domingo, 26 de junho de 2011

O que é a URSS - Leon Trotsky

Extraído da obra "A Revolução Traída", 1937.


Relações sociais

A propriedade estatizada dos meios de produção domina a indústria quase exclusivamente. A agricultura é representada pelos sovkhoses [ 1 ], que não abrangem mais de 10% das superfícies semeadas. Nos kolkhoses [ 2 ], a propriedade cooperativa ou das associações, combina-se em proporções variadas com as do Estado e as individuais. O solo, juridicamente, pertence ao Estado; é dado em "usufruto perpétuo" aos kolkhoses, pouco diferindo da propriedade das associações. Os tratores e as máquinas pertencem ao Estado; o equipamento de menor importância, à exploração coletiva. Todo o camponês de kolkhose dispões, além disso, da sua empresa privada. Cerca de 10% dos cultivadores permanecem isolados.

Segundo o recenseamento de 1934, 28,1% da população se compunha de operários e empregados do Estado. Os operários celibatários das indústrias e da construção eram cerca de 7,5 milhões em 1935. Os kolkhoses e os ofícios organizados cooperativamente constituíam, na altura do recenseamento, 45,9% da população. Os estudantes, os militares, os pensionistas e outras categorias imediatamente dependentes do Estado, 3,4%. No total, 74% da população encontrava-se ligada ao "setor socialista" e dispunha de 95,8% do capital do país. Os camponeses isolados e os artesãos representavam ainda (em 1934) 22,5% da população mas só possuíam pouco mais de 4% do capital nacional.

Não há recenseamento desde 1934 e o próximo terá lugar em 1937. Não é de duvidar, contudo, que o setor privado da economia tenha diminuído ainda mais, em proveito do "setor socialista". Os cultivadores individuais e os artesãos constituem hoje, segundo os órgãos oficiais, cerca de 10% da população, isto é, 17 milhões de pessoas; a sua importância econômica é inferior à importância numérica. Adreiev, Secretário do Comitê Central, declarava em abril de 1936: "A relativa da produção socialista no nosso país, em 1936, deve ser de 98,5%, de modo que só caberá ao setor não-socialista uns insignificantes 1,5%". Estes números otimistas parecem, à primeira vista, provar irrefutavelmente a vitória "definitiva e irrevogável" do socialismo. Mas ai daquele que, por detrás da aritmética, não saiba ver a realidade social!

Esses mesmos números são pouco forçados. Basta indicar que a propriedade privada dos membros dos kolkhoses está incluída no "setor socialista", o que não é ainda o mais grave. A enorme e indiscutível superioridade estatística das formas estatais e coletivas da economia, por mais importante que venha a ser no futuro, não afasta um outro problema não menos sério: o do poder das tendências burguesas no próprio seio do "setor socialista", e não só na agricultura mas também na indústria. A melhoria do nível de vida é suficiente para provocar um crescimento das necessidades mas não basta, de forma alguma, para satisfazê-las. O próprio dinamismo do surto econômico comporta um certo despertar dos apetites pequeno-burgueses, e isto não só entre os camponeses e os representantes do trabalho "intelectual" mas também entre os operários privilegiados. A simples oposição dos cultivadores individuais aos kolkhoses e dos artesãos à indústria estatizada não dá a menor idéia do poder explosivo desses apetites que impregnam toda a economia do país e se exprimem, falando sumariamente, na tendência de todos e cada um em dar o menos possível à sociedade e extrair dela o mais possível.

A solução dos aspectos do consumo e da competição pela sobrevivência exige, pelo menos, tanta energia e tanto engenho como a edificação socialista no sentido próprio do termo; daí, em parte, o fraco rendimento do trabalho social. Enquanto o Estado luta incessantemente contra a ação molecular das forças centrífugas, os meios dirigentes constituem o lugar principal da acumulação privada, lícita ou ilícita. Mascaradas pelas novas normas jurídicas, as tendências pequeno-burguesas não se deixam apreender facilmente pela estatística. Contudo, a burocracia " socialista", essa gritante contradictio in objecto, monstruosa excrescência social sempre crescente, e que se torna, por seu turno, causas de febres malignas da sociedade, é um testemunho vivo da sua nítida predominância na vida econômica.

A nova Constituição, toda baseada - como veremos - na identificação entre a burocracia e o Estado - como, de resto, entre o Estado e o povo - declara: "A propriedade do Estado, ou seja, a de todo povo...". Sofisma fundamental da teoria oficial! É incontestável que os marxistas, a começar pelo próprio Marx, empregaram, no que diz respeito ao Estado operário, os termos de propriedade "estatal", "nacional", "socialista", como sinônimos. A uma grande escala histórica, esse modo de falar não apresentava inconvenientes; contudo, se tornou a origem de erros de palmatória e de mentiras grosseiras, uma vez que se trata das primeiras etapas, ainda não asseguradas, da evolução de um sociedade nova, isolada, e atrasada - do ponto de vista econômico - com relação aos países capitalistas.

