O discurso do deputado Surkov na Duma do Estado durante o debate sobre o orçamento da Igreja, e a discussão em nossa minoria da Duma, ao examinar o projeto desse discurso - que publicamos a seguir -, levantaram um problema de enorme importância e atualidade. Não resta dúvida de que o interesse por tudo o que diz respeito à religião envolve agora amplos setores da “sociedade” e penetra nas fileiras dos intelectuais que estão próximos do movimento operário e em certos meios operários. A social-democracia* tem o dever inqüestionável de esclarecer sua atitude diante da religião.
A social-democracia assenta toda a sua concepção do mundo no socialismo científico, ou seja, no marxismo. A base filosófica do marxismo, como disseram várias vezes Marx e Engels, é 0 materialismo dialético, que assumiu plenamente as tradições históricas do materialismo do século XVIII na França e o de Feuerbach (primeira metade do século XIX) na Alemanha, do materialismo incondicionalmente ateu e decididamente hostil a toda religião. Recordemos que o livro Anti-Düring, de Engels, que Marx leu ainda manuscrito, acusa o materialista e ateu Dühring de ser inconseqüente em seu materialismo e de haver deixado brechas para a religião e a filosofia religiosa. Recordemos que em sua obra sobre Ludwig Feuerbach, Engels o acusa de haver lutado contra a religião, mas não para destruí-la e sim para renová-la, para criar uma religião nova, “sublime” etc. A religião é o ópio do povo (1). Esta frase de Marx é a pedra angular de toda a concepção marxista da questão religiosa. O marxismo considera sempre que todas as religiões e igrejas modernas, todas e cada uma das organizações religiosas, são órgãos da reação burguesa a serviço da defesa da exploração e do embrutecimento da classe operária.
No entanto, Engels também condenou as tentativas daqueles que, para serem “mais esquerdistas” ou “mais revolucionários” que a social-democracia, pretendiam introduzir no programa do partido operário o reconhecimento categórico do ateísmo como uma declaração de guerra ã religião. Em 1874, ao referir-se ao famoso manifesto dos comuneros blanquístas emigrados em Londres, Engels chamava de estupidez sua histérica declaração de guerra contra a religião, afirmando que essa atitude era o melhor meio de despertar o interesse pela religião e dificultar sua verdadeira extinção. Engels acusava os blamquistas de serem incapazes de compreender que só a luta de classe das massas operárias, ao atrair amplamente os grandes setores do proletariado para uma prática social consciente e revolucionária, será capaz de livrar verdadeiramente as massas oprimidas do jugo da religião, enquanto que declarar como missão política do partido operário a guerra contra a religião é uma frase anarquista(2) E em 1877, ao condenar sem piedade, no Anti-Dühring, as mais intimas concessões do filósofo Dühring ao idealismo e à religião, Engels condenava com não menos energia sua idéia pseudo-revolucionária sobre a proibição da religião na sociedade socialista. Declarar semelhante guerra à religião, dizia Engels, significaria “ser mais bismarckista que Bismarck”, ou seja, repetir a estupidez de sua luta contra os clérigos (a famosa “luta pela cultura”, Kulturkampf, ou seja, a luta mantida por Bismarck na década de 1870 contra o Partido Católico Alemão, o partido do “Centro”, mediante perseguições policiais ao catolicismo. (3) A única coisa que Bismarck conseguiu com essa luta foi fortalecer o clericalismo militante dos católicos e prejudicar a causa da verdadeira cultura, pois colocou em primeiro plano as divisões religiosas ao invés das divisões políticas, distraindo assim a atenção de alguns setores da classe operária e da democracia das tarefas essenciais da luta de classe e revolucionária para orientá-los para o anticlericalismo burguês mais superficial e enganoso. Ao acusar Dühring, que pretendia aparecer como ultra-revolucionário, de querer repetir de outra forma a mesma estupidez de Bismarck, Engels requeria do partido operário que soubesse trabalhar com paciência para organizar e esclarecer o proletariado, para realizar uma obra que conduz à extinção da religião, e não lançar-se à aventura de uma guerra política contra a religião. (4)
