terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

O Deus dos Oprimidos - Rubem Alves

Capítulo extraído do livro - "O que é religião" (grifo meu)

Mahatma Gandhi, líder hindu, assassinado em 1948.
Martin Luther Kíng, pastor pro­testante, assassinado em 1968.
Oscar Ranulfo Romero, arcebispo católico, assassinado em 1980.

Muitos séculos atrás, bem antes dos tempos de Cristo, surgiu entre os hebreus uma estranha estirpe de líderes religiosos, os profetas. Quem eram eles? Em geral as pessoas pensam que profe­tas são videntes dotados de poderes especiais para prever o futuro, sem muito o que dizer sobre o aqui e o agora. Nada mais distante da vocação do profeta hebreu, que se dedicava, com paixão sem paralelo, a ver, compreender, anun­ciar e denunciar o que ocorria no seu presente. Tanto assim que suas pregações estavam mais próximas de editoriais políticos de jornais que de meditações espirituais de gurus religiosos. Eles pouco ou nada se preocupavam com aquilo que vulgarmente consideramos como propria­mente pertencendo ao círculo do sagrado: o cultivo das experiências místicas, das atitudes piedosas e das celebrações cerimoniais está prati­camente ausente do âmbito dos seus interesses. Ma verdade, boa parte de sua pregação era tomada pelo ataque às práticas religiosas dominantes em seus dias, patrocinadas e celebradas pela classe sacerdotal. E isto porque eles entendiam que o sagrado, a que davam o nome de vontade de Deus, tinha a ver fundamentalmente com a justiça e a misericórdia. Em suas bocas tais palavras tinham um sentido político e social que todos entendiam. Para se compreender o que diziam não era necessário ser filósofo ou teólogo. Sua pregação estava colada à situação dos homens comuns. Que situação era esta?
O Estado crescia cada vez mais, tornando-se centralizado e concentrado nas mãos de uns poucos. E, como sempre acontece, quando o poder de alguns aumenta, o poder dos outros diminui. As pequenas comunidades rurais, que em outras épocas haviam sido o centro da vida do povo hebreu, se enfraqueciam em decorrência dos pesados impostos que sobre elas recaíam. A fraqueza do povo crescia na medida em que se avolumava o poder dos exércitos — porque sem eles o Estado não subsiste. Os camponesas, pobres, tinham de vender suas propriedades, que eram então transformadas em latifúndios por um pequeno grupo de capitalistas urbanos. É de tal situação que surgem os profetas como porta-vozes dos desgraçados da terra. Assim, quando pregavam a justiça, todos compreendiam que eles estavam exigindo o fim das práticas de opressão. Era necessário que a vida e a alegria fossem devolvidas aos pobres, aos sofredores, aos fracos, aos estrangeiros, aos órfãos e viúvas, enfim, a todos aqueles que se encontravam fora dos círculos da riqueza e do poder.
Instaurou-se com os profetas um novo tipo de religião, de natureza ética e política, e que entendia que as relações dos homens com Deus têm de passar pelas relações dos homens, uns com os outros:

"Abomino e desprezo vossas celebrações so­lenes.
Corra, porém, a justiça como um ribeiro impe­tuoso..." (Amos, 5.24).

As autoridades, por razões óbvias, os detes­tavam, acusando-os de traidores e denunciando sua pregação como contrária aos interesses nacio­nais. Foram proibidos de falar, perseguidos e mesmo mortos. E enquanto lutavam com o poder estatal, de um lado, confrontavam-se com os representantes da religião oficial, do outro. Pare­cia-lhes que uma religião protegida pelo Estado só podia estar a seu serviço. Sua denúncia profé­tica, assim, se dirigia não apenas àqueles que efetivamente oprimiam os fracos, como também àqueles que sacralizavam e justificavam a opressão, envolvendo-a na aura da aprovação divina. E foi assim que, cerca de 2 500 anos antes que qualquer pessoa dissesse que a religião é o ópio do povo, eles perceberam que até mesmo os nomes de Deus e os símbolos sagrados podem ser usados pêlos interesses da opressão, e acu­saram os sacerdotes de enganadores do povo e os falsos profetas de pregadores de ilusões:

"Eles enganam o meu povo dizendo que tudo vai bem quando nada vai bem. Pretendem esconder as rachaduras na parede com uma mão de cal. . ." (Ezequiel, 13.10).

