domingo, 13 de junho de 2010

25 de abril, o encontro da revolução com a História. Quando o futuro era agora - Valério Arcary

Professor do CEFET/SP e Doutor em História pela USP. Extraído do sítio: http://www.cefetsp.br/edu/eso/valerio/encontrorevolucao25abril.html


"À sombra de uma azinheira, que já não sabia a idade, jurei ter por companheira, Grândola, tua vontade".
Zeca Afonso, cantor popular português

Em Maio de 1926, um golpe de Estado protofascista derruba a primeira república portuguesa, e os militares convidam Antonio de Oliveira Salazar, um professor de Coimbra, para ser ministro das Finanças. Assumirá a posição de primeiro-ministro em 1932. Conhecido, também, como Estado Novo, o regime não parecia excepcional nos anos trinta, quando o capitalismo europeu recorria em larga escala, mesmo em países mais desenvolvidos, aos métodos da contra-revolução.

A ditadura salazarista sobreviverá, todavia, à queda de Hitler e Mussolini, assim como a franquista na Espanha, mas a burguesia deste pequeno país, herdeira de um imenso império ultramarino, resistirá, também, à vaga de descolonização do pós-guerra, e enfrentará uma guerra de guerrilhas em África a partir de 1960. O fascismo "defensivo" deste Império desproporcional e semi-autárquico atravessou mais de quatro décadas. As reformas, tantas vezes esperadas, não vieram, e o que as classes proprietárias evitaram fazer por reformas, as massas populares se lançaram à conquista pela revolução. E já se disse que as revoluções adiadas são as mais radicais. O fascismo obsoleto e decadente acabou abrindo o mais profundo processo revolucionário na Europa, depois da Guerra Civil Espanhola em 1939.


Da guerra interminável ao MFA

Quarenta anos depois, em 1972, o general Antônio Spínola publicou o livro "Portugal e o Futuro". Foi um marco porque, pela primeira vez, uma voz do mais alto comando das Forças Armadas - ex-comandante em chefe do Exército na Guiné-Bissau - desafiava o principal tabu da ditadura, admitindo, publicamente, que era impossível uma solução militar para a guerra. Spínola defendia que o regime tomasse a iniciativa política de um projeto de descolonização inspirado no modelo inglês do pós-guerra. Para surpresa de todos, o Governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro, o que sinalizava que as divisões dentro do bloco de sustentação do regime eram muito maiores do que pareciam. O parecer favorável para a publicação foi feito por ninguém menos que o general Costa Gomes, que sucedeu Spínola na presidência, depois do fracasso do autogolpe de 28 de setembro de 1974:

"O autor defende com muita lógica uma solução equilibrada, que podemos situar a meio caminho de duas soluções extremas: a independência pura, simples e imediata de todos os territórios ultramarinos, patrocinada pelos comunistas e socialistas, e a integração em um todo homogêneo de todas aquelas parcelas, preconizada pelos extremistas de direita (...) estas soluções devem ser postas de lado, a primeira por ser lesiva dos interesses nacionais e a segunda por ser inexeqüível"


O que não se sabia, então, era que o livro de Spínola era somente a ponta de um iceberg e que, clandestinamente, na oficialidade média, já estava se articulando o Movimento das Forças Armadas, o MFA. A fraqueza do governo Marcelo Caetano era de tal magnitude, que cairia como uma fruta podre, em horas. A nação estava exaurida pela guerra. Pela porta aberta pela revolução antiimperialista nas colônias, iria entrar a revolução política e social na metrópole.

A guerra em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau mergulhou Portugal em uma crise crônica. Um país de dez milhões habitantes, ainda semi-urbanizado, e defasado, acentuadamente, da prosperidade européia dos anos sessenta, sangrando pela emigração da juventude que fugia do serviço militar e da pobreza, não podia continuar mantendo, indefinidamente, um exército de dezenas de milhares de homens em uma guerra africana.

O serviço militar obrigatório era de espantosos quatro anos, dos quais pelo menos dois eram cumpridos no ultramar. Milhares de mortos, sem contar os feridos e mutilados. Foi do interior desse Exército de recrutas, que não eram soldados profissionais, que surgiu um dos sujeitos políticos decisivos do processo revolucionário, o MFA. Respondendo à radicalização das classes médias da metrópole, essa oficialidade média estava cansada de uma guerra sem solução militar e, esgotada com a obtusidade da ditadura, e ansiosa por liberdades, rompia com o regime.

"Um levantamento sociológico revelou que os membros do Movimento dos Capitães eram, do ponto de vista sociológico, filhos da pequena burguesia e das classes médias (alguns da classe operária). Nascidos nos anos quarenta (portanto, jovens na faixa dos trinta anos). Uma maioria relativa (39,4%) provinha de famílias de servidores públicos(...) Em 1974 havia 4.165 oficiais permanentes no Exército; desse total, 703 participaram do golpe (16,9%)... e 80,8% eram capitães e majores."


