Introdução
Nossa pesquisa tem se detido sobre os problemas interpretativos referentes à Circulação Simples. Retomamos aqui, de modo resumido(1), algumas questões que dizem respeito à “referência histórica” da seção que abre O Capital. Estas questões irão nos interessar por dois motivos, a saber, para iluminar a questão paralela que versa sobre o “sentido geral da Circulação Simples”, e, além disso, por se constituir como “algo de originário” na interpretação da teoria marxista da Circulação Simples. Como salientamos em outro lugar(2), os interpretes são unânimes em atribuir a Engels a origem da interpretação segundo a qual a Circulação Simples é entendida como uma análise das relações de troca estabelecidas nas sociedades pré-capitalistas(3). O ponto de vista de Engels encontra eco em Rosa Luxemburgo e posteriormente em Ernest Mandel, além de um sem número de “manuais” referentes ao tema. Os textos centrais de Engels referentes ao problema consistem no Prólogo ao Livro III de O Capital e de modo mais detalhado o Complemento ao Prólogo que escreveu ao Livro III de O Capital e que depois publicou na revista Die Neue Zeit em 1895. Analisemos brevemente estes textos.
1. Engels – prólogo ao Livro III
Engels inicia o Prólogo lembrando que já na recepção ao Livro II os críticos “haviam armado uma grande gritaria(4)” por enxergar uma “incompatibilidade” entre a teoria do valor, desenvolvida no Livro I, e a “taxa média de lucro igual”. Este seria, em nosso entender, o problema desta recepção inicial à “crítica da economia política” de Marx, pois busca-se em geral “comparar” as teorias dos diferentes Livros, sem atentar para o fato, até certo ponto trivial, de que há níveis distintos em que opera a teoria, e que não são por isso, passíveis de “comparação”. O ponto três deste artigo deve elaborar uma resposta também a esta modalidade de crítica. Contudo neste novo segue Engels, Marx no começo do Livro I, isto é, na Circulação Simples, “parte da produção Prólogo Engels teve que “entender-se” novamente com os críticos que punham em questão agora o modo como “relacionar” os problemas relativos ao valor e o valor de troca com aqueles referentes ao preço de produção. Toda a questão, como veremos, está na admissão de que as mercadorias não se vendem e nem se venderão por seus valores (determinados pelo trabalho). Assim a controvérsia acerca do “problema da transformação”, como nos informa o Prólogo, remonta já à recepção do Livro II e III de O Capital(5). Engels diz no Prólogo que a solução da economia vulgar é a admissão de que os comerciantes capitalistas, os produtores de matéria prima, obtém lucro em seus negócios vendendo mais caro do que compram, ou seja, aumentando seu preço de custo(6). Os únicos em situação desfavorável seriam os trabalhadores assalariados que são obrigados a vender sua força de trabalho “dentro” de seu preço. Sem entrar propriamente no problema da transformação dos valores em preço, problema por si só extenso e complexo, basta-nos salientar que os problemas aos quais Engels procura dar uma resposta são fruto da recepção imediata aos Livros de O Capital. Para Isaak Rubin, os adversários e mesmo os defensores da teoria do valor-trabalho de Marx entenderam o Livro III como incompatível com a teoria desenvolvida no Livro I. Para estes primeiros intérpretes, a teoria tal qual apresentada no primeiro tomo de O Capital e aquela do terceiro não podem se referir ao mesmo “objeto”. E completa o autor russo: “é por isso que certos marxistas se inclinaram em construir um assim chamado “fundamento histórico” para a teoria de Marx sobre o valor“ (7). Como veremos o primeiro destes marxistas é Engels.
