Título original: Formen die der Kapitalistiscllen Produktion vorhergehtl
Tradução de Alberto Saraiva sobre a versão francesa de Maximilien Rubel, in K. Marx. Oeuvres: Économie II, . Bibliothéque de la Pléiade. Editions Gatlimard. Paris, 1968. (grifo meu)
COMUNA TRIBAL E DESPOTISMO ORIENTAL
O trabalho livre, a troca do trabalho livre por dinheiro com vista a reproduzir e valorizar o dinheiro são os pressupostos do trabalho assalariado e uma das condições históricas do capital. Nesta troca, o dinheiro é utilizado como valor de uso não para ser consumido; mas para produzir dinheiro. Um outro pressuposto do salariato e do capital é a separação entre o trabalho livre e as condições objetivas da sua realização, isto é, o meio e a matéria do trabalho. Temos assim, desde o início, o fato de o trabalhador estar separado da terra, seu laboratório natural, de onde a dissolução da pequena propriedade livre e da propriedade comum que tem o seu fundamento na comuna oriental.
Sob estas duas formas, o trabalhador é o proprietário das condições objetivas do seu trabalho relação que constitui a unidade natural do trabalho com os seus pressupostos materiais: aqui, independentemente do seu trabalho, o trabalhador possui uma existência objetiva. O indivíduo é, em relação a si mesmo, proprietário e dono das condições de sua realidade. A mesma relação face a terceiros: consoante esse estatuto emane da comuna ou das famílias que constituem a comuna, o indivíduo considera os outros como co-proprietários (outras tantas personificações da propriedade comum) ou como proprietários independentes a seu lado, proprietários privados. Neste último caso, a propriedade comum, que anteriormente absorvia todas as terras e dominava todas as pessoas, apresenta-se como ager publicus distinto, ao lado das numerosas propriedades privadas. Numa e noutra forma, os indivíduos não têm o estatuto de trabalhadores, mas de proprietários. Simultaneamente membros e co-proprietários de uma comunidade, é como tais, que nela trabalham. Embora os trabalhadores possam fornecer trabalho excedente para em troca obterem produtos alheios, produtos excedentes, o seu objetivo não é criar valores. O seu trabalho tem por finalidade a conservação de cada proprietário individual e da sua família, bem como a conservação da comunidade no seu conjunto. O indivíduo como trabalhador, na sua nudez de trabalhador, é um produto histórico.
Podemos verificar que, na primeira forma desta propriedade da terra, a comunidade natural é a condição primordial: quer por casamentos recíprocos, quer por associação, a família cresce até às dimensões da tribo. Podemos admitir que o estado pastoril e, em geral, a migração constituem o primeiro modo de existência; não que a tribo se fixe num certo território: ela vai apascentando nos prados que encontra no seu caminho; os homens não são sedentários por natureza (a menos que se encontrem num ambiente natural particularmente fértil e que vivam nas árvores como macacos; geralmente, erram à aventura como selvagens). Por conseguinte, a comunidade tribal, a comuna natural, aparece não como o resultado, mas como a condição da apropriação (temporária) e da utilização comuns do solo.
Uma vez fixada, esta comunidade primitiva sofrerá modificações mais ou menos profundas, conforme as diversas condições exteriores climáticas, geográficas, físicas, etc. - e as suas disposições naturais, o seu caráter tribal. A comunidade tribal primitiva, ou, se se quiser, o estado gregário, é a primeira condição - comunidade do sangue, da língua, dos costumes, etc. - da apropriação das condições objetivas da vida e da atividade reprodutora e criadora de produtos (como pastores, caçadores, agricultores, etc.). A terra é o grande laboratório, o arsenal que simultaneamente fornece os meios e os materiais do trabalho e a residência, base da comunidade. Em relação a esta base, propriedade da comuna, bem como em relação à comunidade que se produz e se reproduz no trabalho vivo, os homens conduzem-se de modo absolutamente ingênuo. Cada indivíduo detém o estatuto de proprietário ou de possuidor apenas enquanto membro da comunidade. É nestas condições - que não são produto do trabalho, antes que se efetua aparecem como naturais ou divinas - a apropriação real por intermédio do processo do trabalho.
Embora assente num fundamento invariável, esta forma pode realizar-se de diversas maneiras. Por exemplo, não há nada de contraditório em, como sucede na maior parte das formas asiáticas, a unidade centralizadora que se ergue por sobre as pequenas comunidades fazer figura de proprietário supremo ou único. aparecendo as comunas reais então como simples possuidores hereditários. Uma vez que a Unidade é o verdadeiro proprietário e o pressuposto real da propriedade comum, esta pode mesmo surgir como um fenômeno distinto e superior às numerosas comunas particulares, sendo nessa altura o individuo isolado de fato desprovido de propriedade. Por outras palavras, a propriedade isto é o comportamento do indivíduo em relação às condições naturais do trabalho e da reprodução que, enquanto natureza não orgânica fazendo corpo com a sua subjetividade, parecem pertencer-lhe objetivamente - é dada - ao indivíduo pela boa vontade da Unidade total realizada na pessoa do déspota, pai das diversas comunas, que a concede ao indivíduo por intermédio de determinada comuna particular. Daí que o sobreproduto, de resto legalmente fixado graças à apropriação real pelo trabalho, reverta automaticamente para essa unidade suprema. No seio do despotismo oriental e da não-propriedade, que.., I parece ter aqui uma base jurídica, a propriedade tribal ou comunal possui uma base efetiva e é, na maior parte das vezes, produto de uma combinação da manufatura com a agricultura no interior da pequena comuna. Esta torna-se assim inteiramente autárcica e contém em si mesma todas as condições da reprodução e da produção excedentária.
Uma parte do seu sobretrabalho pertence à comunidade superior, a qual acaba por tomar corpo numa pessoa. e este sobretrabalho manifesta-se tanto no tributo, etc" como nos trabalhos coletivos destinados a glorificar a Unidade incamada no déspota real ou no ser tribal imaginário que é o deus. Na medida em que, se realiza verdadeiramente no trabalho, este tipo de propriedade comunal. pode assumir formas variadas: as pequenas comunas têm uma existência vegetativa e independente umas ao lado das outras e cada indivíduo trabalha independentemente com a sua família no lote de terra que lhe é atribuído (determinado trabalho, por um lado, para o aprovisionamento comum, o seguro, quase poderíamos dizê-lo, e, por outro lado, para cobrir as despesas da comuna como tal: a guerra, o culto, etc.; o dominium senhorial, no seu sentido mais primitivo, só aqui se reencontra, por exemplo nas comunas eslavas, romenas, etc.; transição para o regime das corveias, etc.); ou então a unidade pode estender-se à comunidade no próprio trabalho, dando origem a um verdadeiro sistema, como no México e, especialmente, no Peru, entre os antigos Celtas, em algumas tribos indianas. O caráter comunitário pode, além disso, surgir no seio da tribo sob a forma de um chefe da família tribal, representante da unidade, ou como uma relação de mutualidade entre os pais de família. Temos nessa altura, conforme o caso, uma forma mais ou menos despótica ou democrática dessa comunidade. As condições comunitárias da apropriação real pelo trabalho (muito importantes entre os povos asiáticos), aquedutos, meios de comunicação, etc.. surgem então como obra da unidade superior, o governo despótico que paira acima das pequenas comunas. As cidades propriamente ditas formam-se ao lado destas aldeias, mas em pontos particularmente favoráveis para o comércio externo, ou então no local em que o chefe do Estado e os seus sátrapas trocam o seu rendimento (sobreproduto) pelo trabalho e o dispendem a título de fundo de mão-de-obra.