Estas pressões sociais explicam também os limites políticos do próprio MFA, e ajudam a compreender porque, depois de derrubar Caetano, entregaram o poder a Spínola. O próprio Otelo, defensor a partir do 11 de Março, do projeto de transformar o MFA em movimento de libertação nacional – a tentação de substitucionismo das massas - à maneira de movimentos militares em países da periferia, como no Peru, fez o balanço, com uma franqueza desconcertante:

"Este sentimento arraigado de subordinação à hierarquia, da necessidade de um chefe que, por cima de nós, nos orientasse no "bom" caminho, nos perseguiria até o final, com as funestas conseqüências já conhecidas. Este obstáculo voltaria a surgir mais tarde, revelando-se de difícil solução(...)Alguns excelentes oficiais se sentiam, contudo, desamparados fora de sua limitada esfera de ação profissional, exigindo o recurso á figura paternalista de alguém com mais condecorações, homem de experiência, que entendesse seriamente dessas coisas da política."


A economia portuguesa, pouco internacionalizada, mas já razoavelmente industrializada, se estruturava na divisão internacional do trabalho em dois "nichos", os dois pilares empresariais do regime, a exploração colonial e a atividade exportadora. Sete grandes grupos controlavam quase tudo. Ramificavam-se em 300 empresas que têm 80% dos serviços bancários, 50% dos seguros, 8 das 10 maiores indústrias, 5 das 7 maiores exportadoras. Os monopólios comandavam, mas não havia dinâmica de crescimento. O país permaneceu, comparativamente, estagnado, enquanto a economia européia vivia o boom do pós-guerra. A ordem salazarista se manteve depois da morte do ditador, com um implacável braço armado - a PIDE - 20.000 informantes, mais de dois mil agentes, e o apoio de 80.000 legionários.


Os Cravos vermelhos de Abril

Os dias de Caetano estavam contados. Não há, é certo, um sismógrafo de situações revolucionárias. É muito difícil prever como e porque as grandes multidões populares, urbanas ou rurais, que aceitaram com resignação situações tirânicas, durante décadas, depois se colocam em movimento, e despertam com fúria para a arena política, em busca de uma solução coletiva para as suas reivindicações.

Recordemos que uma revolução não deve se confundir com o triunfo de um levante militar, mesmo quando se trata de uma insurreição com apoio popular. A insurreição é um dos tempos da revolução. O que existiu de extraordinário na revolução dos cravos não foi o colapso da ditadura na madrugada do 25 de Abril - embora esta tenha sido espetacular - mas a entrada em cena de milhões de pessoas, em sua maioria trabalhadores e jovens, como sujeitos do processo revolucionário. A História está cheia de exemplos de quarteladas e golpes palacianos que triunfaram, apesar da indiferença e apatia popular, assim como, inversamente, de autênticas revoluções populares que foram derrotadas, antes de terem reunido forças para a insurreição.

Mas, sendo diferentes, estão às vezes associados. Não é incomum que golpes militares ou rebeliões de quartel funcionem, historicamente, como um sinal de que uma tormenta muito maior se aproxima. As operações palacianas podem "abrir uma janela" por onde, depois, irá entrar o vento da revolução que estava, até então, contido.


Uma revolução política que transborda em uma revolução social


Talvez surpreenda a caracterização de revolução social. O 25 de Abril, em si, foi uma operação militar que transbordou em revolução política que, por sua vez, abriu um processo revolucionário. O conteúdo social objetivo do processo foi determinado pelas tarefas pendentes – fim da guerra colonial, independência das colônias, reforma agrária, trabalho para todos, elevação dos salários, moradia, acesso ao ensino público - que não se resumiam à derrubada da ditadura.

Uma revolução não pode ser analisada somente pelos seus resultados. Estes explicam, quantas vezes, mais sobre a contra-revolução do que sobre a revolução. Havia outras possibilidades, que estavam na ordem do razoável. Outros desenlaces. Há que considerar quais foram os sujeitos sociais e políticos, e a dinâmica histórica da situação nacional e internacional. Trotsky estudou este movimento na história das revoluções:

"As distintas etapas do processo revolucionário, consolidadas pelo deslocamento de uns partidos por outros cada vez mais radicais, expressam a pressão crescente das massas para a esquerda, até que o impulso adquirido pelo movimento tropeça em obstáculos objetivos. Então começa a reação: decepção de certos setores da classe revolucionária, difusão do indiferentismo".


A queda do regime foi o ato inaugural de uma etapa política de radicalização popular incomparavelmente mais profunda - uma situação revolucionária - em que foram sendo construídas as experiências de auto-organização, a tendência histórica de busca de organismos de democracia direta para a luta, ou poder popular, embrionárias do duplo poder. Podemos dividir o processo em quatro conjunturas sempre mais radicalizadas à esquerda:

(a) de abril de 1974 até o 28 de setembro, uma situação revolucionária típica das revoluções políticas ou democráticas - os "fevereiros" - em que se garantiram as liberdades democráticas, se garantiu o cessar-fogo em África, e derrotou o projeto spinolista de consolidação de um regime presidencialista;

(b) entre 28 de setembro de 1974 e o 11 de março de 1975, quando se iniciam as ocupações de terras no Alentejo, e se acentua o caráter social dos enfrentamentos, uma clivagem mais nítida dos antagonismos de classe, porque a auto-organização adquire a força política de uma dualidade de poderes, mas permanece atomizada;