Este ponto de vista penetrou na social-democracia alemã, que se manifestou, por exemplo, a favor da liberdade de ação dos jesuítas, a favor de sua admissão na Alemanha e da abolição de todas as medidas de perseguição policial contra uma ou outra religião. “Declarar a religião um assunto privado": este famoso ponto do Programa de Erfurt (5) (1891) embasou essa tática política da social-democracia. Essa tática já se tornou rotina, chegou a criar uma nova distorção do marxismo no sentido contrário, no sentido oportunista. A tese do Programa de Erfurt começou a ser interpretada no sentido de que nós, os social-democratas, nosso Partido, considera a religião um assunto privado; que para nós, como social-democratas, como Partido, a religião é um assunto privado. Sem polemizar diretamente com esse ponto de vista oportunista, Engels achou necessário combatê-lo com energia, não de forma polêmica, mas de modo positivo. Ou seja: Engels o fez mediante uma declaração em que ressaltava que a social-democracia considera a religião como um assunto privado em relação ao Estado, mas de modo algum com relação a si mesma, com relação ao marxismo, com relação ao partido operário.” (6)
Essa é a história externa das manifestações de Marx e Engels sobre a religião. Para quem enfoca com negligência o marxismo, para quem não sabe ou não quer meditar, essa história é um acúmulo de contradições absurdas e vaivéns do marxismo: uma espécie de amálgama de ateísmo “conseqüente” e “condescendências” para com a religião, vacilações “carentes de princípios" entre a guerra revolucionária contra Deus e a aspiração covarde de “adaptar-se” aos operários crentes, o medo de espantá-los etc., etc. Nas publicações dos charlatões anarquistas é possível encontrar vários ataques dessa índole ao marxismo.
Mas quem é capaz de enfocar com um mínimo de seriedade o marxismo, de se aprofundar em suas bases filosóficas e na experiência da social-democracia internacional, verá com facilidade que a tática do marxismo diante da religião é profundamente conseqüente e que Marx e Engels pensaram bem; verá que o que os diletantes ou ignorantes consideram vacilações é uma conclusão direta e inqüestionável do materialismo dialético. Seria um erro crasso pensar que a aparente “moderação” do marxismo diante da religião se explica por simples razões “táticas”, pelo desejo de “não espantar” etc. Pelo contrário: a linha política do marxismo está indissoluvelmente ligada a seus princípios filosóficos também nesta questão.
Marxismo é materialismo. Por essa razão, o marxismo é um inimigo tão implacável da religião quanto o materialismo dos enciclopedistas do século XVIII (7) ou o materialismo de Feuerbach. Isso é inqüestionável. Mas o materialismo dialético de Marx e Engels vai mais longe que os enciclopedistas e Feuerbach ao aplicar a filosofia materialista à história e às ciências sociais. Devemos lutar contra a religião. Esse é o ABC de todo materialismo e, portanto, do marxismo. Mas o marxismo não é um materialismo que se detém no ABC. O marxismo vai mais longe. Afirma: é preciso saber lutar contra a religião, e para isso é necessário explicar, do ponto de vista materialista, as origens da fé e da religião entre as massas. A luta contra a religião não pode se limitar nem se reduzir ã pregação ideológica abstrata; é preciso vincular essa luta ã atividade prática concreta do movimento de massas, que tende a eliminar as raízes sociais da religião. Por que a religião persiste entre os setores atrasados do proletariado urbano, entre as vastas camadas semi-proletárias e entre a massa camponesa? Pela ignorância do povo, respondem o burguês progressista, o radical ou o burguês materialista. Portanto, abaixo a religião e viva o ateísmo!, a difusão das concepções ateístas é nossa principal tarefa. 