E em oposição a esta falsa religião que sacralizava o presente eles teceram, com as dores, tris­tezas e esperanças do povo, visões de uma terra sem males, uma utopia, o Reino de Deus, em que as armas seriam transformadas em arados, a harmo­nia com a natureza seria restabelecida, os lugares secos e desolados se converteriam em mananciais de águas, os poderosos seriam destronados e a terra devolvida, como herança, aos mansos, fracos, pobres e oprimidos.
É provável que os profetas tenham sido os primeiros a compreender a ambivalência da reli­gião: ela se presta a objetivos opostos, tudo depen­dendo daqueles que manipulam os símbolos sagrados. Ela pode ser usada para iluminar ou para cegar, para fazer voar ou paralisar, para dar coragem ou atemorizar, para libertar ou escra­vizar. Daí a necessidade de separar o Deus em cujo nome falavam, que era o Deus dos oprimidos, e que despertava a esperança e apontava para um futuro novo, dos ídolos dos opressores, que tornavam as pessoas gordas, pesadas, satisfeitas consigo mesmas, enraizadas em sua injustiça e cegas para o julgamento divino que se apro­ximava...
Mas esta lição foi esquecida. A memória do Deus dos oprimidos se perdeu... E não é difícil compreender por quê. Visões semelhantes às suas só aparecem em meio aos pobres e fracos. Mas os pobres e os fracos vão de derrota em derrota... Quem preservaria suas memórias? Quem aco­lheria suas denúncias? Quem registraria as suas queixas? Não se pode esperar tanta generosidade dos vencedores. São os fortes que escrevem a história e esta é a razão por que não se encontram ali as razões dos derrotados. Já notaram como os derrotados são sempre descritos como vilões? O que restou, como história, foram os relatos da religião triunfante, mãos dadas com os conquistadores, fez de si mesma e daqueles que foram esmagados. E, assim, em nossa memória restou apenas a religião dos fortes, justamente aquela que os profetas denunciaram. Quanto à religião dos profetas, ela continuou emergindo aqui e ali. Mas aqueles que empunharam suas esperanças foram derrotados. E, para efeitos práticos, foi como se tal religião nunca tivesse existido... E as evidências, assim, pareciam se ajuntar para levar à conclusão de que a reli­gião nada mais é que alienação, narcótico, ilusão.
Foi então que uma série de fatores coincidentes permitiu que se reconstruísse a perdida visão profética da religião como instrumento de liber­tação dos oprimidos.
Primeiro, o desenvolvimento da ciência histó­rica, que tornou possível a recuperação dos fragmentos do passado, num esforço para se penetrar atrás da cortina de interpretações que os vitoriosos haviam erigido. E lá foram encon­trados, com frequência, revolucionários que falavam em nome de Deus e em nome dos pobres, não importa que tivessem na mão a espada, como Thomas Munzer, anabatista, líder de campo­neses no século XVI, ou que se valessem apenas do poder do exemplo e da não violência, como foi o caso de São Francisco de Assis.
Depois, o desenvolvimento da arte da interpre­tação que permitia vislumbrar, através do discurso dos vitoriosos, a verdade acerca dos vencidos. Arte da interpretação? Para nossos objetivos basta saber que "o que o António fala acerca de Pedro contém mais informações acerca de António que acerca de Pedro". Assim, muito embora os derrotados tivessem deixado poucos documentos sobre si mesmos, nos próprios docu­mentos dos vitoriosos a verdade estava escondida, como o negativo de uma fotografia, como cor complementar, como o oposto. Aquilo que os opressores denunciam nos oprirnidos não é a verdade dos oprimidos, mas aquilo que os opres­sores temem. Assim, quando as versões oficiais, justificadoras dos massacres dos movimentos revolucionários de camponeses, os descreviam como fanáticos, lunáticos, anárquicos, revela-se em que medida os trabalhadores de enxada e pé no chão questionavam a ordem de dominação. E a história do Brasil apresenta muitos exemplos destes movimentos, denominados messiânicos. Messiânicos? Sim. Esperavam um messias, um representante de Deus para exercer o poder e estabelecer uma sociedade justa sobre a face da terra.
Ao mesmo tempo se elaborou uma ciência nova que recebeu o nome de sociologia do conhe­cimento. Seu ponto de partida é extremamente simples: ela constata que a maneira pela qual pensamos é condicionada. pela textura social de nossas vidas. Certo dia eu" estava engraxando os sapatos, numa praça. O garoto, engraxate, viu um homem que se aproximava e comentou:
"Lá vem um freguês". Perguntei: "É seu conhe­cido?". "Não", foi a resposta. "Então, como é que você sabe que ele é um freguês?". Ao que ele respondeu: "O senhor não olhou prós sapatos dele?". É assim, os olhos dos engraxates e o seu pensamento seguem os caminhos do seu trabalho. O seu mundo, talvez, se divida entre pessoas calçadas e pessoas descalças. E as pessoas calça­das se classifiquem em pessoas que usam sapatos engraxáveis e outras que usam sandálias havaia­nas, alpargatas e sapatos de camurça. . . E assim por diante. No seu ponto extremo esta linha de pensamento nos levaria à conclusão de que os poderosos pensam diferentemente daqueles que não têm poder:

"o mundo dos felizes é diferente do mundo dos infelizes" (Wittgenstein).

Mas, não é verdade que toda sociedade tem uma classe dominante e uma classe dominada? Uma classe que pode e outra que não pode? Uma classe forte e uma classe fraca? Até mesmo as crianças e velhos sabem disto — especialmente as crianças e velhos. E também os migrantes, e os camponeses assolados pela seca, e os doentes que morrem sem atendimento médico... e assim por diante. E a conclusão que se segue, necessa­riamente, é que os sonhos dos poderosos têm de ser diferentes dos sonhos dos oprimidos. E também suas religiões...
Os poderosos moram em oásis. O seu poder lhes abre avenidas largas para o bem-estar, a tranquilidade, a prosperidade, o lucro, a saúde. O futuro? Os fortes não querem mudan­ças. Que o futuro seja uma continuação do presente. E como se perpetua o presente? Primeiro, pelo uso da força. Constroem-se fortalezas. Depois é necessário que tanto dominadores quanto dominados aceitem tal situação como legítima. Riqueza pela vontade de Deus, pobreza pela vontade de Deus. . . Tudo se reveste com a aura sagrada. Mas já sabemos que coisas sagradas são intocáveis. Elas exigem reverência e submissão, independentemente de quaisquer considerações utilitárias. O sagrado está destinado à eternidade, bem como o mundo do poder que ele envolve. E é por isto que nos templos se encontram ban­deiras e rituais de ações de graça são celebrados pelo triunfo dos que venceram.
Com os dominados a situação é diferente. Não habitam os oásis, mas os desertos. Sem poder, sem segurança, sem tranquilidade, de um lado para outro, sem raízes e sem terras, sem casas, sem trabalho. Sua condição é de humilhação. Doença. Morte prematura. E o futuro? Os fracos exigem a mudança, se não com sua voz, por medo, pelo menos em seus sonhos. O sofrimento prepara a alma para a visão (Buber). E dos pobres e opri­midos brotam as esperanças — tal como aconteceu com os profetas hebreus — de um futuro em que eles herdarão a terra.
Reencontramo-nos assim no mundo dos profetas em que a religião aparece com toda a sua ambivalência política: os sonhos dos poderosos eternizam o presente e exorcizam um futuro novo; os sonhos dos oprimidos exigem a disso­lução do presente para que o futuro seja a reali­zação do Reino de Deus, não importa o nome que se lhe dê.
É irônico, mas esta conclusão escandaliza tanto a gregos quanto a troianos. De um lado, aqueles que se horrorizaram com a afirmação de Marx de que a religião é o ópio do povo se horrorizam agora com a possibilidade de que talvez ela não o seja... Teria sido melhor que Marx estivesse certo, porque assim os detentores do poder não teriam de se preocupar com os profetas e suas esperanças. Mas, por outro lado, são os próprios marxistas que não podem esconder sua perplexidade. E isto porque, na eventualidade de que as religiões possam revolucionar a reali­dade, terão de admitir que os fantasmas superestruturais podem se encarnar e fazer história...
Um fascinante estudo deste assunto se encontra no artigo de KarI Mannheim entitulado "A menta­lidade utópica", em que ele analisa a maneira como o desejo e a imaginação incidem sobre os fatores materiais para determinar a política. Contraria­mente àqueles que pensam que a ação é sempre o efeito de uma causa material que a antecede, Mannheim sugere que aquilo que caracteriza propriamente a política, como atividade humana é a capacidade que têm os homens para imaginar utopias e organizar o seu comportamento como uma tática para realizá-las. Que são utopias? Realidades? De forma alguma. Como o próprio nome está indicando, utopias se referem a algo que não se encontra em lugar algum (do grego ou = não + topos = lugar). Como surgem elas? Cairão do ar? Não. São as classes sociais opri­midas que, não encontrando satisfação para os seus desejos em sua "topia", emigram pela ima­ginação para uma terra inexistente onde suas aspirações se realizarão. Sua atividade política se torna, então, peregrinação na direção da terra prometida, construção do mundo que ainda não existe.