(c) entre o 11 de Março e Julho, com o reconhecimento das independências, menos Angola, a generalização da auto-organização de massas, formação de comissões de trabalhadores em centenas de empresas e das unidades coletivas de produção nos latifúndios expropriados, quando se precipita uma situação revolucionária, mas sui generis, porque o duplo poder não está unificado, nem encontra centralização, e os revolucionários não conquistaram influência de massas política;

(d) finalmente, a crise revolucionária, entre julho e novembro de 1975, com a cisão do MFA, a independência de Angola, a radicalização anticapitalista, desgarramentos de bases de massas da influência do PS e do PCP, formação dos SUV (auto-organização de soldados e marinheiros) e manifestações armadas, uma ante-sala de uma revolução social - um "pré-outubro" – em que, ou o deslocamento do Estado ou um golpe contra-revolucionário se tornavam inadiáveis.

Seis governos provisórios se sucederam até o 25 de novembro, expressando o curso à esquerda do processo até o "verão quente" de 1975. O primeiro durou até 13 de Julho de 1974, com Palma Carlos – homem da confiança de Spínola - como primeiro-ministro, quando a assembléia do MFA o substitui por Vasco Gonçalves, que ficará no poder até à queda do V Governo. A representação das forças diretas do capital foi sendo reduzida, até que só permaneceu como uma sombra burguesa. O III governo assume no 28 de setembro, quando fracassou a primeira tentativa de golpe, um chamado público de Spínola à "maioria silenciosa" que, ou não era maioria, ou além de muda era, também, surda, e ficou em casa, enquanto Spínola se via obrigado a renunciar, entregando a presidência para o general Costa Gomes.


A burguesia prepara um novo golpe

Mas as energias do projeto de neocolonialismo à inglesa não tinham ainda se esgotado. Tentaram o putsch korniloviano, de novo, no 11 de março - mais organizado, com tentativa de bombardeio de Lisboa. Mais uma vez, as barricadas levaram muitos milhares às ruas. No dia seguinte, diante do pânico burguês, a estatização dos principais bancos. Outras viriam, nos seguros, siderurgia, cimentos, etc... O IV governo provisório se instala em 26 de março.

Derrotado Spínola e seu projeto neocolonial, que só tinha sustentação nas mesmas famílias e grupos que tinham preservado Caetano até ao colapso, o país estava dividido, irreconciliavelmente, e ninguém podia saber para onde iria pender a roda da história.
África, porém, estava perdida. A burguesia passou a temer o pior, também, na metrópole. Reorientou-se para o projeto europeu. A reconstrução da autoridade do Estado, a começar pelas Forças Armadas, ainda permanecia a prioridade. O mais complexo, contudo, continuava sem solução: tinha que improvisar uma representação política, e tentar ganhar a maioria das classes médias, e neutralizar os trabalhadores.

Não tendo mais Spínola como carta na manga - e debilitados o PPD e CDS pela ligação com Spínola - não tinha instrumentos diretos, a não ser o peso sobre a alta hierarquia das FFAA, e precisava recorrer à pressão da burguesia européia, e dos EUA, sobre a socialdemocracia e sobre a URSS, para que enquadrassem o PS e, sobretudo, o PCP.


A hora da vertigem

Depois do 11 de março, foi a segunda primavera das utopias e das esperanças. Lisboa era uma das capitais mais livres do mundo. Os trabalhadores exigiam a satisfação de suas reivindicações – independência das colônias, liberdade, salários, trabalho, terra, educação, saúde, previdência - e aprendiam, no calor da luta, que sem expropriações não poderiam conquistá-las. Foi pela mobilização que surgiram os organismos que desafiavam o poder dos governos provisórios. Começa a etapa do "assembleísmo".

Em vagas de lutas sucessivas, surgiram comissões de trabalhadores em todas as grandes e médias corporações, muitas delas depois nacionalizadas, como a CUF (Companhia União Fabril) - só ela, 186 fábricas - a maioria concentrada no Barreiro, cidade industrial em frente de Lisboa, do outro lado do Tejo. Champalimaud, um dos líderes mais influentes da burguesia reage declarando "os operários são atualmente demasiado livres".

Os operários da Lisnave, desde o princípio, deram o exemplo – foram a Putilov da revolução portuguesa - organizaram piquetes para ocupar o seu sindicato e impuseram negociações com a administração. Na Amadora – a Vyborg ou o ABC de Lisboa, uma das grandes concentrações operárias – a Sorefame, uma das maiores indústrias metalúrgicas do país entra em greve, assim como a Toyota, a Firestone, a Renault, a Carris (motoristas de ônibus), a TAP e a CP (ferroviários), mas também pelo interior, como entre os têxteis da Covilhã, ou nas minas da Panasqueira. A onda de auto-organização – formação nas empresas de comissões de trabalhadores - que aprofunda a dinâmica revolucionária da situação, produz reações:

"Os sindicalistas do PCP queixam-se amargurados: "Os grevistas fazem tábua rasa das formas tradicionais de luta, nem tentam negociar e por vezes decidem parar mesmo antes de redigirem o caderno reivindicativo. Em muitos caos, os trabalhadores não se limitam a exigir mais dinheiro, passam á ação direta, tentam tomar o poder de decisão e instituir a co-gestão sem estarem preparados para isso". (Canais Rocha ao Diário de Lisboa, em 24/6/74). Para recuperar as "formas tradicionais de luta", o PCP lança em 19 de julho a consigna de substituir as comissões de trabalhadores por delegados sindicais."