A propriedade privada, para se tornar social, tem que passar inelutavelmente pela estatização, tal como a larva, para se tornar borboleta, tem de passar por crisálida. Mas a crisálida não é uma borboleta. Miríades de crisálidas morrem sem chegarem a ser borboletas. A propriedade do Estado só se torna a de "todo o povo" na medida em que desapareçam os privilégios e as distinções sociais e, conseqüentemente, o Estado perca a sua razão de ser. Em outras palavras: a propriedade do Estado se torna socialista à medida que vai deixando de ser de Estado. Contudo, reciprocamente, quanto mais o Estado soviético se elevar acima do povo, tanto mais duramente se opõe, como guardião da propriedade, ao povo que a delapida, e tanto mais claramente testemunha contra o caráter socialista da propriedade estatal.

"Encontramo-nos ainda longe da supressão das classes", reconhece a imprensa oficial quando se refere às diferenças que subsistem entre a cidade e o campo, entre o trabalho intelectual e o trabalho manual. Esta confissão, puramente acadêmica, oferece a vantagem de justificar pelo trabalho "intelectual" os rendimentos da burocracia. Os "amigos", para os quais Platão é mais querido que a verdade, limitam-se igualmente a admitir, em estilo acadêmico, a existência de vestígios de desigualdade. Mas os vestígios têm costas largas; mas não são suficientes para explicar a realidade soviética. Se a diferença entre a cidade e o campo se atenuou sob vários aspectos, aprofundou-se sob outros, devido ao rápido crescimento da civilização e do conforto nas cidades, isto é, na minoria citadina. A distância social entre o trabalho manual e intelectual aumentou no decurso dos últimos anos em vez de diminuir, a despeito da formação de quadros científicos provenientes do povo. As barreiras de castas, milenares, que isolam o homem por todos os lados - o citadino e o mujik [3] inculto, o mago da ciência e o pedreiro - não só são mantidas sob formas mais ou menos enfraquecidas mas renascem consideravelmente e revestem um aspecto provocante.

A famosa palavra de ordem: "Os quadros tudo decidem" caracteriza, muito mais abertamente do que Stalin desejaria, a sociedade soviética. Os quadros são chamados, por definição, a exercer a autoridade. O culto dos quadros significa, antes de mais, o da burocracia. Na formação e educação dos quadros, como em outros domínios, o regime soviético cumpre uma tarefa que a burguesia, há já muito tempo, terminou. Mas como os quadros soviéticos aparecem sob a bandeira do socialismo, exigem honras quase divinas e emolumentos sempre mais elevados. De maneira que a formação de quadros "socialistas" é acompanhada por um renascimento de desigualdade burguesa.

Poderá parecer que não existe diferença alguma, sob o ângulo da propriedade dos meios de produção, entre o marechal e a doméstica, o diretor de trustes e o pedreiro, o filho do Comissário do Povo e o jovem vagabundo. Contudo, uns ocupam belos apartamentos, dispõem de vivendas em diversos recantos do país, têm os melhores automóveis e, desde há muito, não sabem como se engraxa uma par de botas; os outros vivem em barracas onde freqüentemente não existem paredes, a fome é-lhes familiar e, se não engraxam botas, é porque andam descalços. O dignatário considera esta diferença como insignificantes; o pedreiro, não sem razão, como uma diferença muito séria.

"Teóricos" superficiais poderão se consolar dizendo que a repartição dos bens é um fator de segundo plano em relação à produção. A dialética das influências recíprocas conserva, todavia, a sua inteira força. O destino dos meios nacionalizados de produção será, afinal de contas, decidido pela evolução das diferentes condições individuais. Se um navio é declarado propriedade coletiva, mantendo-se os passageiros divididos em primeira, segunda e terceira classes, é perfeitamente compreensível que a diferença entre as condições reais acabará por ter, aos olhos dos passageiros de terceira classe, uma importância muito maior do que a mudança jurídica da propriedade. Os passageiros de primeira, pelo contrário, explicarão de boa vontade, entre um café e um cigarro, que a propriedade coletiva é tudo, nada sendo, em comparação, o conforto das cabinas. E o antagonismo resultante destas situações infligirá abalos graves a uma coletividade instável.

