Nunca um movimento revolucionário iniciou com uma abertura tão edificante quanto o movimento revolucionário de 1848. O Papa o abençoou religiosamente, a harpa eólia de Lamartine estremeceu sob a suave melodia filantrópica cujo texto era a Fraternité, a fraternidade entre as partes da sociedade e as nações.
Milhões sejam cingidos
Neste beijo do mundo todo! (Da ode de Schiller “À Alegria”.)
Neste momento o Papa senta-se em Gaëta, expulso de Roma, sob a proteção do tigre idiota Ferdinand, o “Iniciatore” da Itália(1), intrigando contra a Itália com o inimigo mortal hereditário dela, com a Áustria, que ele em seu período feliz ameaçou com a excomunhão. A última eleição presidencial francesa forneceu as tabelas estatísticas(2) à impopularidade de Lamartine, o traidor. Nada mais filantrópico, humano, fraco do que as revoluções de fevereiro e março, na da mais brutal do que as conseqüências necessárias dessa humanidade dos fracos. Testemunhas: Itália, Polônia, Alemanha e, sobretudo, os vencidos de junho.
Com a derrota dos trabalhadores franceses em junho foram, entretanto, vencidos os próprios vencedores de junho. Ledru-Rollin e os outros homens da Montanha(3) foram reprimidos pelo partido dos republicanos burgueses, pelo partido do “National”(4); o partido do “National” pela oposição dinástica(5), Thiers-Barrot, e esta mesma precisou ceder o lugar aos legitimistas(6), como se o ciclo das três restaurações não se tivesse fechado e Luis Napoleão fosse mais do que a urna oca em que os camponeses franceses fizeram sua entrada no movimento social-revolucionário e os trabalhadores franceses depositaram seu voto de condenação a todos os líderes da época passada, Thiers-Barrot, Lamartine e Cavaignac-Marrast. Mas tomemos nota do fato de que a derrota da classe trabalhadora revolucionária francesa trouxe após si, como conseqüência inevitável, a derrota da burguesia republicana francesa, que a abateu agora mesmo.
A derrota da classe trabalhadora na França, a vitória da burguesia francesa, foi ao mesmo tempo a nova opressão das nacionalidades que tinham respondido com heróicas tentativas de emancipação ao canto do galo gaulês(7). Polônia, Itália e Irlanda foram mais uma vez saqueadas, violentadas, assassinadas pelos esbirros prussianos, austríacos e ingleses. A derrota da classe trabalhadora na França, a vitória da burguesia francesa foi ao mesmo tempo a derrota da classe média em todos as regiões européias em que a classe média, unida por um momento ao povo, tinha respondido com uma revolução sangrenta contra o feudalismo ao canto do galo gaulês. Nápoles, Viena, Berlim! A derrota da classe trabalhadora na França, a vitória da burguesia francesa foi ao mesmo tempo a vitória do oriente sobre o ocidente, a derrota da civilização pela barbárie. Na Valáquia começou a repressão dos romanos pelos russos e seus instrumentos, os turcos(8); em Viena os croatas, panduros(9), tchecos, [Sereschaner] e semelhantes lumpensinatos estrangularam a liberdade alemã, e neste momento o czar é onipresente na Europa. A derrubada da burguesia na França, o triunfo da classe trabalhadora francesa, a emancipação da classe trabalhadora em geral é, portanto, a senha para a libertação européia.
Mas o país, a nação inteira transformada em seu proletariado, que com sua imensa pobreza abarcou o mundo inteiro, que com seu dinheiro já uma vez financiou os custos da restauração européia, em cujo seio os conflitos de classe assumiram sua forma mais característica e descarada – a Inglaterra parece ser o rochedo no qual se quebram as ondas revolucionárias, em que a nova sociedade morre de fome já no seio materno. A Inglaterra domina o mercado mundial. Uma transformação das relações econômico-nacionais em todos os países do continente europeu, no continente europeu em seu conjunto sem a Inglaterra, é uma tempestade num copo d’água(10). As relações da indústria e do comércio no interior de cada nação são dominadas por meio de seu intercâmbio com outras nações, são condicionadas por sua relação com o mercado mundial. Mas a Inglaterra domina o mercado mundial, e a burguesia domina a Inglaterra.