Ainda no Prólogo ao Livro III, salienta Engels que entre o ponto de vista de Marx e aquele de seus críticos existem diferenças essenciais quanto ao método.(8) Estes buscariam conceitos fixos e imutáveis, ou definições acabadas. Os conceitos, em Marx, ao contrário, são expostos a mudanças e transformações ou são “desenvolvidos em seu processo lógico ou histórico de formação”(9). Assim, simples de mercadorias como premissa histórica de que parte, para logo, partindo desta base, chegar ao capital”. Neste sentido, para utilizar uma linguagem que fará moda, Engels entende o método de Marx “genético-evolutivo”, ou seja, apresentando as categorias na ordem de sucessão em que aparecem na “história”. O Capital inicia-se por sua “premissa histórica”, pré-capitalista e a partir da qual podemos acompanhar a sucessão das formas que nos conduzem ao capitalismo “enquanto tal”, aquele do Livro II e III. Com isso, e é esta tese que nos interessa em toda a questão, Engels faz com que a Circulação Simples seja referenciada historicamente no pré-capitalismo. Vejamos como isto se desenvolve no assim chamado “Complemento ao Prólogo” de 1894(10).
1.2. Complemento ao prólogo
O texto do “complemento” é extremamente marcado pela polêmica, seja com adversários declarados, como Achille Loria, seja com interpretações concorrentes. Dentre os críticos a quem responde Engels, há ao menos dois, Werner Sombart e Conrad Schmidt, que mereceriam aqui umaatenção especial dada sua ligação com o problema da historicidade das categorias d’ O Capital.
Tanto Schmidt quanto Sombart se inclinam a ver na lei do valor não um fato empírico, mas antes um recurso lógico, conceitual, ainda que importante para a compreensão do funcionamento do modo de produção capitalista. De modo mais determinado, para Sombart o valor das mercadorias “é a forma específica e histórica em que se impõe de um modo determinado a força produtiva do trabalho que em última instância domina todos os fenômenos econômicos”(11). Ou seja, a lei do valor marca mais o nexo entre os diferentes tipos de trabalho do que descreve uma constante presente na troca objetivamente analisável. Embora para Engels esta forma de consideração não seja de todo falsa, falta-lhe “reduzir a termos concretos e mais precisos”, a fim de que tal lei mostre todo seu alcance nas “fases” de desenvolvimento econômico da sociedade dominada por tal lei.
Para Schmidt, que também prefere a linguagem científica, a teoria do valor é uma “hipótese científica estabelecida”, pois esta nos permite “penetrar teoricamente no mecanismo econômico da realidade capitalista” ela é, contudo, “dentro da forma capitalista de produção, nem mais, nem menos que uma ficção” ainda quando “teoricamente necessária”. Completa então Engels:
“Tanto Sombart como Schmidt [...] não tem em conta suficientemente que não estamos somente ante um processo puramente lógico, senão ante um processo histórico e ante o reflexo especulativo deste processo no pensamento, ante as conseqüências lógicas de sua concatenação interna”(12).
Fica claro imediatamente o que Engels chama acima de “reduzir a termos concretos e precisos” este processo que não sendo apenas lógico é também “histórico”. Engels começa sua resposta dizendo: “todos sabemos que nos começos da sociedade...”(13). O que se vê a partir de então é uma descrição de uma sociedade ou de sociedades que estabelecem suas trocas com base na quantidade de trabalho necessária para a produção de cada item trocado. Tal reconstituição vai da família em coletividades primitivas “mais ou menos comunistas” até o servo da idade média.(14) Para tais sociedades a quantidade de trabalho necessária para a produção não era a melhor, mas “a única forma existente para a medida para determinar quantitativamente as magnitudes intercambiáveis”. Engels então procura fazer uma “gênese histórica” da lei do valor. Assim torna-se necessário admitir que os camponeses da Idade Média, ou mesmo aqueles camponeses e artesãos vizinhos de Engels no Reno tinham condições de medir os valores pelo trabalho: “ou alguém crê que o camponês e o artesão eram tontos o bastante para dar o produto de 10 horas de trabalho em troca de um outro produto do trabalho de uma hora?”(15). A partir de então o texto segue a empreitada de refazer a gênese da lei do valor, uma “gênese histórica” que iria da primeira e mais primitiva troca até ao menos “ao gado como primeira forma de moeda”(16). Mais significante para nosso problema é afirmação de que tal “gênese” corresponderia à apresentação categorial própria da Circulação Simples:
“Partindo desta determinação do valor pelo tempo de trabalho, se desenvolve logo toda a produção de mercadorias, e com elas as múltiplas relações nas quais se traduzem os diversos aspectos da lei do valor, tal como foram expostas na primeira seção do Livro I de O Capital” (17).
