Título original: Formen die der Kapitalistiscllen Produktion vorhergehtl
Tradução de Alberto Saraiva sobre a versão francesa de Maximilien Rubel, in K. Marx. Oeuvres: Economie II, . Bibliothéque de la Pléiade. Editions Gatlimard. Paris, 1968.
PROPRIEDADE E APROPRIAÇÃO
Aquilo a que o sr. Proudhon chama a gênese extra-econômica da propriedade - com o quer precisamente é referir-se à propriedade fundiária - é a relação pré-burguesa do indivíduo face às condições objetivas do trabalho, e, em primeiro lugar, face às suas condições objetivas naturais. Quado que o sujeito que trabalha é um indivíduo natural, uma realidade natural, a primeira condição objetiva do seu trabalho surge como natureza, terra, como o seu corpo não orgânico, ele próprio não é apenas um corpo orgânico: é essa natureza não orgânica enquanto sujeito. Esta condição não é produto do indivíduo; ele encontra-a acabada perante si, como uma realidade natural anterior e exterior a ele. Antes de prosseguirmos a nossa análise, uma observação: o pobre Proudhon não só podia como devia igualmente denunciar a origem não econômica do capital e do, trabalho assalariado enquanto formas da propriedade. Efetivamente, se o operário encontra perante si e de si separadas as condições objetivas do trabalho sob a forma de capital e se o capitalista encontra perante si o trabalhador privado de qualquer propriedade, o trabalhador abstrato, isso acontece porque, tal como se opera, a troca entre o valor e o trabalho vivo pressupõe um processo histórico. Embora o .capital e o trabalho assalariado reproduzam eles próprios esta relação e a amadureçam em toda a sua profundidade e extensão objetiva, eles pressupõem, repitamo-lo, um processo histórico que constitui a sua gênese. Por outras palavras: a gênese extra-econômica da propriedade não significa mais do que a gênese histórica da economia burguesa, das formas de produção que se exprimem teoricamente e idealmente nas e pelas categorias da economia política. Dizer que a cada fase da história pré-burguesa corresponde a sua economia, dizer que o seu movimento tem uma base econômica é, no fundo, afirmar uma tautologia pura. É dizer que a vida do homem foi sempre fundada, de uma maneira ou de outra, na produção, na produção social, cujas relações são precisamente designadas por nós como relações econômicas.
As condições primitivas da produção não podem ser elas próprias produtos ou resultados da produção. do mesmo modo aliás e é a mesma coisa - que a reprodução de seres humanos. cujo número aumenta pelo processo natural dos sexos. Se esta reprodução aparece, por um lado. como apropriação dos objetos pelos sujeitos, aparece, por outro lado, como formação. subjugação dos objetos a um fim subjetivo, sua transformação em resultados e em receptáculos .da atividade subjetiva. O que requer uma explicação não é a unidade dos indivíduos ativos e das condições não orgânicas do seu metabolismo com a natureza de que se apropriam: esta unidade não é de modo nenhum resultado de um processo histórico. O que precisa de ser explicado é antes a separação entre a existência humana ativa e as condições- não orgânicas da existência. separação que é perfeitamente visível na reação entre o trabalho assalariado e o capital. Ela não se verifica nem no sistema escravagista nem no feudalismo: aí, uma parte da sociedade é tratada pela outra como a condição não orgânica e natural da sua própria reprodução. O escravo não está em nenhuma relação com as condições objetivas do seu trabalho; pelo contrário, na pessoa do escravo como na do serve, o próprio trabalho é considerado como condição não orgânica da produção, ao mesmo título que o trabalho dos outros seres naturais, ao lado do gado ou como acessório do solo. O mesmo é dizer que as condições primitivas da produção surgem como os pressupostos naturais da existência natural do produtor; do mesmo modo, o seu corpo vivo, que ele reproduz e desenvolve realmente, aparece não como obra sua mas como a sua própria condição: a sua existência (física) é um pressuposto natural, que ele não criou. Estas condições naturais de existência, com as quais ele se encontra em relação como seu próprio corpo não orgânico, são elas mesmas duplas: 1. de natureza subjetiva; 2. de natureza objetiva. Ele vê-se membro de uma família. de um clã. de uma tribo, etc., as quais, misturando-se e opondo-se a outras, adoptam formas historicamente diferentes; e, como tal, ele encontra-se em relação com uma natureza determinada (dígamo-lo de novo: a terra. o solo) como sua própria existência não orgânica enquanto condição da sua produção e da sua reprodução. Membro natural da comunidade, ele tem a sua parte .la propriedade comum, possui uma fração particular dela, tal como o cidadão romano, por direito de nascença, tem um direito ideal (pelo menos) sobre o ager publicus e um direito real sobre tantas Jeiras de terra, etc. A sua propriedade - isto é, as condições naturais da sua produção, com as quais ele está relacionado como sendo as suas próprias - é mediatizada pela sua qualidade de. membro natural de uma comunidade. Por exemplo, é evidente que o indivíduo isolado está em relação com a sua língua como sua unicamente enquanto é um membro natural de uma comunidade humana. Uma língua produto de um s6 indivíduo é um absurdo. O mesmo se pode dizer da propriedade. A própria linguagem é produto de uma comunidade tanto como, sob outros aspectos, é a existência mesma da comunidade. o modo de expressão espontâneo dessa comunidade(5).
A produção e a propriedade comuns como se vêem, por exemplo, no Peru são manifestamente uma forma secundária; foram introduzidas e transmitidas por tribos conquistadoras que conheceram elas próprias a propriedade e a produção comuns sob. uma forma antiga e mais simples, tal como se encontra na índia e entre os Eslavos. Do mesmo modo, a forma que encontramos nos Geltas, no país de Gales, por exemplo, parece ser uma forma herdada, secundária, introduzi da por conquistadores nas tribos conquistadas, relegadas nessa altura para um nível inferior. O surgimento mais tardio destes sistemas mostra que eles foram metodicamente elaborados e completados a partir de um centro supremo. Assim, o feudalismo introduzido em Inglaterra era mais acabado na sua forma que o feudalismo que nascera em França de modo espontâneo.
Entre as tribos de pastores nômadas - e todos os povos pastoris são, na origem, nômadas - a terra, bem como outras condições naturais, aparece como um elemento ilimitado, por exemplo nas estepes e nos elevados planaltos da Asia. Ela é entregue como pastagem aos rebanhos que a «consomem» para, por seu turno, servirem de subsistência aos povos pastoris:- Estes encontram-se em relação com a terra como propriedade sua, embora jamais lhe dêem um estatuto fixo. Assim, os terrenos de caça entre as tribos índias selvagens da América. A tribo considera uma dada região como seu terreno de caça, que defende pela violência contra outras tribos; ou então tenta expulsar outras tribos das terras que elas defendem. De fato, entre as tribos de pastores nômadas, a comuna está sempre reunida - migração, caravana, horda - e as formas hierárquicas de dominação e subordinação desenvolvem-se a partir das condições deste modo de existência- Aqui, só o rebanho é possuído e reproduzido: não a terra, todavia sempre explorada em comum temporariamente, de cada vez que é escolhido um lugar de permanência. O único obstáculo (passando imediatamente aos povos sedentários) que a comunidade pode encontrar na sua atitude possessiva em relação às condições naturais, à terra, é uma outra comunidade, que as reclama como seu próprio corpo não orgânico. Por isso é a guerra uma das atividades primordiais da comunidade natural, simultaneamente para defender a propriedade adquirida . e para adquirir novas terras.(6)
PRODUÇÃO E PROPRIEDADE
Originariamente, portanto, a propriedade não significa mais do que o comportamento do homem face às suas condições naturais de produção como fazendo com ele um só, como sendo suas, e tais quais foram dadas conjuntamente com a sua própria existência. Fundamentos naturais da sua própria pessoa, elas constituem, por assim dizer, o prolongamento do seu próprio corpo. Na realidade, não existe um comportamento face às condições da produção; o indivíduo tem aqui uma existência dupla: subjetivamente, enquanto ele mesmo, e objetivamente, nas condições naturais e não orgânicas da sua existência. Também as formas destas condições são duplas: 1. o indivíduo existe como membro de uma comunidade, a qual, na sua forma primitiva e com modificações mais ou menos importantes, é uma instituição tribal; 2. por intermédio da sua comunidade, o indivíduo comporta-se como proprietário em relação ao solo. Propriedade colectiva do -solo, ao mesmo tempo que posse individual pelo membro particular da comuna; ou então há partilha dos frutos, enquanto a terra e a uma o cultivo permanecem comuns. Pertencer sociedade natural. a uma tribo, etc., é, para o indivíduo, uma condição natural do seu trabalho. E já já esta pertença que, por exemplo, determina a sua língua, etc.; a sua própria existência produtiva só é possível nesta condição. Dela igualmente decorre a sua existência subjetiva, tanto como depende do fato de ele estar em relação com a terra como sua oficina.8
Por conseguinte, quem diz propriedade diz pertença a uma tribo (comunidade), diz existência simultaneamente subjetiva e objetiva. O comportamento da comunidade em relação ao solo, seu corpo não orgânico, determina o comportamento do indivíduo em rela" ção ao solo, sua condição exterior primeira. A terra é,ao mesmo tempo, matéria-prima, instrumento .e fruto, que faz parte do indivíduo . em suma, o pressuposto e é o seu modo de existência.
Nós reduzimos esta. propriedade ao comportamento do sujeito face às condições da produção. Perguntar-se-á: por que não às condições do consumo, já que, originariamente, a atividade produtora do indivíduo se limita à reprodução do seu próprio corpo pela apropriação de objetos que a própria natureza prepara e oferece? Mas, mesmo quando se trata apenas de encontrar, de descobrir, torna-se imediatamente necessário um trabalho: um esforço – como na caça, na pesca, na pastorícia; é preciso que o sujeito produza (isto é, desenvolva) certas aptidões. Se circunstâncias há em que, sem qualquer instrumento (portanto, sem. a ajuda de produtos do trabalho destinados, eles próprios, à produção). O homem pode apropriar-se daquilo que se lhe oferece sem lhe mudar a forma (o que acontece ainda na pastorícia), é preciso considerá-Ias, mesmo no estado primitivo, como transitórias e de . modo nenhum normais. De resto, condições da produção englobam as matérias que se consomem diretamente sem trabalho (frutos, animais, etc.); em suma, o próprio fundo de consumo aparece como parte integrante do fundo primitivo da produção.
A condição fundamental da propriedade fundada na instituição da tribo (resultado da primitiva dissolução da comunidade) consiste na pertença à tribo. Esta condição tem como conseqüência o fato de as tribos estrangeiras, conquistadas e submetidas, serem despojadas da sua propriedade e colocadas, elas próprias, entre as condições não orgânicas dá reprodução de que o conquistador se apropria. A escravatura e a servidão resultam do ulterior desenvolvimento da propriedade fundada na instituição da tribo. Necessariamente modificam todas as formas dessa propriedade, sendo, no entanto, a do tipo asiático a menos afetada. A unidade autárcica da manufatura e da agricultura é o fundamento deste tipo de propriedade, de tal modo que as conquistas se tornam menos necessárias do que quando a propriedade fundiária e a agricultura predominam de forma exclusiva. De resto, tal como nesta forma, o indivíduo isolado jamais se torna proprietário, mas apenas possuidor. No fundo, ele próprio é a propriedade, o escravo daquele que personifica a unidade da comuna; a escravatura não suprime aqui as condições do trabalho, nem tão-pouco modifica a sua relação fundamental.
Eis outro ponto de agora em diante esclarecido:
Na medida em que a propriedade não é mais que o comportamento consciente de cada indivíduo – legalmente instituído, proclamado e garantido em – relação às suas condições de produção, na medida, portanto, em que a existência do produtor aparece entre as condições objetivas que lhe pertencem, esta forma de propriedade realiza-se exclusivamente através da própria produção. A apropriação con_creta. faz-se não numa relação teórica, mas numa relação ativa, real, com essas condições, que são então estatuídas como as condições mesmas da sua atividade subjetiva.
Daqui resulta. Entre outras coisas, que estas condições mudam. Só a atividade da caça faz com que um território se torne um terreno de caça: só pela agricultura se torna o solo o prolongamento do corpo do indivíduo. Se os cidadãos trabalham os campos sob. as muralhas de Roma por fim construí da. é porque as condições da comunidade mudaram. O objetivo de todas estas comunidades é a conservação, por outras palavras, a reprodução dos indivíduos que as constituem enquanto proprietários, reprodução que visa o modo de existência objetiva que molda o comportamento dos membros uns em relação aos outros e, portanto, a própria comuna. Mas. ao mesmo tempo e necessariamente, esta reprodução cria novas formas e destrói as antigas; por exemplo, quando cada indivíduo há-de possuir tantos acres mesmo que a população vá aumentando e que só a colonização possa obviar a isso, o que torna inevitável a guerra de conquista, a qual arrasta a caça aos escravos, etc. De onde o alargamento do ager publicus e a ascensão dos patrícios, que representam a comunidade, etc. Assim, a conservação da antiga comunidade implica a ruína das condições em que assenta e transforma-se no seu contrário. Suponhamos, por exemplo. que. num mesmo espaço, pode ser aumentada a produtividade pelo desenvolvimento das forças produtivas (na agricultura tradicional, este desenvolvimento atinge o cúmulo da lentidão): daí resultariam novos modos. novas combinações de trabalho, o emprego de uma grande parte do dia em outras tarefas. Isso significaria que as anteriores condições econômicas da comunidade estariam ultrapassadas. No ato da reprodução, não são só as condições objetivas que mudam (a aldeia torna-se cidade; a floresta virgem campo desbravado; etc), mas os próprios produtores, desenvolvendo novas qualidades transformando-se, por sua vez, pelo trabalho, tornando-se seres novos, formando novas forças e novas idéias, novos modos de comunicação, novas necessidades, uma nova linguagem. Quanto mais ligado às tradições se conserva o modo de produção longo na agricultura, o tempo é-o ainda mais na forma oriental, que combina a agricultura e a manufatura por outras palavras. quanto mais imutável é o processo real da apropriação e n:ais constantes são as antigas formas de propriedade, tanto mais estagnada é a comunidade. Quando os membros da comuna, tornados proprietários privados, adquiriram uma existência distinta na comuna urbana e como possuidores do território urbano, surgiram as condições em que o indivíduo pode perder a sua propriedade: é a dualidade de uma relação em que ele é cidadão a parte igual. membro da comuna, proprietário. Na forma oriental, este risco é quase inexistente, salvo em conseqüência de circunstâncias inteiramente exteriores, já que a relação de um membro individual com a sua comuna nunca é suficientemente livre para que ele se arrisque a perder o laço objetivo e econômico que a ela o liga. Aí, o indivíduo faz corpo com a sua comuna. Isso resulta, entre outras coisas, do fato de a manufatura e a agricultura, a cidade (a aldeia) e o campo estarem unidos. Entre os Antigos. a manufatura é considerada como uma decadência (é ocupação para os escravos libertos, os clientes. os metecos), etc. Este desenvolvimento do trabalho produtivo (libertado da sua submissão à agricultura doméstica, como trabalho de libertos destinado apenas à agricultura e à guerra, ou à manufatura limitada ao culto religioso e à comunidade - construção de casas, estradas e templos) verifica-se necessariamente graças ao comércio externo, aos escravos. à necessidade de trocar o sobreproduto, etc. Ele dissolve o modo de produção que serve de fundamento à comunidade e ao cidadão objetivamente individualizado. ou seja, ao Romano, ao Grego, etc. A troca produz o mesmo efeito, tal como o endividamento, etc.
A primitiva unidade entre uma forma particular da comunidade (tribal) e o modo de apropriação ou o comportamento face às condições objetivas da produção enquanto natureza, enquanto preexistência objetiva do indivíduo mediatizada pela comuna - essa unidade revelada pela forma particular da propriedade manifesta-se concretamente no modo de produção determinado. Este modo surge ao mesmo tempo como o comportamento dos indivíduos entre si e como o seu comportamento ativo para com a natureza não orgânica do se\! modo de trabalho determinado (que é sempre uma atividade familiar e. frequentemente, um trabalho da comuna). A própria comunidade aparece como a primeira grande força produtiva. Consoante o modo particul,ar das condições de trabalho (por exemplo, criação de gado, agricultura). vemos desenvolver-se um modo particular de produção e forças produtivas particulares, tento subjetivas faculdades dos indivíduos como objetivas.