Ainda quando PCP apostava toda a sua imensa autoridade para freiar - ou sabotar - as greves, as invasões de latifúndios no Alentejo se generalizavam, ao mesmo tempo em que as ocupações de casas desabitadas em Lisboa e Porto se alastravam; saneamentos - o eufemismo para expulsão dos fascistas – realizavam depurações na maior parte das empresas, a começar pelo serviço público, e a pressão estudantil nas Universidades impunha assembléias para discutir de tudo. Toda a antiga ordem parecia desabar, e as mudanças se precipitavam em vertigem. Uma parcela significativa da burguesia, diante do imponderável, fugia do país. A luta mudava a vida:

"A criação do salário-mínimo nacional abrange mais de 50% dos assalariados não agrícolas. São os trabalhadores menos qualificados, as mulheres, os mais oprimidos, que constituem a vanguarda da conquista do poder de compra e dos direitos sociais. O poder de compra dos assalariados aumenta 25,4% em 1974 e 75; os salários que, em 1974, já são 48% do rendimento nacional, passam a 56,9% em 1975. A estrutura da propriedade modifica-se: 117 empresas são nacionalizadas, 219 outras têm mais de 50% de participação do Estado, 206 são intervencionadas, abrangendo 55.000 operários; 700 empresas entram em auto-gestão, com 30.000 operários."


Mas, a situação aberta pela queda de Spínola trazia novos desafios. A burguesia exigia ordem e, sobretudo, respeito à propriedade privada. Diante das exigências burguesas, o PS (Partido Socialista) e o PCP (Partido Comunista), as forças políticas de longe majoritárias, e as únicas com autoridade moral na direção dos Governos Provisórios - além do MFA - dividiram-se e provocaram uma cisão entre os trabalhadores e seus aliados. No 25 de abril de 75, as eleições para a Constituinte surpreenderam. Três projetos e três legitimidades entraram em conflito. Essa divisão atravessou, também, o MFA. Surgiram três campos: o do governo de Vasco Gonçalves, com o PCP, e se apoiava na maioria do MFA; o de Soares, que reivindicava a autoridade da votação nas urnas, e o mais frágil, subjetivamente, porém, o mais temido, porque anticapitalista, aquele que nascia dos embriões de poder popular.


Um projeto autárquico

O PCP foi um dos primeiros partidos comunistas a participar em um governo na Europa Ocidental no pós-guerra. Antes dele, um PC esteve em uma coligação na Islândia, mas não parece ter preocupado Washington. O partido de Álvaro Cunhal foi a única organização que atravessou toda a resistência á ditadura de Salazar. Os anos de condenação à prisão dos membros do seu comitê central somavam mais de dois séculos, e isso dá uma idéia do respeito entre as massas que odiavam o fascismo.

Mas era, também, um dos partidos mais organicamente integrados com Moscou e com uma direção muito mais homogênea que partido de Santiago Carrillo no Estado Espanhol. A maior parte de seus quadros viveu longas estadias na URSS, ou no Leste. Cunhal não seria nem um Tito, nem um Mao. O PCP tinha resistido, intacto, ás rupturas pró-pequim, e às pressões castristas. Depois do 25 de abril foi majoritário nas grandes concentrações da classe operária, nos trabalhadores rurais do Alentejo, e no campesinato pobre do interior e, também, na população plebéia do sul do País. Concentrava sua influência, contudo, na Grande Lisboa.

Chegou a ter uma influência importante dentro do MFA que se expressava, sobretudo, através da Quinta Divisão. Á cabeça de uma estrutura organizada de perto de 100.000 militantes, era uma máquina política de uma eficiência incrível, capaz de organizar manifestações de rua com dezenas de milhares, literalmente, do dia para a noite. Participou dos Governos provisórios desde o princípio. Durante o V Governo Provisório – depois da ruptura do PS, quando já não havia representantes diretos da burguesia - defendeu Vasco Gonçalves até o último dia.

Embora a URSS estivesse preocupada com uma revolução anticapitalista em um pequeno país da Europa Ocidental – inaceitável para os EUA – tinha interesses na África. Sem a perspectiva da prioridade da política em relação a Angola, Guiné e Moçambique, seria impossível analisar a estratégia do partido de Cunhal. A questão africana estava no centro das preocupações diplomáticas da URSS no Sistema Mundial de Estados:

"O PCP lança-se numa corrida contra-relógio que lhe permita criar as condições para uma descolonização rápida, que possa pôr de parte quaisquer veleidades de intervenção por parte de outras potências e favorecer a transmissão de poderes nas colônias para as mãos dos movimentos que á partida estão, de fato, em melhor situação: a Frelimo, o PAIGC e o MPLA."