COMUNA E ESTADO EM ROMA
A segunda forma (tal como a primeira. deu origem a importantes variantes, locais, históricas, etc.) resulta de uma vida histórica mais movimentada, de um concurso de fatalidades e de transformações sobre vindas no seio das tribos primitivas. Ela pressupõe igualmente a comunidade como condição primordial, mas. não como no -primeiro caso - enquanto substância na qual o indivíduo não passa de um acidente ou de um elemento puramente natural; não pressupõe a terra como base, mas sim a cidade enquanto estância (centro) já criada de agricultores (proprietários fundiários). A superfície cultivada aparece como o território da cidade, que já não é a aldeia, simples acessório do campo. Em si, a terra sejam quais forem os obstáculos que possa oferecer ao cultivo e. à apropriação real - não se opõe à natureza não orgânica do indivíduo vivo; ela é a oficina, o instrumento de trabalho, o objeto, o meio de subsistência do sujeito. As dificuldades encontradas por uma comuna só podem provir de outras comunas que tenham já ocupado as terras ou a impeçam -de se instalar. Por isso é a guerra a grande tarefa total e o grande trabalho comum, exigidos quer para dominar as condições objetivas da existência viva, quer para proteger e perpetuar os fundamentos dessa dominação. É pois militarmente que em primeiro lugar se organiza a comuna composta por famílias; a organização militar e guerreira é uma das condições da sua existência como proprietária. A base desta organização militar é a concentração das habitações na cidade. A ordem tribal como tal leva à divisão em famílias superiores e inferiores, diferença que se desenvolve ainda mais pela fusão com clãs subjugados, etc. Aqui, , a propriedade da comuna - propriedade do Estado, ager publicus - é separada da propriedade privada. Contrariamente ao que se passa no primeiro caso, em que, separada da comuna, a propriedade não pertence ao indivíduo isolado conquanto ele detenha a sua posse, aqui a propriedade do indivíduo isolado não é diretamente a da comuna. Quanto menos susceptível é a propriedade individual de ser valorizada apenas pelo trabalho coletivo (por exemplo, os aquedutos no Oriente). tanto mais é o caráter puramente natural da tribo destruído pelo movimento histórico a migração; além disso, quanto mais a tribo se afasta da sua estância primitiva e mais territórios estrangeiros ocupa, quanto mais, portanto, se encontra em condições de trabalho essencialmente novas, tanto mais se desenvolve a energia dos indivíduo; isolados (surgindo aqui forçosamente o caráter comunitário como unidade negativa face ao exterior) e se vêem surgir as condições que fazem com que o indivíduo se torne proprietário privado do solo de uma parcela particular cujo cultivo particular lhe incumbe, a ele e à sua família.
A comuna, enquanto Estado, é a relação recíproca destes proprietários livres e iguais, a sua união face ao exterior; é, ao mesmo tempo, o penhor dessa união. A comunidade funda-se aqui no fato de os seus membros serem constituídos por proprietários fundiários que trabalham, Dor camponeses parcelares cuja independência reside nas suas relações recíprocas como membros da comuna, na garantia do ager publicus em quanto se refere às necessidades colectivas, à glória comum, etc. A apropriação do solo tem aqui por condição a pertença à comuna; mas, enquanto membro desta, o indivíduo isolado é proprietário privado. Para ele, a propriedade privada é a terra; mas é também a sua existência enquanto membro da comuna: conservando-se como tal, ele contribui para a conservar, e inversamente, etc. Sendo já um produto histórico, não só na sua realidade mas também na consciência, portanto o resultado de um processo, a comuna pressupõe a propriedade do solo, isto é, a relação do sujeito trabalhador com as condições naturais do trabalho como pertencendo a ele. Mas esta propriedade é mediatizada pelo seu estatuto de membro do Estado, pela existência do Estado, em suma, por um pressuposto considerado de ordem divina, etc. Concentração na cidade, cujo território se estende à zona rural; pequena agricultura trabalhando para o consumo direto; manufatura como ofício acessório das mulheres e das filhas (fiação e tecelagem) ou como atividade independente em certos ramos (fabri, etc.) A persistência da comunidade é garantida pelo respeito da igualdade entre os camponeses livres e independentes, cujo trabalho condiciona a manutenção da propriedade. Comportando-se em relação às condições naturais do trabalho como proprietários, eles têm que, pelo trabalho pessoal, incessantemente afirmá-Ias como condições e elementos objetivos da personalidade individual.
Por outro lado, esta pequena comunidade guerreira é levada, pelas suas próprias tendências, a ultrapassar esses limites, etc. (Roma, Creta, Judeus, etc.). Para arranjar com que viver, o indivíduo é colocado em condições tais que o objeto do seu trabalho não é a aquisição da riqueza mas a autarcia, a sua própria reprodução como proprietário da parcela de terra e, nessa medida, como membro da comuna. i) persistência da comuna requer a reprodução de todos os seus membros como camponeses independentes, cujo tempo excedente pertence justamente à comuna, ao trabalho da guerra, etc. Apropriam-se do seu próprio trabalho apropriando-se das condições do trabalho, da jeira de terra que é garantida pela existência da comuna, a qual é por sua vez garantida pelo sobretrabalho dos membros da comuna sob a forma de serviço militar, etc. O membro da comuna reproduz-se cooperando não na criação de riquezas, mas em trabalhos de interesse comum (imaginário ou real) com vista a manter a associação no interior e face ao exterior. A propriedade é quiritária, romana. O proprietário privado só o é na sua qualidade de Romano; mas, enquanto Romano, ele é proprietário privado.
PROPRIEDADE ROMANA E PROPRIEDADE GERMANICA
Uma das formas da propriedade em que os indivíduos trabalhadores, membros autárcicos da comunidade, se apropriam das condições naturais do seu trabalho é a propriedade germânica... Aqui - ao .contrário da forma especificamente oriental - o membro da comuna não é, como tal, co-possuidor da propriedade comum. Tão. .pouco é o solo ocupado pela comuna, como na forma romana, grega (em suma, da Antiguidade clássica). Não é solo romano. Uma parte fica em poder da comuna como tal, distinta dos membros da comuna, ager publicus nas suas diversas formas; a outra parte é distribuída, e cada parcela do solo é romana porquanto é a propriedade privada, o domínio de um Romano, a parte que lhe cabe no laboratório; mas, na verdade, ele não é Romano senão na medida em que possui esse direito soberano sobre uma parte da terra romana.
Na Antiguidade. os ofícios e o comércio citadinos eram pouco apreciados; em contrapartida. a agricultura era tida em grande estima. Na Idade Média passa-se o contrário. - O direito de explorar a terra comunal mediante ocupação cabia originariamente aos patrícios, os quais. por seu turno concediam feudos aos seus clientes; só os plebeus tinham o direito de concessão da propriedade do ager publicus; todas as concessões se fariam em proveito dos plebeus, que podiam ser indemnizados pela sua parte na terra comunal. A propriedade da torra propriamente dita. exceptuada a região em torno dos muros da cidade, estava originariamente apenas nas mãos dos plebeus. Mais tarde, esta propriedade será acolhida nas comunas rurais. O caráter fundamental da plebe romana é o de uma colectividade de agricultores, segundo a definição da propriedade quiritária. Os Antigos consideravam unanimemente a agricultura como a verdadeira profissão do homem e como a escola do soldado. é com ela que se conserva antiga estirpe da nação; muda de caráter nas cidades, onde os comerciantes e os artesãos estrangeiros se vêm estabelecer, tal como os autóctones atraídos pelo ganho. Por toda a parte em que esteja estabelecida a escravatura, os libertos instalam-se no comércio e no artesanato. que. muitas vezes, lhes proporcionam riquezas. É assim que, na Antiguidade, estas profissões estavam quase todas entre as suas mãos tornando-se por isso mesmo pouco próprias para o exercício da cidadania. Daí a opinião de que era perigoso o acesso dos artesãos à plenitude do direito dos cidadãos (por regra, entre os antigos Gregos, eram dele excluídos).3 Os Antigos não tinham qualquer noção da dignidade dos mesteres, como no-los mostra a história das cidades da Idade Média e é inegável que quando as corporações triunfaram sobre
as gentes,. o espírito guerreiro decaiu entre eles e acabou por se extinguir totalmente e com ele a reputação e a liberdade das cidades.