Engels sumaria então sua tese:
“Em outros termos: a lei do valor de Marx rege com caráter geral, na medida em que regem sempre as leis econômicas, para todo o período de produção simples de mercadorias, vale dizer, até o momento em que esta é modificada pela aparição da forma de produção capitalista. [...] a Lei do valor de Marx, tem, pois, uma vigência econômico-geral, a qual abarca todo o período que vai desde os começos da troca por meio do qual os produtos se convertem em mercadorias até o século XV de nossa era. E a troca de mercadorias data de uma época anterior a toda a história escrita e que no Egito se remonta, pelo menos, a 3.500 e a quase 5.000 anos, na Babilônia a 4.000 anos, talvez a 6.000 anos antes de nossa era. A lei do valor regeu, pois, durante um período de cinco a sete mil anos”.(18)
Assim a Circulação Simples seria uma reconstituição lógico-histórica do período da produção simples de mercadorias, ou seja, em última análise descreveria um momento précapitalista. A seção que abre O Capital faria uma gênese dos processos de troca que vão desde os começos das trocas mediadas pelo valor-trabalho até o século XV de nossa era. Tudo se passa como se em O Capital as categorias fossem alinhadas de acordo com seu aparecimento na história e não em função de seu papel na teoria. Voltaremos a isso(19). Como salienta Rubin, a tese de Engels suscita críticas e adesão, quiçá mais críticas que adesões, contudo entre os que “aderem” ao ponto de vista de Engels é preciso fazer referência ao menos a Rosa Luxemburgo e Ernest Mandel.
2. Rosa e Mandel
Rosa Luxemburgo parte da interpretação de Engels quando trata das categorias da Circulação Simples em sua Introdução à Economia Política. O capítulo sobre a “Produção Mercantil” inicia-se por uma ficção, que como veremos se pretende fiel a uma reconstituição histórica(20), na qual estamos diante de uma sociedade de produtores privados, atomizados e cujo único nexo social é a troca. Nessa sociedade mercantil ensaiada por Rosa vemos surgir, a partir da troca, a divisão do trabalho e o dinheiro. Trata-se aqui de uma apresentação das categorias de acordo com a ordem de seu surgimento na história real dos povos, ou nas palavras da própria autora: trata-se de uma “exposição um pouco simplificada e abreviada da maneira como se formou a economia mercantil, exposição rigorosamente conforme a verdade histórica nos seus traços fundamentais” (21). Como se vê toda a ênfase recai sobre a “verdade histórica”.
Mesmo incluída por Mandel no rol dos intérpretes que neste particular seguem Engels, Rosa não cita diretamente a Circulação Simples, trata apenas de suas categorias fundamentais, mas sem, ao menos nas palestras que compõe o livro, comentar diretamente o texto marxiano, antes dilui o seu conteúdo na reconstituição do que teria sido a história da troca do comunismo primitivo a economias mercantil da qual o capitalismo é a forma mais plenamente desenvolvida.
