Como se sabe, o último Engels apresenta a metodologia do marxismo como uma confluência na qual um dos troncos consiste na inversão materialista da dialética hegeliana - premissa indispensável para a superação do "platonismo" que lhe é característica. A possibilidade dessa metamorfose, de certo modo, seria fornecida pelo próprio caráter revolucionário do método hegeliano, em flagrante e permanente contradição com o espírito conservador do sistema. O descompasso entre a dialética - incompatível por definição com afirmações absolutas - e o empenho sistemático de Hegel em apresentar sua filosofia como "resumo e compêndio" de uma verdade absoluta impõe, na visão de Engels, o giro materialista como um desdobramento quase diria necessário desse pensamento.
Lukács não rejeita propriamente a tese que considera o materialismo histórico o "herdeiro do idealismo alemão". Antes, procura até mesmo aprofundá-la, e para tanto não hesita em alterar o qualificativo da relação entre Hegel e Marx de "desdobramento" para "prolongamento". Entretanto, ao contrário de Engels, Lukács concede pouca ênfase ao giro materialista. Segundo ele, a maneira como se praticou essa inversão (em Engels e em seus epígonos na Segunda Internacional) não deixou de provocar um enfraquecimento do empenho sistêmico, acarretando uma fragmentação que dispersou o conhecimento em esferas autônomas, à semelhança da teoria de Max Weber.
Em contraposição a esse diagnóstico, Lukács salienta que Marx conseguiu transmudar a dialética hegeliana em "álgebra da revolução" sobretudo porque se ateve à sua matriz principal (totalmente ignorada por Engels), à categoria, ou melhor, ao ponto de vista da totalidade.
O domínio do todo sobre as partes, configurado por meio da apreensão dos múltiplos fenômenos parciais como momentos do todo, como parcelas de um mesmo processo, torna-se, em História e consciência de classe, fator decisivo para a definição do campo marxista. Identificado com a essência do método de Marx, o ponto de vista da totalidade sobrepujaria inclusive outras determinações, consideradas até então suficientes para delimitar suas diferenças diante da ciência burguesa, como o "predomínio de motivos econômicos na explicação da história" ou mesmo a prática de "contrapor à sociedade burguesa conteúdos revolucionários".
Segundo essa perspectiva, que ressalta a importância da categoria "totalidade" para a compreensão da metodologia do materialismo histórico, a aproximação entre Marx e Hegel seria maior que a proximidade entre Marx e a maioria dos teóricos, declaradamente marxistas, da social-democracia:
Mesmo a polêmica materialista contra a concepção "ideológica" da história é dirigida bem mais contra os epígonos de Hegel do que contra o próprio mestre que, a esse respeito, estava muito mais próximo de Marx do que este pôde imaginar em sua luta contra a esclerose "idealista" do método dialético. O idealismo "absoluto" dos epígonos de Hegel chega, com efeito, a dissolver a totalidade primitiva do sistema, a separar a dialética da história viva [...]. Contudo, o materialismo dogmático dos epígonos de Marx repete a mesma dissolução da totalidade concreta da realidade histórica. Se o método dos epígonos de Marx não degenera, como o dos epígonos de Hegel, num esquematismo intelectual vazio, ele se atrofia numa ciência específica e mecanicista, em economia vulgar (Idem, pp. 116-117).Uma primeira conseqüência de se considerar a dialética conforme a perspectiva da totalidade seria, portanto, a exigência de superar as distinções abstratas sobretudo no que tange à relação entre sujeito e objeto do conhecimento, premissa inicial da constituição de domínios autônomos de pesquisa, separados em decorrência da divisão intelectual do trabalho e da especialização científica. Trata-se de redirecionar o conhecimento para considerar a sociedade uma totalidade, recomendação enfatizada na célebre passagem: "Para o marxismo, em última análise, não há, portanto, uma ciência jurídica, uma economia política e uma história etc. autônomas; mas somente uma ciência histórico-dialética, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como totalidade" (Idem, p. 107).