'O marxista diz: não é assim. Essa posição é uma ficção cultural superficial, burguesa, limitada. Essa opinião não é profunda e não explica as raízes da religião de um modo materialista, e sim, idealista. Nos países capitalistas contemporâneos, essas raízes são, principalmente, sociais. A raiz mais profunda da religião em nossos tempos é a opressão social das massas trabalhadoras, sua aparente impotência total frente às forças cegas do capitalismo, que a cada dia e a cada hora causa aos trabalhadores sofrimentos e martírios mil vezes mais terríveis e selvagens que qualquer acontecimento extraordinário, como as guerras e os terremotos. “O medo criou os deuses”. O medo à força cega do capital - cega porque não pode ser prevista pelas massas do povo -, que a cada passo ameaça o proletário ou o pequeno proprietário com a perdição, a ruína “inesperada”, “repentina”, “casual”, transformando-o em mendigo, em indigente, lançando-o à prostituição, à morte pela fome: eis aqui a raiz da religião contemporânea que o materialista deve levar em conta antes, se não quiser morrer como aprendiz de materialista. Nenhum folheto educativo será capaz de arrancar a religião do seio das massas oprimidas enquanto as massas não aprenderem a lutar unidas e organizadas, de modo sistemático e consciente, contra as raízes da religião, contra o domínio do capital em todas as suas formas.
Então, a conclusão disso tudo é que o folheto educativo anti-religioso é nocivo ou supérfluo? Não. A conclusão é bem diferente. A conclusão é que a propaganda atéia da social-democracia deve estar subordinada à sua tarefa fundamental: o fortalecimento da luta de classes das massas exploradas contra os exploradores.
Quem não tenha refletido sobre os princípios do materialismo dialético, ou seja, da filosofia de Marx e Engels, talvez não compreenda (ou, pelo menos, não compreenda de imediato) esta tese. Perguntará: como é possível subordinar a propaganda ideológica, a pregação de certas idéias, a luta contra um inimigo da cultura e do progresso que persiste há milhares de anos (ou seja, contra a religião) à luta de classes, à luta por objetivos práticos determinados no terreno econômico e político?
Esta objeção está entre as que são feitas diariamente contra o marxismo e testemunha a total incompreensão da dialética de Marx. A contradição que lança na perplexidade aqueles que pensam assim é uma contradição real da própria vida, uma contradição dialética e não verbal ou inventada. Separar com uma barreira absoluta, intransponível, a propaganda teórica do ateísmo, a destruição das crenças religiosas entre certos setores do proletariado, e o êxito, a marcha, as condições da luta de classes desses setores significa pensar de modo não-dialético, converter em barreira absoluta o que é apenas uma barreira móvel e relativa; significa desvincular, por meio da violência, o que está indissoluvelmente ligado na vida real. Vejamos um exemplo. O proletariado de determinada região e de determinado ramo industrial se divide, suponhamos, em um setor avançado de social-democratas bastante conscientes _ que, naturalmente, são ateus _ e em outro setor de operários bastante atrasados, ainda vinculados ao campo e aos camponeses, que acreditam em Deus, freqüentam a igreja e inclusive estão sob a influência direta do padre local, que cria uma organização operária cristã. Suponhamos, também, que a luta econômica nessa localidade tenha levado ã greve. O marxista tem o dever de colocar em primeiro plano a vitória do movimento grevista, de opor-se decididamente à divisão dos operários entre ateus e cristãos e de combater essa divisão. Nessas condições, a pregação ateísta pode ser supérflua e nociva, não do ponto de vista das considerações dos filisteus de que não se deve espantar os setores atrasados