Em “O Capital: 100 anos de Controvérsias” Mandel enfatiza, de início que O Capital de Marx busca, entre outras coisas, mostrar que leis universais da organização econômica não existem. Cada formação social determina e é determinada por leis específicas oriundas de sua própria constituição. Mas O Capital não faz um inventário dessas leis, limita-se a analisar aquelas leis que vigem no capitalismo(22). Com o que estamos planamente de acordo. Contudo o mesmo Mandel diz na página seguinte que O Capital, Os Grundrisse e outros escritos incluem um grande número de análises da produção simples de mercadorias, “uma forma de produção que existiu de múltiplas maneiras durante 10.000 anos antes de que nascesse o capitalismo moderno”(23). O problema tal como formulado por Mandel é o seguinte: o objeto central de O Capital é o capitalismo enquanto tal, mas, não obstante a isso, há também análises sobre o pré-capitalismo. A Circulação Simples seria uma dessas análises. Sendo assim Mandel igualmente pensa a lógica constitutiva do Livro I como “correspondente ao processo histórico” de constituição e desenvolvimento do capitalismo(24). Mas como aqui se trata apenas do levantamento das polêmicas em torno da interpretação da obra de Marx, somos remetidos a outro estudo de Mandel, seu “Tratado de Economia Marxista”. Mandel deixa claro o objetivo do tratado; não se trata de uma exegese do texto marxiano, antes, diz ele: “intentamos demonstrar que, partindo dos dados empíricos das ciências contemporâneas, pode-se reconstruir o conjunto do sistema econômico de Karl Marx”.(25)
A natureza de tal “reconstrução” fica explicita ao debater o que deve ser o “método de análise”, segundo Mandel este deve ser “genético-evolutivo”: “porque o segredo de toda ‘categoria’ não pode ser revelado sem examinar por sua vez sua origem e evolução, o que quer dizer examinar o desenvolvimento das contradições internas, a saber, a revelação de sua natureza própria”.(26) Ao perseguir tal objetivo, a saber, provar a tese de Engels por meio de uma “gênese histórica das categorias” o que Mandel e Rosa acabam por fazer é, na melhor das hipóteses, uma “etiologia” das formas que nos levam da pré-história da troca ao capitalismo. A dialética das categorias, expostas segundo seu papel no interior do sistema, é substituída por uma etiologia das formas sociais, e pior, fazem com que a seção inicial de O Capital se comprometa com tal objetivo, uma vez que Marx aí teria usado tal “método genético-evolutivo”. Como procuraremos mostrar a seguir, o método de Marx não se confunde com uma investigação genética, nem muito menos etiológica, das categorias. Na circulação simples Marx não trata do pré-capitalismo, nem muito menos das causas, que em seu interior, nos conduzem deste ao capitalismo. Como veremos, O Capital tem um único e determinado objeto, o modo de produção burguês moderno, analisado em níveis crescentes de concreção. A gênese, neste caso, só poderia ser conceitual e não histórica. Vejamos por que razões.
3. Marx e o Método da Economia Política
A resposta ao problema da referência histórica das categorias da circulação simples deve levar em conta, além dos diversos níveis em que esta doutrina é exposta, os textos de Para a Crítica da Economia Política, Os Grundrisse, O Capital, etc. Deve também ser capaz de articular em seu interior os “elementos do problema”, a saber, o trabalho abstrato e o valor. Procuramos em outro lugar dar esta resposta de conjunto(27). Retomamos e ampliamos agora apenas uma resposta metodológica. Para tanto é preciso ainda uma vez recorrer ao Método da Economia Política(28).
Vejamos o que nos diz o texto do “Método”. O texto parte justamente da pergunta: por onde deve começar a exposição do sistema da economia política? Deve-se partir do concreto ou do abstrato? E qual a relação deste concreto e deste abstrato inicial com a história? Marx inicia admitindo que “parece correto começar pelo real e pelo concreto(29)”, em nossa questão, poderia então parecer correto começar pelo concreto capitalista, pela teoria do “capital como totalidade” e por conseguinte dos preços de produção e não da teoria do valor. Contudo completa Marx: “a uma consideração mais precisa, porém, isso se revela falso”. Partindo do concreto representado chega-se apenas a abstrações simples, mas tal representação do todo seria caótica. Este foi, contudo, o caminho tantas vezes trilhado pela economia política:
“exemplo: os economistas do século XVII que, sempre começam por um todo vivo (mit dem lebendigen Ganzen) – produção, nação, Estado, vários estados, etc. – mas sempre terminam por algumas relações gerais, abstratas, determinantes (einige bestimmende abstrakte, allgemeine Beziehnung) – divisão do trabalho, dinheiro, valor, etc. que eles descobriam por análise.(30)”
Pensa Marx que o método cientificamente correto é o oposto direto deste caminho de tradição empirista, deve-se antes partir “dos elementos simples”, no nosso caso, da mercadoria, do trabalho abstrato e do valor, para se chegar ao final ao concreto, a teoria do capital como totalidade. Em uma palavra, é impossível partir do concreto, pois “o concreto é concreto por ser uma concentração de muitas determinações, logo, uma unidade do múltiplo(31)”. É certo que do ponto de vista da crítica o todo concreto é sempre pressuposto, já como resultado do “método de pesquisa”(32) Contudo ao se iniciar a exposição parte-se do abstrato ao concreto como forma de “apropriar-se do concreto e o reproduzir como concreto espiritual”(33). Assim fica estabelecido que deve-se partir, na exposição, do abstrato, do simples(34). A seção que abre O Capital, que analisa a forma elementar da riqueza capitalista a partir da oposição intrínseca que a constitui, parece atender a este requisito. Mas resta ainda responder a relação do “ponto de partida” com a história.
