizadas face a eles.)” G, p. 81 e 81.
(57) Este nexo nem sempre é imanente, pois a própria exposição dialética só é verdadeira quando conhece os seus limites (G,_364, 945) e aponta para os pressupostos históricos a que ela deve recorrer. De resto, à medida que a exposição d'O Capital avança, ela recorre sempre mais, ao invés da exposição lógica de Hegel, a determinações que não são o resultado imanente e necessário da explicitação das categorias anteriores. Além disso, na medida em que a exposição é sistemática e reconstrói a totalidade contraditória da reprodução capitalista, penetrando no fundamento da redução do trabalho e da autonomização do valor, ela é, simultaneamente, crítica, e tem a função de devolver às categorias o seu verdadeiro estatuto lógico, que é o de serem expressões de relações sociais, embora ela não coincida, como exposição crítica, com o próprio processo real de descoisificação das relações sociais e de ser abordada especificamente a propósito -da análise temática da dialetica enquanto crítica.
(58) Uma razão evidentemente contraditória para Marx, porque entre a finalidade da produção capitalista (garantir a manutenção e expansão do valor e das relações sociais congruentes a ela) e os meios a que ela recorre para isso, “o desenvolvimento incondicionado das forças produtivas sociais do trabalho” (K, III, 259-260) com as conseqüências econômicas inevitáveis e indesejáveis aí implícitas (queda da taxa de lucro, desvalorização do capital 'existente e desenvolvimento das forças produtivas do trabalho às custas das forças produtivas já desenvolvidas, lbid.), instaura-se uma contradição insolúvel dentro da pretensão de dominação do capital. Esta contradição frustra recursivamente a sua pretensão de dominação, submetendo a reprodução social a uma instabilidade essencial que toma a plena adequação da realidade capitalista ao seu conceito inalcançável.
(59) Introduzido por Marx no contexto da reflexão metodológica do Posfácio à segunda edição d'O Capital, o conceito de 'espelhamento' ('Widerspiegelung') não está isento de ambigüidades, principalmente na vizinhança embaraçosa de metáforas que descrevem o pensamento como transposição e tradução no cérebro do que é material" (K, I, 27) e que anunciam a futura linguagem do materialismo vulgar, que consagrará o positivismo implícito na especulação, já denunciada pelo jovem Marx. O conceito de “espelhamento” foi posteriormente canonizado na tradição marxista por Engels e Lenin para sublinhar o caráter materialista da teoria do conhecimento marxista. N'O Capital ele só pode ser entendido adequadamente a partir de sua origem na dialética especulativa hegeliana, e da sua dependência da concepção tradicional de teoria no seu sentido etimológico de visão. Ele não visa tanto sublinhar o aspecto realista da teoria do conhecimento de Marx, na versão trivial de mera cópia de um real, que em sua facticidade imediata conteria em si as articulações e os nexos que o conhecimento nele descobre e apenas refletiria, no sentido, portanto, da “teoria do reflexo” do materialismo vulgar (mera transposição acrítica e pré-crítica de uma posição idealista), mas o aspecto propriamente dialético do método, que expõe a lógica objetiva e própria da coisa sem interferências subjetivas prévias do analista e externas ao movimento do conceito da coisa. Na interpretação marxista ortodoxa da dialética a partir de Engels, que tende a transformá-la em método universal, inclusive do conhecimento da natureza, e mesmo na própria estrutura objetiva da realidade concebida como processualidade total, a Umstülpung marxiana é geralmente interpretada no sentido mais ou menos trivial de que o método dialético espelha as estruturas dialéticas do processo objetivo, sem que se saiba exatamente por que o real é dialético, e, muito menos, porque o espelhamento seria tal. Um testemunho claro dessa trivialização da dialética como espalhamento nos oferece uma passagem de uma carta de Engels a Schmidt, de 1 de novembro de 1891: “... a inversão da dialética em Hegel consiste em que ela deve ser o “autodesenvolvimento do pensamento' e que, portanto, a dialética dos fatos é apenas o seu reflexo ('AbgIanz'), enquanto que a dialética na nossa cabeça é, certamente, apenas o espelhamento ('Widerspiegelung`) do desenvolvimento factual no mundo da natureza e no mundo histórico-humano que obedece a formas dialéticas. Compare uma vez o desenvolvimento da mercadoria ao capital em Marx com o do ser à essência em Hegel, e você terá um bom paralelo: aqui o desenvolvimento do concreto, tal como ele resulta dos fatos, lá a construção abstrata...” (Marx-Engels Werke, vol. 38, p. 204). Convém observar que o “apenas” que fazia sentido no sistema hegeliano quando se tratava “em trazer apenas a consciência o trabalho da própria razão da coisa” (Rechtsphilosophie, § 3lA), torna-se o indicador de um realismo ingênuo e pré-kantiano quando referido ao mero “espelhamento do desenvolvimento factual.” O verdadeiro concreto, que era, para Marx, o resultado de sua reconstrução sintética no pensamento, tende a ser confundido com uma imediatidade factual, com o “concreto empírico e imediato” de Marx, e a dialética como método parece reduzir-se à duplicação de uma dialética dos fatos sem pensamento, e no caso de Hegel, a uma “construção abstrata” contraposta â positividade dos fatos. Tal redução da dialética ao espelhamento só é ainda inteligível no quadro de uma ontologia do real, transformado metafisicamente em processualidade universal, que se imporia ao pensamento com a positividade de um fato. É o resultado final da dialética materialista convertida em “materialismo dialético.”
(60) “ökonomische Formbestimmtheit”.
(6l) “Na teoria pressupõe-se que as leis do modo de produção capitalista se desenvolvem de maneira pura. Na realidade efetiva existe apenas a aproximação; mas esta aproximação e tanto maior quanto mais desenvolvido está o modo de produção capitalista e quanto mais estiver eliminado o seu entrelaçamento e sua contaminação com restos de situações econômicas anteriores.” (K, III, p. 184).
(62) “O método emergiu disso como o conceito que se sabe como absoluto, tanto subjetivo quanto objetivo, e se tem a si mesmo como objeto, por conseguinte, como a pura correspondência entre o conceito e a sua realidade, como uma existência, que é ele mesmo (o conceito).” (WL, II, p. 486).
(63) “Em tal investigação universal pressupõe-se sempre, em princípio, que as relações efetivas correspondam ao seu conceito ou, o que equivale, que as relações efetivas só sejam expostas enquanto elas exprimem o seu próprio tipo universal.” (K, III, p. 152). ,
(64) THEUNISSEN M., Sein und Schein. Die kritische Funktion der Hergelschen Logik, Suhrkamp, Frankfut/M., 1978, p. 86-87.
(65) “As categorias que exprimem suas relações (da sociedade burguesa), a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade desaparecidas.” (G, p. 25-26; trad. loc.cit., p. 120).
(66) Assim como a universalização do trabalho assalariado transforma o trabalho, enquanto atividade concreta, em atividade indiferente ao trabalhador, tornando “praticamente verdadeira” a “abstração da categoria trabalho em geral.” (G, p. 25; trad. loc.,cit., p. 120).
(67) Reichelt, H., Zur logischen Struktur des Kapitalbegriffs bei K. Marx, Europäischc Verlaganstalt, Frankfurt/M., 1970, p. 80.