As tribos dos Estados antigos eram constituídas de duas maneiras: segundo as gentes que as compunham ou segundo o local que ocupavam. As tribos de famílias têm prioridade de data sobre as de local e quase por toda a parte lhes cedem o lugar. A sua forma mais rigorosa é o sistema de castas separadas umas das outras. impermeáveis ao casamento recíproco e de níveis absolutamente diferentes. Neste sistema. cada casta tem uma vocação exclusiva. imutável. Originariamente. as tribos correspondem a uma divisão da região em cantões e aldeias: quem quer que tivesse possessões numa aldeia na época em que a tribo se estabeleceu, por exemplo, na fi,..tica no tempo de Clístenes. era por isso mesmo inscrito, na qualidade de demotas (membro do demo ou aldeia), na tribo do cantão a que pertencia a sua aldeia. Seguidamente, os seus descendentes, sem consideração pelo local do seu domicilio, continuavam. regra geral. a fazer parte quer da mesma tribo quer do mesmo demo, o que introduziu, mesmo nesta divisão. uma aparência de genealogia. As gentes romanas não eram consangüíneos: Cícero, como característica de um nome comum. acrescenta a filiação de um liberto. Os sacra comuns dos membros da gens romana acabaram mais tarde (já na época de Cícero): o direito de herdar dos co-membros da gens falecidos sem deixar sucessores foi o que se conservou por mais tempo. Obrigação, nos tempos mais recuados, para os co-membros da gens de ajudar a suportar os encargos extraordinários dos que estavam em necessidade (originariamente, por todo o lado entre os Alemães, durante mais tempo entre as Dithmarschen). As gentes. espécie de corporações. Não houve no mundo antigo instituição mais geral do que a das gentes. :2 assim que, entre os Gaélicos, os nobres Campbell e os seus vassalos formavam um clã. Como o patrícia representa a comunidade a uma escala superior, ele é o possuidor do ager publicus e explora-o por intermédio dos seus clientes, etc. (e acaba por dele se apropriar). A comuna germânica não se concentra na cidade como centro da vida rural, domicílio dos operários agrícolas, sede das operações militares; em conseqüência dessa concentração urbana, a comuna passa a ter apenas uma existência externa, distinta da dos indivíduos isolados.
A história clássica antiga é a história da cidade. Mas as cidades têm por base a propriedade fundiária e a agricultura. A história asiática é uma espécie de unidade indiferenciada da cidade e do campo.(As grandes cidades propriamente ditas devem ser consideradas como simples acampamentos de nobres. instituição superfetatória acima da organização econômica propriamente dita).. A Idade Média - (época germânica) parte do campo, centro da hist6ria, cujo ulterior desenvolvimento se processa na oposição entre a cidade e o campo; é a urbanização do campo e não, como na Antiguidade. a »ruralização» da cidade.
Ao incorporar-se na cidade, a comuna como tal possui uma existência econômica; a simples existência da cidade como tal é diferente da multidão das casas independentes. Aqui, o todo não é composto pelas suas partes. É uma forma de organismo autónomo. Entre os Germanos, onde os chefes de família se fixam nas florestas e se encontram assim separados por grandes distâncias, a comuna só existe - do mero ponto de vista externo - pela reunião periódica dos seus membros, embora a sua unidade autónoma esteja estabelecida na origem, na língua, no passado comum, na história, etc. Em conseqüência, a comuna apresenta-se como reunião e não como união, como unificação cujos sujeitos autónomos são os proprietários do solo e não como unidade. Desse modo, a comuna não existe enquanto Estado, formação estatal, como entre os Antigos, porque não existe enquanto cidade. Para que a comuna adquira uma existência real, os proprietários fundiários livres têm que se reunir em assembleia, ao passo que, por exemplo, em Roma ela existe para além dessas assembleias, na presença da própria cidade e dos funcionários que estão à frente da mesma, etc. É verdade que também entre os Germanos se encontra o ager publicus, a terra comunal ou o território tribal, distinto da propriedade dos indivíduos particulares. É o terreno de caça, de pastagem, de corte da madeira, etc.; é a parte da terra que, devendo servir como meio de produção sob a sua forma dada, não pode ser dividida. Mas este ager publicus não surge, como por exemplo entre os Romans, sob o aspecto de uma entidade econômica particular do Estado ao lado dos proprietários individuais, que são mesmo proprietários privados na verdadeira acepção da palavra na medida em que, contrariamente aos plebeus, são excluídos do ager publicus. Entre os Germanos, o ager publicus surge antes como um simples complemento da propriedade individual e só figura como propriedade na medida em que é defendido contra o inimigo como propriedade comum de urna. tribo. A propriedade do individuo isolado não é mediatizada pela comuna, ao passo que a existência da comuna e da propriedade comunal .surge como mediatizada, isto é, como laço e relação recíprocos dos sujeitos autónomos. No essencial, cada casa particular contém o conjunto econômico, formando por si mesma um centro autónomo da produção (a manufatura é aqui urna atividade acessória puramente doméstica, reservada às mulheres, etc.). No mundo antigo, a cidade, com o seu termo rural. constitui O conjunto econômico; no mundo germânico, é o domicílio individual, ele próprio, um mero ponto da terra contigua: não uma concentração de vários proprietários, mas a família como unidade independente. Na forma asiática (pelo menos, na mais vulgar). não há. propriedade, mas unicamente posse individual; sendo a comuna o verdadeiro e real proprietário, a propriedade comum do solo é a única que existe. Entre os Antigos, a propriedade fundiária do Estado e a dos indivíduos privados são formas contrastantes, de tal modo que esta é mediatizada por aquela, a menos que a primeira exista sob essa dupla forma (os Romanos são o exemplo clássico; este tipo existia entre eles na sua forma mais acabada). Por isso é o proprietário privado ao mesmo tempo cidadão, homem da cidade. Do ponto de vista econômico, a cidadania reduz-se ao simples fato de o camponês ser habitante de uma cidade. Na forma germânica, o camponês não é cidadão, quer dizer não é habitante das cidades; a base é a casa familiar, isolada e independente, garantida pela união com outras casas semelhantes pertencentes à mesma tribo; é também a reunião ocasional destas famílias por razões de guerra, de religião, de arbitragem jurídica, etc., com vista a garantirem-se mutuamente. A propriedade fundiária individual não é aqui uma forma oposta à propriedade comunal; não é tão-pouco mediatizada por esta: pelo contrário, esta é mediatizada por aquela. A comuna apenas existe na relação recíproca destes proprietários individuais enquanto tais. A propriedade comunal surge somente como um acessório pertencendo em comum às famílias e às apropriações individuais do solo. A comuna não é a substância na qual o indivíduo não seria mais do que um acidente; não é tão-pouco a universalidade que, enquanto tal, constituiria, tanto no espírito dos indivíduos como na existência da cidade e das suas necessidades, uma unidade concreta distinta das necessidades individuais; não é a unidade no seu território urbano, como existência particular, distinta da existência econômica particular do membro da comuna. Pela língua, pelo sangue. etc.. a comuna como tal é, por um lado, o elemento comum que tem precedência sobre o proprietário individual; mas, por outro lado, só existe como realidade na sua reunião real com vista a fins comuns, e, na medida em que a comuna tem, uma existência econômica particular, ela manifesta-a nos terrenos comuns de caça, de pastagem, etc.; ela é explorada por cada proprietário individual como tal e não enquanto representante do Estado (como em Roma). A propriedade realmente comum é a dos proprietários individuais e não a da união desses proprietários, que possui na cidade uma existência distinta da dos indivíduos particulares.