O PCP tinha um discurso assombroso. Procurava convencer as massas em luta que o poder político já tinha sido conquistado. Só faltava o poder econômico, mas a "democracia nacional" permitiria disciplinar o capitalismo. Uma fórmula etapista que justificava a renúncia ao antagonismo capital/trabalho como o decisivo, combatendo qualquer perspectiva de ruptura anticapitalista. Defendia a aliança com o MFA como estratégica e argumentava, em coerência, que o socialismo não estava na ordem do dia. Destacou-se, como os PC’s da França, da Itália e até do Brasil, ao final da Segunda Guerra Mundial, na campanha pela "batalha da produção" contra o que considerava um "grevismo" aventureiro e esquerdista:

"Numa fase inicial do processo, beneficiando da sua longa existência, de sua organização, de sua disciplina e da sua experiência – trunfos que lhe garantem à partida uma capacidade de manobra, de ataque e resposta, de avanço e recuo, infinitamente superiores às de qualquer outro partido – é o PCP quem segue á frente. É por seguir à frente, por se sentir, em certa medida confundido com o Poder – o Poder de fato – que o PCP se torna o principal adversário do movimento grevista. (...)


Segundo Cunhal, uma revolução social não era possível, e se tratava de recuperar uma economia capitalista em frangalhos, o que exigia algumas nacionalizações, e construir um reformismo – um Estado menos atrasado – que acomodasse as reivindicações populares. O PCP se lança, então, a uma política de "guerra de posições", não entre as classes, mas entre os partidos: disputa de influência, ocupação de cargos e controle feroz de espaços por dentro e por fora do Estado. Alimenta uma sistemática política aparelhista que semeia a divisão e a desconfiança entre os trabalhadores, em seu afã burocrático e prática de monolítismo:

"Esta situação no 11 de Março, atingiria o seu ponto alto. Aí, ao tomar, praticamente sozinho, o controle da máquina do Estado, o partido comunista assinava a sua sentença de morte como partido de governo (...) A necessidade de atuar com rapidez o conduz a uma prática política caracterizada pela intransigência, pelo sectarismo, não poucas vezes, pelo "golpismo", o que, longe de contribuir para apagar a idéia – largamente difundida – de que os comunistas são sectários, dogmáticos e agressivos, e que estão na inteira dependência da URSS, desde logo colocou contra si muita gente que tinha assistido com simpatia a chegada de Avaro Cunhal a Portugal."


Apoiava uma corrente de opinião majoritária - até a independência das colônias - entre os oficiais que compunham o Conselho da Revolução, o organismo mais alto do MFA que exercia, de fato, uma tutela sobre o Governo – diminuindo o papel das relações políticas entre partidos na Constituinte - depois do 11 de Março. O PCP era conseqüente com a estratégia da "aliança do povo com as Forças Armadas", e propunha o respeito á hierarquia da cadeia de comando que passava pela disciplina ao MFA:

"Dentro das Forças Armadas não serão permitidas quaisquer organizações de caráter político-militar, partidárias ou não, estranhas ao MFA, devendo progressivamente, todos os militares serem integrados no seu próprio movimento"


Afirmava a necessidade de um projeto nacionalista semi-autárquico, a "democracia nacional", porque pretendia, ao mesmo tempo, reconhecer a independência das colônias, mas salvaguardando os interesses portugueses, que não eram poucos, e preservando a condição de semi-metrópole interlocutora entre a África e a Europa. O mito de que poderia acontecer um "golpe comunista" - uma invenção que servia para a mobilização contra-revolucionária - era bombardeado por Soares, e por toda a imprensa de direita, e os tambores da extrema-direita, histéricos, rufavam:

"Toda a ficção acerca dos intuitos do PCP de conquistar o poder, a análise da iminência de "um golpe de Praga", que teve grande importância neste ano I da revolução portuguesa, não passavam de elementos de uma ofensiva ideológica com o objetivo de estimular a divisão do movimento operário. Não têm um átomo de verdade. O que, em contrapartida, os revolucionários devem denunciar em um balanço rigoroso, é justamente a adaptação do PCP ao poder constituído que procurava preservar as relações de produção, num contexto em que o partido procurava ganhar margens de manobra, postos de controle, instrumentos de influência(...)Um testemunho conclusivo é o de Costa Gomes que conta que Brejnev lhe confidenciara as suas preocupações com a evolução portuguesa e a necessidade de o país se manter no quadro da NATO"


A estratégia do PCP correspondia aos interesses diplomáticos da URSS no Sistema mundial de Estados. Flertavam, portanto, com o movimento dos não-alinhados, como uma via intermediária entre um alinhamento com a Europa, que queriam pelo menos adiar, e uma ruptura, que queriam impedir. Apoiavam-se nas impressionantes mobilizações de massas, para desviá-las para dentro dos limites do regime. Freavam a auto-organização, sempre que possível, em especial nos quartéis. Havia um desconforto do Governo, MFA e PC com a ação direta que questionava a propriedade privada dos grandes monopólios, bancos e latifúndios do Alentejo, mas o processo tinha uma dinâmica anticapitalista independente que ninguém conseguia controlar até o fim. Afinal, como defender a propriedade dos cúmplices golpistas de Spínola?