DISSOLUÇÃO DAS FORMAS PRIMITIVAS
Um certo nível de desenvolvimento das forças produtivas dos sujeitos que trabalham nível a que correspondem as relações destes sujeitos entre si e para com a natureza eis no que se resumem. em última instância, a sua comunidade e a propriedade nela fundada. Até um certo ponto, há reprodução e, depois, dissolução.
Tal é o primitivo sentido da propriedade nas suas formas asiática, eslava, antiga e germânica: o comportamento do sujeito que trabalha (produz ou se reproduz) face às condições da sua produção ou da sua reprodução, de que se apropria. As formas da propriedade particularizam-se segundo as condições dessa produção. Esta tem por único objetivo a reprodução dos produtores em e com as suas condições objetivas . de existência. O comportamento do indivíduo enquanto proprietário estado pressuposto, que não é resultado trabalho, isto é, da produção implica um certo modo de vida como membro de uma tribo ou de uma comunidade (da qual o próprio sujeito é, até certo Ponto, propriedade). Consideremos a escravatura, a servidão, etc., onde, aos olhos de um terceiro ou de uma comunidade, o trabalhador figura, ele próprio, entre as condições naturais da produção (isto passa-se assim apenas na perspectiva europeia e não, por exemplo, na escravatura geral no Oriente). Aqui, a propriedade deixo de ser o comportamento do trabalhador em relação às condições objetivas do seu trabalho. Esta escravatura, esta servidão são sempre secundárias, nunca primárias; trata-se de conseqüências necessárias e tardias da propriedade fundada na comunidade e no trabalho na comunidade. Evidentemente, é muito fácil imaginar um homem possante, fisicamente superior, que, após dominar o animal, domina o homem e o força a caçar para si, numa palavra, que se serve dele como de uma condição natural para a sua reprodução (reduzindo-se nessa altura o seu próprio trabalho a exercer o poder, etc.) exatamente como se se tratasse de qualquer outra espécie natural. Tal perspectiva é idiota: ela seria justa se se considerassem organizações tribais ou sociedades comunais determinadas; mas ela parte do desenvolvimento de indivíduos isolados. Ora. é só através do processo histórico que o homem se particulariza. Primitivamente, ele aparece como um ser genérico, tribal, como um animal gregário de modo algum como um zôon politikon no sentido político. A própria troca é um dos principais meios dessa particularização. Ela torna supérfluo o estado gregário e provoca a sua dissolução. A partir de então, o homem, indivíduo isolado, passa a estar em relação apenas consigo próprio; mas o meio de atingir essa individualização é tornar-se um ser geral e comum. A existência objetiva do indivíduo como proprietário, digamos: como proprietário fundiário. está aí pressuposta e realiza-se em certas condições que o acorrentam à comunidade, ou melhor: que dele fazem um elo da cadeia. No mundo burguês, o trabalhador existe no estado de sujeito puro, desprovido de objeto; mas o objeto que lhe faz face, tornou-se a verdadeira comunidade, da qual ele tenta alimentar-se e que dele se alimenta.
Todas as formas (mais ou menos naturais, mas, ao mesmo tempo, resultados do processo histórico) nas quais a -comunidade pressupõe sujeitos unidos objetivamente às suas condições de produção, ou em que uma determinada existência subjetiva pressupõe as próprias comunidades como condições de produção todas essas formas correspondem necessariamente a um desenvolvimento essencialmente limitado das forças produtivas. O desenvolvimento das forças produtivas, dissolve-as, e essa mesma dissolução é um desenvolvimento das forças produtivas humanas. Inicialmente, o trabalho faz-se a partir de uma certa base natural; mais tarde, torna-se uma condição histórica. Seguidamente, este fundamento ou pressuposto é,ele próprio, suprimido ou toma um caráter transitório, tornando-se demasiado estreito para o desenvolvimento do rebanho humano em vias de progressão. Na medida em que reaparece na propriedade parcelar moderna, a propriedade antiga releva, ela própria, da economia política. Dela falaremos na parte reservada à propriedade fundiária. Vejamos, para começar, do que se trata: a relação entre o trabalho e o capital, ou as condições objetivas do trabalho enquanto capital, pressupõe um processo histórico que dissolve as diversas formas em que ou o trabalhador é proprietário ou o proprietário trabalha. Por conseguinte há, antes de mais nada: 1. dissolução da relação com a terra, com o solo, enquanto condição natural de produção a que o trabalhador se refere como sua própria existência não orgânica, laboratório das suas forças e domínio da sua vontade. Todas as formas em que se encontra esta propriedade pressupõem uma comunidade cujos membros, apesar das diferenças formais, são, enquanto membros, proprietários. A forma primitiva "desta propriedade é, conseqüentemente, ela própria propriedade comum direta (forma oriental, modificada na forma eslava; desenvolvida até se transformar no seu, contrário, mas ainda base secreta e contrastada, da ,propriedade antiga e germânica); 2. dissolução da relação em que o trabalhador aparece como proprietário do instrumento. Tal como a primeira forma da propriedade pressupõe uma comunidade geral, esta propriedade do instrumento pressupõe uma forma particular de desenvolvimento do trabalho manufatureiro enquanto trabalho artesanal; ao que se liga o sistema do mestrado e das corporações, etc. Aqui, o trabalho é ainda metade artístico, metade " mestria como fim em si. O capitalista é ainda o próprio mestre. A perícia particular garante ao mesmo tempo a posse do instrumento. Existe, por assim dizer, hereditariedade do modo, da organização e do instrumento do trabalho. A cidade medieval. Aqui o trabalho é ainda pessoal; há um desenvolvimento bem determinado e espontaneamente aceite de aptidões parciais, etc.; 3. um e outro implicam que, para poder viver como produtor, o trabalhador possua os meios de consumo antes dos da produção, enquanto produz e antes que termine o seu trabalho. Como proprietário fundiário, ele parece dispor diretamente do fundo de consumo necessário; enquanto mestre-artesão, adquiriu-o quer por herança quer pelo seu trabalho, fazendo economias. Jovem, começa por se aprendiz. Nesta função, ainda não é verdadeiramente um trabalhador independente; à maneira patriarcal, partilha as refeições do mestre. Quando é companheiro (verdadeiro). ,existe entre eles uma certa posse comum do fundo de consumo pertencente ao mestre. Conquanto este fundo não seja propriedade do companheiro, ele é pelo menos seu co-possuidor, em virtude das leis e das tradições da corporação;" 4. dissolução das condições em que o próprio trabalhador e as formas de trabalho se contam ainda diretamente entre as condições objetivas da produção e são como tais apropriadas; são pois escravos ou servos. Para o capital, não é o trabalhador. mas sim o trabalho, que e cria a condição da produção. Tanto melhor se o capital pode fazer executar o trabalho por meio de máquinas, ou mesmo com água ou ar. E ele apropria-se não do trabalhador, mas do seu trabalho não diretamente, mas por meio da troca.
Estes são, por um lado, os fatores históricos que fazem com que o trabalhador, enquanto trabalhador livre, força de trabalho sem objeto, puramente subjetiva, se encontre face às condições objetivas da produção como sua não-propriedade, como propriedade de outrem, como valor por si, como capital. Por outro lado, surge a pergunta: quais devem ser as condições para que o trabalhador encontre perante si um capital?
CAPITAL, PROPRIEDADE E INSTRUMENTOS DE TRABALHO
Quando o trabalho vivo está relacionado negativamente com a matéria-prima. com o instrumento e os meios de subsistência necessários durante o trabalho, quando esta relação é a da não-propriedade., a definição do capital implica desde início a negação da propriedade fundiária. do estado em que o indivíduo que trabalha se encontra em relação com a terra como coisa que lhe pertence: ele trabalha e produz como proprietário do solo. No melhor dos casos, ele não é apenas o que trabalha a terra, mas ainda o que, tendo a terra em sua propriedade, com ela se relaciona enquanto sujeito que trabalha. Virtualmente, a propriedade do solo inclui tanto. a propriedade da matéria-prima como do instrumento original, a própria terra, e dos frutos espontâneos desta. Considerada na sua forma primitiva, esta relação mostra-nos o individuo apropriando-se da terra, encontrando nela a matéria-prima, o instrumento e os meios de subsistência criados não pelo trabalho, mas pela própria terra. Uma vez reproduzida esta relação, vêem-se surgir instrumentos secundários e os frutos da terra criados pelo próprio trabalho, estando tudo isto incluído na propriedade fundiária sob as suas formas primitivas. Este estado histórico, enquanto relação de propriedade mais substancial, é pois desde início negado na relação entre o trabalhador e as condições de trabalho enquanto capital. É o estado histórico nº 1 que é negado nesta relação ou que se considera ter nela sofrido a sua dissolução histórica. Segundo estado: a propriedade do instrumento, a relação do trabalhador com o seu instrumento, que é pessoal; ele trabalha como proprietário do instrumento"; é o trabalhador proprietário, ou ainda o proprietário trabalhador. É uma forma independente, estabelecida ao lado e à margem da propriedade fundiária; é o desenvolvimento artesanal e urbano do trabalho, que já não é, como no primeiro caso, um fator acidental e acessório da propriedade fundiária. Propriedade do artesão, a matéria-prima e os meios de subsistência são doravante mediatizados pelo seu ofício e a sua propriedade do instrumento. Estamos já num segundo patamar histórico que existe simultaneamente com o primeiro e separada dele, mas que apresenta os sinais de uma importante modificação, pelo fato de esta segunda forma de propriedade ou de proprietário trabalhador se ter tornado uma instituição autônoma. Uma vez que o próprio Instrumento e um produto do trabalho, que ele é, por seu turno, um elemento constitutivo da propriedade obtida pelo trabalho, a comunidade já não pode surgir na sua forma espontânea e natural, como no caso anterior, enquanto base deste novo tipo de propriedade. Muito pelo contrário, trata-se aqui de uma comunidade produzida pelo próprio trabalhador, uma comunidade criada. a um nível secundário.
Evidentemente, quando a propriedade do instrumento implica a propriedade .das condições de produção do trabalho, o instrumento já não é mais, na atividade se real, do que o meio do trabalho individual. A arte se apropriar realmente do instrumento, de o manipular enquanto meio de trabalho, surge como um talento particular do trabalhador, que faz dele o proprietário do instrumento. Em suma, o caráter essencial do sistema do mestrado e das corporações onde o trabalho artesanal constitui em sujeito e, nessa medida, em proprietário - define-se pela relação com o instrumento de produção (instrumento de trabalho como propriedade). diferentemente da relação com a terra, com. o solo (com a matéria-prima como tal) detido em propriedade. O que estabelece o sujeito quer como trabalhador proprietário, quer como proprietário trabalhador,. é- a sua relação com um momento particular das condições número 2, que, pela sua natureza só pode existir, como estado oposto ao primeiro, ou, se se quiser. como estado, complementar modificado. e que. também ele, é negado na primeira fórmula do capital.
A terceira fórmula possível de uma relação.. de . propriedade concerne os meros meios. de subsistência dados como condição natural do sujeito trabalhador, sem que esta relação se aplique nem ao solo nem ao instrumento. nem. por conseqüência,. ao próprio trabalho. É, em última instância. a forma da escravatura e da servidão, também ela negada e que é considerada como estado historicamente dissolvido na relação do trabalhador com as condições de produção enquanto capital. As formas primitivas da propriedade dissolvem-se necessariamente na, relação com os diversos fatores objetivos que condicionam a produção e que se possuem; elas constituem igualmente a base econômica dos diversos tipos de comunidade, ao mesmo tempo que, por seu turno, pressupõem certos tipos sociais. Estas formas são profundamente alteradas pelo fato de o próprio trabalho ser colocado entre as condições objetivas da produção (servidão e escravatura). de maneira que o caráter simplesmente afirmativo dos modos de propriedade abrangidos no n 1 se perde e se modifica. Todas contêm a escravatura em potência e, portanto, a sua própria abolição. Evidentemente, no que se refere ao n 2 e ao seu modo particular de trabalho (o mestrado está ai realizado e a propriedade do instrumento implica a das condições de produção). a escravatura e a servidão estão excluídas; mas este modo pode ter um desenvolvimento análogo, negativo, no sistema das castas.
RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO E DE SERVIDÃO
A menos que se dissolva na escravatura e na servidão, a terceira forma de propriedade dos meios de subsistência não pode conter uma relação entre o indivíduo trabalhador e as condições de produção ou de existência. Ela só pode ser o estatuto do membro da comunidade primitiva. fundada na propriedade fundiária. como a plebes romana na época do panem et circenses: é o homem privado da primeira forma da sua propriedade. sem ter ainda atingido a segunda. O sistema do senhor com o seu séqüito, o da prestação pessoal. é essencialmente diferente. Ele é, no fundo. o modo de existência do próprio proprietário. que já não trabalha mas cuja propriedade inclui, entre as condições de produção. os próprios trabalhadores como servos, etc. Esta relação de dominação apresenta-se aqui como uma relação essencial de apropriação. Não pode haver uma relação de dominação para com o animal, o solo, etc., pelo fato da apropriação, ainda que o animal desempenhe uma tarefa é a apropriação de uma vontade alheia que condiciona esta relação d!J dominação. o que não tem vontade, o animal por exemplo, pode decerto servir, mas o seu possuidor não se torna com isso seu senhor. Mas nós vemos aqui que a relação de dominação e a relação de servidão estão igualmente englobadas neste conceito da apropriação dos instrumentos de produção; formam um fermento necessário do desenvolvimento e do desaparecimento de todas as relações primitivas de propriedade e de produção, ao mesmo tempo que exprimem os seus limites. É bem verdade que, no capital, estas relações são reproduzi das - sob forma mediata - e tornam-se assim o fermento da dissolução e o símbolo do caráter limitado do capital.(13)
É legítimo pressupor desde início processos históricos que colocaram uma massa de indivíduos de uma nação, etc., senão na situação de trabalhadores livres ainda não o são – pelo menos na de trabalhadores virtualmente livres, cuja única propriedade é a sua força de trabalho, que podem" trocar por valores existentes. Perante estes indivíduos, todas as condições objetivas da produção existem enquanto propriedade de outrem, sua não-propriedade, mas, ao mesmo tempo, como valores permutáveis que, num certo grau, podem ser adquiridos pelo trabalho vivo. Estes processos históricos de dissolução apresentam-se sob diversos aspectos: com"o dissolução das relações de servidão que acorrentam o trabalhador ao solo e ao seu senhor, mas lhe deixam de fato a propriedade das subsistências, conquanto se trate na verdade, de um processo que separa o trabalhador da terra; como dissolução das relações de propriedade que fizeram dele um yeoman, um franco tenente ou um rendeiro (colonus), um camponês livre"; dissolução do sistema do mestrado, em que o trabalhador é proprietário do seu instrumento de trabalho e em que o próprio trabalho, enquanto perícia artesanal determinada, é propriedade (e não apenas fonte desta); dissolução do sistema dos clientes sob as suas diversas formas, no qual, não-proprietários fazem parte do séqüito do seu senhor, consomem com este os produtos excedentes, usam a sua libré, tomam parte nas suas guerras, prestam-lhe serviços pessoais, imaginários ou reais, etc. Quando se examinam de perto estes processos, constata-se que se trata da dissolução das relações de produção em que predomina o valor de uso., ,produção para o uso imediato. O valor de troca e a sua produção pressupõem a predominância da outra forma; por isso que, em todas estas condições, as prestações e os serviços em espécie predominam sobre o pagamento e a prestação em dinheiro, Notemos isto de passagem. Um exame aprofundado mostrará que todos estes fenômenos de dissolução s6 eram possíveis num certo nível de desenvolvimento; das forças produtivas materiais (e também, por conseguinte, das forças sociais intelectuais). .