Certamente, Lukács não ignora a necessidade, durante o processo de elaboração do conhecimento, de isolar e abstrair elementos de um amplo campo de investigação, de focalizar complexos de problemas ou ainda de condensar conceitos de um dado campo de estudos. Para ele, porém, o decisivo consiste em saber se esse isolamento é apenas um meio para o conhecimento do todo, inserido como momento determinado de uma conexão total, ou se o conhecimento abstrato de regiões parciais isoladas preserva sua autonomia, convertendo-se, à maneira da ciência burguesa, em finalidade própria.
No transplante da dialética de Hegel para Marx nem tudo, como seria de se esperar, permanece idêntico. Na medida em que, para Lukács, o método de Marx apresenta-se "como a continuação conseqüente do que Hegel havia almejado, mas que não obtivera concretamente" (Idem, p. 92), o "prolongamento" da dialética hegeliana inclui algumas correções. No que tange à perspectiva da totalidade, a modificação mais substancial diz respeito à necessidade de que essa categoria determine não só o objeto, mas também o sujeito do conhecimento.
A ciência burguesa, em especial a economia clássica, mantém-se presa à consideração dos fenômenos sociais a partir da perspectiva do indivíduo (o agente capitalista). Despreza-se assim, na perspectiva de Lukács, simultaneamente, duas características primordiais da dialética - "a exigência da totalidade tanto como objeto determinado como sujeito que determina".
Hegel, por sua vez, embora encare o objeto como totalidade, só preenche metade dos requisitos, já que hesita entre o "ponto de vista do 'grande homem' e o do espírito abstrato do povo" (Idem, p. 108).
Marx, porém, particularmente em O capital, na medida em que "considera os problemas de toda a sociedade capitalista como problemas das classes que a constituem, sendo a dos capitalistas e a dos proletários apreendidas como conjuntos", atinou para o papel-chave do conceito de classe. Descortina assim um sujeito que, na sociedade moderna, "para se pensar a si mesmo é obrigado a pensar o objeto como totalidade".
Parte-se, portanto, da premissa de que "o ponto de vista do indivíduo não pode levar a nenhuma totalidade, quando muito pode levar a aspectos de um domínio parcial, mas na maioria das vezes somente a algo fragmentário: a 'fatos' desconexos ou a leis parciais abstratas". Nesse diapasão, "a totalidade só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma totalidade" (Idem, p. 107). Lukács reconstitui assim o marxismo como uma forma de saber umbilicalmente vinculada ao proletariado9.
Afinal, uma vez que a superioridade científica e metodológica do ponto de vista de classe sobre a perspectiva individual assenta-se no fato de que "somente a classe, por sua ação, pode penetrar a realidade social e transformá-la em sua totalidade" (Idem, p. 125), a única classe capaz de promover a esperada modificação social, garantindo, ao mesmo tempo, a unidade de teoria e prática, seria o proletariado. Recuperando uma frase célebre de Marx, no Manifesto do Partido Comunista, que identifica o proletariado como executor da sentença de morte proferida pela burguesia contra si mesma, Lukács conclui que o proletariado, "ao reconhecer sua situação, age, e ao combater o capitalismo, reconhece sua situação" (Idem, p. 127).
O giro principal efetivado por Marx em relação ao método de Hegel, portanto, segundo Lukács, não consiste precisamente na passagem do idealismo para o materialismo - como às vezes sugere o próprio Marx, e Engels não cessava de reiterar. O mais decisivo foi a transição do ponto de vista do indivíduo para a perspectiva das classes sociais.
História e consciência de classe ressalta ainda que, ao adotar a perspectiva da totalidade, Marx teria transplantado diretamente de Hegel não apenas a consideração de todos os fenômenos parciais como momentos do todo ou a identidade entre sujeito e objeto, mas também a compreensão do processo dialético como unidade de pensamento e experiência. Segundo ele, esse modo de conceber o vínculo entre lógica e história tornou-se um fator determinante no recente renascimento do marxismo, consagrado nas obras decisivas de Lênin e Rosa Luxemburgo - respectivamente, O estado e a revolução e A acumulação do capital.
Lukács detecta a manifestação dessa unidade de conceito e temporalidade em partes pouco valorizadas e mal compreendidas desses livros, em trechos dedicados a balanços históricos da literatura produzida sobre a questão em pauta, como é o caso dos segundo e terceiro capítulos do livro de Lênin, "A experiência de 1848-1851" e "A experiência da Comuna de Paris (1871)", e da segunda parte do de Rosa, "Exposição histórica do problema".