ou perder votos nas eleições, mas do ponto de vista do progresso efetivo da luta de classes que, nas circunstâncias da sociedade capitalista moderna, levará os operários cristãos à social-democracia e ao ateísmo cem vezes melhor que a mera propaganda atéia. Nesse momento e nessa situação, o pregador do ateísmo só favoreceria o padre e os padres, que só querem substituir a divisão dos operários segundo sua intervenção no movimento grevista pela divisão em crentes e ateus. O anarquista, ao pregar a guerra contra Deus a todo custo, ajuda, de fato, os padres e a burguesia (da mesma forma que os anarquistas sempre ajudam, de fato, a burguesia). O marxista deve ser materialista, ou seja, inimigo da religião; mas deve ser um materialista dialético, ou seja, não deve colocar a luta contra a religião no terreno abstrato, puramente teórico, de pregação sempre igual, mas de modo concreto, sobre a base da luta de classes que se trava de fato e que educa as massas melhor do que tudo. O marxista deve saber levar em conta toda a situação concreta, encontrando sempre o limite entre o anarquismo e o oportunismo (esse limite é relativo, móvel, variável, mas existe), e não cair no “revolucionarismo” abstrato, verbal e, na verdade, vazio do anarquista, nem no oportunismo do pequeno-burguês ou do intelectual liberal, que teme a luta contra a religião, esquece essa tarefa, se resigna com a fé em Deus e não se orienta pelos interesses da luta de classes, e sim pelo mesquinho e mísero cálculo de não ofender, não afastar ou assustar, prendendo-se à máxima ultra-sábia de “vive e deixa viver” etc., etc.
Desse ponto de vista, é preciso resolver todas as questões parciais relativas à atitude da social-democracia diante da religião. Por exemplo, pergunta-se com freqüência se um sacerdote pode ser membro do Partido Social-democrata e, em geral, responde-se de modo afirmativo incondicional, invocando a experiência dos partidos social-democratas europeus. Mas essa experiência não é fruto apenas da aplicação da doutrina marxista ao movimento operário, e sim também das condições históricas especiais do Ocidente, que não existem na Rússia (mais adiante falaremos delas); de modo que a resposta añrmativa incondicional é, nesse caso, errônea. Não se pode declarar de uma vez para sempre e para todas as situações que os sacerdotes não podem ser membros do Partido Social-democrata, mas tampouco se pode estabelecer de uma vez para sempre a regra contrária. Se um sacerdote vem até nós para realizar uma ação política conjunta e cumpre com probidade o trabalho do partido, sem combater seu programa, podemos admiti-lo nas fileiras social-democratas: nessas condições, a contradição entre o espírito e os princípios de nosso programa, por um lado, e as convicções religiosas do sacerdote, por outro, poderia continuar sendo uma contradição pessoal sua, que só afeta a ele, já que uma organização política não pode investigar seus militantes para saber se não existe contradição entre suas concepções e o programa do partido. Mas é claro que um caso como esse poderia ser uma exceção inclusive na Europa, mas na Rússia já é muito pouco provável. E se, por exemplo, um sacerdote entrasse no Partido Social-democrata e começasse a fazer, como ação principal e quase única, a pregação ativa das concepções religiosas, o partido, sem dúvida teria que expulsá-lo de suas fileiras. Devemos não só admitir, mas atrair sem falta para o Partido Social-democrata todos os operários que conservam a fé em Deus; nos opomos categoricamente a que se faça qualquer tipo de ofensa a suas crenças religiosas, mas os atraímos para educá-los no espírito de nosso programa e n para que lutem ativamente contra ele. Admitimos dentro do partido a liberdade de opinião, mas até certo limite, determinado pela liberdade de organização: não somos obrigados a marchar ombro a ombro com os defensores ativos de opiniões que sejam repudiadas pela maioria do partido.