O que aqui nos interessa, antes de mais nada, é o seguinte: o processo de dissolução que transforma uma massa de indivíduos de um povo, etc" em assalariados virtualmente livres-indivíduos que só a indigência obriga a trabalhar e a vender o seu trabalho – pressupõe não o desaparecimento, mas a transformação das antigas fontes e condições de propriedade: passando como fundo livre para outras mãos ou mesmo ficando parcialmente nas mesmas mãos" o seu modo de existência transformou-se.
Uma coisa é clara: o processo que, de uma maneira ou de outra, separou uma massa de indivíduos das suas antigas relações positivas com as condições objetivas de trabalho, que, liquidando estas, os transformou em trabalhadores livres, esse mesmo processo libertou virtualmente essas condições – a terra, a matéria-prima, as subsistências, os instrumentos de trabalho, o dinheiro, tudo isso - do laço que até aí as liga aos indivíduos. Estes, por sua vez, estão doravante libertos dessas condições. Elas existem ainda, mas sob uma outra forma, como fundo livre, em que todas as antigas relações políticas, etc., foram aboli das; assumindo doravante unicamente a forma de valores absolutamente ligados a si mesmos, elas fazem face a indivíduos sem ligações e sem fortuna. O mesmo processo que situou indivíduos como trabalhadores livres face às condições objetivas de trabalho situou estas como capital face aos trabalha dores livres. O processo histórico consistia em separar elementos até aí reunidos; daí resulta não o desaparecimento de um desses elementos, mas uma situação em que cada elemento se relaciona negativamente com o outro: o trabalhador livre (virtualmente) de um lado, o capital (em potência) do outro. A separação entre as condições objetivas e as classes laboriosas, tornadas. livres, tem necessariamente como resultado que essas mesmas condições adquirem; no seu pólo oposto, uma autonomia total. Pode considerar-se a relação entre o capital e o trabalho assalariado na sua gênese histórica não como um fenômeno que doravante determina e domina o conjunto da produção"; por outras palavras, pode considerar-se a transformação primitiva do dinheiro em capital, o processo de troca entre, por um lado, o, capital existindo virtualmente e, por outro, os trabalhadores livres existindo virtualmente. Far-se-á então muito naturalmente a constatação (a que os economistas dão tanta importância) de que a parte que se apresenta como capital deve estar de posse de matérias-primas, de instrumentos de trabalho e de subsistências, para que o trabalhador possa viver antes e enquanto a produção se completa. É-se então levado a pensar que teve de haver uma acumulação - anterior ao trabalho e não fruto dele - da parte do capitalista, que lhe permiti-o pôr o operário a trabalhar, mantê-lo em atividade e conservá-lo como força de trabalho viva ". Este ato do capital - ato independente do trabalho, não estabelecido pelo trabalho é seguidamente isolado do seu processo de gênese e transformado em um momento da sua realidade e da sua eficácia, em um momento da sua autogênese. Por fim, deduz-se daí o direito eterno do capital a apropriar-se dos frutos do trabalho de outrem, ou antes:, deduz-se o seu modo de aquisição a partir das, leis simples e «justas» da troca de equivalentes. A riqueza que se apresenta sob a forma de dinheiro pode trocar-se pelas condições objetivas do trabalho somente por estas estarem, e deverem estar, separadas do mesmo trabalho. Nós vimos, é certo, que o dinheiro pode, em parte, ser acumulado pela mera troca de equivalentes; mas é uma fonte com tão pouca importância que se pode desprezá-Ia do ponto de vista histórico supondo que o dinheiro foi adquirido por troca de trabalho pessoal. e antes a fortuna monetária, a fortuna mobiliária, acumulada graças à usura - praticada, primeiro que tudo, sobre a propriedade fundiária - e aos lucros mercantis, que se transforma em capital propriamente dito, em capital industrial. Teremos mois adiante oportunidade de tratar destes dois modos de acumulação, que, sob a sua forma de riqueza antiga, aparecem não como capital, mas como pressupostos do capital.
GÊNESE DO CAPITAL
Vimos que, tal como a sua gênese, o conceito mesmo de capital implica que ele proceda do dinheiro, da riqueza sob forma de dinheiro. Implica igualmente que, provindo da circulação, ele apareça como o produto da circulação. Por conseguinte, a formação do capital não procede da propriedade fundiária (com excepção, quando muito, do caso do rendeiro, na medida em que ele é um comerciante de produtos, agrícolas), nem tão-pouco da corporação (embora aqui haja alguma possibilidade), mas sim da riqueza comercial e usurária. Ora, esta só encontra trabalho livre para comprar depois de ele ter sido separado, por um processo histórico, das suas condições objetivas de existência. É só então que encontra a possibilidade de comprar estas próprias condições. No sistema das corporações, por exemplo, onde a regulamentação prescreve o número de teares que um artesão pode utilizar, etc., o dinheiro que não seja ele próprio de origem corporativa, que não seja o dinheiro do mestre, não pode comprar os teares para os fazer trabalhar. Em suma, o instrumento faz de tal modo corpo com o próprio trabalho vivo - do qual parece ser o servo – que verdadeiramente não circula. O que permite à riqueza monetária tornar-se capital é o fato de encontrar perante si, por um lado, trabalhadores livres, por outro lado, as subsistências e os materiais, etc., que, outrora, de uma maneira ou de outra, haviam sido propriedade das massas. Estas estão agora desprovidas de tudo; por isso são doravante livres e vendáveis. Quanto à outra condição do trabalho - uma certa perícia, o instrumento como meio de trabalho - o capital encontra-a já pronta neste período preliminar ou primeiro, como resultado quer do sistema corporativo urbano quer da indústria doméstica ou dos ofícios conexos da agricultura. O processo histórico não é o resultado do capital, mas o seu pressuposto; é através dele que o capitalista vem seguidamente interpor-se como intermediário (histórico) entre a propriedade fundiária – ou, simplesmente, a propriedade - e o trabalho. A história ignora de todo as representações sentimentais segundo as quais o capitalista e o trabalhador constituíram associações: tão-pouco se encontram traços delas na formação do conceito de capital. Pode acontecer, de forma esporádica, que a manufatura se desenvolva .localmente ao lado dás corporações, num enquadramento que pertence ainda a um período absolutamente diferente, como, por exemplo, nas cidades italianas. Mas, para que o capital se torne o tipo predominante de uma época, as condições da sua gênese devem ser desenvolvidas não , só localmente, mas a uma grande escala(17).
É evidente (sobretudo para quem examina a época de que estamos a tratar) que o período de dissolução dos antigos modos de produção e das antigas relações dos trabalhadores com as condições objetivas do trabalho é, ao mesmo tempo, um período em que, por um lado, as fortunas monetárias conheceram já uma grande extensão e, por outro lado, continuam a aumentar e a expandir-se rapidamente, graças às mesmas circunstâncias que apressaram essa dissolução. As próprias fortunas em dinheiro são um dos fatores dessa dissolução, da mesma forma que esta condiciona a transformação dessas fortunas em capital. Mas a sua mera existência, nem mesmo a supremacia que possam ter atingido, não é de modo algum suficiente para engendrar essa dissolução e essa transformação em capital. Sem o que, a antiga Roma, Bizâncio, etc., teriam concluído a sua história, ou melhor: teriam iniciado uma nova fase da sua história, com o trabalho livre e o capital. A dissolução das antigas relações de propriedade esteve, também aí, ligada ao desenvolvimento da riqueza em dinheiro, do comércio, etc.; mas, em vez de levar à indústria, essa dissolução levou, na realidade, à supremacia do campo sobre a cidade.
Fica-se com uma idéia errada da gênese do capital se, se pensar que, na origem, ele acumulou meios de subsistência, instrumentos de trabalho e matérias-primas, ,.em suma, as condições objetivas do trabalho desligadas do solo e já combinadas com o trabalho humano(18). Ora, não é o capital que cria as condições 6bjectivas do trabalho. A sua origem deve-a ele a um fato simples: graças ao processo histórico que dissolve o antigo modo de produção, o valor constituído na forma de riqueza em dinheiro tem a faculdade de, por um lado, comprar as condições objetivas do trabalho e, por outro lado, trocar por dinheiro o trabalho vivo oferecido pelos trabalhadores tornados livres. Todos estes momentos existem; a sua separação é um produto histórico, um processo de dissolução, e é ele que confere ao dinheiro a faculdade de se transformar em capital. O próprio dinheiro participa ativamente neste processo, na medida em que nele intervém como um fator de separação extremamente enérgico. Contribui dessa forma para fazer nascer trabalhadores livres e despojados" prontos para serem tosquiados, não certamente criando-lhes as condições objetivas da sua existência, mas, pelo contrário, apressando a sua separação dessas condições, numa palavra, a sua despossessão. Assim, por exemplo, quando os grandes proprietários ingleses mandaram embora o seu séqüito, com o qual consumiam o sobreproduto da terra, quando, além, disso, os seus rendeiros expulsaram os Dequenos agricultores, etc., qual foi a conseqüência? Em primeiro lugar: uma massa de forças vivas foi lançada no mercado do trabalho, massa livre no duplo sentido da palavra: estes homens estavam libertos das antigas condições de clientela, de servidão e de serviço e, desprovidos de qualquer fortuna e qualquer modo de existência objetiva e material, estavam livres de toda e qualquer propriedade, sem outro recurso que não fosse vender a sua força de trabalho ou então procurar a sua subsistência na mendicidade, na vagabundagem e no roubo. A história mostra que eles começaram por tentar este último meio; mas foram desviados pela forca. o pelourinho e o chicote. e tomaram o estreito carreiro que leva ao mercado do trabalho. É assim que certos governos. por exemplo os de Henrique VII. de Henrique VIII, etc., surgem como precipitadores do processo de dissolução histórica e como os criadores das condições para a existência do capital. Por outro lado. as subsistências. etc., que anteriormente os proprietários fundiários consumiam com o seu séqüito estavam doravante à disposição do dinheiro, que. ao comprá-los, comprava, por seu intermédio. trabalho. .Q dinheiro não criou nem acumulou esses meios de subsistência: eles existiram, foram consumidos e reproduzidos antes de o serem por sua intervenção. O que havia de novo era esses meios de subsistência serem, a partir de então. lançados no mercado das trocas; é que eles já não serviam diretamente para alimentar o séqüito. etc.; é que, de valores de uso, tinham-se transformado em valores de troca, caindo assim sob o domínio e a supremacia da riqueza monetária. Outro tanto se pode dizer dos instrumentos de trabalho: o dinheiro não criou I nem a roda de fiar nem o tear. Mas. após terem sido separados das suas terras. fiandeiros e tecelões passaram com rodas e teares para sob o comando da riqueza monetária, etc. O capital tem uma única particularidade, a de reunir a massa de braços e instrumentos que encontra diante de si. Conglomera-os sob o seu comando. É tudo o que ele acumula realmente. Concentra trabalha-. dores e seus instrumentos em certos pontos. Trataremos desta questão a propósito daquilo a que se chama a acumulação do capital. Evidentemente. a riqueza monetária - como riqueza comercial apressou a dissolução das antigas relações de produção e permitiu, por exemplo, ao proprietário fundiário, como tão bem o mostrou A. Smith. trocar o seu trigo, o seu gado. etc., por valores de uso importados do estrangeiro. em vez de esbanjar com o seu séqüito os gêneros que ele mesmo produziu e de considerar como padrão da sua riqueza a multidão de seguidores que com ele consumiam.
A seus olhos, o dinheiro tinha dado superior uma significação ao valor de troca do seu rendimento. O mesmo fenômeno se deu com os rendeiros, já semi-capitalistas, ainda que de forma muito dissimulada. O desenvolvimento e personificado pelo do valor. de troca - favorecido dinheiro da classe comerciante - dissolve a produção que se centra principalmente no valor de uso imediato. do mesmo modo que dissolve as formas de propriedade correspondentes (relações entre o trabalho e as suas condições objetivas), apressando assim a criação do mercado do trabalho (que é preciso distinguir bem do mercado dos escravos). Todavia. esta ação do dinheiro só é possível graças à emulação dos oficios urbanos, que não assenta no capital e no trabalho assalariado mas sim na organização do trabalho em corporações, etc. O próprio trabalho urbano tinha criado os meios de produção para os quais as corporações se tinham tornado um estorvo; o mesmo acontecia com uma agricultura melhorada - ela própria em parte conseqüência do acréscimo de mercado oferecido aos produtos agrícolas pelas cidades uma agricultura que entrava em choque com as condições antiquadas da propriedade fundiária. Outras circunstâncias – por exemplo, o aumento, no século XVI, da massa das mercadorias e do dinheiro em circulação. a criação de novas necessidades. a elevação do valor de troca dos produtos locais. a alta dos preços. etc. - apressaram a dissolução das antigas relações de produção, a separação do trabalhador. atual ou virtual, das condições objetivas da sua reprodução: tudo isso favoreceu a transformação do dinheiro em capital.
Nada de mais inepto. por conseguinte, do que imaginar que, na sua origem. o capital tinha criado e acumulado as condições objetivas da produção meios de subsistência. matérias-primas, instrumentos - para as oferecer ao trabalhador que delas estava privado. Muito pelo contrário, a riqueza monetária ajudou, em parte a despojar dessas condições as forças de trabalho dos indivíduos válidos; em parte. esse processo de separação desenrolou-se sem a intervenção do dinheiro. Uma vez atingido um certo nível neste desenvolvimento, o dinheiro pôde interpor-se como mediador entre as condições objetivas da vida assim libertadas e as forças de trabalho tornadas livres ao mesmo tempo que desprovidas de tudo. O dinheiro estava em situação de comprar essas condições e, com isso, os trabalhadores. Quanto à- formação da própria riqueza monetária, antes da sua transformação em capital, isso pertence à pré-história da economia burguesa. A usura, o comércio, a vida urbana e o sistema fiscal, que se desenvolvem paralelamente, desempenharam o papel principal. O aforro dos rendeiros, dos camponeses, etc., contribuiu para isso, mas em menor grau.
Isto mostra-nos ainda que o desenvolvimento da troca e do valor de troca veiculado pelo comércio, que toma dente, o nome do seu título papel que de mediador - na profissão comercial, o dinheiro adquire uma existência ao mesmo – independente, ao mesmo tempo que a circulação, arrasta consigo a dissolução dos laços de propriedade que unem o trabalho às suas condições de existência; tem igualmente como conseqüência o fato de o próprio trabalho ser colocado entre as condições objetivas da produção. Tudo isto exprime ainda a predominância do valor de uso e da produção centrada no uso imediato, bem como a existência de uma comunidade real que é a condição direta dessa produção. A produção fundada na troca destes valores parece estabelecer, como vimos no capítulo anterior, a propriedade como pura emanação do trabalho e a propriedade privada do produto do trabalho pessoal como a condição mesma dessa comunidade. Mas é o trabalho, condição geral da riqueza, que pressupõe e produz a separação entre o trabalho e as suas condições objetivas. Essa troca de equivalentes não é mais que a aparência superficial de uma produção baseada na apropriação do trabalho de outrem. Não há troca, mas aparência de troca. Este sistema apóia-se no capital, que é a ,sua base, e se o considerarmos isolado do seu fundamento, como aliás ele se apresenta à superfície, com todo o aspecto de um sistema independente, vemos que ele não é mais do que aparência, mas aparência necessária. Não há portanto nada de surpreendente em o sistema dos valores de troca troca de equivalentes medidos pelo trabalho se desintegrar subitamente ou, melhor, descobrir os seus fundamentos ocultos e revelar ser apropriação de trabalho de ou"trem sem troca, separação total entre o trabalho e a propriedade. Em verdade, a predominância e a produção dos valores de troca pressupõem que a própria força de trabalho de outrem é um valor de troca, por ,.outras palavras; que a força de trabalho viva está separada das suas condições objetivas, que ela se encontra em relação com estas com a sua própria objectividade - como com uma propriedade alheia. Estas condições e esta objectividade são, numa palavra, o capital. É só nos períodos de desintegração do feudalismo, quando as lutas são ainda intestinas -:- como na Inglaterra no século XIV e na primeira metade do século XV que se pode situar a idade de ouro do trabalho em vias de emancipação. Para que o trabalho se aproprie de novo das suas condições objetivas, e necessário que um outro sistema venha substituir o sistema da troca privada, que, como vimos, impõe a troca do trabalho materializado pela força de trabalho e, desse modo, a apropriação do trabalho sem contra partida.