Marx põe a questão nos seguintes termos: “mas, acaso estas categorias simples não tem também uma existência independente, seja histórica, seja natural, anterior a existência das mais concretas?”(35) E responde: “ça dépend”. Esta resposta é fundamental por colocar em questão um suposto básico da tese de Engels, aquele que diz respeito à uma correspondência entre exposição e desenvolvimento histórico. As categorias podem ou não ter uma existência prévia ao sistema social que lhes confere sentido, por exemplo, o trabalho e o valor podem ter uma existência “antediluviana”, mas esta existência não é fundamental. Marx utiliza o exemplo paradoxal do trabalho, uma categoria “antiqüíssima”, e assim mesmo “uma categoria tão moderna quanto as relações que produzem esta abstração simples”, e completa:
“O exemplo do trabalho mostra, de modo convincente, que, embora possuam validade em todas as épocas, - em virtude justamente de sua abstração, - mesmo as categorias mais abstratas, na determinidade de sua abstração, são um produto das relações históricas e só possuem plena validade (ihre Vollgültigkeit) para tais relações e no seu interior”(36).
Agora somos informados das razões que levam a pesquisa a considerar como indiferente saber da existência prévia ou não das categorias, é que o fundamental ou determinante na exposição da categoria não é sua antiguidade, mas seu papel na sistemática econômica que se pretende expor. A mercadoria, por exemplo, não é exposta a partir de uma etiologia que a elevou ao papel central nos começos do capitalismo, mas antes e exclusivamente por seu lugar no sistema do capital tal como presente nas sociedades de capitalismo mais avançado. É seu papel sistemático e não sua prioridade histórica que a torna o ponto de partida de O Capital. Marx expressa seu pensamento mediante uma metáfora formidável: “a anatomia do homem é uma chave para a do macaco(37)”. A sociedade burguesa (Die bürgerliche Gesellschaft) como organização historicamente mais desenvolvida e a mais múltipla, tem a “chave” interpretativa que pode conferir sentido efetivo mesmo às categorias que a precedem no tempo. Aceitar a tese de Engels é pensar ao arrepio do método aplicado em O Capital que o pré-capitalismo é a chave para que se entenda o capitalismo.
O Método nos ensina, portanto, que se deve partir, na exposição, do abstrato para se chegar, como a um resultado, ao concreto. Deve-se partir da circulação simples para se chegar ao capital como totalidade. Assim entendido torna-se sem sentido a objeção que consiste em comparar a teoria ao nível da circulação simples com aquela dos preços de produção ao nível do Livro III, ou como sumariou Rubin:
“a teoria do valor-trabalho e a teoria dos preços de produção diferem uma da outra, não como diferentes teorias que funcionam em diferentes períodos históricos, mas como uma teoria abstrata e um fato concreto, como dois graus de abstração de uma mesma teoria da economia capitalista”38.