A reação "democrática"

O imperialismo americano, mais ativo que o europeu durante a revolução portuguesa, era muito consciente que a questão africana se disputava, também, em Lisboa. Não foi á toa que a esquadra da NATO estacionou no Tejo em 1975. Pressionou, primeiro, para que a revolução fosse controlada pelo MFA, mesmo se aliado ao PCP e, depois, quando ficou claro que o governo de Vasco Gonçalves era incapaz de conter as bases sociais nas quais se sustentava, aliou-se à oposição de direita.

Coube ao Partido Socialista, liderado por Mário Soares - homem de confiança da Europa - o papel chave na disputa política pela estabilização, diante da fragilidade estrutural dos partidos burgueses. Seu plano era derrubar o V Governo, pela divisão do MFA e, na seqüência, afogar a revolução nas urnas.

O PS foi o partido dos trabalhadores de serviços e dos operários mais moderados, mas, também, da maioria das classes médias, sobretudo no centro e no norte do país, que conquistou o apoio da burguesia, da Igreja, e da oficialidade reacionária das Forças Armadas. Queriam consolidar um regime democrático liberal estável, e enterrar o mais rápido possível a experiência de dualidade de poderes que se disseminava. Reconstruir a autoridade do Estado era a sua estratégia.

O PS esteve presente em todos os governos provisórios até Julho de 1975, quando rompeu com Vasco Gonçalves. A partir daí, Soares se lançou a uma campanha virulenta de oposição ao V Governo, operando a divisão do MFA – apoiando a formação do Grupo dos Nove, liderado por Melo Antunes e Vasco Lourenço - e construindo uma mobilização que levou centenas de milhares de pessoas à Alameda da Fonte Luminosa. Uma campanha deste porte não seria possível somente com a base social da contra-revolução. Muitos milhares de trabalhadores que repudiavam as limitações às liberdades democráticas que vinham sendo ensaiadas se uniram ao chamado do PS, configurando uma irremediável divisão.

Usou como bandeira a defesa das liberdades democráticas e, como exemplo, o episódio do jornal República. Uma ocupação pelos operários gráficos do jornal de Raul Rego, membro da Executiva do PS, uma ação que dividiu os trabalhadores e as classes médias, porque embora apoiada na legitimidade da reivindicação de direitos, seqüestrava o jornal diário da socialdemocracia, foi o pretexto para iniciar uma campanha de mobilização para derrubar o V governo. Nas palavras do próprio Mário Soares:

"A nossa revolução está em perigo na medida em que se põem em causa as instituições democráticas que são o seu primeiro fundamento e justificação(...) Existe uma crise geral de autoridade do Estado, corroído pela demagogia, pela irresponsabilidade e pelo anarco-populismo".


Temiam a dinâmica que a dinâmica anticapitalista se alastrasse para a Espanha, ainda sobre a ditadura franquista – mas em uma situação muito instável, que poderia evoluir para revolucionária - e radicalizasse as massas jovens e trabalhadoras em todo o sul do Mediterrâneo, poucos anos depois da maré de 1968. A carta da integração na Comunidade Européia, e a promessa de estender para os portugueses um padrão de vida semelhante ao dos europeus, que uma parte significativa da população conhecia, pela importância econômica dos emigrantes na frágil economia do país, era seu trunfo mais importante.

A Igreja católica se somou a esta frente que tinha em Soares a voz, na força de aparato do PPD (hoje PSD) – partido burguês que reunia, em sua maioria, os quadros do salazarismo reciclado - e no CDS (hoje, PP) – a extrema-direita ideologicamente mais dura - suas pernas e músculos, e nos Cardeais e Bispos a sua autoridade moral. Não faltou também o dinheiro. Muitos milhões de dólares articulados pela embaixada - dirigida pelo tristemente célebre Frank Carlucci, não acidentalmente, depois, o homem de Reagan na Nicarágua e, hoje, grande investidor imobiliário em Portugal - para lançar jornais, manipular as rádios, e convocar às ruas multidões, dos segmentos de classe média mais atrasados dispostas a proteger o país do perigo da "comunização" totalitária.

"Por trás do discurso legalista estava a sórdida realidade da divisão operária, do confronto aberto, instrumentos das políticas tanto do PS, quanto do PCP. Um jornalista próximo d Soares e de Mitterand, Jean Daniel, do Nouvel Observateur, chegava a este ponto na justificação da política soarista: "Se o PC perseverar diabolicamente numa lógica que implica a eliminação dos outros partidos operários, que outro caminho fica senão combatê-lo tornando-se um aliado objetivo dos reacionários, dos clericais, dos fascistas que ainda ontem reinavam em Portugal?."A resposta foi o que se viu: piedosas manifestações destruindo sedes, atentados bombistas de vários calibres e, por detrás das cortinas de fumo das ideologias, a preparação do bloco político que organizou civil e militarmente o 25 de novembro."


Depois de derrubado o V governo, o plano se revela por inteiro, arrasador. Mandar os soldados e marinheiros ganhos pela revolução para casa, sumariamente, e convocar novos soldados; institucionalizar o MFA e restabelecer a hierarquia das FFAA; destruir o duplo poder, acabando com o assembleísmo, o direito dos trabalhadores se reunirem dentro dos locais de trabalho e se manifestar; "liberar" a Assembléia Constituinte da tutela do MFA; realizar, o mais rápido possível, eleições presidenciais; chantagear as massas nas eleições com a promessa de que o dinheiro da Europa e dos EUA, só viriam se os extremistas fossem derrotados.