Vejamos como, historicamente e muito concretamente, o dinheiro se transforma em capital. O mercador por exemplo, põe a trabalhar para si vários fiandeiros e tecelões que, até então, tinham praticado no campo a fiação e a tecelagem como profissão subsidiária: esta ocupação secundária torna-se nessa altura para eles o ganha-pão? principal. A partir de então, eles estão entregues ao mercador, que assim assegura os seus serviços e os submete à sua autoridade como trabalhadores assalariados. O passo seguinte é arrancá-los aos seus lares para os reunir num local de trabalho. É um processo muito simples, no qual, evidentemente, o mercador não preparou matérias-primas nem instrumentos, nem tão-pouco os meios de subsistência, para o fiandeiro e o tecelão. Tudo o que ele fez foi confiná-los pouco a pouco num tipo de trabalho em que o seu destino depende da venda, do comprador, do mercador, e em que eles acabam por produzir unicamente para e por este. Originariamente, ele adquirira o seu trabalho pela simples compra do seu produto: mal eles são obrigados a limitar-se a produzir um valor de troca, e, portanto, diretamente valores de troca, mal se vêem obrigados a trocar por dinheiro todo o seu trabalho, para poderem prolongar a sua existência, caem sob a sua autoridade: acaba-se a ilusão que fazia crer que eles vendiam produtos ao mercador. Este compra-lhes o trabalho e retira-lhes a propriedade do produto, primeiro, e do instrumento, em seguida; ou então deixa-lhes um e outro como propriedade fictícia, a fim de diminuir as suas próprias despesas de produção.
MANUFATIRA E CAPITAL
Vejamos agora as primeiríssimas formas históricas em que o capital. surgindo esporadicamente e localmente ao lado dos antigos modos de produção, os destrói pouco a pouco e por todo o lado. Em primeiro lugar, a manufatura propriamente dita (não é ainda a fábrica), que nasce onde se produz em massa para a exportação, para o mercado externo, portanto, na base de um comércio marítimo e terrestre, em pontos particularmente nevrálgicos. como nas cidades italianas, em Constantinopla, nas cidades flamengas, holandesas, certas cidades espanholas como Barcelona, etc. A manufatura assenhoreía-se, em primeiro lugar, não dos ofícios ditos urbanos, mas das atividades secundárias do campo, fiação e tecelagem. trabalhos que requerem muito pouca perícia artesanal ou formação artística. Estabelece os seus primeiros centros não nas cidades, mas no campo. em aldeias que escapam ao regime das corporações, etc. Exceptuam-se apenas os grandes empórios comerciais, que têm a sua base num mercado externo - manufaturas diretamente ligadas à navegação, ou mesmo aos próprios estaleiros navais, etc., cuja produção é, por assim dizer espontaneamente, centrada na valor de troca. Se a manufatura recruta largamente no artesanato rural, é porque os ofícios urbanos, para serem explorados industrialmente, requerem um elevado nível de produção. O mesmo se passa com qualquer outro ramo de produção – fábricas de vidro e de metal. Serrações, etc. - que exija uma maior concentração das forças de trabalho, que empregue à partida mais recursos naturais, que tenda para a produção em massa e pressuponha, portanto, a concentração dos instrumentos de trabalho. As fábricas de papel, etc., entram nesta categoria. Em seguida, o aparecimento do rendeiro e a transformação dos agricultores em jornaleiros livres. Conquanto esta transformação se realize no campo na sua forma mais pura e levada às últimas conseqüências, começa aí muito cedo. Por isso os Antigos. que nunca souberam ultrapassar o nível da destreza artística próprio da cidade, jamais conseguiram chegar à grande indústria. Esta pressupõe, em primeiro lugar. que o campo seja arrastado, numa escala muito grande, para a produção não de valores de uso, mas de valores de troca. As fábricas de vidro, de papel, de metal, etc., não podem funcionar pelos métodos das corporações. Elas requerem a produção em massa, o escoamento num mercado universal, meios financeiros nas mãos do empresário - não que este crie as condições subjetivas ou objetivas, mas porque, sob as antigas relações de propriedade e de produção, estas condições não podem ser reunidas. Progressivamente. a dissolução do sistema feudal e o incremento da manufatura transformam todos os ramos da produção em empresas do capital. Em verdade, as próprias cidades oferecem na pessoa dos jornaleiros, dos trabalhadores não especializados, etc., que escapam ao controlo das corporações, um elemento construtivo do trabalho assalariado.
Vimos que a transformação do dinheiro em capital um processo histórico que teve por resultado separar o trabalhador das condições objetivas do trabalho e conferir a estas uma existência autónoma face ao trabalhador. Depois, uma vez nascido o capital, esse processo tem por efeito subjugar toda a produção , desenvolver e completar por toda a parte a separação entre o trabalho e a propriedade, entre o trabalho e as condições objetivas do trabalho. A nossa análise mostrará ainda que, o capital destrói o trabalho artesanal, a pequena propriedade do camponês trabalhador, etc e que se destrói a si mesmo nas formas em que não aparece um contraste com o trabalho, ou seja, no pequeno capital e nos tipos intermédios e híbridos entre a os modos de produção antigos (ou que se renovaram com base no capital); que se destrói a si mesmo nas formas de produção clássicas que lhe são próprias. -
A única acumulação que está pressuposta na gênese do capital é a da fortuna monetária, que, em si e por si, é absolutamente improdutiva, porquanto resulta da simples circulação e pertence apenas à circulação do capital. O capital cria rapidamente o seu mercado interno liquidando os ofícios acessórios do campo: fia e tece para toda a gente, veste toda a gente, em suma, dá a todos os produtos outrora confeccionados como valores de uso a forma de valores de troca. Este processo é a conseqüência natural da separação entre os trabalhadores e a terra e a propriedade (mesmo sob a forma da servidão) das condições de produção.
O objetivo imediato e principal da produção dos ofícios citadinos é a subsistência dos artesã os enquanto tais, logo o valor de uso e não o enriquecimento; não é o valor de troca como tal, embora este artesanato seja essencialmente fundado na troca e na criação de valores de troca. A produção está por toda a parte subordinada a um consumo preexistente, a oferta é função da procura e só lentamente se expande.
Por, conseqüência, o processo de valorização do capital tem como resultado principal a produção de capitalistas e de trabalhadores assalariados. É o que a economia simplista, que só toma em consideração as coisas produzidas, esquece completamente. Neste processo, o trabalho materializado afirma-se ao mesmo tempo como não-materialidade do trabalhador, por outras palavras, como subjetividade de uma realidade oposta ao trabalhador, como propriedade de uma vontade estranha àquele que trabalha. Daqui se infere- que o capital é ao mesmo tempo, e necessariamente, personificado pelo capitalista e que é absolutamente errado pensar, como o fazem certos socialistas, que nós precisamos do capital mas não dos capitalistas. O conceito de capital implica que as condições objetivas do trabalho e produzidas pelo trabalho se personificam face ao trabalho, por outras palavras, que estão estabelecidas como propriedade de uma pessoa estranha ao trabalhador: o conceito de capital implica o de capitalista. Não é menor o erro, por exemplo, dos filólogos que falam de capital na Antiguidade e de capitalistas romanos e gregos. É como se se dissesse" que em Roma e na Grécia o trabalho era livre, o que esses senhores não ousariam certamente afirmar. Se nós hoje chamamos capitalistas aos proprietários de plantações na América e eles são-no, de fato - é porque se trata de uma anomalia na história de um mercado mundial baseado no trabalho livre. Se nos ativermos à palavra «capital» - que não se encontra nos Antigos(20) - então as hordas que ainda hoje vemos deslocarem-se com os seus rebanhos nas estepes da Asia Central seriam grandes capitalistas, já que «capital» significava primitivamente gado, e é por isso que o contrato de métairie ainda freqüente na França meridional se chama excepcionalmente «bail de bestes à cheptel». Em mau latim, os nossos capitalistas ou capitales homines seriam os que debent censum de capite.
O conceito de capital é mais difícil de definir do que o de dinheiro. O capital é, por essência, o capitalista; mas ao mesmo tempo o capital difere. da existência do capitalista: é a produção que é em, tudo é por tudo o capital. Veremos, além disso, que o capital engloba muitos elementos que parecem não pertencer ao conceito. Por exemplo, o capital pode emprestar-se, acumular-se. etc. Em todas estas determinações ele parece não ser mais do que uma coisa e confundir-se inteiramente com a matéria de que é feito. Mas tudo isso será esclarecido no decorrer da análise.
O dinheiro conserva sempre a mesma forma na mesma substância e por isso é mais facilmente considerado como uma coisa. Mas esta coisa, ora mercadoria, ora moeda, etc., pode representar capital ou rendimento, etc. Por isso, mesmo os economistas compreendem que o dinheiro não é algo de concreto, de palpável, mas que uma mesma coisa pode ser concebida ora sob a determinação do capital, ora sob uma determinação diferente, ou mesmo contrária; e que ela é ou não é capital consoante a sua determinação. O dinheiro exprime evidentemente uma relação determinada e, como tal, só pode ser uma relação de produção.
Notas
5 A idéia abstrata de uma comunidade cujos membros nada têm em comum, salvo, eventualmente, a língua, etc.. é, evidentemente. produto de circunstâncias históricas muito mais tardias.
6 De fato, poderemos limitar-nos a falar aqui da propriedade primitiva do solo. pois que, entre os povos pastoris, a propriedade dos produtos naturais da terra - dos carneiros, por exemplo - significa ao mesmo tempo a propriedade das pastagens que eles percorrem. De um modo geral, a propriedade do s010 compreende li dos seus produtos orgânicos. Quando o homem é conquistado com o 50]0 como acessório orgânico deste, faz parte integrante das condições de produção. Assim nascem a escravatura e a servidão, que rapidamente adulteram e modificam as formas primitivas de todas as comunidades e delas se tornam mesmo a base. A organização !:iimpJes adquire assim uma significação negativa.
7 As habitações, no entanto, nem que sejam os carros Citas, são sempre possessões individuais.
8 Originariamente, é certo, a propriedade é móvel, pois homem começa por se apoderar dos frutos da terra, nos quais têm que incluir-se, entre outros, os animais, particularmente os que se podem domesticar. Todavia, este estado - caça, pesca, pastorícia, apanha dos frutos das árvores – pressupõe ele também, a apropriação do solo para fixação, para nomadização ou então como pastagem dos para os animais, etc.
9 A tudo isto teremos de voltar de forma mais desenvolvida e mais aprofundada.
10 O sistema manufatureiro do Oriente antigo pode já ser examinado na primeira fábrica.
11 Este ponto terá que ser aprofundado.os ricos
12 É a etapa em que o instrumento está subordinado ao trabalho individual; é um nível particularmente limitado do desenvolvimento da. produtividade do trabalho.
13 «Vender-se em caso de necessidade, a si e aos seus, era um direito tão geral como deplorável; era corrente no Norte, tal como entre os Gregos e na Ásia. O direito do credor de se apoderar do devedor em falta e dele fazer seu escravo, enfim, de se indemnizar, tanto quanto possível, quer pelo seu trabalho quer pela venda da sua pessoa, não era muito menos universal » (Niebuhr, I. c., t. I p. 600.) Niebuhr declara noutra passagem que os autores gregos que escreviam na época de Augusto tiveram dificuldade em compreender a relação entre os patrícios e os plebeus e que confundiram essa relação com a existente entre os patranos e os clientes. Este erro derivava do fato de que eles «escreviam num tempo em que os ricos e os pobres constituíam as lí"icas verdadeiras classes de cidadão, em que o indigente, por mais nobre que fosse sua origem, tinha necessidade de um protetor; em que o milionário, mesmo quo:: fosse um liberto, era como tal procurado. Só com muita dificuld3.dc encontravam ainda estes historiadores a1guns vestígios de dependi:ncia hereditária.» (L. c., t. L p. 620.)
Nas duas classes - entre os metecos e os libertos e seus descendentes - havia operários, e o plebeu que renunciava à agricultura gozava dos mesmos direitos de cidadães que estes artesãos. Tão-pouco lhes faltavam as honras das corporações reconhecidas pela lei. os seus mesteres eram tão considerados que se apontava Numa como seu fundador; havia nove mesteres: 05 flautistas, os ourives, os carpinteiro!, os tintureiros, O~ corrceiros, os curtidores, os caldei reiros, os oJeiros e o nono mester compreendia todas as outras profissões em gcnl1 (n.) Aqueles de entre c!es que eram falsos burgueses independentes, os isopolitas que se não haviam oferecido a nenhum patrono (se é Que existiu t:11 direito) ~, além disso, os d.,:sceodentes de clientes cujo laço se tinha rompido pela extinção da casa dos seus palronos, todos estes foram sempre, sem dúvida a!sum:t, tão alheios às discórdias dos cidadãos primitivos e da comuna como os mestcirais de Florença às dissensões que dividiram as casas dos Guelfos c dos Ghibelinos. QU:1oto aos clientes, é provível que eles estivessem ainda todos às ordem dos patrícios.» (L. c.. .0. 623.) H comum
14 A dissolução das formas ainda mais antigas de propriedade e de sociedades comunitária é um fenômeno evidente.
15 Pois, neste caso, o capital pressuposto como condição do trabalho assalariado é produto dele; enquanto condição do trabalho assalariado, ele surge como seu próprio pressuposto ao mesmo tempo que pressuposto do trabalho por ele criado.
16 Uma vez que. o capital e o trabalho assalariado são concebidos como origem de si mesmos, como a base e a condição da própria produção, é-se levado a pensar que, além do fundo de matérias-primas e de meios de trabalho necessários para que o trabalhador se reproduza a si mesmo e fabrique as suas subsistências, ou seja, realize o trabalho necessário, o capitalista possui um fundo de matérias-primas e de meios de trabalho graças ao qual o trabalhador realiza o seu sobretrabalho, isto é, o lucro do capitalista. Levando a análise mais longe, descobre-se que O trabalhador está constantemente a criar um duplo fundo para o capitalista ou sob a forma de capital: uma parte desse fundo satisfaz constantemente as condições de existência do trabalhador e a outra, as do capital. Vimos que o capital excedente trabalho – por comparação com a sua relação antediluviana com o trabalho, cada elemento se apropria de todo o capital real e presente do qual é adquirido unicamente. como trabalho concreto de outrem, sem troca e sem o menor equivalente.
17 Isso não impede que, aquando da dissolução das corporações. um ou outro mestre se transforma em capitalista industrial; mas esses casos são naturalmente raros. O sistema das corpo rações desaparece no seu conjunto - tanto o mestre como o companheiro quando o capitalista e o trabalhador surgem.
19 Facilmente se verificará o absurdo deste círculo vicioso: por um lado, os trabalhadores que o capital tem que pôr a trabalhar para se afirmar como capital precisam primeiro de ser criados. postos no mundo, graças à sua acumulação; têm pois de esperar que o capital lhes grite: Sedel. Por outro lado o mesmo capital é incapaz de acumular sem o trabalho de outrem: apto quando muito a acumular o seu próprio trabalho, ele só poderia existir sob forma de não-capital e de não-dinheiro. Efetivamente, antes da existência do capital, o trabalho só pode valorizar-se sob a forma de artesanato, de pequena agricultura, etc., em suma, sob formas que pouco ou nada acumulam e que apenas admitem um sobreproduto de pouco importância, em grande parte destinado a ser consumido. Examinaremos noutro local esta idéia de acumulação.