Foi isto que ocorreu com os camponeses anabatistas do século XVI. Movidos por um profundo fervor religioso, iniciaram um movimento revolu­cionário para a construção de uma nova ordem social, de acordo com a vontade de Deus. Deles as memórias foram poucas. Nem mesmo Marx se lembrou destes ancestrais do proletariado. Esquecimento compreensível. As memórias dos derrotados desaparecem com facilidade.
Mas Engels lhes fez justiça. Mais do que isto, acreditou encontrar fermento semelhante dentro mesmo da comunidade cristã primitiva. É bem possível. Não era ela formada por grupos desti­tuídos de poder? E não sofreram eles todo tipo de perseguição? Não é de se espantar, portanto, que um dos seus textos sagrados, o Apocalipse, tenha falado sobre a esperança de uma revolução total no cosmos, em que todas as potências do mal, inclusive o Estado, seriam destruídas.
Mas permanece um problema, porque esta des­crição que fazemos da religião dos pobres e opri­midos parece não corresponder à realidade. É raro vê-los envolvidos com qualquer coisa que se pareça com a religião dos profetas. Parece que eles se sentem mais à vontade na companhia do mágico, do curandeiro, do milagreiro, tratando de resolver os problemas do seu dia-a-dia sem muita esperança, sabendo que as coisas são o que são pêlos decretos insondáveis da vontade de Deus, sendo mais garantido acreditar que os pobres herdarão os céus que herdarão a terra. E aqui voltamos à sociologia do conhecimento. Existirá alguma outra alternativa para aqueles que diariamente experimentam a impotência? Não será a sua falta de poder que os leva a empur­rar suas esperanças para o outro mundo? Se isto for verdade, o que se poderia esperar de uma situação em que os pobres e oprimidos descobrem a sua força? Parece que quando isto acontece eles se atrevem a transformar seus sonhos em realidade, fazem descer o paraíso dos céus à terra, colocam-no no horizonte, e começam a sua marcha. E é então que começam a aparecer os mártires. Se a religião fosse apenas ópio, veriamós o Estado e o poder económico ao seu lado, protegendo-a como aliada.
Mas os mártires têm aparecido: Gandi, Martin Luther King, Oscar Romero e muitos outros. Líderes religiosos são intimados, perseguidos, ameaçados, expulsos, presos... Isto não aconteceria se fossem aliados do poder. Testemunhos da significação política da religião profética: expressão das dores e das esperanças dos que não têm poder. Ópio do povo? Pode ser, mas não aqui. Em meio a mártires e profetas, Deus é o protesto e o poder dos oprimidos.

5 comentários:

Anônimo disse...

gostei muito do que li,realmente é isso que acontece!!! parabéns!

João Domingos disse...

TEXTO MUITO INTERESSANTE. GOSTEI, PARABÉNS PARA O SENHO RUBEM ALVES.

Francisco Sulo disse...

Texto realmente muito interessante. Apresenta um aspecto da realidade ignorado por muitos críticos da religião que só a veem pela ações dos seus praticantes poderosos.

Mas enquanto cristão não acredito que a religião, seja a que se realiza enquanto aspiração à mudança social ou não, seja um mero fantasma da superestrutura.

Isso não é cristianismo, é marxismo religioso. Rubem Alves deve ser um marxista cristão.

edecarlos teixeira da silva disse...

Muito bom....

edecarlos teixeira da silva disse...

Muito bom....