Os três livros de O Capital têm um único “objeto”, a moderna sociedade burguesa, vista sob níveis crescentes de concreção. Certamente que na circulação simples a moderna sociedade burguesa “como tal” está apenas pressuposta. O que está posto são os agentes da troca, entendidos como contratantes livres e iguais. Na circulação simples, como temos defendido, está o capitalismo como este nos aparece em sua “epiderme”, ou seja, as categorias ao nível da primeira seção do livro primeiro “só exprimem aspectos particulares e isolados dessa sociedade determinada, deste sujeito”(39). Marx é categórico ao afirmar que “é preciso ter presente e de modo firme”, que “também do ponto de vista científico, de maneira nenhuma ela [a moderna sociedade burguesa] só começa no momento em que se fala dela como tal”. Isto é, a moderna sociedade burguesa está pressuposta mesmo quando abstrai-se dela determinações fundamentais, como ocorre na circulação simples. É certo que o capitalismo como tal corresponde à teoria como é exposta nos Livros II e III, mas nem por isso está ausente, como pressuposição, já na seção que inaugura a obra, pois “o capital é a força que a tudo domina na sociedade burguesa. Deve constituir tanto o ponto de partida como o de chegada”(40).
Se nossa argumentação é ainda defectiva em provar a tese que a sustenta, Marx mais uma vez não deixa dúvidas sobre o método adequado de exposição das categorias:
“Seria, além de impossível, falso, ordenar as categorias econômicas na sucessão em que foram historicamente determinantes. Sua ordem é antes determinada pela relação que elas mantêm entre si, na sociedade burguesa moderna, precisamente o inverso do que parece ser a sua ordem natural ou a correspondente sucessão do desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que se estabelece historicamente entre as relações econômicas na sucessão das diversas formas de sociedade [...]e sim de sua articulação no interior da sociedade burguesa moderna.(41)”
É assim que encerrando este pequeno ensaio metodológico de 1857, que não publicou, Marx divide a matéria que deveria compor sua obra(42) iniciando exatamente pelas “determinações gerais abstratas que convém, por isso, mais ou menos, a todas as formas de sociedade, porém, no sentido exposto anteriormente”(43). É nesse sentido que não restam dúvidas de que “O Capital é aberto com as “determinações gerais abstratas” que embora possam ter uma existência antediluviana, são apenas plenamente desenvolvidas e plenamente inteligíveis no modo de produção burguês moderno. Para Marx, como fica claro, não se trata de expor o conteúdo da matéria na ordem de sua aparição e vigência na história. No problema que nos ocupa aqui, não se trata na Seção I de uma apresentação das formas que historicamente precederam o capital e muito menos de um acompanhamento do período pré-capitalista no qual a lei do valor se dava nos marcos da circulação simples. Ao contrário, inicia-se pela mercadoria, pelo trabalho abstrato e pelo valor devido a posição que estes ocupam na sociedade burguesa moderna. Não se trata de uma fenomenologia histórica, nem tampouco de história do aparecimento das categorias. Trata-se da sua hierarquia no interior da moderna sociedade burguesa(44.
1 Cf. Hélio Ázara, A Circulação Simples Como Epiderme Da Experiência Capitalista, Dissertação de Mestrado, UNICAMP/IFCH, Campinas, 2007.
2 Os temas debatidos aqui foram desenvolvidos no capítulo: “O Sentido geral da Circulação Simples e o problema de sua Referência”. Idem, p. 21-42.
3 Isaak Rubin, A Teoria Marxista do Valor, Trad. de José Bonifácio da S. Amaral Filho, São Paulo: Brasiliense, 1980. (p.273); Rui Fausto, Marx Lógica e política, São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, (p. 108); Ernest Mandel, El Capital: 100 años de controvérsias, Trad. de Adriana Sandoval, Stella Mastrangelo y Marti Soler, Mexico, D.F.: Siglo Veintiuno, 1985, (p. 12.).