Outro exemplo. Podemos condenar por igual, em todas as circunstâncias, os militantes do Partido Social-democrata por declarar “o socialismo é minha religião” e defender opiniões de acordo com essa declaração? Não. O desvio do marxismo (e, em conseqüência, do socialismo), neste caso, é claro; mas a importância desse desvio, seu peso específico, por assim dizer, pode ser diferente em diferentes circunstâncias. Uma coisa é quando o agitador, ou a pessoa que intervém diante das massas operárias, fala assim para que o compreendam melhor, para começar sua explanação ou apresentar com aior clareza seus conceitos nos termos mais populares entre uma massa pouco culta. Mas outra coisa é quando um escritor começa a pregar a “construção de Deus” (8) ou o socialismo dos construtores de Deus (no espírito, por exemplo, de nossos Lunacharski e Cia.). Na mesma medida em que, no primeiro caso, a condenação seria injusta e inclusive uma limitação inadequada da liberdade do agitador, da liberdade de influência “pedagógica”, no segundo caso, a condenação por parte do partido é indispensável e obrigatória. Para uns, a tese de que “o socialismo é uma religião” é uma forma de passar da religião ao socialismo; para outros, do socialismo à religião.
Vejamos agora as condições que deram origem, no Ocidente, a interpretação oportunista da tese “declarar a religião como assunto privado”. Nisso influíram, naturalmente, as causas comuns que dão origem ao oportunismo em geral, como sacrifício dos interesses fundamentais do movimento operário em prol das vantagens momentâneas. O partido do proletariado exige do Estado que declare a religião um assunto privado; mas não considera, absolutamente, “assunto privado” a luta contra o ópio do povo, a luta contra as superstições religiosas etc. Os oportunistas distorcem a questão, como se o Partido Social-democrata considerasse a religião um assunto privado!
Mas, além da habitual deformação oportunista (não explicada em absoluto durante os debates que nossa minoria manteve na Duma ao analisar a questão da religião), existem condições históricas especiais que suscitaram, se me permitem a expressão, a excessiva indiferença atual dos social-democratas europeus diante da questão religiosa. São condições de dois gêneros. Primeiro, a tarefa da luta contra a religião é historicamente uma tarefa da burguesia revolucionária, e a democracia burguesa do Ocidente, na época de suas revoluções ou de seus ataques ao feudalismo e ao espírito medieval, a cumpriu (ou cumpria) de forma considerável. Tanto na França como na Alemanha existe a tradição da guerra burguesa contra a religião, guerra iniciada muito antes de aparecer o socialismo (os enciclopedistas, Feuerbach). Na Rússia, de acordo com as condições de nossa revolução democrático-burguesa, também esta tarefa recai quase inteiramente sobre os ombros da classe operária. Em nosso país, a democracia pequeno-burguesa (populista
não fez muito a respeito (como crêem os kadetes centurionegristas de novo tipo ou os centurionegristas kadetes de Veji (9)); de fato, fez muito pouco em comparação com a Europa.
Por outro lado, a tradição da guerra burguesa contra a religião criou na Europa uma deformação especificamente burguesa dessa guerra por parte do anarquismo que, como explicaram os marxistas várias vezes, se situa no terreno da concepção burguesa do mundo, apesar de toda a “fúria” de seus ataques ã burguesia. Os anarquistas e os blanquistas nos países latinos, Most (que, aliás, foi discípulo de Dühring) e Cia. na Alemanha e os anarquistas da década de 80 na Áustria levaram ao extremo o discurso revolucionário em sua luta contra a religião. Não é de estranhar que, agora, os social-democratas europeus caiam no extremo oposto dos anarquistas. Isso é compreensível e, até certo ponto, legítimo; mas nós, os social-democratas russos, não podemos esquecer as condições históricas especiais do Ocidente.
Segundo, no Ocidente, depois das revoluções burguesas nacionais, depois de haver sido implantada a liberdade de consciência mais ou menos completa, a questão da luta democrática contra a religião ficou tão relegada historicamente a segundo plano pela luta da democracia burguesa contra o socialismo, que os governos burgueses tentaram conscientemente desviar a atenção das massas do socialismo, organizando “cruzadas” liberais contra o clericalismo. O Kulturkampf na Alemanha e a luta dos republicanos burgueses da França contra o clericalismo também tinham esse caráter. O anticlericalismo burguês, como meio de desviar a atenção das massas operárias do socialismo, precedeu no Ocidente a difusão, entre os social-democratas, de sua atual “indiferença” diante da luta contra a religião. E também isto é compreensível e legítimo, porque os social-democratas precisavam oporão anticlericalismo burguês e bismarckiano justamente a subordinação da luta contra a religião à luta pelo socialismo.