Diferentemente do ato de "tomar em consideração os precursores", típico da ciência burguesa (mas também dos teóricos da social-democracia), distante da enumeração infindável e despropositada do "especialista", Lênin e Rosa teriam conseguido desenvolver nesses capítulos a tão almejada unidade de teoria e história:
Devido a essa relação com as tradições de método e de exposição referentes a Marx e a Hegel, Lênin fez da história do problema uma história interna das revoluções européias do século XIX; a abordagem histórico-literária dos textos por Rosa Luxemburgo se desenvolve numa história das lutas em torno da possibilidade e da expansão do sistema capitalista (Idem, p. 118).Esse método, segundo Lukács, está presente em Marx já em "sua primeira obra acabada, completa e madura", Miséria da filosofia, por meio da crítica direta das verdadeiras fontes de Proudhon (Ricardo e Hegel). E estrutura também outros livros de Marx, como O capital e Teorias sobre a mais-valia, ainda que sob uma forma modificada e menos nítida.
Desse modo, o procedimento de reconstruir o processo histórico por meio de um exame dialético da literatura disponível acerca dos temas abordados atesta mais que a pertinência e a eficácia do predomínio da perspectiva da totalidade. Indica também que:
O método filosófico de Hegel, que sempre foi - de maneira mais convincente na Fenomenologia do espírito - história da filosofia e filosofia da história ao mesmo tempo, jamais foi abandonado por Marx em relação a esse ponto essencial. Pois, a unificação hegeliana - dialética - do pensamento e do ser, a concepção de sua unidade como unidade e totalidade de um processo, formam também a essência da filosofia da história do materialismo histórico (Idem, p. 116).Lukács explicita assim o método inerente, ainda que inconsciente, de Lênin e Rosa Luxemburgo como a realização efetiva do programa do idealismo alemão. Desse modo, não deixa de situar, pelo menos no que tange a essas obras específicas, esses dois autores como pontos inaugurais daquele movimento que a posteridade nomeou como "marxismo ocidental".
A junção, que teria sido promovida desde Marx, de história da filosofia e filosofia da história, do a priori e do a posteriori, da teoria e da experiência, do lógico e do histórico, serve também de guia para quem queira evitar os dilemas em que se enredam as tentativas de, num trânsito de mão única, compreender as formações "ideológicas", típicas da superestrutura, unicamente a partir da base objetiva da sociedade.
Seja qual for o tema em discussão, o método dialético trata sempre do mesmo problema: o conhecimento da totalidade do processo histórico. Sendo assim, os problemas "ideológicos" e "econômicos" perdem para ele sua estranheza mútua e inflexível e se confundem um com o outro. A história de um determinado problema torna-se efetivamente uma história dos problemas. A expressão literária ou científica de um problema aparece como expressão de uma totalidade social, como expressão de suas possibilidades, de seus limites e de seus dilemas. O estudo histórico-literário do problema acaba sendo o mais apto a exprimir a problemática do processo histórico. A história da filosofia torna-se filosofia da história (Idem, p. 117).É, portanto, sob a égide da filosofia da identidade que a categoria da totalidade justifica, em Lukács, o trânsito de mão dupla entre fenômenos objetivos e subjetivos, economia e superestrutura, que se tornará, a partir de então, uma das marcas distintivas do marxismo ocidental.
Referências Bibliográficas
LUKÁCS, Georg. (2003), História e consciência de classe. Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo, Martins Fontes.
ENGELS, Friedrich. (1976), Anti-Dühring. São Paulo, Paz e Terra.
______. (1977a), Do socialismo utópico ao socialismo científico.
HEGEL, G. W. F. (1968), Ciencia de la lógica. Buenos Aires, Solar.
______. (1988), Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome. Lisboa, Edições 70.
______. (1992), Fenomenologia do espírito. Petrópolis, Vozes.
MARX, Karl. (1983), O capital. Crítica da economia política. São Paulo, Abril Cultural.
______. (1988), Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis, Vozes.
______. (2004), A miséria da filosofia. São Paulo, Ícone.
Nenhum comentário:
Postar um comentário