4 “Die dazumal ein Großes Geschrei erhoben”. Karl Marx e Friedrich Engels, Das Kapital, Driter Band, p 15. A partir daqui citado como K, seguido da numeração romana para o Livro, e da paginação em arábicos da Marx e Engels Werk , Berlin:Dietz Verlag, 1962. A edição brasileira da Abril Cultural será abreviada por C,seguido da paginação em arábicos.
5 O “problema da transformação” é certamente uma questão ampla e de difícil solução e que, como diz Luciano Coutinho, persiste e renova-se. Remetemos o leitor a este artigo pois além de colocar a questão como um todo, mostra os desdobramentos para a teoria contemporânea que se defronta com estes mesmo entraves. Diz o artigo que: “os pontos essenciais da crítica de Böhm Bawerk (sistematizador desta crítica) vêm sendo repetidos sob formas diferentes; em resumo são eles: a) O sistema do valor-trabalho é inconsistente e incompatível com o sistema de preços de mercado; b) a ‘transformação do sistema do valor-trabalho no sistema de preços, da forma apresentada em O Capital (volume III) está errada e é, além disso, impossível; c) em face de a) e b), todo o sistema teórico de Marx estaria ameaçado”. E completa Coutinho a elucidação do problema: “desde o início do século XX, as críticas acima resumidas haviam sido plenamente respondidas por Hilferding e depois Bukarin. O aspecto específico da transformação foi resolvido desde 1907 por Bortkiewicz e posteriormente desenvolvido por Moskowa. O desenvolvimento da matemática aplicada à economia, principalmente da álgebra matricial e das tabelas de insumo-produto, ajudou a provar definitivamente que a crítica à teoria clássica do valor carece de qualquer fundamento. Entretanto, o reconhecimento da falência da crítica é recente e de circulação restrita mesmo entre os economistas, do que decorre muita confusão que ainda persiste”. Luciano Coutinho, Notas Sobe o Problema da Transformação, in Estudos CEBRAP, nº 9, 1974. (p,7); Ver também: Luiz G.M. Belluzzo, Valor e Capitalismo, 3ª ed. Editora da Unicamp, Campinas,1998. (p.132.)
6 K, III, p. 16.
7 Rubin, A Teoria Marxista do Valor; Op.cit. p.272.
8 O que nos propomos a investigar aqui é até que medida são apenas os “críticos” os que usam diferentes métodos, ou entendem diversamente o método aplicado por Marx em sua obra.
9 K, III, p.20.
10 Como acima nos referimos, este mesmo texto foi publicado na forma de artigo na revista Die Neue Zeit sob o título: “Wertgesetzt und Profitage” em 1895, originando a controvérsia “histórica” na interpretação da seção que abre O Capital.
11 Citado por Engels, K,III, 904.
12 K,III,905.
13 Idem, 906.
14 Ou mesmo os trabalhadores da região do Reno ainda no começo do século XIX e dos quais o próprio Engels guardava lembranças. Ibidem.
15 K,III, 907.
16 Não é nosso objetivo atribuir falta de interesse a este modo de investigação, caso ele possar mesmo ser levado a efeito, apenas nos detemos em objetar que esta não é forma pela qual Marx apresenta as categorias em O Capital. Os motivos da objeção virão a seguir.
17 K,III, 908.
18 Idem, 909.
19 Simplificando diríamos que Engels procura deduzir da história da troca a lei do valor e da história dos trocadores a lei da concorrência, os dois termos do problema que, procurando resolver, causou a aparição de tantos outros. Resta a aparência de que a história tivesse por si mesma a “chave” para os conceitos e para seu lugar na teoria, tese que, como
veremos, Marx rejeita.