A imprensa soviética relatou com satisfação o fato de uma criança, ao visitar o jardim Zoológico de Moscou, depois de ter perguntado a quem pertencia o elefante, e de lhe ter sido respondido: "Ao Estado", ter respondido prontamente: "Então, também é um bocado meu". Se, na verdade, fosse necessário partilhar o elefante, os bons bocados iriam para os privilegiados, alguns felizes apreciariam a perna do paquiderme e os mais numerosos não conheceriam mais do que as tripas e os restos. As crianças lesadas se encontrariam, com grande verossimilhança, pouco inclinadas a confundir a sua propriedade com a do Estado. Os jovens vagabundos só têm como seu o que vão roubando ao Estado. O rapazinho do Jardim Zoológico era, muito provavelmente, filho de um personagem influente habituado a proceder de acordo com a idéia de que "o Estado sou eu".

Se traduzirmos, para nos exprimirmos mais claramente, as relações socialistas em termos da Bolsa, diremos que os cidadãos poderiam ser os acionistas de uma empresa que possui as riquezas do país. O caráter coletivo da propriedade supõe uma repartição "igualitária" das ações e, portanto, um direito a dividendos iguais para todos os "acionistas". Os cidadãos, contudo, participam na empresa nacional, quer como acionista, quer como produtores. Na fase inferior do comunismo, a que chamamos socialismo, a remuneração do trabalho se faz, ainda, segundo as normas burguesas, isto é, de acordo com a qualificação do trabalho, a sua intensidade, etc. A renda teórica de um cidadão é formada, pois, por duas partes, a + b, o dividendo mais o salário. Quanto mais desenvolvida for a técnica, mais aperfeiçoada será a organização econômica, maior será a importância do fator a em relação ao b e menor será a influência exercida sobre a condição material pelas diferenças individuais do trabalho. O fato das diferenças de salários serem, na URSS, não menores, mas mais consideráveis que nos países capitalistas, nos leva a concluir que as ações são desigualmente repartidas e que os rendimentos dos cidadãos comportam, ao mesmo tempo que um salário desigual, partes desiguais de dividendos. Enquanto o pedreiro não recebe mais que b, salário mínimo que, sendo iguais todas as outras condições, receberia também em uma empresa capitalista, o stakhanovista [4] e o funcionário recebem 2a + b ou 3a + b, e assim, por diante, podendo b, por outro lado, tornar-se também 2b, 3b, etc. A diferença dos rendimentos é determinada, com outras palavras, não pela simples diferença do rendimento individual, mas pela apropriação mascarada do trabalho de outrem. A minoria privilegiada dos acionistas vive em detrimento da maioria enganada.

Se se admitir que o pedreiro soviético recebe mais do que receberia, mantendo-se o mesmo nível técnico e cultural, em regime capitalista, isto é, que, apesar de tudo, um pequeno acionista, o seu salário deve ser considerado com a + b. Os salários das melhores categorias serão expressos pela fórmula 3a + 2b, 10a + 15b, etc. , o que significará que, tendo o pedreiro uma ação, o stakhanovista terá três e o especialista dez; e que, além dos seus salários, no sentido próprio do termo, se encontram na proporção de 1 para 2 e de 1 para 15. Os hinos à sagrada propriedade socialista são, nestas condições, bem mais convenientes para o diretor de fábrica ou para o stakhanovista do que para o operário comum ou para o camponês kolkhosiano. Os trabalhadores formam a imensa maioria na sociedade e o socialismo deve contar com eles e não com uma nova aristocracia.

"O operário não é, em nosso país, um escravo assalariado, um vendedor de trabalho-mercadoria. É um trabalhador-livre" (Pravda). Neste momento, esta eloqüente fórmula só se admite como fanfarronada. A passagem das fábricas para o Estado só mudou a situação jurídica do operário; de fato, ele vive na necessidade, trabalhando um certo número de horas por um dado salário. As esperanças que teve outrora o operário no partido e nos sindicatos, transportou-as, após a revolução, para o Estado que criou. Mas o trabalho útil deste Estado foi limitado pela insuficiência da técnica e da cultura. Para melhorar uma e outra, o novo Estado recorreu aos velhos métodos: a usura dos músculos e dos nervos dos trabalhadores. Formou-se todo um corpo de estímulos. A gestão da indústria se tornou extremamente burocrática. Os operários perderam toda a influência sobre a direção das fábricas. Trabalhando por produção, vivendo em um profundo constrangimento, privado da liberdade de se deslocar, sofrendo na própria fábrica um terrível regime policial, o operário dificilmente se poderá sentir um "trabalhador livre". O funcionário é para ele um chefe, o Estado um patrão. O trabalho livre é incompatível com a existência do Estado burocrático.