A COMUNA ANTIGA E A RIQUEZA BURGUESA
O importante em tudo isto é o seguinte: em todas estas formas, a propriedade fundiária e a agricultura constituem a base da ordem econômica; por conseqüência, o objetivo econômico é a produção de valores de uso, a reprodução do indivíduo nas relações particulares . da sua comuna; é nestas relações que ele constitui o fundamento da comuna. Em todas estas formas, verificamos os fatos seguintes:
1.A apropriação da condição natural do trabalho, da terra, simultaneamente instrumento de trabalho, laboratório e reservatório das matérias-primas - apropriação que não é resultado do trabalho mas sua condição, considerando o indivíduo as condições objetivas do trabalho como suas próprias, como a natureza não orgânica da sua subjetividade, como o laço e a ocasião em que ele se realiza a si mesmo enquanto sujeito. A principal condição objetiva do trabalho não é um produto do trabalho, apresenta-se como natureza: por um lado, o indivíduo vivo. por outro., a terra, condição objetiva da sua reprodução.
2.Mas este comportamento para com a terra. propriedade do indivíduo trabalhador é diretamente mediatizado pela existência natural, mais ou menos desenvolvida e modificada historicamente, do indivíduo como membro da comuna, da sua existência natural como membro de um clã, etc. Um indivíduo isolado . não poderia ter a propriedade de uma terra do mesmo modo que não poderia ter uma linguagem. Poderia, sem duvida, alimentar-se da terra, da sua substância. como o fazem . O comportamento para com a terra como propriedade é sempre mediatizado pela ocupação, pacífica ou violenta. da terra pela tribo, pela comuna numa forma ainda mais ou menos autónoma ou já historicamente desenvolvida. Jamais o indivíduo se apresenta no isolamento em que surge quando é um simples trabalhador livre. Se se presume que as condições objetivas do seu trabalho lhe pertencem, presume-se subjetivamente o próprio indivíduo como membro de uma comuna, mediadora entre ele e a terra. A sua relação com as condições objetivas do trabalho é mediatizada pela sua existência como membro da comuna; do mesmo modo, a existência real da comuna propriedade, é determinada pela forma específica da sua.
que o torna senhor das condições objetivas do trabalho. São os seguintes os diversos tipos de relações que podem existir entre os membros da comuna ou da tribo e a terra em que a tribo se fixou:
A propriedade mediatizada pela existência da comuna pode aparecer como propriedade comum, não sendo aqui o indivíduo mais do que possuidor: a propriedade privada não existe. Ou então a propriedade apresenta-se sob a dupla forma de propriedade de Estado e de propriedade privada, coexistindo uma ao lado da outra, sendo todavia esta condicionada por aquela, de tal modo que só o cidadão é e deve ser proprietário privado, ao mesmo tempo que. a sua. propriedade como cidadão possui uma existência particular, ou ainda a propriedade comunal não é mais que o complemento da propriedade individual, mas esta: enquanto base da comuna, não tem outra existência para si que não seja no seio da reunião dos membros da comuna e da sua união com vista a fins coletivos.
Todas estas formas e todos estes comportamentos dependem, em parte, das disposições naturais da tribo e, em parte, das condições econômicas em que a tribo realmente se comporta enquanto proprietária em relação à terra, isto é, se apropria dos seus frutos pelo trabalho. Este comportamento, por seu turno, dependerá do clima, física do solo, das condições naturais da constituição da sua exploração, da atitude para com as tribos vizinhas ou inimigas e das mudanças provocadas por migrações, acontecimentos históricos, etc. Para que a comuna
enquanto tal possa continuar a existir como anteriormente, é preciso que os seus membros se reproduzam nas condições objetivas pressupostas. A própria produção, o progresso da população (que, também ele, faz parte da produção), suprimem pouco a pouco, necessariamente, estas condições; destruem-nas em vez de as reproduzirem, etc. Resultado: a comunidade desaparece ao mesmo tempo que as relações de propriedade em que se fundava.
A forma asiática tem a vida mais tenaz e mais longa, o que resulta da sua própria constituição. Nela, o indivíduo isolado não pode tornar-se independente da comuna. Esfera autárcica da produção; unidade da agricultura e do artesanato, etc. Se o indivíduo altera o seu comportamento em relação à comuna, ele transforma a comuna e produz sobre ela e a sua constituição um efeito destruidor. A comuna pode igualmente mudar em virtude da sua própria dialéctica, pelo empobrecimento, etc.; sobretudo pela guerra e a conquista, cuja influência, por exemplo em Roma, pesa essencialmente entre as condições econômicas da comuna e destrói o laço real em que ela assenta. Em todas estas formas, a base do desenvolvimento reside, por um lado, na reprodução das relações mais ou menos naturais ou históricas e tradicionais entre o indivíduo e a sua comuna e, por outro lado, em circunstâncias objetivas determinadas que predeterminam o comportamento do indivíduo face às condições de trabalho e para com os seus co-trabalhadores, irmãos de tribo, etc. Daí que o desenvolvimento não possa deixar de ser limitado, mas, desaparecendo o limite, ele declina e desintegra-se. Tal é o desenvolvimento da escravatura, a concentração da propriedade fundiária, a troca, o sistema monetário, as conquistas, etc. Assim Roma, ainda que todos estes elementos, considerados como simples abusos, tenham até certo ponto parecido compatíveis com as suas instituições, cujas bases pareciam inocentemente alargar. Grandes evoluções podem produzir-se no interior de uma dada esfera. Os indivíduos podem parecer dotados de grandeza. Mas um pleno e livre desenvolvimento do indivíduo e da sociedade é aqui inconcebível: tal desenvolvimento está em contradição com a organização primitiva.
O problema de saber que forma de propriedade fundiária, etc., é mais produtiva, ou. cria maior riqueza, jamais preocupou os Antigos. A seus olhos, a riqueza não é o objetivo da produção, possa embora Catão interrogar-se quanto à maneira mais rentável de cultivar um campo ou Bruto emprestar o seu dinheiro à taxa de juro mais favorável. A investigação refere-se sempre à pergunta: que modo de propriedade cria os melhores cidadãos? Só entre raros povos comerciantes que monopolizam o comércio dos transportes que vivem nos poros do mundo antigo, como os Judeus na sociedade medieval, é que a riqueza surge como, um fim em si. Ora, por um lado, a riqueza é uma coisa realizada em coisas, produção material a que o homem faz face enquanto sujeito; por outro lado, enquanto valor, é o mero poder de encomendar o trabalho de outrem, não com objetivos de dominação, mas para fruição privada. Em todas as suas formas, ela apresenta-se sob um aspecto material, seja como coisa, seja como uma relação mediatizada pela coisa, mas sempre fora do indivíduo ou" acidentalmente, a seu lado. Que sublime surge assim a velha idéia que faz do homem - seja qual for a estreiteza do seu estatuto nacional, religioso e político o objetivo da produção, face ao mundo moderno em que a produção é o objetivo do homem, e a riqueza o objetivo da produção. No entanto, despojando a riqueza dos limites da sua forma burguesa, que vemos? Uma coisa, em verdade: a riqueza é a universalidade das necessidades, das capacidades, dos gozos, das forças produtivas, etc., dos indivíduos, universalidade produzida na troca universal; é o domínio plenamente desenvolvido do homem sobre as forças naturais, tanto sobre a sua própria como sobre aquela a que se chama natureza. É o desenvolvimento dos seus dotes criadores, que mais não pressupõe que o desenvolvimento de todas as faculdades humanas como tais, sem as aferir por um padrão dado. Aí o homem reproduz-se não em um caráter determinado mas na sua totalidade; não procura ser uma coisa imobilizada, antes se encontra no movimento absoluto do devir. Na economia burguesa - na época de produção que lhe corresponde - este pleno desenvolvimento da interioridade humana revela-se despojamento total e esta objetivação universal, alienação total; a destruição de todos os fins parciais revela-se abandono e sacrifício do fim em si a fins absolutamente exteriores. Pôr isso o infantil mundo antigo surge como um mundo superior de cada vez que nos lançamos à procura de formas perfeitamente acabadas, no seio de uma limitação dada, Esse mundo é a satisfação ao seu nivel limitado; o mundo moderno, em contrapartida, deixa-nos insatisfeitos e, mesmo quando está satisfeito consigo, não é mais que vulgaridade.