Na Rússia, as condições são completamente distintas. O proletariado é o dirigente de nossa revolução democrático-burguesa. Seu partido deve ser o dirigente ideológico na luta contra tudo o que é medieval, incluindo a velha religião oficial e todas as tentativas de renova-la ou fundamenta-la novamente ou sobre uma nova base etc. Por isso, se Engels corrigia com relativa suavidade o oportunismo dos social-democratas alemães - que haviam substituído a reivindicação do partido operário de que o Estado declarasse a religião um assunto privado, definindo eles mesmos a religião como assunto privado para os próprios social-democratas e para o Partido Social-democrata _, é lógico que a aceitação desse desvio alemão pelos oportunistas russos mereceria uma condenação cem vezes mais dura por parte de Engels.
Ao declarar, da tribuna da Duma, que a religião é o ópio do povo, nossa minoria atuou de modo completamente justo, sentando com isso um precedente que deverá servir de base para todas as manifestações dos social-democratas russos sobre a religião. Deveria ter ido mais longe, elaborando com mais detalhes as conclusões ateístas? Cremos que não. Isso poderia ter gerado o perigo de que o partido político do proletariado inflasse a luta anti-religiosa, poderia ter levado a apagar a linha divisória entre a luta burguesa e a luta socialista contra a religião. A primeira tarefa da minoria social-democrata na Duma centurionegrista foi cumprida com honra.
A segunda e talvez a principal tarefa dos social-democratas - explicar o papel de classe cumprido pela Igreja e o clero ao apoiar o governo centurionegrista e à burguesia em sua luta contra a classe operária -, também foi cumprida com honra. E claro que sobre este tema se poderia dizer muito mais, e as intervenções posteriores dos social-democratas saberão completar o discurso do camarada Surkov. No entanto, seu discurso foi magnífico e sua difusão por todas as nossas organizações é um claro dever do partido.
A terceira tarefa consistia em explicar com toda minúcia o sentido justo da tese que com tanta freqüência é deformada pelos oportunistas alemães: “declarar a religião um assunto privado”. Por desgraça, o camarada Surkov não o fez. Isso é de se lamentar, porque na atividade anterior da minoria, 0 camarada Beloúsov cometeu um erro nessa questão, que foi depois apontado em Proletari. Os debates na minoria demonstram que a discussão em torno do ateísmo a impediu de ver como expor corretamente a famosa reivindicação de declarar a religião um assunto privado. Não acusaremos apenas o camarada Surkov desse erro que é de toda a minoria. Mais ainda: reconhecemos francamente que a culpa corresponde a todo o partido por não haver explicado suficientemente essa questão, por não haver inculcado suficientemente na consciência dos social-democratas o significado da observação de Engels aos oportunistas alemães. Os debates na minoria demonstram que isso foi, justamente, uma compreensão confusa da questão e não falta de desejos de respeitar a doutrina de Marx; por isso, estamos seguros de que esse erro será corrigido nas próximas intervenções da minoria.
Em resumo, repetimos que o discurso do camarada Surkov é magnífico e deve ser difundido por todas as organizações. Ao discutir o conteúdo desse discurso, a minoria demonstrou que cumpre com seu dever social-democrata. Só nos resta torcer para que no jornal do Partido apareçam com mais freqüência informações sobre os debates no seio da minoria, para aproxima-la do Partido, para divulgar o intenso trabalho efetuado pela minoria e estabelecer a unidade ideológica na atuação de ambos.
Notas
* Lênin refere-se ao Partido Social-democrata russo, que depois deuorigem ao Partido Bolchevique - N.T.
Este texto foi escrito em 1909 e publicado pela primeira vez em Proletari, número 45, de 13 (26) de maio de 1909.