Tudo o que acabamos de expor aplica-se aos campos com algumas correções necessárias. A teoria oficial erige a propriedade dos kolkhoses em socialista. O Pravda escreve que "os kolkhoses são já, na realidade, comparáveis a empresas de Estado do tipo socialista". E acrescenta imediatamente: "a garantia do desenvolvimento socialista da agricultura reside na direção dos kolkhoses pelo partido bolchevista"; é nos mandar da economia para a política; é dizer que as relações socialistas, neste momento, encontram-se estabelecidas, não nas relações verdadeiras entre os homens, mas no coração tutelar dos superiores. Os trabalhadores farão bem se desconfiarem desse coração. Na verdade, a economia dos kolkhoses se encontra a meio caminho entre a agricultura parcelar individual e a economia estatizada; e as tendências pequeno-burguesas no seio dos kolkhoses são cada vez mais fortalecidas pelo rápido crescimento dos bens individuais dos camponeses.

Ocupando apenas 4 milhões de hectares contra 108 milhões de hectares de sementeiras coletivas, isto é, menos de 4%, as parcelas individuais dos membros dos kolkhoses, submetidas a uma cultura intensiva, sobretudo hortas, fornecem ao camponês os artigos mais indispensáveis ao seu consumo. A maior parte do gado, carneiros e porcos, pertencem aos membros dos kolkhoses, não aos kolkhoses. Sucede constantemente os camponeses considerarem as suas parcelas individuais como o principal e relegarem para segundo plano os anêmicos kolkhoses. Pelo contrário, os kolkhoses, que pagam melhor o dia de trabalho, são promovidos e formam uma categoria de lavradores abastados. As tendências centrífugas não desaparecem, fortificam-se e alargam-se. Em qualquer caso, os kolkhoses, até agora, não conseguiram mais do que transformar as formas jurídicas da economia nos campos e, em particular, o modo de repartição dos rendimentos. Praticamente, não tocaram na antiga isba, na horta, na criação doméstica, no ritmo do penoso trabalho da terra, nem mesmo na antiga maneira de considerar o Estado que, se já não serve os proprietários fundiários e a burguesia, todavia subtrai demasiado aos campos para dar às cidades e mantém muitos funcionários vorazes.

As seguintes categorias são as que irão figurar nas folhas do recenseamento de 6 de janeiro de 1937: operários, empregados, trabalhadores dos kolkhoses, cultivadores individuais, artesãos, profissões livres, servidores do culto, e não-trabalhadores. O comentário oficial informa que a folha não comporta outras rubricas porque não existem classes na URSS. A folha é, na realidade, concebida de maneira a dissimular a existência de meios privilegiados e de camadas deserdadas. As verdadeiras camadas sociais que deveriam ser referenciadas por meio de um recenseamento honesto seriam as seguintes: altos funcionários, especialistas e outras pessoas que vivem burguesmente; camadas médias e inferiores de funcionários e especialistas que vivem como pequeno-burgueses; aristocracia operária e kolkhosiana pouco mais ou menos colocada nas mesmas condições que as precedentes; operários médios; camponeses médios dos kolkhoses; operários e camponeses vizinhos do lumpen-proletariado ou proletariado sem classe; jovens vagabundos; prostitutas; e outros.

A nova Constituição, ao declarar que "a exploração do homem pelo homem foi abolida na URSS", diz exatamente o contrário do que verdadeiramente se passa. A nova diferenciação social criou as condições para o renascimento da exploração sob as formas mais bárbaras, que são as da compra do homem para serviço pessoal de outrem. A criadagem não figura nas folhas de recenseamento e está compreendida evidentemente na rubrica "operários". Não são postas as questões seguintes: o cidadão soviético tem domésticos e quais? (criada de sala, cozinheira, ama, governanta, motorista); tem automóvel a seu serviço? de quantos quartos dispões? Não falemos do total do salário! Se entrasse em vigor a regra soviética que priva de direitos políticos quem quer que explore o trabalho de outrem, veríamos imediatamente os primeiros dirigentes da sociedade soviética serem privados do benefício da Constituição! Felizmente, foi estabelecida a igualdade de direitos. . . entre o patrão e os criados.

Duas tendências opostas crescem no seio do regime: desenvolvendo as forças produtivas - ao contrário do capitalismo estagnante - são criados os fundamentos econômicos do socialismo; e levando ao extremo, por complacência em relação aos dirigentes, as normas burguesas de repartição, prepara uma restauração capitalista. A contradição entre as formas de propriedade e as normas de repartição não pode crescer indefinidamente. Ou as normas burguesas se estenderão, de uma ou de outra maneira, aos meios de produção, ou as normas socialistas terão de ser concedidas à propriedade socialista.