Notas
1 «Quando os áugurcs - escreve Niebuhr - asseguraram a Numa que a sua eleição tinha obtido a sanção divina, a primeira preocupação deste piedoso rei não foi o culto religioso. mas a sorte dos homens. Distribuiu as terras que haviam sido conquistadas por Rómulo na guerra e abandonadas à ocupação: fundou o culto de Terminu!. Todos os legisladores antigos, a começar por Moisés. alicerçaram o êxito das suas disposições a respeito da virtude, da eqüidade, dos bons costumes. na propriedade da terra, ou, pelo menos, na posse do solo hereditariamente garantida para o maior número possível de cidadão». História Romalla, 2.& ed., vaI. I, p. 245.
2 Onde a propriedade existe unicamente como propriedade comunal, o indivíduo como tal é apenas possuidor de uma parte distinta, hereditária ou não, porquanto nenhuma fração da propriedade pertence a uma pessoa como tal, mas a um indivíduo enquanto membro direto da comuna, diretamente unido a ela e não distinto dela. Este indivíduo é, portanto, somente possuidor. O que existe é apenas a propriedade comunitária e a posse privada. Os modos desta propriedade em relação à propriedade comum podem ser historicamente, localmente, etc., muito diversos, consoante o próprio trabalho que efetua independentemente do possuidor privado ou é, por sua vez, determinado pela comuna ou pela unidade que paira acima da comuna particular.
3 «Nenhum Romano tinha o direito de viver do comércio ou de um oficio.»
4 o indivíduo que trabalha não aparece pois imediatamente como tal, nesta abstração; ele possui na propriedade da terra um modo de existência objetivo. condição da su.J. atividade e não simples resultado desta. Esta propriedade é urna condição da sua atividade ao mesmo título que a sua pele, os seus órgãos sensoriais, que" é certo, ele reproduz e desenvolve no processo vital, mas que presidem a esse mesmo processo de reprodução.
Tradução de Alberto Saraiva sobre a versão francesa de Maximilien Rubel, in K. Marx. Oeuvres: Économie II, . Bibliothéque de la Pléiade. Editions Gatlimard. Paris, 1968. (grifo meu)
COMUNA TRIBAL E DESPOTISMO ORIENTAL
O trabalho livre, a troca do trabalho livre por dinheiro com vista a reproduzir e valorizar o dinheiro são os pressupostos do trabalho assalariado e uma das condições históricas do capital. Nesta troca, o dinheiro é utilizado como valor de uso não para ser consumido; mas para produzir dinheiro. Um outro pressuposto do salariato e do capital é a separação entre o trabalho livre e as condições objetivas da sua realização, isto é, o meio e a matéria do trabalho. Temos assim, desde o início, o fato de o trabalhador estar separado da terra, seu laboratório natural, de onde a dissolução da pequena propriedade livre e da propriedade comum que tem o seu fundamento na comuna oriental.
Sob estas duas formas, o trabalhador é o proprietário das condições objetivas do seu trabalho relação que constitui a unidade natural do trabalho com os seus pressupostos materiais: aqui, independentemente do seu trabalho, o trabalhador possui uma existência objetiva. O indivíduo é, em relação a si mesmo, proprietário e dono das condições de sua realidade. A mesma relação face a terceiros: consoante esse estatuto emane da comuna ou das famílias que constituem a comuna, o indivíduo considera os outros como co-proprietários (outras tantas personificações da propriedade comum) ou como proprietários independentes a seu lado, proprietários privados. Neste último caso, a propriedade comum, que anteriormente absorvia todas as terras e dominava todas as pessoas, apresenta-se como ager publicus distinto, ao lado das numerosas propriedades privadas. Numa e noutra forma, os indivíduos não têm o estatuto de trabalhadores, mas de proprietários. Simultaneamente membros e co-proprietários de uma comunidade, é como tais, que nela trabalham. Embora os trabalhadores possam fornecer trabalho excedente para em troca obterem produtos alheios, produtos excedentes, o seu objetivo não é criar valores. O seu trabalho tem por finalidade a conservação de cada proprietário individual e da sua família, bem como a conservação da comunidade no seu conjunto. O indivíduo como trabalhador, na sua nudez de trabalhador, é um produto histórico.
Podemos verificar que, na primeira forma desta propriedade da terra, a comunidade natural é a condição primordial: quer por casamentos recíprocos, quer por associação, a família cresce até às dimensões da tribo. Podemos admitir que o estado pastoril e, em geral, a migração constituem o primeiro modo de existência; não que a tribo se fixe num certo território: ela vai apascentando nos prados que encontra no seu caminho; os homens não são sedentários por natureza (a menos que se encontrem num ambiente natural particularmente fértil e que vivam nas árvores como macacos; geralmente, erram à aventura como selvagens). Por conseguinte, a comunidade tribal, a comuna natural, aparece não como o resultado, mas como a condição da apropriação (temporária) e da utilização comuns do solo.
Uma vez fixada, esta comunidade primitiva sofrerá modificações mais ou menos profundas, conforme as diversas condições exteriores climáticas, geográficas, físicas, etc. - e as suas disposições naturais, o seu caráter tribal. A comunidade tribal primitiva, ou, se se quiser, o estado gregário, é a primeira condição - comunidade do sangue, da língua, dos costumes, etc. - da apropriação das condições objetivas da vida e da atividade reprodutora e criadora de produtos (como pastores, caçadores, agricultores, etc.). A terra é o grande laboratório, o arsenal que simultaneamente fornece os meios e os materiais do trabalho e a residência, base da comunidade. Em relação a esta base, propriedade da comuna, bem como em relação à comunidade que se produz e se reproduz no trabalho vivo, os homens conduzem-se de modo absolutamente ingênuo. Cada indivíduo detém o estatuto de proprietário ou de possuidor apenas enquanto membro da comunidade. É nestas condições - que não são produto do trabalho, antes que se efetua aparecem como naturais ou divinas - a apropriação real por intermédio do processo do trabalho.