20 Quando vemos o plano da obra de Rosa Luxemburgo tal como apresentado por Mandel na Introdução, vemos que a preocupação de Rosa é seguir uma linha histórica da sociedade comunista primitiva, passando pelo sistema feudal de economia, pelas corporações artesanais, até a produção mercantil e chega ao final no capitalismo propriamente dito. Ao que nos parece, todo este esforço visa dar um quadro “concreto” aos temas da Circulação Simples, o que corrigiria as abstrações de Marx. Rosdolsky cita uma carta de Rosa Luxemburgo na qual ela parece extremamente em desacordo com a exposição feita em O Capital. Faltaria à escrita marxiana a “simplicidade” das reconstituições históricas de Engels e Rosa. "Esta [a simplicidade de expressão] é agora minha orientação estética, que só aprecia o simples, calmo e generoso, tanto no trabalho científico como na arte, razão pela qual agora me horroriza o tantas vezes elogiado primeiro tomo de O Capital de Marx, com sua ornamentação rococó no estilo de Hegel (pelo uso desse estilo se deveria merecer, do ponto de vista do partido, cinco anos de cárcere e dez de suspensão dos direitos civis...)" e completa Rosdolsky: “Como se vê, às vezes Rosa ignorava que por trás do ‘estilo hegeliano’ da obra de Marx estava o conteúdo dialético”. Roman Rosdolsky, Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx. Trad. César Benjamin. Rio de Janeiro: Editora da UERJ, 2001. (p. 598).
21 Rosa Luxemburgo, Introdução à economia política, trad. Carlos Leite, Martins Fontes, São Paulo, 1996, p. 276.
22 Mandel, O Capital, 100 anos de Controvérsias em torno a la obra de Karl Marx, trad. Adriana Sandoval, México, Siglo veintiuno editores, 1985, p.10.
23 Idem, p, 12.
24 Ibidem, p.33.
25 Ernest Mandel, Tratado de Economia Marxista, Vol. I, trad. Francisco Díez del Corral, Mexico, Ediciones Era, 1971,
p.17. Grifo nosso.
26 Idem, p.18.
27 A Circulação Simples Como Epiderme Da Experiência Capitalista, p.85 ss.
28 Rubin, que se esquiva de criticar Engels, limita-se ao tocar no problema a saudar o fato de que "agora temos outras obras de Marx ao nosso alcance”, referindo-se posteriormente a esta mesma seção da Introdução [à Crítica da Economia Política] de 1857 e também às Teorias do Mais-Valor, e completa: “agora sabemos que o próprio Marx opunha-se vigorosamente à idéia de que a lei do valor esteve em vigor no período precedente ao desenvolvimento do capitalismo”. De agora em diante citaremos o Método da Economia Política com a abreviação M, seguida da paginação da tradução para o português da Terceira parte: Introdução [À Crítica da Economia Política] (1857). Tradução de Fausto Castilho, Campinas IFCH, Primeira Versão,1996, as referências ao texto alemão dos Grundrisse se abreviam com a letra G, seguida da paginação da Marx e Engels Werke, Band 13, Dietz Verlag Berlin, 1969.
29 G, 631.M, 7.
30 G, 632,M, 9.
31 Idem.
32 “É, sem dúvida, necessário distinguir o método de exposição formalmente, do método de pesquisa. A pesquisa tem de captar detalhadamente a matéria, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão íntima. Só depois de concluído este trabalho é que se pode expor adequadamente o movimento real”. O Capital, p.21.
33 G, 632; M, 9.
34 “No primeiro caminho, toda a representação se desvanece em determinação abstrata, ao passo que, no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto no plano (im Weg) do pensamento”. Idem.
35 G, 633,M 11.
36 G, 636, M, 17.
37 “Anatomie des Menschen ist ein Schlüssel zur Anatomie des Affen”. G, 636, M, 17.
38 Segue o texto: “A teoria do valor-trabalho pressupõe apenas relações de produção entre produtores de mercadorias. A teoria dos preços de produção pressupõe, além disso, relações de produção entre capitalistas e operários, de um lado, e entre diversos grupos de capitalistas industriais, de outro.” Rubin, Op. Cit. p.276.
39 G, 637,M, 19.
40 G, 638,M, 21.
41 Idem.
42 Para uma discussão pormenorizada do plano original e suas modificações por parte de Marx, remetemos o leitor ao segundo capítulo de “Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx”. Op. Cit. 43 G,639; M, 23.
44Ázara, “A Circulação Simples como Epiderme da Experiência Capitalista”, p. 108.