A burocracia recusa-se revelar esta alternativa. Por todo o lado, na imprensa, na tribuna, na estatística, nos romances dos escritores e nos versos dos poetas, até mesmo no texto da nova Constituição, a burocracia emprega as abstrações do vocabulário socialista para encobrir as relações sociais nas cidades e nos campos. E é isto que torna falsa, medíocre e artificial a ideologia oficial.


Capitalismo de Estado?

Face a novos fenômenos os homens procuram freqüentemente um refúgio por detrás das velhas palavras. Tentou-se ocultar o enigma soviético com a ajuda do termo "capitalismo de Estado", que possui a vantagem de a ninguém oferecer um significado preciso. Serve, em primeiro lugar, para designar os casos em que o Estado burguês assume a gestão dos meios de transporte e de certas indústrias. A necessidade de semelhantes medidas é um dos sintomas das forças produtivas do capitalismo ultrapassarem o próprio capitalismo e conduzirem-no, em parte, a se negar na prática. Mas o sistema sobrevive e permanece capitalista, malgrado esses casos em que chega a se negar a si próprio.

No plano da teoria, poder-se-á representar uma situação na qual toda a burguesia se constituiria em sociedade por ações para administrar , através do Estado, toda a economia nacional. O mecanismo econômico de um regime deste gênero não ofereceria qualquer mistério. Sabemos que o capitalista não recebe, sob a forma de benefícios, a mais-valia criada pelos seus próprios operários, mas uma fração da mais-valia de todo o país, proporcional à sua parte de capital. Em um "capitalismo de Estado" integral, a lei da repartição igual dos benefícios se aplicaria diretamente, sem concorrência dos capitais, por uma simples operação de contabilidade. Nunca existiu um regime deste gênero e nunca o haverá como conseqüência das profundas contradições que dividem possidentes entre si - tanto mais que o Estado, representante único da propriedade capitalista, constituiria verdadeiramente para a revolução social um objeto demasiado tentador.

Após a guerra, e sobretudo após as experiências da economia fascista, entende-se mais freqüentemente por "capitalismo de Estado" um sistema de intervenção e de direção econômica do Estado. Os franceses usam, para este caso, um termo bastante mais apropriado: o estatismo. O capitalismo de Estado e o estatismo têm certamente pontos comuns; mas, como sistemas, serão mais opostos que idênticos. O capitalismo de Estado significa a substituição da propriedade privada pela propriedade estatal e conserva, por isso mesmo, um caráter radical. O estatismo, quer seja na Itália de Mussolini, na Alemanha de Hitler, nos Estados Unidos de Roosevelt ou na França de León Blum, significa a intervenção do Estado nas bases da propriedade privada, para salvá-la. Sejam quais forem os programas dos governos, o estatismo consiste inevitavelmente em transferir dos mais fortes para os mais fracos os encargos do sistema estagnante. Só não provoca um desastre completo aos pequenos proprietários porque a sua existência é necessária à manutenção da grande propriedade. O estatismo, nos seus esforços para dirigir a economia, não se inspira na necessidade de desenvolver as forças produtivas, mas no desígnio de manter a propriedade privada em detrimento das forças produtivas que contra ela se insurgem; trava o surto da técnica sustentando empresas não viáveis e mantendo camadas sociais parasitárias; é, em uma palavra profundamente reacionário.

A frase de Mussolini: "Três quartos da economia italiana, industrial e agrícola, se encontram nas mãos do Estado" (26 de maio de 1934) não deve ser tomada ao pé da letra. O Estado fascista não é proprietário das empresas, ele não passa de um intermediário entre os capitalistas. Diferença apreciável? O Popolo d'Itália diz, sobre este assunto:

"O Estado corporativo unifica e dirige a economia, mas não a gere (dirige e porta alla unitá l'economia, ma non fa l'economia, nom gestice), o que não seria outra coisa, com o monopólio da produção, senão o coletivismo" (11 de junho de 1936). Em relação aos camponeses e, em geral, aos pequenos proprietários, a burocracia intervém como um poderoso senhor; com relação aos magnatas do capital, como o seu primeiro mandatário de poder.

"O Estado corporativo", escreve muito bem o marxista italiano Ferocci, "não passa do agente do capital dos monopólios. Mussolini faz com que o Estado assuma todos os riscos das empresas e deixe para os capitalistas todos os benefícios da exploração". Hitler segue, neste aspecto, as pisadas de Mussolini. A dependência de classe do Estado fascista determina os limites da nova economia dirigida e bem assim o seu conteúdo real; não se trata de aumentar o poder do homem sobre a natureza no interesse da sociedade, mas da exploração da sociedade no interesse de uma minoria. "Se eu quisesse estabelecer na Itália o capitalismo de Estado ou o socialismo de Estado", gabava-se Mussolini, "o que de modo algum se encontra em questão, encontraria hoje todas as condições requeridas". Exceto uma: a expropriação da classe capitalista. E, para realizar esta condição, o fascismo teria que se colocar do outro lado da barricada, "o que não se encontra em questão", apressa-se a acrescentar Mussolini, e isto não se encontra certamente em questão, pois a expropriação dos capitalistas necessita de outras forças, de outros quadros e de outros chefes.