Embora assente num fundamento invariável, esta forma pode realizar-se de diversas maneiras. Por exemplo, não há nada de contraditório em, como sucede na maior parte das formas asiáticas, a unidade centralizadora que se ergue por sobre as pequenas comunidades fazer figura de proprietário supremo ou único. aparecendo as comunas reais então como simples possuidores hereditários. Uma vez que a Unidade é o verdadeiro proprietário e o pressuposto real da propriedade comum, esta pode mesmo surgir como um fenômeno distinto e superior às numerosas comunas particulares, sendo nessa altura o individuo isolado de fato desprovido de propriedade. Por outras palavras, a propriedade isto é o comportamento do indivíduo em relação às condições naturais do trabalho e da reprodução que, enquanto natureza não orgânica fazendo corpo com a sua subjetividade, parecem pertencer-lhe objetivamente - é dada - ao indivíduo pela boa vontade da Unidade total realizada na pessoa do déspota, pai das diversas comunas, que a concede ao indivíduo por intermédio de determinada comuna particular. Daí que o sobreproduto, de resto legalmente fixado graças à apropriação real pelo trabalho, reverta automaticamente para essa unidade suprema. No seio do despotismo oriental e da não-propriedade, que.., I parece ter aqui uma base jurídica, a propriedade tribal ou comunal possui uma base efetiva e é, na maior parte das vezes, produto de uma combinação da manufatura com a agricultura no interior da pequena comuna. Esta torna-se assim inteiramente autárcica e contém em si mesma todas as condições da reprodução e da produção excedentária.
Uma parte do seu sobretrabalho pertence à comunidade superior, a qual acaba por tomar corpo numa pessoa. e este sobretrabalho manifesta-se tanto no tributo, etc" como nos trabalhos coletivos destinados a glorificar a Unidade incamada no déspota real ou no ser tribal imaginário que é o deus. Na medida em que, se realiza verdadeiramente no trabalho, este tipo de propriedade comunal. pode assumir formas variadas: as pequenas comunas têm uma existência vegetativa e independente umas ao lado das outras e cada indivíduo trabalha independentemente com a sua família no lote de terra que lhe é atribuído (determinado trabalho, por um lado, para o aprovisionamento comum, o seguro, quase poderíamos dizê-lo, e, por outro lado, para cobrir as despesas da comuna como tal: a guerra, o culto, etc.; o dominium senhorial, no seu sentido mais primitivo, só aqui se reencontra, por exemplo nas comunas eslavas, romenas, etc.; transição para o regime das corveias, etc.); ou então a unidade pode estender-se à comunidade no próprio trabalho, dando origem a um verdadeiro sistema, como no México e, especialmente, no Peru, entre os antigos Celtas, em algumas tribos indianas. O caráter comunitário pode, além disso, surgir no seio da tribo sob a forma de um chefe da família tribal, representante da unidade, ou como uma relação de mutualidade entre os pais de família. Temos nessa altura, conforme o caso, uma forma mais ou menos despótica ou democrática dessa comunidade. As condições comunitárias da apropriação real pelo trabalho (muito importantes entre os povos asiáticos), aquedutos, meios de comunicação, etc.. surgem então como obra da unidade superior, o governo despótico que paira acima das pequenas comunas. As cidades propriamente ditas formam-se ao lado destas aldeias, mas em pontos particularmente favoráveis para o comércio externo, ou então no local em que o chefe do Estado e os seus sátrapas trocam o seu rendimento (sobreproduto) pelo trabalho e o dispendem a título de fundo de mão-de-obra.
COMUNA E ESTADO EM ROMA
A segunda forma (tal como a primeira. deu origem a importantes variantes, locais, históricas, etc.) resulta de uma vida histórica mais movimentada, de um concurso de fatalidades e de transformações sobre vindas no seio das tribos primitivas. Ela pressupõe igualmente a comunidade como condição primordial, mas. não como no -primeiro caso - enquanto substância na qual o indivíduo não passa de um acidente ou de um elemento puramente natural; não pressupõe a terra como base, mas sim a cidade enquanto estância (centro) já criada de agricultores (proprietários fundiários). A superfície cultivada aparece como o território da cidade, que já não é a aldeia, simples acessório do campo. Em si, a terra sejam quais forem os obstáculos que possa oferecer ao cultivo e. à apropriação real - não se opõe à natureza não orgânica do indivíduo vivo; ela é a oficina, o instrumento de trabalho, o objeto, o meio de subsistência do sujeito. As dificuldades encontradas por uma comuna só podem provir de outras comunas que tenham já ocupado as terras ou a impeçam -de se instalar. Por isso é a guerra a grande tarefa total e o grande trabalho comum, exigidos quer para dominar as condições objetivas da existência viva, quer para proteger e perpetuar os fundamentos dessa dominação. É pois militarmente que em primeiro lugar se organiza a comuna composta por famílias; a organização militar e guerreira é uma das condições da sua existência como proprietária. A base desta organização militar é a concentração das habitações na cidade. A ordem tribal como tal leva à divisão em famílias superiores e inferiores, diferença que se desenvolve ainda mais pela fusão com clãs subjugados, etc. Aqui, , a propriedade da comuna - propriedade do Estado, ager publicus - é separada da propriedade privada. Contrariamente ao que se passa no primeiro caso, em que, separada da comuna, a propriedade não pertence ao indivíduo isolado conquanto ele detenha a sua posse, aqui a propriedade do indivíduo isolado não é diretamente a da comuna. Quanto menos susceptível é a propriedade individual de ser valorizada apenas pelo trabalho coletivo (por exemplo, os aquedutos no Oriente). tanto mais é o caráter puramente natural da tribo destruído pelo movimento histórico a migração; além disso, quanto mais a tribo se afasta da sua estância primitiva e mais territórios estrangeiros ocupa, quanto mais, portanto, se encontra em condições de trabalho essencialmente novas, tanto mais se desenvolve a energia dos indivíduo; isolados (surgindo aqui forçosamente o caráter comunitário como unidade negativa face ao exterior) e se vêem surgir as condições que fazem com que o indivíduo se torne proprietário privado do solo de uma parcela particular cujo cultivo particular lhe incumbe, a ele e à sua família.
A comuna, enquanto Estado, é a relação recíproca destes proprietários livres e iguais, a sua união face ao exterior; é, ao mesmo tempo, o penhor dessa união. A comunidade funda-se aqui no fato de os seus membros serem constituídos por proprietários fundiários que trabalham, Dor camponeses parcelares cuja independência reside nas suas relações recíprocas como membros da comuna, na garantia do ager publicus em quanto se refere às necessidades colectivas, à glória comum, etc. A apropriação do solo tem aqui por condição a pertença à comuna; mas, enquanto membro desta, o indivíduo isolado é proprietário privado. Para ele, a propriedade privada é a terra; mas é também a sua existência enquanto membro da comuna: conservando-se como tal, ele contribui para a conservar, e inversamente, etc. Sendo já um produto histórico, não só na sua realidade mas também na consciência, portanto o resultado de um processo, a comuna pressupõe a propriedade do solo, isto é, a relação do sujeito trabalhador com as condições naturais do trabalho como pertencendo a ele. Mas esta propriedade é mediatizada pelo seu estatuto de membro do Estado, pela existência do Estado, em suma, por um pressuposto considerado de ordem divina, etc. Concentração na cidade, cujo território se estende à zona rural; pequena agricultura trabalhando para o consumo direto; manufatura como ofício acessório das mulheres e das filhas (fiação e tecelagem) ou como atividade independente em certos ramos (fabri, etc.) A persistência da comunidade é garantida pelo respeito da igualdade entre os camponeses livres e independentes, cujo trabalho condiciona a manutenção da propriedade. Comportando-se em relação às condições naturais do trabalho como proprietários, eles têm que, pelo trabalho pessoal, incessantemente afirmá-Ias como condições e elementos objetivos da personalidade individual.