19 Todavia, iremos encontrar nos Gregos a palavra arkaia, que corresponde à principalis summa rei creditae dos Romanos.
Tradução de Alberto Saraiva sobre a versão francesa de Maximilien Rubel, in K. Marx. Oeuvres: Economie II, . Bibliothéque de la Pléiade. Editions Gatlimard. Paris, 1968.
PROPRIEDADE E APROPRIAÇÃO
Aquilo a que o sr. Proudhon chama a gênese extra-econômica da propriedade - com o quer precisamente é referir-se à propriedade fundiária - é a relação pré-burguesa do indivíduo face às condições objetivas do trabalho, e, em primeiro lugar, face às suas condições objetivas naturais. Quado que o sujeito que trabalha é um indivíduo natural, uma realidade natural, a primeira condição objetiva do seu trabalho surge como natureza, terra, como o seu corpo não orgânico, ele próprio não é apenas um corpo orgânico: é essa natureza não orgânica enquanto sujeito. Esta condição não é produto do indivíduo; ele encontra-a acabada perante si, como uma realidade natural anterior e exterior a ele. Antes de prosseguirmos a nossa análise, uma observação: o pobre Proudhon não só podia como devia igualmente denunciar a origem não econômica do capital e do, trabalho assalariado enquanto formas da propriedade. Efetivamente, se o operário encontra perante si e de si separadas as condições objetivas do trabalho sob a forma de capital e se o capitalista encontra perante si o trabalhador privado de qualquer propriedade, o trabalhador abstrato, isso acontece porque, tal como se opera, a troca entre o valor e o trabalho vivo pressupõe um processo histórico. Embora o .capital e o trabalho assalariado reproduzam eles próprios esta relação e a amadureçam em toda a sua profundidade e extensão objetiva, eles pressupõem, repitamo-lo, um processo histórico que constitui a sua gênese. Por outras palavras: a gênese extra-econômica da propriedade não significa mais do que a gênese histórica da economia burguesa, das formas de produção que se exprimem teoricamente e idealmente nas e pelas categorias da economia política. Dizer que a cada fase da história pré-burguesa corresponde a sua economia, dizer que o seu movimento tem uma base econômica é, no fundo, afirmar uma tautologia pura. É dizer que a vida do homem foi sempre fundada, de uma maneira ou de outra, na produção, na produção social, cujas relações são precisamente designadas por nós como relações econômicas.
As condições primitivas da produção não podem ser elas próprias produtos ou resultados da produção. do mesmo modo aliás e é a mesma coisa - que a reprodução de seres humanos. cujo número aumenta pelo processo natural dos sexos. Se esta reprodução aparece, por um lado. como apropriação dos objetos pelos sujeitos, aparece, por outro lado, como formação. subjugação dos objetos a um fim subjetivo, sua transformação em resultados e em receptáculos .da atividade subjetiva. O que requer uma explicação não é a unidade dos indivíduos ativos e das condições não orgânicas do seu metabolismo com a natureza de que se apropriam: esta unidade não é de modo nenhum resultado de um processo histórico. O que precisa de ser explicado é antes a separação entre a existência humana ativa e as condições- não orgânicas da existência. separação que é perfeitamente visível na reação entre o trabalho assalariado e o capital. Ela não se verifica nem no sistema escravagista nem no feudalismo: aí, uma parte da sociedade é tratada pela outra como a condição não orgânica e natural da sua própria reprodução. O escravo não está em nenhuma relação com as condições objetivas do seu trabalho; pelo contrário, na pessoa do escravo como na do serve, o próprio trabalho é considerado como condição não orgânica da produção, ao mesmo título que o trabalho dos outros seres naturais, ao lado do gado ou como acessório do solo. O mesmo é dizer que as condições primitivas da produção surgem como os pressupostos naturais da existência natural do produtor; do mesmo modo, o seu corpo vivo, que ele reproduz e desenvolve realmente, aparece não como obra sua mas como a sua própria condição: a sua existência (física) é um pressuposto natural, que ele não criou. Estas condições naturais de existência, com as quais ele se encontra em relação como seu próprio corpo não orgânico, são elas mesmas duplas: 1. de natureza subjetiva; 2. de natureza objetiva. Ele vê-se membro de uma família. de um clã. de uma tribo, etc., as quais, misturando-se e opondo-se a outras, adoptam formas historicamente diferentes; e, como tal, ele encontra-se em relação com uma natureza determinada (dígamo-lo de novo: a terra. o solo) como sua própria existência não orgânica enquanto condição da sua produção e da sua reprodução. Membro natural da comunidade, ele tem a sua parte .la propriedade comum, possui uma fração particular dela, tal como o cidadão romano, por direito de nascença, tem um direito ideal (pelo menos) sobre o ager publicus e um direito real sobre tantas Jeiras de terra, etc. A sua propriedade - isto é, as condições naturais da sua produção, com as quais ele está relacionado como sendo as suas próprias - é mediatizada pela sua qualidade de. membro natural de uma comunidade. Por exemplo, é evidente que o indivíduo isolado está em relação com a sua língua como sua unicamente enquanto é um membro natural de uma comunidade humana. Uma língua produto de um s6 indivíduo é um absurdo. O mesmo se pode dizer da propriedade. A própria linguagem é produto de uma comunidade tanto como, sob outros aspectos, é a existência mesma da comunidade. o modo de expressão espontâneo dessa comunidade(5).
A produção e a propriedade comuns como se vêem, por exemplo, no Peru são manifestamente uma forma secundária; foram introduzidas e transmitidas por tribos conquistadoras que conheceram elas próprias a propriedade e a produção comuns sob. uma forma antiga e mais simples, tal como se encontra na índia e entre os Eslavos. Do mesmo modo, a forma que encontramos nos Geltas, no país de Gales, por exemplo, parece ser uma forma herdada, secundária, introduzi da por conquistadores nas tribos conquistadas, relegadas nessa altura para um nível inferior. O surgimento mais tardio destes sistemas mostra que eles foram metodicamente elaborados e completados a partir de um centro supremo. Assim, o feudalismo introduzido em Inglaterra era mais acabado na sua forma que o feudalismo que nascera em França de modo espontâneo.
Entre as tribos de pastores nômadas - e todos os povos pastoris são, na origem, nômadas - a terra, bem como outras condições naturais, aparece como um elemento ilimitado, por exemplo nas estepes e nos elevados planaltos da Asia. Ela é entregue como pastagem aos rebanhos que a «consomem» para, por seu turno, servirem de subsistência aos povos pastoris:- Estes encontram-se em relação com a terra como propriedade sua, embora jamais lhe dêem um estatuto fixo. Assim, os terrenos de caça entre as tribos índias selvagens da América. A tribo considera uma dada região como seu terreno de caça, que defende pela violência contra outras tribos; ou então tenta expulsar outras tribos das terras que elas defendem. De fato, entre as tribos de pastores nômadas, a comuna está sempre reunida - migração, caravana, horda - e as formas hierárquicas de dominação e subordinação desenvolvem-se a partir das condições deste modo de existência- Aqui, só o rebanho é possuído e reproduzido: não a terra, todavia sempre explorada em comum temporariamente, de cada vez que é escolhido um lugar de permanência. O único obstáculo (passando imediatamente aos povos sedentários) que a comunidade pode encontrar na sua atitude possessiva em relação às condições naturais, à terra, é uma outra comunidade, que as reclama como seu próprio corpo não orgânico. Por isso é a guerra uma das atividades primordiais da comunidade natural, simultaneamente para defender a propriedade adquirida . e para adquirir novas terras.(6)
PRODUÇÃO E PROPRIEDADE
Originariamente, portanto, a propriedade não significa mais do que o comportamento do homem face às suas condições naturais de produção como fazendo com ele um só, como sendo suas, e tais quais foram dadas conjuntamente com a sua própria existência. Fundamentos naturais da sua própria pessoa, elas constituem, por assim dizer, o prolongamento do seu próprio corpo. Na realidade, não existe um comportamento face às condições da produção; o indivíduo tem aqui uma existência dupla: subjetivamente, enquanto ele mesmo, e objetivamente, nas condições naturais e não orgânicas da sua existência. Também as formas destas condições são duplas: 1. o indivíduo existe como membro de uma comunidade, a qual, na sua forma primitiva e com modificações mais ou menos importantes, é uma instituição tribal; 2. por intermédio da sua comunidade, o indivíduo comporta-se como proprietário em relação ao solo. Propriedade colectiva do -solo, ao mesmo tempo que posse individual pelo membro particular da comuna; ou então há partilha dos frutos, enquanto a terra e a uma o cultivo permanecem comuns. Pertencer sociedade natural. a uma tribo, etc., é, para o indivíduo, uma condição natural do seu trabalho. E já já esta pertença que, por exemplo, determina a sua língua, etc.; a sua própria existência produtiva só é possível nesta condição. Dela igualmente decorre a sua existência subjetiva, tanto como depende do fato de ele estar em relação com a terra como sua oficina.8
Por conseguinte, quem diz propriedade diz pertença a uma tribo (comunidade), diz existência simultaneamente subjetiva e objetiva. O comportamento da comunidade em relação ao solo, seu corpo não orgânico, determina o comportamento do indivíduo em rela" ção ao solo, sua condição exterior primeira. A terra é,ao mesmo tempo, matéria-prima, instrumento .e fruto, que faz parte do indivíduo . em suma, o pressuposto e é o seu modo de existência.
Nós reduzimos esta. propriedade ao comportamento do sujeito face às condições da produção. Perguntar-se-á: por que não às condições do consumo, já que, originariamente, a atividade produtora do indivíduo se limita à reprodução do seu próprio corpo pela apropriação de objetos que a própria natureza prepara e oferece? Mas, mesmo quando se trata apenas de encontrar, de descobrir, torna-se imediatamente necessário um trabalho: um esforço – como na caça, na pesca, na pastorícia; é preciso que o sujeito produza (isto é, desenvolva) certas aptidões. Se circunstâncias há em que, sem qualquer instrumento (portanto, sem. a ajuda de produtos do trabalho destinados, eles próprios, à produção). O homem pode apropriar-se daquilo que se lhe oferece sem lhe mudar a forma (o que acontece ainda na pastorícia), é preciso considerá-Ias, mesmo no estado primitivo, como transitórias e de . modo nenhum normais. De resto, condições da produção englobam as matérias que se consomem diretamente sem trabalho (frutos, animais, etc.); em suma, o próprio fundo de consumo aparece como parte integrante do fundo primitivo da produção.
A condição fundamental da propriedade fundada na instituição da tribo (resultado da primitiva dissolução da comunidade) consiste na pertença à tribo. Esta condição tem como conseqüência o fato de as tribos estrangeiras, conquistadas e submetidas, serem despojadas da sua propriedade e colocadas, elas próprias, entre as condições não orgânicas dá reprodução de que o conquistador se apropria. A escravatura e a servidão resultam do ulterior desenvolvimento da propriedade fundada na instituição da tribo. Necessariamente modificam todas as formas dessa propriedade, sendo, no entanto, a do tipo asiático a menos afetada. A unidade autárcica da manufatura e da agricultura é o fundamento deste tipo de propriedade, de tal modo que as conquistas se tornam menos necessárias do que quando a propriedade fundiária e a agricultura predominam de forma exclusiva. De resto, tal como nesta forma, o indivíduo isolado jamais se torna proprietário, mas apenas possuidor. No fundo, ele próprio é a propriedade, o escravo daquele que personifica a unidade da comuna; a escravatura não suprime aqui as condições do trabalho, nem tão-pouco modifica a sua relação fundamental.
Eis outro ponto de agora em diante esclarecido:
Na medida em que a propriedade não é mais que o comportamento consciente de cada indivíduo – legalmente instituído, proclamado e garantido em – relação às suas condições de produção, na medida, portanto, em que a existência do produtor aparece entre as condições objetivas que lhe pertencem, esta forma de propriedade realiza-se exclusivamente através da própria produção. A apropriação con_creta. faz-se não numa relação teórica, mas numa relação ativa, real, com essas condições, que são então estatuídas como as condições mesmas da sua atividade subjetiva.
Daqui resulta. Entre outras coisas, que estas condições mudam. Só a atividade da caça faz com que um território se torne um terreno de caça: só pela agricultura se torna o solo o prolongamento do corpo do indivíduo. Se os cidadãos trabalham os campos sob. as muralhas de Roma por fim construí da. é porque as condições da comunidade mudaram. O objetivo de todas estas comunidades é a conservação, por outras palavras, a reprodução dos indivíduos que as constituem enquanto proprietários, reprodução que visa o modo de existência objetiva que molda o comportamento dos membros uns em relação aos outros e, portanto, a própria comuna. Mas. ao mesmo tempo e necessariamente, esta reprodução cria novas formas e destrói as antigas; por exemplo, quando cada indivíduo há-de possuir tantos acres mesmo que a população vá aumentando e que só a colonização possa obviar a isso, o que torna inevitável a guerra de conquista, a qual arrasta a caça aos escravos, etc. De onde o alargamento do ager publicus e a ascensão dos patrícios, que representam a comunidade, etc. Assim, a conservação da antiga comunidade implica a ruína das condições em que assenta e transforma-se no seu contrário. Suponhamos, por exemplo. que. num mesmo espaço, pode ser aumentada a produtividade pelo desenvolvimento das forças produtivas (na agricultura tradicional, este desenvolvimento atinge o cúmulo da lentidão): daí resultariam novos modos. novas combinações de trabalho, o emprego de uma grande parte do dia em outras tarefas. Isso significaria que as anteriores condições econômicas da comunidade estariam ultrapassadas. No ato da reprodução, não são só as condições objetivas que mudam (a aldeia torna-se cidade; a floresta virgem campo desbravado; etc), mas os próprios produtores, desenvolvendo novas qualidades transformando-se, por sua vez, pelo trabalho, tornando-se seres novos, formando novas forças e novas idéias, novos modos de comunicação, novas necessidades, uma nova linguagem. Quanto mais ligado às tradições se conserva o modo de produção longo na agricultura, o tempo é-o ainda mais na forma oriental, que combina a agricultura e a manufatura por outras palavras. quanto mais imutável é o processo real da apropriação e n:ais constantes são as antigas formas de propriedade, tanto mais estagnada é a comunidade. Quando os membros da comuna, tornados proprietários privados, adquiriram uma existência distinta na comuna urbana e como possuidores do território urbano, surgiram as condições em que o indivíduo pode perder a sua propriedade: é a dualidade de uma relação em que ele é cidadão a parte igual. membro da comuna, proprietário. Na forma oriental, este risco é quase inexistente, salvo em conseqüência de circunstâncias inteiramente exteriores, já que a relação de um membro individual com a sua comuna nunca é suficientemente livre para que ele se arrisque a perder o laço objetivo e econômico que a ela o liga. Aí, o indivíduo faz corpo com a sua comuna. Isso resulta, entre outras coisas, do fato de a manufatura e a agricultura, a cidade (a aldeia) e o campo estarem unidos. Entre os Antigos. a manufatura é considerada como uma decadência (é ocupação para os escravos libertos, os clientes. os metecos), etc. Este desenvolvimento do trabalho produtivo (libertado da sua submissão à agricultura doméstica, como trabalho de libertos destinado apenas à agricultura e à guerra, ou à manufatura limitada ao culto religioso e à comunidade - construção de casas, estradas e templos) verifica-se necessariamente graças ao comércio externo, aos escravos. à necessidade de trocar o sobreproduto, etc. Ele dissolve o modo de produção que serve de fundamento à comunidade e ao cidadão objetivamente individualizado. ou seja, ao Romano, ao Grego, etc. A troca produz o mesmo efeito, tal como o endividamento, etc.
A primitiva unidade entre uma forma particular da comunidade (tribal) e o modo de apropriação ou o comportamento face às condições objetivas da produção enquanto natureza, enquanto preexistência objetiva do indivíduo mediatizada pela comuna - essa unidade revelada pela forma particular da propriedade manifesta-se concretamente no modo de produção determinado. Este modo surge ao mesmo tempo como o comportamento dos indivíduos entre si e como o seu comportamento ativo para com a natureza não orgânica do se\! modo de trabalho determinado (que é sempre uma atividade familiar e. frequentemente, um trabalho da comuna). A própria comunidade aparece como a primeira grande força produtiva. Consoante o modo particul,ar das condições de trabalho (por exemplo, criação de gado, agricultura). vemos desenvolver-se um modo particular de produção e forças produtivas particulares, tento subjetivas faculdades dos indivíduos como objetivas.