A primeira concentração dos meios de produção nas mãos do Estado que a história conhece foi cumprida pelo proletariado através da revolução social e não pelos capitalistas através dos trustes estatizados. "Esta breve análise é suficiente para mostrar o absurdo das tentativas feitas para identificar o estatismo capitalista e o sistema soviético. O primeiro é reacionário, o segundo realiza um grande progresso.


A burocracia é uma classe dirigente?

As classes são definidas pelo seu lugar na economia social e, antes de mais, pela sua relação com os meios de produção. Nas sociedades civilizadas, a lei fixa as relações de produção e propriedade. A nacionalização do solo, dos meios de produção, dos transportes e de troca e também o monopólio do comércio exterior, formam as bases da sociedade soviética. E esta aquisição da revolução proletária define aos nossos olhos a URSS como um Estado operário.

Pela sua função de reguladora e intermediária, pelo seu desejo de manter a hierarquia social, pela exploração para fins próprios do aparelho de Estado, a burocracia soviética assemelha-se a qualquer outra e sobretudo à do fascismo. Mas distingue-se também por traços de extraordinária importância. Sob nenhum outro regime a burocracia atingiu uma tal independência. Na sociedade burguesa, a burocracia representa os interesses da classe possuidora e instruída que dispõe de um grande número de meios de controle sobre a administração. A burocracia soviética se elevou acima de uma classe que dificilmente sai da miséria e das trevas e sem qualquer tradição de comando ou de dominação. Enquanto os fascistas, uma vez chegados à mangedoura, se unem à burguesia pelos interesses comuns, ou por amizades, ou pelo casamento, etc., a burocracia da URSS assimilou os costumes burgueses sem ter a seu lado uma burguesia nacional. Neste sentido não se pode negar que seja algo mais do que uma simples burocracia: na sociedade soviética, é a única camada, privilegiada e dominante, no pleno sentido dos termos. Uma outra particularidade não menos importante: a burocracia soviética expropriou politicamente o proletariado para defender pelos seus próprios métodos as conquistas sociais do proletariado. Mas o próprio fato de se ter apropriado do poder em um país em que os meios de produção mais importantes pertenciam ao Estado, criou entre ela e as riquezas da nação relações inteiramente novas. Os meios de produção pertencem ao Estado. O Estado "pertence" de algum modo à burocracia. Se estas relações, ainda que recentes, se estabilizassem, se legalizassem, se tornassem normais sem resistência, ou mesmo com a resistência dos trabalhadores, acabariam pela liquidação completa das conquistas de revolução proletária. Mas esta hipótese é ainda prematura. O proletariado ainda não pronunciou a sua última palavra. A burocracia não criou uma base social para a sua dominação, sob a forma de condições particulares de propriedade. É obrigada a defender a propriedade de Estado, fonte do seu poder e das suas receitas. Por este aspecto da sua atividade, permanece o instrumento da ditadura do proletariado.

As iniciativas feitas para apresentar a burocracia soviética como uma classe "capitalista de Estado" não resiste visivelmente à crítica. A burocracia não tem títulos nem ações, recruta-se, completa-se e renova-se, graças a uma hierarquia administrativa, sem ter direitos particulares em matéria de propriedade. O funcionário não pode transmitir aos seus herdeiros o seu direito à exploração do Estado. Os privilégios da burocracia são abusos. Ela esconde os seus rendimentos. Dissimula ou finge não existir como grupo social. O seu domínio sobre uma parte enorme do rendimento nacional é um caso de parasitismo social. Eis o que torna a situação dos dirigentes soviéticos ao mais alto grau contraditória, equívoca e indigna, a despeito da plenitude do seu poder e do quadro nebuloso da lisonja.

Ao longo da sua carreira, a sociedade burguesa mudou muitas vezes de regime e de castas burocráticas sem modificar as suas bases sociais. Precaveu-se contra a restauração da feudalidade e das corporações pela superioridade do seu modo de produção. O poder só podia favorecer o desenvolvimento capitalistas; as forças produtivas, fundadas na propriedade privada e na concorrência, trabalhavam por conta própria. Pelo contrário, as relações de propriedade estabelecidas pela revolução socialista estão ligadas indissoluvelmente ao Estado, o predomínio das tendências socialistas sobre as pequeno-burguesas está assegurado, não pelo automatismo econômico - ainda estamos longe disso - mas pelo poder político da ditadura. O caráter da economia depende, pois, inteiramente do caráter do poder.