A luta pelo poder popular


Se o PC estava associado ao V governo que era incapaz de controlar a vaga de ascenso, mas resistia, também, ás pressões do imperialismo, e o partido de Soares encabeçava a oposição de direita, a grande questão era saber se as forças anticapitalistas estariam dispostas a liderar a oposição de esquerda e com quais perspectivas. Afinal, o terceiro campo – as forças à esquerda do V governo - era o único que defendia, em tese, a necessidade da revolução socialista, e o mínimo que se pode dizer para descrevê-lo, é que era acéfalo. Não conseguiram sequer se afirmar como oposição.

O impacto de suas iniciativas políticas, no entanto, foi significativo. Decorria da capacidade de mobilização de setores de vanguarda, que manteve durante uns três anos, desproporcionalmente maior que a real implantação social. Tinha influência, embora minoritária, entre os jovens operários e estudantes, não possuía direção homogênea, mas contava com a simpatia de uma parcela grande da base socialista e comunista que, sem romper com seus dirigentes, estava pressionada pelo entusiasmo da participação nos organismos de democracia direta.

A iniciativa de seus militantes anônimos, mas despojados e corajosos, esteve no estopim de uma parte significativa de episódios heróicos da revolução. Mas, o balanço político mais geral foi desolador. Ela se dividiu em três posições. Sem um eixo político muito claro, a extrema esquerda cedia às pressões dos dois aparelhos mais poderosos da esquerda, o PS e o PCP, e não parece injusto dizer que foi aprisionada pela força de gravitação, ou do estalinismo, ou da socialdemocracia.

A primeira, e mais influente – em especial no MFA e na intelectualidade - articulava o MES (Movimento de Esquerda Socialista), onde militava uma boa parcela da esquerda de origem católica, entre eles o atual presidente Jorge Sampaio, a Luar (Liga de Unidade e Ação Revolucionária) e o PRP (Partido Revolucionário do Proletariado), na origem de inspiração castrista, defendia um bloco das organizações revolucionárias com o MFA. Mantendo uma independência um pouco maior, a UDP, acompanhava.

Não valorizavam a necessidade da construção de organismos unitários de base, uma possibilidade de abrir um caminho para a ruptura das massas socialistas e comunistas com suas direções. Tendiam a uma estratégia superestrutural de alianças por cima com sectores da oficialidade. Primeiro constituiu a FUP (Frente de Unidade popular), respondendo a um chamado de Cunhal, em apoio direto a Vasco Gonçalves, e depois a FUR (Frente de Unidade Revolucionária), quando o PCP rompe, até com a adesão da UDP e da LCI, com uma posição mais ambígua. A liderança carismática de alguns oficiais do exército, como Otelo Saraiva de Carvalho, aparecia como um ponto de apoio, e exercia um fascínio:

"A extrema-esquerda começou por desenvolver a estratégia da insurreição em aliança com o MFA e o PCP, que consistiria, na realidade, na potencialização da relação de forças militar estabelecida pelo COPCON. A "aliança povo-MFA" decorria logicamente daí – e viu-se como entravou a luta dos trabalhadores e facilitou o reagrupamento dos seus adversários. A partir da altura em que uma premissa deste esquema começa a ruir, com as divisões e paralisia do MFA, operam uma pequena variação tática (...) A FUR vem ainda no prolongamento deste tipo de atitudes".


Esqueceram-se, por suposto, de acertar com o PCP e com seus aliados no MFA... Esta suposta insurreição só existia no mundo dos desejos. Consideravam, também, que o perigo de um golpe fascista seria iminente, e um regime de dominação democrático-burguesa, senão impossível, pelo menos improvável. Segundo Cezar Oliveira, um dos seus líderes:

"As classes dominantes em Portugal só têm uma saída: um regime autoritário, centralizado e fortemente repressivo,, capaz de garantir a estabilidade política e uma "paz social" que lhe permita reconverter uma estrutura econômica dependente da exploração colonial, da divisão internacional do trabalho, da própria existência de fascismo"


A conclusão simplista - e até ingênua - de que a revolução só poderia ser derrotada por uma contra-revolução fascista era, então, muito influente em função do golpe de Pinochet no Chile. Afinal, Spínola não tinha formado desde seu exílio um sinistro MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal)? O próprio Vasco Gonçalves considerava que a burguesia portuguesa só poderia governar, se protegida pela repressão das baionetas, e insistia que a socialdemocracia era a ante-sala do fascismo.

A segunda posição era ocupado pelo maoismo pró-Pequim - linha "bando dos quatro" - e tinha duas organizações, o PCP(m-l) e o MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado). Acreditavam que, em Portugal, depois da ruptura do PS de Mário Soares com o V Governo, o maior perigo era o social-imperialismo russo, em função do peso reforçado do PCP. A estratégia delirante era uma aliança com Soares e, depois, com o golpe de Ramalho Eanes no 25 de novembro.