DISSOLUÇÃO DAS FORMAS PRIMITIVAS
Um certo nível de desenvolvimento das forças produtivas dos sujeitos que trabalham nível a que correspondem as relações destes sujeitos entre si e para com a natureza eis no que se resumem. em última instância, a sua comunidade e a propriedade nela fundada. Até um certo ponto, há reprodução e, depois, dissolução.
Tal é o primitivo sentido da propriedade nas suas formas asiática, eslava, antiga e germânica: o comportamento do sujeito que trabalha (produz ou se reproduz) face às condições da sua produção ou da sua reprodução, de que se apropria. As formas da propriedade particularizam-se segundo as condições dessa produção. Esta tem por único objetivo a reprodução dos produtores em e com as suas condições objetivas . de existência. O comportamento do indivíduo enquanto proprietário estado pressuposto, que não é resultado trabalho, isto é, da produção implica um certo modo de vida como membro de uma tribo ou de uma comunidade (da qual o próprio sujeito é, até certo Ponto, propriedade). Consideremos a escravatura, a servidão, etc., onde, aos olhos de um terceiro ou de uma comunidade, o trabalhador figura, ele próprio, entre as condições naturais da produção (isto passa-se assim apenas na perspectiva europeia e não, por exemplo, na escravatura geral no Oriente). Aqui, a propriedade deixo de ser o comportamento do trabalhador em relação às condições objetivas do seu trabalho. Esta escravatura, esta servidão são sempre secundárias, nunca primárias; trata-se de conseqüências necessárias e tardias da propriedade fundada na comunidade e no trabalho na comunidade. Evidentemente, é muito fácil imaginar um homem possante, fisicamente superior, que, após dominar o animal, domina o homem e o força a caçar para si, numa palavra, que se serve dele como de uma condição natural para a sua reprodução (reduzindo-se nessa altura o seu próprio trabalho a exercer o poder, etc.) exatamente como se se tratasse de qualquer outra espécie natural. Tal perspectiva é idiota: ela seria justa se se considerassem organizações tribais ou sociedades comunais determinadas; mas ela parte do desenvolvimento de indivíduos isolados. Ora. é só através do processo histórico que o homem se particulariza. Primitivamente, ele aparece como um ser genérico, tribal, como um animal gregário de modo algum como um zôon politikon no sentido político. A própria troca é um dos principais meios dessa particularização. Ela torna supérfluo o estado gregário e provoca a sua dissolução. A partir de então, o homem, indivíduo isolado, passa a estar em relação apenas consigo próprio; mas o meio de atingir essa individualização é tornar-se um ser geral e comum. A existência objetiva do indivíduo como proprietário, digamos: como proprietário fundiário. está aí pressuposta e realiza-se em certas condições que o acorrentam à comunidade, ou melhor: que dele fazem um elo da cadeia. No mundo burguês, o trabalhador existe no estado de sujeito puro, desprovido de objeto; mas o objeto que lhe faz face, tornou-se a verdadeira comunidade, da qual ele tenta alimentar-se e que dele se alimenta.
Todas as formas (mais ou menos naturais, mas, ao mesmo tempo, resultados do processo histórico) nas quais a -comunidade pressupõe sujeitos unidos objetivamente às suas condições de produção, ou em que uma determinada existência subjetiva pressupõe as próprias comunidades como condições de produção todas essas formas correspondem necessariamente a um desenvolvimento essencialmente limitado das forças produtivas. O desenvolvimento das forças produtivas, dissolve-as, e essa mesma dissolução é um desenvolvimento das forças produtivas humanas. Inicialmente, o trabalho faz-se a partir de uma certa base natural; mais tarde, torna-se uma condição histórica. Seguidamente, este fundamento ou pressuposto é,ele próprio, suprimido ou toma um caráter transitório, tornando-se demasiado estreito para o desenvolvimento do rebanho humano em vias de progressão. Na medida em que reaparece na propriedade parcelar moderna, a propriedade antiga releva, ela própria, da economia política. Dela falaremos na parte reservada à propriedade fundiária. Vejamos, para começar, do que se trata: a relação entre o trabalho e o capital, ou as condições objetivas do trabalho enquanto capital, pressupõe um processo histórico que dissolve as diversas formas em que ou o trabalhador é proprietário ou o proprietário trabalha. Por conseguinte há, antes de mais nada: 1. dissolução da relação com a terra, com o solo, enquanto condição natural de produção a que o trabalhador se refere como sua própria existência não orgânica, laboratório das suas forças e domínio da sua vontade. Todas as formas em que se encontra esta propriedade pressupõem uma comunidade cujos membros, apesar das diferenças formais, são, enquanto membros, proprietários. A forma primitiva "desta propriedade é, conseqüentemente, ela própria propriedade comum direta (forma oriental, modificada na forma eslava; desenvolvida até se transformar no seu, contrário, mas ainda base secreta e contrastada, da ,propriedade antiga e germânica); 2. dissolução da relação em que o trabalhador aparece como proprietário do instrumento. Tal como a primeira forma da propriedade pressupõe uma comunidade geral, esta propriedade do instrumento pressupõe uma forma particular de desenvolvimento do trabalho manufatureiro enquanto trabalho artesanal; ao que se liga o sistema do mestrado e das corporações, etc. Aqui, o trabalho é ainda metade artístico, metade " mestria como fim em si. O capitalista é ainda o próprio mestre. A perícia particular garante ao mesmo tempo a posse do instrumento. Existe, por assim dizer, hereditariedade do modo, da organização e do instrumento do trabalho. A cidade medieval. Aqui o trabalho é ainda pessoal; há um desenvolvimento bem determinado e espontaneamente aceite de aptidões parciais, etc.; 3. um e outro implicam que, para poder viver como produtor, o trabalhador possua os meios de consumo antes dos da produção, enquanto produz e antes que termine o seu trabalho. Como proprietário fundiário, ele parece dispor diretamente do fundo de consumo necessário; enquanto mestre-artesão, adquiriu-o quer por herança quer pelo seu trabalho, fazendo economias. Jovem, começa por se aprendiz. Nesta função, ainda não é verdadeiramente um trabalhador independente; à maneira patriarcal, partilha as refeições do mestre. Quando é companheiro (verdadeiro). ,existe entre eles uma certa posse comum do fundo de consumo pertencente ao mestre. Conquanto este fundo não seja propriedade do companheiro, ele é pelo menos seu co-possuidor, em virtude das leis e das tradições da corporação;" 4. dissolução das condições em que o próprio trabalhador e as formas de trabalho se contam ainda diretamente entre as condições objetivas da produção e são como tais apropriadas; são pois escravos ou servos. Para o capital, não é o trabalhador. mas sim o trabalho, que e cria a condição da produção. Tanto melhor se o capital pode fazer executar o trabalho por meio de máquinas, ou mesmo com água ou ar. E ele apropria-se não do trabalhador, mas do seu trabalho não diretamente, mas por meio da troca.
Estes são, por um lado, os fatores históricos que fazem com que o trabalhador, enquanto trabalhador livre, força de trabalho sem objeto, puramente subjetiva, se encontre face às condições objetivas da produção como sua não-propriedade, como propriedade de outrem, como valor por si, como capital. Por outro lado, surge a pergunta: quais devem ser as condições para que o trabalhador encontre perante si um capital?
CAPITAL, PROPRIEDADE E INSTRUMENTOS DE TRABALHO
Quando o trabalho vivo está relacionado negativamente com a matéria-prima. com o instrumento e os meios de subsistência necessários durante o trabalho, quando esta relação é a da não-propriedade., a definição do capital implica desde início a negação da propriedade fundiária. do estado em que o indivíduo que trabalha se encontra em relação com a terra como coisa que lhe pertence: ele trabalha e produz como proprietário do solo. No melhor dos casos, ele não é apenas o que trabalha a terra, mas ainda o que, tendo a terra em sua propriedade, com ela se relaciona enquanto sujeito que trabalha. Virtualmente, a propriedade do solo inclui tanto. a propriedade da matéria-prima como do instrumento original, a própria terra, e dos frutos espontâneos desta. Considerada na sua forma primitiva, esta relação mostra-nos o individuo apropriando-se da terra, encontrando nela a matéria-prima, o instrumento e os meios de subsistência criados não pelo trabalho, mas pela própria terra. Uma vez reproduzida esta relação, vêem-se surgir instrumentos secundários e os frutos da terra criados pelo próprio trabalho, estando tudo isto incluído na propriedade fundiária sob as suas formas primitivas. Este estado histórico, enquanto relação de propriedade mais substancial, é pois desde início negado na relação entre o trabalhador e as condições de trabalho enquanto capital. É o estado histórico nº 1 que é negado nesta relação ou que se considera ter nela sofrido a sua dissolução histórica. Segundo estado: a propriedade do instrumento, a relação do trabalhador com o seu instrumento, que é pessoal; ele trabalha como proprietário do instrumento"; é o trabalhador proprietário, ou ainda o proprietário trabalhador. É uma forma independente, estabelecida ao lado e à margem da propriedade fundiária; é o desenvolvimento artesanal e urbano do trabalho, que já não é, como no primeiro caso, um fator acidental e acessório da propriedade fundiária. Propriedade do artesão, a matéria-prima e os meios de subsistência são doravante mediatizados pelo seu ofício e a sua propriedade do instrumento. Estamos já num segundo patamar histórico que existe simultaneamente com o primeiro e separada dele, mas que apresenta os sinais de uma importante modificação, pelo fato de esta segunda forma de propriedade ou de proprietário trabalhador se ter tornado uma instituição autônoma. Uma vez que o próprio Instrumento e um produto do trabalho, que ele é, por seu turno, um elemento constitutivo da propriedade obtida pelo trabalho, a comunidade já não pode surgir na sua forma espontânea e natural, como no caso anterior, enquanto base deste novo tipo de propriedade. Muito pelo contrário, trata-se aqui de uma comunidade produzida pelo próprio trabalhador, uma comunidade criada. a um nível secundário.
Evidentemente, quando a propriedade do instrumento implica a propriedade .das condições de produção do trabalho, o instrumento já não é mais, na atividade se real, do que o meio do trabalho individual. A arte se apropriar realmente do instrumento, de o manipular enquanto meio de trabalho, surge como um talento particular do trabalhador, que faz dele o proprietário do instrumento. Em suma, o caráter essencial do sistema do mestrado e das corporações onde o trabalho artesanal constitui em sujeito e, nessa medida, em proprietário - define-se pela relação com o instrumento de produção (instrumento de trabalho como propriedade). diferentemente da relação com a terra, com. o solo (com a matéria-prima como tal) detido em propriedade. O que estabelece o sujeito quer como trabalhador proprietário, quer como proprietário trabalhador,. é- a sua relação com um momento particular das condições número 2, que, pela sua natureza só pode existir, como estado oposto ao primeiro, ou, se se quiser. como estado, complementar modificado. e que. também ele, é negado na primeira fórmula do capital.
A terceira fórmula possível de uma relação.. de . propriedade concerne os meros meios. de subsistência dados como condição natural do sujeito trabalhador, sem que esta relação se aplique nem ao solo nem ao instrumento. nem. por conseqüência,. ao próprio trabalho. É, em última instância. a forma da escravatura e da servidão, também ela negada e que é considerada como estado historicamente dissolvido na relação do trabalhador com as condições de produção enquanto capital. As formas primitivas da propriedade dissolvem-se necessariamente na, relação com os diversos fatores objetivos que condicionam a produção e que se possuem; elas constituem igualmente a base econômica dos diversos tipos de comunidade, ao mesmo tempo que, por seu turno, pressupõem certos tipos sociais. Estas formas são profundamente alteradas pelo fato de o próprio trabalho ser colocado entre as condições objetivas da produção (servidão e escravatura). de maneira que o caráter simplesmente afirmativo dos modos de propriedade abrangidos no n 1 se perde e se modifica. Todas contêm a escravatura em potência e, portanto, a sua própria abolição. Evidentemente, no que se refere ao n 2 e ao seu modo particular de trabalho (o mestrado está ai realizado e a propriedade do instrumento implica a das condições de produção). a escravatura e a servidão estão excluídas; mas este modo pode ter um desenvolvimento análogo, negativo, no sistema das castas.
RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO E DE SERVIDÃO
A menos que se dissolva na escravatura e na servidão, a terceira forma de propriedade dos meios de subsistência não pode conter uma relação entre o indivíduo trabalhador e as condições de produção ou de existência. Ela só pode ser o estatuto do membro da comunidade primitiva. fundada na propriedade fundiária. como a plebes romana na época do panem et circenses: é o homem privado da primeira forma da sua propriedade. sem ter ainda atingido a segunda. O sistema do senhor com o seu séqüito, o da prestação pessoal. é essencialmente diferente. Ele é, no fundo. o modo de existência do próprio proprietário. que já não trabalha mas cuja propriedade inclui, entre as condições de produção. os próprios trabalhadores como servos, etc. Esta relação de dominação apresenta-se aqui como uma relação essencial de apropriação. Não pode haver uma relação de dominação para com o animal, o solo, etc., pelo fato da apropriação, ainda que o animal desempenhe uma tarefa é a apropriação de uma vontade alheia que condiciona esta relação d!J dominação. o que não tem vontade, o animal por exemplo, pode decerto servir, mas o seu possuidor não se torna com isso seu senhor. Mas nós vemos aqui que a relação de dominação e a relação de servidão estão igualmente englobadas neste conceito da apropriação dos instrumentos de produção; formam um fermento necessário do desenvolvimento e do desaparecimento de todas as relações primitivas de propriedade e de produção, ao mesmo tempo que exprimem os seus limites. É bem verdade que, no capital, estas relações são reproduzi das - sob forma mediata - e tornam-se assim o fermento da dissolução e o símbolo do caráter limitado do capital.(13)
É legítimo pressupor desde início processos históricos que colocaram uma massa de indivíduos de uma nação, etc., senão na situação de trabalhadores livres ainda não o são – pelo menos na de trabalhadores virtualmente livres, cuja única propriedade é a sua força de trabalho, que podem" trocar por valores existentes. Perante estes indivíduos, todas as condições objetivas da produção existem enquanto propriedade de outrem, sua não-propriedade, mas, ao mesmo tempo, como valores permutáveis que, num certo grau, podem ser adquiridos pelo trabalho vivo. Estes processos históricos de dissolução apresentam-se sob diversos aspectos: com"o dissolução das relações de servidão que acorrentam o trabalhador ao solo e ao seu senhor, mas lhe deixam de fato a propriedade das subsistências, conquanto se trate na verdade, de um processo que separa o trabalhador da terra; como dissolução das relações de propriedade que fizeram dele um yeoman, um franco tenente ou um rendeiro (colonus), um camponês livre"; dissolução do sistema do mestrado, em que o trabalhador é proprietário do seu instrumento de trabalho e em que o próprio trabalho, enquanto perícia artesanal determinada, é propriedade (e não apenas fonte desta); dissolução do sistema dos clientes sob as suas diversas formas, no qual, não-proprietários fazem parte do séqüito do seu senhor, consomem com este os produtos excedentes, usam a sua libré, tomam parte nas suas guerras, prestam-lhe serviços pessoais, imaginários ou reais, etc. Quando se examinam de perto estes processos, constata-se que se trata da dissolução das relações de produção em que predomina o valor de uso., ,produção para o uso imediato. O valor de troca e a sua produção pressupõem a predominância da outra forma; por isso que, em todas estas condições, as prestações e os serviços em espécie predominam sobre o pagamento e a prestação em dinheiro, Notemos isto de passagem. Um exame aprofundado mostrará que todos estes fenômenos de dissolução s6 eram possíveis num certo nível de desenvolvimento; das forças produtivas materiais (e também, por conseguinte, das forças sociais intelectuais). .