A libertação da Europa, seja a insurreição das nacionalidades oprimidas pela independência, seja a derrubada do absolutismo feudal, são, portanto, condicionadas pela insurreição vitoriosa da classe trabalhadora francesa. Mas toda transformação social francesa choca-se necessariamente na burguesia inglesa, no domínio mundial industrial e comercial da Grã-Bretanha. Toda reforma social parcial na França, e no continente europeu em geral, é e permanece, se pretende ser definitiva, um vazio voto piedoso. E a velha Inglaterra só será derrubada por uma guerra mundial, a única que pode oferecer ao partido cartista, o partido organizado dos trabalhadores ingleses, as condições para uma insurreição bem-sucedida contra seu poderoso opressor. Os cartistas à cabeça do governo inglês – só neste momento a revolução social sai do reino da utopia para o reino da realidade. Mas toda guerra européia na qual a Inglaterra seja envolvida é uma guerra mundial. Ela será travada no Canadá como na Itália, na Índia oriental como na Prússia, na África como no Danúbio. E a guerra européia é a primeira conseqüência da revolução vitoriosa dos trabalhadores na França. Como à época de Napoleão, a Inglaterra estará na ponta dos exércitos contra-revolucionários, mas será arremessada pela própria guerra à ponta do movimento revolucionário e resgatará sua dívida com a revolução do século XVIII.
Insurreição revolucionária da classe trabalhadora francesa, guerra mundial – este é o sentido do ano de 1849.
Notas
(1) O Papa Pio IX implementou, logo após sua eleição em 1846, uma série de reformas liberais, para prevenir um crescimento do movimento popular (anistia parcial para presos políticos, abolição da censura prévia etc.). Depois do levante popular em Roma, Pio IX fugiu em 24 de novembro de 1848 na fortaleza Gaëta, no reino de Nápoles.
(2) Nas eleições presidenciais de 10 de dezembro de 1848, Luis Bonaparte recebeu 5.430.000 votos. Lamartine, candidato do partido do “National”, sofreu uma derrota completa. Ele recebeu 17.900 votos e, com isso, ficou em último lugar, atrás de Cavaignac, Ledru-Rollin e Raspail.
(3) Montagne (Montanha) – agrupamento de democratas pequeno-burgueses e republicanos liderado por Ledru-Rollin em torno do jornal “La Réforme”; a ele aderiram os socialistas pequeno-burgueses sob a direção de Louis Blanc. “La Réforme” apareceu em Paris como jornal diário de 1843 a 1850.
(4) Jornal francês, publicado em Paris de 1830 a 1851; nos anos 40 foi o órgão dos republicanos burgueses moderados. O redator-chefe do “National” e líder desse agrupamento político que se apoiava na burguesia industrial e numa parte da inteligência liberal era Armanda Marrast. Jules Bastide foi até 1846 um dos redatores do “National”.
(5) Grupo liderado por Odilon Barrot na Câmara dos Deputados francesa durante a Monarquia de Julho, cujos membros expressavam as opiniões políticas dos círculos liberais da burguesia industrial e comercial e que defendia a realização de uma reforma eleitoral moderada; ele via aí um meio de prevenir a revolução e manter a dinastia Orléans.
(6) Partidários da “legítima” dinastia dos Bourbon, que se manteve no poder na França de 1589 a 1793 e, durante o período da Restauração, de 1814 a 1830; defendiam os interesses dos grandes proprietários hereditários de terra.
(7) Na introdução escrita em 1831 à obra “Kahldorf sobre a nobreza em cartas ao conde M. von Moltke”, diz Heine, considerando a revolução francesa de 1830: “O galo gaulês cantou agora pela segunda vez, e também na Alemanha é dia”.
(8) Em junho de 1849, na Valáquia (Bucarest), depois da fuga do príncipe Bibesko, foi formado pelas forças liberais um governo provisório, o qual esforçou-se por realizar uma série de reformas burguesas e uma constituição segundo o modelo europeu, bem como um acordo com a Turquia. Em conseqüência disso, um corpo de exército russo cruzou o Pruth [?]. Ao mesmo tempo, o governo czarista conseguiu mobilizar a Turquia para também enviar tropas para a repressão do movimento de libertação naquela região. No decorrer de setembro tropas turcas ocuparam a Valáquia e realizaram em Bucareste uma sangrenta prestação de contas com a população.
(9) Croatas – soldados do exército imperial austríaco, cuja cavalaria ligeira e infantaria eram originariamente recrutadas entre os membros desse povo eslavo do sul. Panduros – formações militares do exército imperial austríaco, que apresentavam um tipo específico de tropas de infantaria irregulares e se comportavam de forma extremamente brutal e impiedosa.
(10) Essa comparação plástica para uma grande excitação [emoção, irritação] em um âmbito limitado, que não produz nenhum efeito em conseqüência, foi utilizada por Montesquieu em relação ao tumulto na mini-república San Marino.
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