A queda do regime soviético causaria infalivelmente a queda da economia planificada e, desde então, a liquidação de propriedade estatizada. O elo obrigatório entre os trustes e as fábricas se romperia. As empresas mais favorecidas seriam entregues a si próprias; poderiam se tornar sociedades por ações ou adotar qualquer outra forma transitória de propriedade, por exemplo a participação dos operários nos lucros. Os kolkhoses se desagregariam igualmente, ainda com maior facilidade. Assim, a queda da ditadura burocrática atual, sem a sua substituição por um novo poder socialista, anunciaria o retorno ao sistema capitalista com uma baixa catastrófica da economia e da cultura.

Mas se o poder socialista é ainda absolutamente necessário à conservação e desenvolvimento da economia planificada, a questão de se saber em que se apoia hoje o poder soviético e em que medida o espírito socialista da sua política está assegurado, é muito séria. Lênin, falando no XI Congresso do Partido, dirigiu-se desta maneira aos meios dirigentes: "A História conhece transformações de todas as espécies; não é absolutamente correto em política contar com as convicções, o devotamento e as belas qualidades do espírito". A existência determina a consciência. Em uma quinzena de anos, o poder modificou a composição social dos meios dirigentes mais profundamente do que as suas idéias. Pelo fato de ter sido a burocracia, de todas as camadas da sociedade soviética, a que melhor resolveu a sua própria questão social, encontra-se completamente satisfeita com o atual estado de coisas e não necessita de dar qualquer garantia moral sobre a orientação socialista da sua política. Continua a defender a propriedade estatizada com receio do proletariado, receio este salutar que é alimentado e sustentado pelo partido ilegal dos bolchevistas-leninistas, expressão mais consciente da corrente socialista contra o espírito de reação burguesa do qual está profundamente penetrada a burocracia termidoriana. Como força política consciente a burocracia traiu a revolução. Mas a revolução, felizmente vitoriosa, não é só um programa, uma bandeira, um conjunto de instituições políticas, é também um sistema de relações sociais. Não é suficiente trai-la, é necessário ainda subvertê-la. Os atuais dirigentes traíram a Revolução de Outubro, mas ainda não a subverteram. A revolução tem uma grande capacidade de resistência, que coincide com as novas relações de propriedade, com a força viva do proletariado, com a consciência dos seus melhores elementos, com a situação sem saída do capitalismo mundial, com a inelutabilidade da revolução mundial.


A questão do caráter social da URSS não foi ainda resolvida pela História

Formulemos, para melhor compreender o caráter social da URSS de hoje, duas hipóteses prováveis. Suponhamos a burocracia soviética afastada do poder por um partido revolucionário reunindo todas as qualidades do velho bolchevismo e, além disso, enriquecido pela experiência mundial dos últimos anos. Este partido começaria pelo restabelecimento da democracia nos sindicatos e nos sovietes. Poderia e deveria restabelecer a liberdade dos partidos soviéticos. Com as massas e à frente delas, procederia a uma limpeza sem piedade dos serviços de Estado. Aboliria os graus, as condecorações, os privilégios. Manteria apenas a desigualdade na retribuição do trabalho, por ser necessário à economia e ao Estado. Daria à juventude a possibilidade de pensar livremente, de aprender, de criticar, em uma palavra, de se formar. Introduziria profundas modificações na repartição da renda nacional, de acordo com a vontade das massas operárias e camponesas. Não teria de recorrer a medidas revolucionárias em matéria de propriedade. Continuaria e desenvolveria a fundo de experiência da economia planificada. Após a revolução política, após o derrubamento da burocracia, o proletariado teria que cumprir na economia reformas bastante importantes, mas não teria de fazer uma nova revolução social.

Se, inversamente, um partido burguês derrubasse a casta soviética dirigente, encontraria não poucos servidores entre os burocratas de hoje, os técnicos, os diretores, os secretários do partido, os dirigentes em geral. Uma depuração dos serviços do Estado impor-se-ia igualmente neste caso; mas a restauração burguesia teria, com certeza, de afastar menos gente do que um partido revolucionário. O principal objetivo do novo poder seria restabelecer a propriedade privada dos meios de produção. Deveria, antes de mais nada, dar aos kolkhoses depauperados a possibilidade de formar lavradores abastados e transformar os kolkhoses em cooperativas de produção do tipo burguês, ou em sociedade por ações. Na indústria, a desnacionalização começaria pelas empresas da indústria ligeira e da alimentação. O plano se reduziria, nos primeiros tempos, a compromissos entre o poder e as "corporações", isto é, os capitães da indústria soviética, os seus proprietários potenciais, os antigos proprietários emigrados e os capitalistas estrangeiros. Embora a burocracia soviética tivesse feito muito pela restauração burguesa, o novo regime seria obrigado a cumprir, no terreno da propriedade e do modo de gestão, não uma reforma mas uma verdadeira revolução.