O que aqui nos interessa, antes de mais nada, é o seguinte: o processo de dissolução que transforma uma massa de indivíduos de um povo, etc" em assalariados virtualmente livres-indivíduos que só a indigência obriga a trabalhar e a vender o seu trabalho – pressupõe não o desaparecimento, mas a transformação das antigas fontes e condições de propriedade: passando como fundo livre para outras mãos ou mesmo ficando parcialmente nas mesmas mãos" o seu modo de existência transformou-se.
Uma coisa é clara: o processo que, de uma maneira ou de outra, separou uma massa de indivíduos das suas antigas relações positivas com as condições objetivas de trabalho, que, liquidando estas, os transformou em trabalhadores livres, esse mesmo processo libertou virtualmente essas condições – a terra, a matéria-prima, as subsistências, os instrumentos de trabalho, o dinheiro, tudo isso - do laço que até aí as liga aos indivíduos. Estes, por sua vez, estão doravante libertos dessas condições. Elas existem ainda, mas sob uma outra forma, como fundo livre, em que todas as antigas relações políticas, etc., foram aboli das; assumindo doravante unicamente a forma de valores absolutamente ligados a si mesmos, elas fazem face a indivíduos sem ligações e sem fortuna. O mesmo processo que situou indivíduos como trabalhadores livres face às condições objetivas de trabalho situou estas como capital face aos trabalha dores livres. O processo histórico consistia em separar elementos até aí reunidos; daí resulta não o desaparecimento de um desses elementos, mas uma situação em que cada elemento se relaciona negativamente com o outro: o trabalhador livre (virtualmente) de um lado, o capital (em potência) do outro. A separação entre as condições objetivas e as classes laboriosas, tornadas. livres, tem necessariamente como resultado que essas mesmas condições adquirem; no seu pólo oposto, uma autonomia total. Pode considerar-se a relação entre o capital e o trabalho assalariado na sua gênese histórica não como um fenômeno que doravante determina e domina o conjunto da produção"; por outras palavras, pode considerar-se a transformação primitiva do dinheiro em capital, o processo de troca entre, por um lado, o, capital existindo virtualmente e, por outro, os trabalhadores livres existindo virtualmente. Far-se-á então muito naturalmente a constatação (a que os economistas dão tanta importância) de que a parte que se apresenta como capital deve estar de posse de matérias-primas, de instrumentos de trabalho e de subsistências, para que o trabalhador possa viver antes e enquanto a produção se completa. É-se então levado a pensar que teve de haver uma acumulação - anterior ao trabalho e não fruto dele - da parte do capitalista, que lhe permiti-o pôr o operário a trabalhar, mantê-lo em atividade e conservá-lo como força de trabalho viva ". Este ato do capital - ato independente do trabalho, não estabelecido pelo trabalho é seguidamente isolado do seu processo de gênese e transformado em um momento da sua realidade e da sua eficácia, em um momento da sua autogênese. Por fim, deduz-se daí o direito eterno do capital a apropriar-se dos frutos do trabalho de outrem, ou antes:, deduz-se o seu modo de aquisição a partir das, leis simples e «justas» da troca de equivalentes. A riqueza que se apresenta sob a forma de dinheiro pode trocar-se pelas condições objetivas do trabalho somente por estas estarem, e deverem estar, separadas do mesmo trabalho. Nós vimos, é certo, que o dinheiro pode, em parte, ser acumulado pela mera troca de equivalentes; mas é uma fonte com tão pouca importância que se pode desprezá-Ia do ponto de vista histórico supondo que o dinheiro foi adquirido por troca de trabalho pessoal. e antes a fortuna monetária, a fortuna mobiliária, acumulada graças à usura - praticada, primeiro que tudo, sobre a propriedade fundiária - e aos lucros mercantis, que se transforma em capital propriamente dito, em capital industrial. Teremos mois adiante oportunidade de tratar destes dois modos de acumulação, que, sob a sua forma de riqueza antiga, aparecem não como capital, mas como pressupostos do capital.
GÊNESE DO CAPITAL
Vimos que, tal como a sua gênese, o conceito mesmo de capital implica que ele proceda do dinheiro, da riqueza sob forma de dinheiro. Implica igualmente que, provindo da circulação, ele apareça como o produto da circulação. Por conseguinte, a formação do capital não procede da propriedade fundiária (com excepção, quando muito, do caso do rendeiro, na medida em que ele é um comerciante de produtos, agrícolas), nem tão-pouco da corporação (embora aqui haja alguma possibilidade), mas sim da riqueza comercial e usurária. Ora, esta só encontra trabalho livre para comprar depois de ele ter sido separado, por um processo histórico, das suas condições objetivas de existência. É só então que encontra a possibilidade de comprar estas próprias condições. No sistema das corporações, por exemplo, onde a regulamentação prescreve o número de teares que um artesão pode utilizar, etc., o dinheiro que não seja ele próprio de origem corporativa, que não seja o dinheiro do mestre, não pode comprar os teares para os fazer trabalhar. Em suma, o instrumento faz de tal modo corpo com o próprio trabalho vivo - do qual parece ser o servo – que verdadeiramente não circula. O que permite à riqueza monetária tornar-se capital é o fato de encontrar perante si, por um lado, trabalhadores livres, por outro lado, as subsistências e os materiais, etc., que, outrora, de uma maneira ou de outra, haviam sido propriedade das massas. Estas estão agora desprovidas de tudo; por isso são doravante livres e vendáveis. Quanto à outra condição do trabalho - uma certa perícia, o instrumento como meio de trabalho - o capital encontra-a já pronta neste período preliminar ou primeiro, como resultado quer do sistema corporativo urbano quer da indústria doméstica ou dos ofícios conexos da agricultura. O processo histórico não é o resultado do capital, mas o seu pressuposto; é através dele que o capitalista vem seguidamente interpor-se como intermediário (histórico) entre a propriedade fundiária – ou, simplesmente, a propriedade - e o trabalho. A história ignora de todo as representações sentimentais segundo as quais o capitalista e o trabalhador constituíram associações: tão-pouco se encontram traços delas na formação do conceito de capital. Pode acontecer, de forma esporádica, que a manufatura se desenvolva .localmente ao lado dás corporações, num enquadramento que pertence ainda a um período absolutamente diferente, como, por exemplo, nas cidades italianas. Mas, para que o capital se torne o tipo predominante de uma época, as condições da sua gênese devem ser desenvolvidas não , só localmente, mas a uma grande escala(17).
É evidente (sobretudo para quem examina a época de que estamos a tratar) que o período de dissolução dos antigos modos de produção e das antigas relações dos trabalhadores com as condições objetivas do trabalho é, ao mesmo tempo, um período em que, por um lado, as fortunas monetárias conheceram já uma grande extensão e, por outro lado, continuam a aumentar e a expandir-se rapidamente, graças às mesmas circunstâncias que apressaram essa dissolução. As próprias fortunas em dinheiro são um dos fatores dessa dissolução, da mesma forma que esta condiciona a transformação dessas fortunas em capital. Mas a sua mera existência, nem mesmo a supremacia que possam ter atingido, não é de modo algum suficiente para engendrar essa dissolução e essa transformação em capital. Sem o que, a antiga Roma, Bizâncio, etc., teriam concluído a sua história, ou melhor: teriam iniciado uma nova fase da sua história, com o trabalho livre e o capital. A dissolução das antigas relações de propriedade esteve, também aí, ligada ao desenvolvimento da riqueza em dinheiro, do comércio, etc.; mas, em vez de levar à indústria, essa dissolução levou, na realidade, à supremacia do campo sobre a cidade.
Fica-se com uma idéia errada da gênese do capital se, se pensar que, na origem, ele acumulou meios de subsistência, instrumentos de trabalho e matérias-primas, ,.em suma, as condições objetivas do trabalho desligadas do solo e já combinadas com o trabalho humano(18). Ora, não é o capital que cria as condições 6bjectivas do trabalho. A sua origem deve-a ele a um fato simples: graças ao processo histórico que dissolve o antigo modo de produção, o valor constituído na forma de riqueza em dinheiro tem a faculdade de, por um lado, comprar as condições objetivas do trabalho e, por outro lado, trocar por dinheiro o trabalho vivo oferecido pelos trabalhadores tornados livres. Todos estes momentos existem; a sua separação é um produto histórico, um processo de dissolução, e é ele que confere ao dinheiro a faculdade de se transformar em capital. O próprio dinheiro participa ativamente neste processo, na medida em que nele intervém como um fator de separação extremamente enérgico. Contribui dessa forma para fazer nascer trabalhadores livres e despojados" prontos para serem tosquiados, não certamente criando-lhes as condições objetivas da sua existência, mas, pelo contrário, apressando a sua separação dessas condições, numa palavra, a sua despossessão. Assim, por exemplo, quando os grandes proprietários ingleses mandaram embora o seu séqüito, com o qual consumiam o sobreproduto da terra, quando, além, disso, os seus rendeiros expulsaram os Dequenos agricultores, etc., qual foi a conseqüência? Em primeiro lugar: uma massa de forças vivas foi lançada no mercado do trabalho, massa livre no duplo sentido da palavra: estes homens estavam libertos das antigas condições de clientela, de servidão e de serviço e, desprovidos de qualquer fortuna e qualquer modo de existência objetiva e material, estavam livres de toda e qualquer propriedade, sem outro recurso que não fosse vender a sua força de trabalho ou então procurar a sua subsistência na mendicidade, na vagabundagem e no roubo. A história mostra que eles começaram por tentar este último meio; mas foram desviados pela forca. o pelourinho e o chicote. e tomaram o estreito carreiro que leva ao mercado do trabalho. É assim que certos governos. por exemplo os de Henrique VII. de Henrique VIII, etc., surgem como precipitadores do processo de dissolução histórica e como os criadores das condições para a existência do capital. Por outro lado. as subsistências. etc., que anteriormente os proprietários fundiários consumiam com o seu séqüito estavam doravante à disposição do dinheiro, que. ao comprá-los, comprava, por seu intermédio. trabalho. .Q dinheiro não criou nem acumulou esses meios de subsistência: eles existiram, foram consumidos e reproduzidos antes de o serem por sua intervenção. O que havia de novo era esses meios de subsistência serem, a partir de então. lançados no mercado das trocas; é que eles já não serviam diretamente para alimentar o séqüito. etc.; é que, de valores de uso, tinham-se transformado em valores de troca, caindo assim sob o domínio e a supremacia da riqueza monetária. Outro tanto se pode dizer dos instrumentos de trabalho: o dinheiro não criou I nem a roda de fiar nem o tear. Mas. após terem sido separados das suas terras. fiandeiros e tecelões passaram com rodas e teares para sob o comando da riqueza monetária, etc. O capital tem uma única particularidade, a de reunir a massa de braços e instrumentos que encontra diante de si. Conglomera-os sob o seu comando. É tudo o que ele acumula realmente. Concentra trabalha-. dores e seus instrumentos em certos pontos. Trataremos desta questão a propósito daquilo a que se chama a acumulação do capital. Evidentemente. a riqueza monetária - como riqueza comercial apressou a dissolução das antigas relações de produção e permitiu, por exemplo, ao proprietário fundiário, como tão bem o mostrou A. Smith. trocar o seu trigo, o seu gado. etc., por valores de uso importados do estrangeiro. em vez de esbanjar com o seu séqüito os gêneros que ele mesmo produziu e de considerar como padrão da sua riqueza a multidão de seguidores que com ele consumiam.
A seus olhos, o dinheiro tinha dado superior uma significação ao valor de troca do seu rendimento. O mesmo fenômeno se deu com os rendeiros, já semi-capitalistas, ainda que de forma muito dissimulada. O desenvolvimento e personificado pelo do valor. de troca - favorecido dinheiro da classe comerciante - dissolve a produção que se centra principalmente no valor de uso imediato. do mesmo modo que dissolve as formas de propriedade correspondentes (relações entre o trabalho e as suas condições objetivas), apressando assim a criação do mercado do trabalho (que é preciso distinguir bem do mercado dos escravos). Todavia. esta ação do dinheiro só é possível graças à emulação dos oficios urbanos, que não assenta no capital e no trabalho assalariado mas sim na organização do trabalho em corporações, etc. O próprio trabalho urbano tinha criado os meios de produção para os quais as corporações se tinham tornado um estorvo; o mesmo acontecia com uma agricultura melhorada - ela própria em parte conseqüência do acréscimo de mercado oferecido aos produtos agrícolas pelas cidades uma agricultura que entrava em choque com as condições antiquadas da propriedade fundiária. Outras circunstâncias – por exemplo, o aumento, no século XVI, da massa das mercadorias e do dinheiro em circulação. a criação de novas necessidades. a elevação do valor de troca dos produtos locais. a alta dos preços. etc. - apressaram a dissolução das antigas relações de produção, a separação do trabalhador. atual ou virtual, das condições objetivas da sua reprodução: tudo isso favoreceu a transformação do dinheiro em capital.
Nada de mais inepto. por conseguinte, do que imaginar que, na sua origem. o capital tinha criado e acumulado as condições objetivas da produção meios de subsistência. matérias-primas, instrumentos - para as oferecer ao trabalhador que delas estava privado. Muito pelo contrário, a riqueza monetária ajudou, em parte a despojar dessas condições as forças de trabalho dos indivíduos válidos; em parte. esse processo de separação desenrolou-se sem a intervenção do dinheiro. Uma vez atingido um certo nível neste desenvolvimento, o dinheiro pôde interpor-se como mediador entre as condições objetivas da vida assim libertadas e as forças de trabalho tornadas livres ao mesmo tempo que desprovidas de tudo. O dinheiro estava em situação de comprar essas condições e, com isso, os trabalhadores. Quanto à- formação da própria riqueza monetária, antes da sua transformação em capital, isso pertence à pré-história da economia burguesa. A usura, o comércio, a vida urbana e o sistema fiscal, que se desenvolvem paralelamente, desempenharam o papel principal. O aforro dos rendeiros, dos camponeses, etc., contribuiu para isso, mas em menor grau.
Isto mostra-nos ainda que o desenvolvimento da troca e do valor de troca veiculado pelo comércio, que toma dente, o nome do seu título papel que de mediador - na profissão comercial, o dinheiro adquire uma existência ao mesmo – independente, ao mesmo tempo que a circulação, arrasta consigo a dissolução dos laços de propriedade que unem o trabalho às suas condições de existência; tem igualmente como conseqüência o fato de o próprio trabalho ser colocado entre as condições objetivas da produção. Tudo isto exprime ainda a predominância do valor de uso e da produção centrada no uso imediato, bem como a existência de uma comunidade real que é a condição direta dessa produção. A produção fundada na troca destes valores parece estabelecer, como vimos no capítulo anterior, a propriedade como pura emanação do trabalho e a propriedade privada do produto do trabalho pessoal como a condição mesma dessa comunidade. Mas é o trabalho, condição geral da riqueza, que pressupõe e produz a separação entre o trabalho e as suas condições objetivas. Essa troca de equivalentes não é mais que a aparência superficial de uma produção baseada na apropriação do trabalho de outrem. Não há troca, mas aparência de troca. Este sistema apóia-se no capital, que é a ,sua base, e se o considerarmos isolado do seu fundamento, como aliás ele se apresenta à superfície, com todo o aspecto de um sistema independente, vemos que ele não é mais do que aparência, mas aparência necessária. Não há portanto nada de surpreendente em o sistema dos valores de troca troca de equivalentes medidos pelo trabalho se desintegrar subitamente ou, melhor, descobrir os seus fundamentos ocultos e revelar ser apropriação de trabalho de ou"trem sem troca, separação total entre o trabalho e a propriedade. Em verdade, a predominância e a produção dos valores de troca pressupõem que a própria força de trabalho de outrem é um valor de troca, por ,.outras palavras; que a força de trabalho viva está separada das suas condições objetivas, que ela se encontra em relação com estas com a sua própria objectividade - como com uma propriedade alheia. Estas condições e esta objectividade são, numa palavra, o capital. É só nos períodos de desintegração do feudalismo, quando as lutas são ainda intestinas -:- como na Inglaterra no século XIV e na primeira metade do século XV que se pode situar a idade de ouro do trabalho em vias de emancipação. Para que o trabalho se aproprie de novo das suas condições objetivas, e necessário que um outro sistema venha substituir o sistema da troca privada, que, como vimos, impõe a troca do trabalho materializado pela força de trabalho e, desse modo, a apropriação do trabalho sem contra partida.