Por outro lado, esta pequena comunidade guerreira é levada, pelas suas próprias tendências, a ultrapassar esses limites, etc. (Roma, Creta, Judeus, etc.). Para arranjar com que viver, o indivíduo é colocado em condições tais que o objeto do seu trabalho não é a aquisição da riqueza mas a autarcia, a sua própria reprodução como proprietário da parcela de terra e, nessa medida, como membro da comuna. i) persistência da comuna requer a reprodução de todos os seus membros como camponeses independentes, cujo tempo excedente pertence justamente à comuna, ao trabalho da guerra, etc. Apropriam-se do seu próprio trabalho apropriando-se das condições do trabalho, da jeira de terra que é garantida pela existência da comuna, a qual é por sua vez garantida pelo sobretrabalho dos membros da comuna sob a forma de serviço militar, etc. O membro da comuna reproduz-se cooperando não na criação de riquezas, mas em trabalhos de interesse comum (imaginário ou real) com vista a manter a associação no interior e face ao exterior. A propriedade é quiritária, romana. O proprietário privado só o é na sua qualidade de Romano; mas, enquanto Romano, ele é proprietário privado.
PROPRIEDADE ROMANA E PROPRIEDADE GERMANICA
Uma das formas da propriedade em que os indivíduos trabalhadores, membros autárcicos da comunidade, se apropriam das condições naturais do seu trabalho é a propriedade germânica... Aqui - ao .contrário da forma especificamente oriental - o membro da comuna não é, como tal, co-possuidor da propriedade comum. Tão. .pouco é o solo ocupado pela comuna, como na forma romana, grega (em suma, da Antiguidade clássica). Não é solo romano. Uma parte fica em poder da comuna como tal, distinta dos membros da comuna, ager publicus nas suas diversas formas; a outra parte é distribuída, e cada parcela do solo é romana porquanto é a propriedade privada, o domínio de um Romano, a parte que lhe cabe no laboratório; mas, na verdade, ele não é Romano senão na medida em que possui esse direito soberano sobre uma parte da terra romana.
Na Antiguidade. os ofícios e o comércio citadinos eram pouco apreciados; em contrapartida. a agricultura era tida em grande estima. Na Idade Média passa-se o contrário. - O direito de explorar a terra comunal mediante ocupação cabia originariamente aos patrícios, os quais. por seu turno concediam feudos aos seus clientes; só os plebeus tinham o direito de concessão da propriedade do ager publicus; todas as concessões se fariam em proveito dos plebeus, que podiam ser indemnizados pela sua parte na terra comunal. A propriedade da torra propriamente dita. exceptuada a região em torno dos muros da cidade, estava originariamente apenas nas mãos dos plebeus. Mais tarde, esta propriedade será acolhida nas comunas rurais. O caráter fundamental da plebe romana é o de uma colectividade de agricultores, segundo a definição da propriedade quiritária. Os Antigos consideravam unanimemente a agricultura como a verdadeira profissão do homem e como a escola do soldado. é com ela que se conserva antiga estirpe da nação; muda de caráter nas cidades, onde os comerciantes e os artesãos estrangeiros se vêm estabelecer, tal como os autóctones atraídos pelo ganho. Por toda a parte em que esteja estabelecida a escravatura, os libertos instalam-se no comércio e no artesanato. que. muitas vezes, lhes proporcionam riquezas. É assim que, na Antiguidade, estas profissões estavam quase todas entre as suas mãos tornando-se por isso mesmo pouco próprias para o exercício da cidadania. Daí a opinião de que era perigoso o acesso dos artesãos à plenitude do direito dos cidadãos (por regra, entre os antigos Gregos, eram dele excluídos).3 Os Antigos não tinham qualquer noção da dignidade dos mesteres, como no-los mostra a história das cidades da Idade Média e é inegável que quando as corporações triunfaram sobre
as gentes,. o espírito guerreiro decaiu entre eles e acabou por se extinguir totalmente e com ele a reputação e a liberdade das cidades.
As tribos dos Estados antigos eram constituídas de duas maneiras: segundo as gentes que as compunham ou segundo o local que ocupavam. As tribos de famílias têm prioridade de data sobre as de local e quase por toda a parte lhes cedem o lugar. A sua forma mais rigorosa é o sistema de castas separadas umas das outras. impermeáveis ao casamento recíproco e de níveis absolutamente diferentes. Neste sistema. cada casta tem uma vocação exclusiva. imutável. Originariamente. as tribos correspondem a uma divisão da região em cantões e aldeias: quem quer que tivesse possessões numa aldeia na época em que a tribo se estabeleceu, por exemplo, na fi,..tica no tempo de Clístenes. era por isso mesmo inscrito, na qualidade de demotas (membro do demo ou aldeia), na tribo do cantão a que pertencia a sua aldeia. Seguidamente, os seus descendentes, sem consideração pelo local do seu domicilio, continuavam. regra geral. a fazer parte quer da mesma tribo quer do mesmo demo, o que introduziu, mesmo nesta divisão. uma aparência de genealogia. As gentes romanas não eram consangüíneos: Cícero, como característica de um nome comum. acrescenta a filiação de um liberto. Os sacra comuns dos membros da gens romana acabaram mais tarde (já na época de Cícero): o direito de herdar dos co-membros da gens falecidos sem deixar sucessores foi o que se conservou por mais tempo. Obrigação, nos tempos mais recuados, para os co-membros da gens de ajudar a suportar os encargos extraordinários dos que estavam em necessidade (originariamente, por todo o lado entre os Alemães, durante mais tempo entre as Dithmarschen). As gentes. espécie de corporações. Não houve no mundo antigo instituição mais geral do que a das gentes. :2 assim que, entre os Gaélicos, os nobres Campbell e os seus vassalos formavam um clã. Como o patrícia representa a comunidade a uma escala superior, ele é o possuidor do ager publicus e explora-o por intermédio dos seus clientes, etc. (e acaba por dele se apropriar). A comuna germânica não se concentra na cidade como centro da vida rural, domicílio dos operários agrícolas, sede das operações militares; em conseqüência dessa concentração urbana, a comuna passa a ter apenas uma existência externa, distinta da dos indivíduos isolados.
A história clássica antiga é a história da cidade. Mas as cidades têm por base a propriedade fundiária e a agricultura. A história asiática é uma espécie de unidade indiferenciada da cidade e do campo.(As grandes cidades propriamente ditas devem ser consideradas como simples acampamentos de nobres. instituição superfetatória acima da organização econômica propriamente dita).. A Idade Média - (época germânica) parte do campo, centro da hist6ria, cujo ulterior desenvolvimento se processa na oposição entre a cidade e o campo; é a urbanização do campo e não, como na Antiguidade. a »ruralização» da cidade.