Admitamos, contudo, que nem o partido revolucionário nem o partido contra-revolucionário se apoderavam do poder e que é a burocracia que se mantém à frente do poder. A evolução das relações sociais não cessa. Não se poderá pensar, evidentemente, que a burocracia abdicará em favor da igualdade socialista. Como se sabe, apesar dos graves inconvenientes desta operação, ela restabeleceu as patentes e as condecorações; será, pois, inevitavelmente necessário que procure apoio nas relações de propriedade. Objetar-se-á provavelmente que pouco importará ao grande funcionário as formas de propriedade de onde tira os seus rendimentos. Mas isto é ignorar a instabilidade dos direitos do burocrata e o problema da sua descendência. O culto recente da família soviética não caiu do céu. Os privilégios que não se podem legar aos descendentes perdem metade do seu valor. Ora, o direito de legar é inseparável do direito de propriedade. Não basta ser diretor de truste, é necessário ser acionista. A vitória da burocracia neste setor decisivo faria dela uma nova classe possuidora. Inversamente, a vitória do proletariado sobre a burocracia marcaria o renascimento da revolução socialista. A terceira hipótese nos conduz, assim, às duas primeiras, pelas quais tínhamos começado para maior clareza e simplicidade.

Qualificar o regime soviético de transitório, ou de intermediário, é separar as categorias sociais acabadas como o capitalismo (compreendendo o "capitalismo de Estado") e o socialismo. Mas esta definição é em si absolutamente insuficiente e arrisca-se a sugerir a falsa idéia de que a única transição possível para o regime soviético atual conduz ao socialismo. Um recuo na direção do capitalismo mantém-se, entretanto, perfeitamente possível. Uma definição mais completa seria, necessariamente, mais longa e penosa.

A URSS é uma sociedade intermediária entre o capitalismo e o socialismo, na qual: a) as forças produtivas são ainda insuficientes para conferir à propriedade de Estado um caráter socialista; b) a propensão para a acumulação primitiva, nascida da necessidade, manifesta-se através de todos os poros da economia planificada; c) as normas de repartição, de natureza burguesa, se encontram na base da diferenciação social; d) o desenvolvimento econômico, melhorando lentamente a condição dos trabalhadores, contribui para a rápida formação de uma camada de privilegiados; e) a burocracia, explorando os antagonismos sociais, tornou-se uma casta incontrolável, estranha ao socialismo; f) a revolução social, traída pelo partido governante, vive ainda nas relações de propriedade e na consciência dos trabalhadores; g) a evolução das contradições acumuladas pode conduzir ao socialismo ou fazer recuar a sociedade para o capitalismo; h) a contra-revolução em marcha para o capitalismo deverá quebrar a resistência dos operários; i) os operários, dirigindo-se para o socialismo, deverão derrubar a burocracia. A questão será definitivamente resolvida pela luta das duas forças vivas na arena nacional e internacional.

Naturalmente que os doutrinários não se satisfarão com uma definição tão vaga: desejariam fórmulas categóricas; pão, pão, queijo, queijo. As questões de sociologia seriam bem mais simples se os fenômenos sociais tivessem sempre contornos precisos. Mas nada é mais perigoso do que eliminar, no desenvolvimento de uma precisão lógica, os elementos que contrariam os nossos esquemas e que, amanhã, os podem refutar. Tememos acima de tudo, na nossa análise, violentar o dinamismo de uma formação social que não tem precedentes e que não conhece nada de análogo. O fim científico e político que perseguimos, proíbe-nos de dar uma definição acabada de um processo inacabado; impõe-nos a observação de todas as fases do fenômeno, de extrair dele as tendências progressistas e reacionárias; de revelar a sua interação; de prever as múltiplas variantes do desenvolvimento posterior e encontrar nesta previsão um ponto de apoio para a ação.


Notas
(1) Fazendas-modelo de propriedade do Estado.
(2) Explorações cooperativas que agrupam camponeses que têm o usufruto individual da terra, dos animais e das máquinas pertencentes ao kolkhoz (N. de MS)
(3) Agricultores proprietários de estabelecimentos agrícolas (N. de MS)
(4) O termo deriva de Stakhanov, uma espécie de operário padrão na URSS que obtinha em seu trabalho uma expressiva produtividade. Esse fato levou o dirigentes da época de Stalin a incentivar os operários e trabalhadores em geral a aumentar sua produtividade individual. (N. de MS)

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