Vejamos como, historicamente e muito concretamente, o dinheiro se transforma em capital. O mercador por exemplo, põe a trabalhar para si vários fiandeiros e tecelões que, até então, tinham praticado no campo a fiação e a tecelagem como profissão subsidiária: esta ocupação secundária torna-se nessa altura para eles o ganha-pão? principal. A partir de então, eles estão entregues ao mercador, que assim assegura os seus serviços e os submete à sua autoridade como trabalhadores assalariados. O passo seguinte é arrancá-los aos seus lares para os reunir num local de trabalho. É um processo muito simples, no qual, evidentemente, o mercador não preparou matérias-primas nem instrumentos, nem tão-pouco os meios de subsistência, para o fiandeiro e o tecelão. Tudo o que ele fez foi confiná-los pouco a pouco num tipo de trabalho em que o seu destino depende da venda, do comprador, do mercador, e em que eles acabam por produzir unicamente para e por este. Originariamente, ele adquirira o seu trabalho pela simples compra do seu produto: mal eles são obrigados a limitar-se a produzir um valor de troca, e, portanto, diretamente valores de troca, mal se vêem obrigados a trocar por dinheiro todo o seu trabalho, para poderem prolongar a sua existência, caem sob a sua autoridade: acaba-se a ilusão que fazia crer que eles vendiam produtos ao mercador. Este compra-lhes o trabalho e retira-lhes a propriedade do produto, primeiro, e do instrumento, em seguida; ou então deixa-lhes um e outro como propriedade fictícia, a fim de diminuir as suas próprias despesas de produção.
MANUFATIRA E CAPITAL
Vejamos agora as primeiríssimas formas históricas em que o capital. surgindo esporadicamente e localmente ao lado dos antigos modos de produção, os destrói pouco a pouco e por todo o lado. Em primeiro lugar, a manufatura propriamente dita (não é ainda a fábrica), que nasce onde se produz em massa para a exportação, para o mercado externo, portanto, na base de um comércio marítimo e terrestre, em pontos particularmente nevrálgicos. como nas cidades italianas, em Constantinopla, nas cidades flamengas, holandesas, certas cidades espanholas como Barcelona, etc. A manufatura assenhoreía-se, em primeiro lugar, não dos ofícios ditos urbanos, mas das atividades secundárias do campo, fiação e tecelagem. trabalhos que requerem muito pouca perícia artesanal ou formação artística. Estabelece os seus primeiros centros não nas cidades, mas no campo. em aldeias que escapam ao regime das corporações, etc. Exceptuam-se apenas os grandes empórios comerciais, que têm a sua base num mercado externo - manufaturas diretamente ligadas à navegação, ou mesmo aos próprios estaleiros navais, etc., cuja produção é, por assim dizer espontaneamente, centrada na valor de troca. Se a manufatura recruta largamente no artesanato rural, é porque os ofícios urbanos, para serem explorados industrialmente, requerem um elevado nível de produção. O mesmo se passa com qualquer outro ramo de produção – fábricas de vidro e de metal. Serrações, etc. - que exija uma maior concentração das forças de trabalho, que empregue à partida mais recursos naturais, que tenda para a produção em massa e pressuponha, portanto, a concentração dos instrumentos de trabalho. As fábricas de papel, etc., entram nesta categoria. Em seguida, o aparecimento do rendeiro e a transformação dos agricultores em jornaleiros livres. Conquanto esta transformação se realize no campo na sua forma mais pura e levada às últimas conseqüências, começa aí muito cedo. Por isso os Antigos. que nunca souberam ultrapassar o nível da destreza artística próprio da cidade, jamais conseguiram chegar à grande indústria. Esta pressupõe, em primeiro lugar. que o campo seja arrastado, numa escala muito grande, para a produção não de valores de uso, mas de valores de troca. As fábricas de vidro, de papel, de metal, etc., não podem funcionar pelos métodos das corporações. Elas requerem a produção em massa, o escoamento num mercado universal, meios financeiros nas mãos do empresário - não que este crie as condições subjetivas ou objetivas, mas porque, sob as antigas relações de propriedade e de produção, estas condições não podem ser reunidas. Progressivamente. a dissolução do sistema feudal e o incremento da manufatura transformam todos os ramos da produção em empresas do capital. Em verdade, as próprias cidades oferecem na pessoa dos jornaleiros, dos trabalhadores não especializados, etc., que escapam ao controlo das corporações, um elemento construtivo do trabalho assalariado.
Vimos que a transformação do dinheiro em capital um processo histórico que teve por resultado separar o trabalhador das condições objetivas do trabalho e conferir a estas uma existência autónoma face ao trabalhador. Depois, uma vez nascido o capital, esse processo tem por efeito subjugar toda a produção , desenvolver e completar por toda a parte a separação entre o trabalho e a propriedade, entre o trabalho e as condições objetivas do trabalho. A nossa análise mostrará ainda que, o capital destrói o trabalho artesanal, a pequena propriedade do camponês trabalhador, etc e que se destrói a si mesmo nas formas em que não aparece um contraste com o trabalho, ou seja, no pequeno capital e nos tipos intermédios e híbridos entre a os modos de produção antigos (ou que se renovaram com base no capital); que se destrói a si mesmo nas formas de produção clássicas que lhe são próprias. -
A única acumulação que está pressuposta na gênese do capital é a da fortuna monetária, que, em si e por si, é absolutamente improdutiva, porquanto resulta da simples circulação e pertence apenas à circulação do capital. O capital cria rapidamente o seu mercado interno liquidando os ofícios acessórios do campo: fia e tece para toda a gente, veste toda a gente, em suma, dá a todos os produtos outrora confeccionados como valores de uso a forma de valores de troca. Este processo é a conseqüência natural da separação entre os trabalhadores e a terra e a propriedade (mesmo sob a forma da servidão) das condições de produção.
O objetivo imediato e principal da produção dos ofícios citadinos é a subsistência dos artesã os enquanto tais, logo o valor de uso e não o enriquecimento; não é o valor de troca como tal, embora este artesanato seja essencialmente fundado na troca e na criação de valores de troca. A produção está por toda a parte subordinada a um consumo preexistente, a oferta é função da procura e só lentamente se expande.
Por, conseqüência, o processo de valorização do capital tem como resultado principal a produção de capitalistas e de trabalhadores assalariados. É o que a economia simplista, que só toma em consideração as coisas produzidas, esquece completamente. Neste processo, o trabalho materializado afirma-se ao mesmo tempo como não-materialidade do trabalhador, por outras palavras, como subjetividade de uma realidade oposta ao trabalhador, como propriedade de uma vontade estranha àquele que trabalha. Daqui se infere- que o capital é ao mesmo tempo, e necessariamente, personificado pelo capitalista e que é absolutamente errado pensar, como o fazem certos socialistas, que nós precisamos do capital mas não dos capitalistas. O conceito de capital implica que as condições objetivas do trabalho e produzidas pelo trabalho se personificam face ao trabalho, por outras palavras, que estão estabelecidas como propriedade de uma pessoa estranha ao trabalhador: o conceito de capital implica o de capitalista. Não é menor o erro, por exemplo, dos filólogos que falam de capital na Antiguidade e de capitalistas romanos e gregos. É como se se dissesse" que em Roma e na Grécia o trabalho era livre, o que esses senhores não ousariam certamente afirmar. Se nós hoje chamamos capitalistas aos proprietários de plantações na América e eles são-no, de fato - é porque se trata de uma anomalia na história de um mercado mundial baseado no trabalho livre. Se nos ativermos à palavra «capital» - que não se encontra nos Antigos(20) - então as hordas que ainda hoje vemos deslocarem-se com os seus rebanhos nas estepes da Asia Central seriam grandes capitalistas, já que «capital» significava primitivamente gado, e é por isso que o contrato de métairie ainda freqüente na França meridional se chama excepcionalmente «bail de bestes à cheptel». Em mau latim, os nossos capitalistas ou capitales homines seriam os que debent censum de capite.
O conceito de capital é mais difícil de definir do que o de dinheiro. O capital é, por essência, o capitalista; mas ao mesmo tempo o capital difere. da existência do capitalista: é a produção que é em, tudo é por tudo o capital. Veremos, além disso, que o capital engloba muitos elementos que parecem não pertencer ao conceito. Por exemplo, o capital pode emprestar-se, acumular-se. etc. Em todas estas determinações ele parece não ser mais do que uma coisa e confundir-se inteiramente com a matéria de que é feito. Mas tudo isso será esclarecido no decorrer da análise.
O dinheiro conserva sempre a mesma forma na mesma substância e por isso é mais facilmente considerado como uma coisa. Mas esta coisa, ora mercadoria, ora moeda, etc., pode representar capital ou rendimento, etc. Por isso, mesmo os economistas compreendem que o dinheiro não é algo de concreto, de palpável, mas que uma mesma coisa pode ser concebida ora sob a determinação do capital, ora sob uma determinação diferente, ou mesmo contrária; e que ela é ou não é capital consoante a sua determinação. O dinheiro exprime evidentemente uma relação determinada e, como tal, só pode ser uma relação de produção.
Notas
5 A idéia abstrata de uma comunidade cujos membros nada têm em comum, salvo, eventualmente, a língua, etc.. é, evidentemente. produto de circunstâncias históricas muito mais tardias.
6 De fato, poderemos limitar-nos a falar aqui da propriedade primitiva do solo. pois que, entre os povos pastoris, a propriedade dos produtos naturais da terra - dos carneiros, por exemplo - significa ao mesmo tempo a propriedade das pastagens que eles percorrem. De um modo geral, a propriedade do s010 compreende li dos seus produtos orgânicos. Quando o homem é conquistado com o 50]0 como acessório orgânico deste, faz parte integrante das condições de produção. Assim nascem a escravatura e a servidão, que rapidamente adulteram e modificam as formas primitivas de todas as comunidades e delas se tornam mesmo a base. A organização !:iimpJes adquire assim uma significação negativa.
7 As habitações, no entanto, nem que sejam os carros Citas, são sempre possessões individuais.
8 Originariamente, é certo, a propriedade é móvel, pois homem começa por se apoderar dos frutos da terra, nos quais têm que incluir-se, entre outros, os animais, particularmente os que se podem domesticar. Todavia, este estado - caça, pesca, pastorícia, apanha dos frutos das árvores – pressupõe ele também, a apropriação do solo para fixação, para nomadização ou então como pastagem dos para os animais, etc.
9 A tudo isto teremos de voltar de forma mais desenvolvida e mais aprofundada.
10 O sistema manufatureiro do Oriente antigo pode já ser examinado na primeira fábrica.
11 Este ponto terá que ser aprofundado.os ricos
12 É a etapa em que o instrumento está subordinado ao trabalho individual; é um nível particularmente limitado do desenvolvimento da. produtividade do trabalho.
13 «Vender-se em caso de necessidade, a si e aos seus, era um direito tão geral como deplorável; era corrente no Norte, tal como entre os Gregos e na Ásia. O direito do credor de se apoderar do devedor em falta e dele fazer seu escravo, enfim, de se indemnizar, tanto quanto possível, quer pelo seu trabalho quer pela venda da sua pessoa, não era muito menos universal » (Niebuhr, I. c., t. I p. 600.) Niebuhr declara noutra passagem que os autores gregos que escreviam na época de Augusto tiveram dificuldade em compreender a relação entre os patrícios e os plebeus e que confundiram essa relação com a existente entre os patranos e os clientes. Este erro derivava do fato de que eles «escreviam num tempo em que os ricos e os pobres constituíam as lí"icas verdadeiras classes de cidadão, em que o indigente, por mais nobre que fosse sua origem, tinha necessidade de um protetor; em que o milionário, mesmo quo:: fosse um liberto, era como tal procurado. Só com muita dificuld3.dc encontravam ainda estes historiadores a1guns vestígios de dependi:ncia hereditária.» (L. c., t. L p. 620.)
Nas duas classes - entre os metecos e os libertos e seus descendentes - havia operários, e o plebeu que renunciava à agricultura gozava dos mesmos direitos de cidadães que estes artesãos. Tão-pouco lhes faltavam as honras das corporações reconhecidas pela lei. os seus mesteres eram tão considerados que se apontava Numa como seu fundador; havia nove mesteres: 05 flautistas, os ourives, os carpinteiro!, os tintureiros, O~ corrceiros, os curtidores, os caldei reiros, os oJeiros e o nono mester compreendia todas as outras profissões em gcnl1 (n.) Aqueles de entre c!es que eram falsos burgueses independentes, os isopolitas que se não haviam oferecido a nenhum patrono (se é Que existiu t:11 direito) ~, além disso, os d.,:sceodentes de clientes cujo laço se tinha rompido pela extinção da casa dos seus palronos, todos estes foram sempre, sem dúvida a!sum:t, tão alheios às discórdias dos cidadãos primitivos e da comuna como os mestcirais de Florença às dissensões que dividiram as casas dos Guelfos c dos Ghibelinos. QU:1oto aos clientes, é provível que eles estivessem ainda todos às ordem dos patrícios.» (L. c.. .0. 623.) H comum
14 A dissolução das formas ainda mais antigas de propriedade e de sociedades comunitária é um fenômeno evidente.
15 Pois, neste caso, o capital pressuposto como condição do trabalho assalariado é produto dele; enquanto condição do trabalho assalariado, ele surge como seu próprio pressuposto ao mesmo tempo que pressuposto do trabalho por ele criado.
16 Uma vez que. o capital e o trabalho assalariado são concebidos como origem de si mesmos, como a base e a condição da própria produção, é-se levado a pensar que, além do fundo de matérias-primas e de meios de trabalho necessários para que o trabalhador se reproduza a si mesmo e fabrique as suas subsistências, ou seja, realize o trabalho necessário, o capitalista possui um fundo de matérias-primas e de meios de trabalho graças ao qual o trabalhador realiza o seu sobretrabalho, isto é, o lucro do capitalista. Levando a análise mais longe, descobre-se que O trabalhador está constantemente a criar um duplo fundo para o capitalista ou sob a forma de capital: uma parte desse fundo satisfaz constantemente as condições de existência do trabalhador e a outra, as do capital. Vimos que o capital excedente trabalho – por comparação com a sua relação antediluviana com o trabalho, cada elemento se apropria de todo o capital real e presente do qual é adquirido unicamente. como trabalho concreto de outrem, sem troca e sem o menor equivalente.
17 Isso não impede que, aquando da dissolução das corporações. um ou outro mestre se transforma em capitalista industrial; mas esses casos são naturalmente raros. O sistema das corpo rações desaparece no seu conjunto - tanto o mestre como o companheiro quando o capitalista e o trabalhador surgem.
19 Facilmente se verificará o absurdo deste círculo vicioso: por um lado, os trabalhadores que o capital tem que pôr a trabalhar para se afirmar como capital precisam primeiro de ser criados. postos no mundo, graças à sua acumulação; têm pois de esperar que o capital lhes grite: Sedel. Por outro lado o mesmo capital é incapaz de acumular sem o trabalho de outrem: apto quando muito a acumular o seu próprio trabalho, ele só poderia existir sob forma de não-capital e de não-dinheiro. Efetivamente, antes da existência do capital, o trabalho só pode valorizar-se sob a forma de artesanato, de pequena agricultura, etc., em suma, sob formas que pouco ou nada acumulam e que apenas admitem um sobreproduto de pouco importância, em grande parte destinado a ser consumido. Examinaremos noutro local esta idéia de acumulação.
19 Todavia, iremos encontrar nos Gregos a palavra arkaia, que corresponde à principalis summa rei creditae dos Romanos.
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