A terceira posição mal conseguia se fazer expressar nacionalmente, e era composta por lideranças inexperientes e, politicamente, quase imberbes. As três organizações com intervenção independente que reivindicavam a tradição da Quarta Internacional eram acentuadamente minoritárias. Duas delas tinham uma intervenção pública independente – LCI (Liga Comunista Internacionalista) e PRT (Partido Revolucionário dos Trabalhadores) – e a terceira, articulada com a OCI francesa, se expressava dentro do PS. A imaturidade cobrava seu preço.

Os trotskistas tiveram linhas diferenciadas, e não conseguiram sequer uma participação eleitoral conjunta em 1975 e 1976. Lutaram pela frente única PS/PCP – não cederam as tentações substitucionistas dos que, na extrema –esquerda, pretendiam ignorar a influência majoritária de Soares e Cunhal - contra a orientação divisionista de suas direções, resistiram ao bonapartismo do V governo, e apoiaram as lutas e as experiências de construção de organismos de poder popular.

A revolução impossível

No 25 de novembro de 1975, a primeira derrota séria. Na sua origem, uma provocação. Uma ordem do estado maior desmobilizava alguns regimentos, e mandava todos para casa. Em resposta, um levante militar de pára-quedistas, influenciados por setores da extrema-esquerda, tinha se iniciado durante a madrugada. Chegaram a tomar o controle da televisão e iniciar uma emissão. Entretanto, uma ala da oficialidade - vinculada ao grupo dos nove - deu um contra-golpe fulminante, e assumiu o poder dentro das FFAA, destruindo a democracia direta nos quartéis. A maioria do MFA cede, incluindo Otelo, e o PC também, argumentando que o país não teria como suportar uma guerra civil. As liberdades democráticas não foram destruídas, mas todas as conquistas sociais ficaram ameaçadas. A força da resistência operária popular, apesar das divisões, ainda permanecia viva, mas a aliança com os soldados, marinheiros e a oficiais mais radicalizados tinha se rompido, com a recuperação da disciplina interna do Exército. Um depoimento de greve, um mês depois do 25 de novembro, é revelador:

"Decidiu-se formar piquetes á entrada da fábrica para fiscalizar entradas e saídas. Os operários da Cambournac continuam a sua luta ocupando a fábrica no fim de semana. Os 800 trabalhadores não irão para a rua, haja falência ou não. Estamos dispostos a lutar pela posse daquilo que sempre nos foi roubado e não estamos passivos à espera do Governo, pois só a classe operária pode libertar-se."


Na seqüência, faltava o mais difícil, derrotar os trabalhadores. Como não podia se arriscar a um confronto direto, como nos quartéis, a solução improvisada foi política. Ramalho Eanes, o general do 25 de novembro, foi eleito presidente da república nas eleições presidenciais de 1976. Teve o apoio do PS e de todos os partidos burgueses. Teve o apoio entusiástico do MRPP, à época dirigido por Arnaldo Matos.

Mário Soares recebeu seu prêmio. Foi eleito primeiro ministro, depois das eleições legislativas em 1977, e o MFA foi dissolvido. A partir de então, ao longo de três anos, apesar da resistência nos setores mais organizados, a revolução foi agonizando.

Aquele que escreve viveu os seis meses mais intensos e emocionantes de sua vida. Éramos tão jovens, que acreditávamos que a vida nos daria uma segunda chance, na próxima esquina perigosa da história. Estávamos errados. As derrotas históricas exigem, no mínimo, o intervalo de uma geração para que suas seqüelas possam ser superadas. Todo processo revolucionário é uma refutação trágica das teses gradualistas que diminuem a importância da ruptura, inclusive da insurreição, na estratégia de luta anticapitalista. Boaventura de Sousa Santos foi um dos defensores do balanço da revolução como um processo evolucionista:

"A revolução socialista é o processo mais ou menos longo de transformação global de diferentes estruturas de poder da sociedade capitalista no sentido da democratização global da vida coletiva e individual. É a totalidade histórica em que culmina o conjunto das reformas sociais dispersas no tempo e nas diferentes práticas políticas"


A perspectiva de um longo processo de extensão da democracia, de acumulação de forças e direitos, e de convencimento, ou neutralização desarmada, dos inimigos sociais da irreversibilidade da mudança, sem a gravidade máxima do assalto ao poder, não encontrou, pelo menos até hoje, uma fundamentação histórica.Depois de novembro de 75, com a destruição da dualidade de poderes nas FFAA, em grande medida sem que se pudesse perceber ainda o terrível alcance da derrota, o processo assumiu uma dinâmica lenta, mas irreversível, apesar de algumas reviravoltas, de estabilização de um regime democrático liberal. A oportunidade tinha sido perdida.

A derrota da revolução portuguesa não exigiu derramamento de sangue, mas consumiu muitos bilhões de marcos alemães e de francos franceses. O que a revolução fez em dezoito meses, a contra-revolução precisou de dezoito anos para desmontar. A integração posterior na Comunidade Econômica, com o acesso aos fundos estruturais, gigantescas transferências de capitais para modernizar a infra-estrutura, e construir um pacto social capaz de absorver as tensões sociais pós-salazaristas, permitiu a estabilização do regime nos anos 80 e 90.

Um comentário:

cid simoes disse...

Zeca Afonso não é um cantor popular, mas sim um poeta, compositor e cantor revolucionário.