(1) Ver K. Marx, “Introdução à critica da filosofia do direito de Hegel”. (K. Marx e F. Engels, Obras Completas, v0l.1.
(2) Ver F. Engels, “A literatura de emigrado”. (K. Marx e F. Engels, Obras Completas, vol. xvnl.)
(3) Refere-se a Kulturkampf (“Luta pela cultura”) que era como os burgueses liberais chamavam o conjunto de medidas legais adotadas na década de 70 do século XIX, pelo governo de Bismarck sob o rótulo de luta por uma cultura laica e com vistas a opor-se ã igreja católica e ao partido do “Centro”, que davam apoio às tendências separatistas dos latifundiários e da burguesia dos pequenos e médios Estados do sudoeste da Alemanha. A política de Bismarck também visava a desviar da luta de classes uma parte da classe operária mediante a incitação ao fanatismo religioso. Na década de 80, a fim de unir as forças reacionárias, Bismarck aboliu grande parte dessas medidas.
(4) Ver F. Engels, Anti-Dühring, terceira parte; O Estado, a família e a educação.
(5) O Programa de Erfurt, da social-democracia alemã, foi aprovado em outubro de 1891 no congresso de Erfurt para substituir o Programa de Gotha de 1875, e representou um passo adiante em relação a este último porque nele se repudiava as exigências lassalleanas. No entanto, também continha graves erros; não tratava da teoria da ditadura do proletariado, das exigências de derrubar a monarquia e fundar a república democrática. Em junho de 1891, Engels criticou 0 projeto desse programa. (K. Marx e F. Engels, “A critica do projeto de programa do Partido Social-democrata de 1891", Obras Completas, vol. XXII.)
(6) Refere-se à “Introdução” de F. Engels ao folheto de K. Marx A guerra civil na França, 3a edição alemã.
(7) Enciclopedistas: grupo de ideólogo-civilizadores franceses do século XVIII, que se uniram para publicar a Enciclopédie ou dictionnaire reisonné des sciences, des arts et des métiers (1751-l780) e por isso se denominam assim. Seu organizador e editor chefe foi Denis Diderot. Os enciclopedistas estavam categoricamente contra a igreja católica, a escolástica e o privilégio do sistema feudal, e desempenharam um papel nada insignificante na preparação ideológica da revolução burguesa na França de fins do século XVIII.
(8) Construção de Deus: corrente religioso-filosófica hostil ao marxismo, aparecida no período da reação stolipiniana entre uma parte dos intelectuais do Partido, que se desviaram do marxismo depois da derrota da revolução de 1905-1907. Os construtores de Deus (Lunacharski, Bazárov e outros) pregavam a criação de uma religião nova, “socialista”, tentavam reconciliar o marxismo com a religião. Em uma época, Máximo Gorki se uniu a eles. A reunião da redação ampliada do Prolerari condenou essa corrente e em uma resolução especial declarou que a fração bolchevique não tinha nada em comum “com tal desvio do socialismo científico”.
(9) Veji (“Jalones”): publicação dos kadetes; surgiu em Moscou na primavera de 1909 com artigos de N. Berdiáev, S. Bulgákov, P. Struve, M. Guerchenzon e outros represen- ~ tantes da burguesia liberal contrarevolucionária. Nos artigos sobre os intelectuais russos, os “vejistas” tentavam difamar as tradições democrático-revolucionárias da Rússia, difamavam o movimento revolucionário de 1905 e agradeciam ao governo czarista por ter salvo a burguesia “com suas baionetas e prisões". A publicação chamava os intelectuais a se colocar a serviço da autocracia. Lenin comparava o programa de Veji, tanto em filosofia como em ensaios, com o de Moskovkie Viédomosti, jornal das Centúrias Negras, chamava a publicação de “enciclopédia da apostasia liberal”, que “é uma torrente contínua de lodo reacionário, vertido sobre a democracia."
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