Ao incorporar-se na cidade, a comuna como tal possui uma existência econômica; a simples existência da cidade como tal é diferente da multidão das casas independentes. Aqui, o todo não é composto pelas suas partes. É uma forma de organismo autónomo. Entre os Germanos, onde os chefes de família se fixam nas florestas e se encontram assim separados por grandes distâncias, a comuna só existe - do mero ponto de vista externo - pela reunião periódica dos seus membros, embora a sua unidade autónoma esteja estabelecida na origem, na língua, no passado comum, na história, etc. Em conseqüência, a comuna apresenta-se como reunião e não como união, como unificação cujos sujeitos autónomos são os proprietários do solo e não como unidade. Desse modo, a comuna não existe enquanto Estado, formação estatal, como entre os Antigos, porque não existe enquanto cidade. Para que a comuna adquira uma existência real, os proprietários fundiários livres têm que se reunir em assembleia, ao passo que, por exemplo, em Roma ela existe para além dessas assembleias, na presença da própria cidade e dos funcionários que estão à frente da mesma, etc. É verdade que também entre os Germanos se encontra o ager publicus, a terra comunal ou o território tribal, distinto da propriedade dos indivíduos particulares. É o terreno de caça, de pastagem, de corte da madeira, etc.; é a parte da terra que, devendo servir como meio de produção sob a sua forma dada, não pode ser dividida. Mas este ager publicus não surge, como por exemplo entre os Romans, sob o aspecto de uma entidade econômica particular do Estado ao lado dos proprietários individuais, que são mesmo proprietários privados na verdadeira acepção da palavra na medida em que, contrariamente aos plebeus, são excluídos do ager publicus. Entre os Germanos, o ager publicus surge antes como um simples complemento da propriedade individual e só figura como propriedade na medida em que é defendido contra o inimigo como propriedade comum de urna. tribo. A propriedade do individuo isolado não é mediatizada pela comuna, ao passo que a existência da comuna e da propriedade comunal .surge como mediatizada, isto é, como laço e relação recíprocos dos sujeitos autónomos. No essencial, cada casa particular contém o conjunto econômico, formando por si mesma um centro autónomo da produção (a manufatura é aqui urna atividade acessória puramente doméstica, reservada às mulheres, etc.). No mundo antigo, a cidade, com o seu termo rural. constitui O conjunto econômico; no mundo germânico, é o domicílio individual, ele próprio, um mero ponto da terra contigua: não uma concentração de vários proprietários, mas a família como unidade independente. Na forma asiática (pelo menos, na mais vulgar). não há. propriedade, mas unicamente posse individual; sendo a comuna o verdadeiro e real proprietário, a propriedade comum do solo é a única que existe. Entre os Antigos, a propriedade fundiária do Estado e a dos indivíduos privados são formas contrastantes, de tal modo que esta é mediatizada por aquela, a menos que a primeira exista sob essa dupla forma (os Romanos são o exemplo clássico; este tipo existia entre eles na sua forma mais acabada). Por isso é o proprietário privado ao mesmo tempo cidadão, homem da cidade. Do ponto de vista econômico, a cidadania reduz-se ao simples fato de o camponês ser habitante de uma cidade. Na forma germânica, o camponês não é cidadão, quer dizer não é habitante das cidades; a base é a casa familiar, isolada e independente, garantida pela união com outras casas semelhantes pertencentes à mesma tribo; é também a reunião ocasional destas famílias por razões de guerra, de religião, de arbitragem jurídica, etc., com vista a garantirem-se mutuamente. A propriedade fundiária individual não é aqui uma forma oposta à propriedade comunal; não é tão-pouco mediatizada por esta: pelo contrário, esta é mediatizada por aquela. A comuna apenas existe na relação recíproca destes proprietários individuais enquanto tais. A propriedade comunal surge somente como um acessório pertencendo em comum às famílias e às apropriações individuais do solo. A comuna não é a substância na qual o indivíduo não seria mais do que um acidente; não é tão-pouco a universalidade que, enquanto tal, constituiria, tanto no espírito dos indivíduos como na existência da cidade e das suas necessidades, uma unidade concreta distinta das necessidades individuais; não é a unidade no seu território urbano, como existência particular, distinta da existência econômica particular do membro da comuna. Pela língua, pelo sangue. etc.. a comuna como tal é, por um lado, o elemento comum que tem precedência sobre o proprietário individual; mas, por outro lado, só existe como realidade na sua reunião real com vista a fins comuns, e, na medida em que a comuna tem, uma existência econômica particular, ela manifesta-a nos terrenos comuns de caça, de pastagem, etc.; ela é explorada por cada proprietário individual como tal e não enquanto representante do Estado (como em Roma). A propriedade realmente comum é a dos proprietários individuais e não a da união desses proprietários, que possui na cidade uma existência distinta da dos indivíduos particulares.
A COMUNA ANTIGA E A RIQUEZA BURGUESA
O importante em tudo isto é o seguinte: em todas estas formas, a propriedade fundiária e a agricultura constituem a base da ordem econômica; por conseqüência, o objetivo econômico é a produção de valores de uso, a reprodução do indivíduo nas relações particulares . da sua comuna; é nestas relações que ele constitui o fundamento da comuna. Em todas estas formas, verificamos os fatos seguintes:
1.A apropriação da condição natural do trabalho, da terra, simultaneamente instrumento de trabalho, laboratório e reservatório das matérias-primas - apropriação que não é resultado do trabalho mas sua condição, considerando o indivíduo as condições objetivas do trabalho como suas próprias, como a natureza não orgânica da sua subjetividade, como o laço e a ocasião em que ele se realiza a si mesmo enquanto sujeito. A principal condição objetiva do trabalho não é um produto do trabalho, apresenta-se como natureza: por um lado, o indivíduo vivo. por outro., a terra, condição objetiva da sua reprodução.
2.Mas este comportamento para com a terra. propriedade do indivíduo trabalhador é diretamente mediatizado pela existência natural, mais ou menos desenvolvida e modificada historicamente, do indivíduo como membro da comuna, da sua existência natural como membro de um clã, etc. Um indivíduo isolado . não poderia ter a propriedade de uma terra do mesmo modo que não poderia ter uma linguagem. Poderia, sem duvida, alimentar-se da terra, da sua substância. como o fazem . O comportamento para com a terra como propriedade é sempre mediatizado pela ocupação, pacífica ou violenta. da terra pela tribo, pela comuna numa forma ainda mais ou menos autónoma ou já historicamente desenvolvida. Jamais o indivíduo se apresenta no isolamento em que surge quando é um simples trabalhador livre. Se se presume que as condições objetivas do seu trabalho lhe pertencem, presume-se subjetivamente o próprio indivíduo como membro de uma comuna, mediadora entre ele e a terra. A sua relação com as condições objetivas do trabalho é mediatizada pela sua existência como membro da comuna; do mesmo modo, a existência real da comuna propriedade, é determinada pela forma específica da sua.
que o torna senhor das condições objetivas do trabalho. São os seguintes os diversos tipos de relações que podem existir entre os membros da comuna ou da tribo e a terra em que a tribo se fixou:
A propriedade mediatizada pela existência da comuna pode aparecer como propriedade comum, não sendo aqui o indivíduo mais do que possuidor: a propriedade privada não existe. Ou então a propriedade apresenta-se sob a dupla forma de propriedade de Estado e de propriedade privada, coexistindo uma ao lado da outra, sendo todavia esta condicionada por aquela, de tal modo que só o cidadão é e deve ser proprietário privado, ao mesmo tempo que. a sua. propriedade como cidadão possui uma existência particular, ou ainda a propriedade comunal não é mais que o complemento da propriedade individual, mas esta: enquanto base da comuna, não tem outra existência para si que não seja no seio da reunião dos membros da comuna e da sua união com vista a fins coletivos.
Todas estas formas e todos estes comportamentos dependem, em parte, das disposições naturais da tribo e, em parte, das condições econômicas em que a tribo realmente se comporta enquanto proprietária em relação à terra, isto é, se apropria dos seus frutos pelo trabalho. Este comportamento, por seu turno, dependerá do clima, física do solo, das condições naturais da constituição da sua exploração, da atitude para com as tribos vizinhas ou inimigas e das mudanças provocadas por migrações, acontecimentos históricos, etc. Para que a comuna
enquanto tal possa continuar a existir como anteriormente, é preciso que os seus membros se reproduzam nas condições objetivas pressupostas. A própria produção, o progresso da população (que, também ele, faz parte da produção), suprimem pouco a pouco, necessariamente, estas condições; destruem-nas em vez de as reproduzirem, etc. Resultado: a comunidade desaparece ao mesmo tempo que as relações de propriedade em que se fundava.
A forma asiática tem a vida mais tenaz e mais longa, o que resulta da sua própria constituição. Nela, o indivíduo isolado não pode tornar-se independente da comuna. Esfera autárcica da produção; unidade da agricultura e do artesanato, etc. Se o indivíduo altera o seu comportamento em relação à comuna, ele transforma a comuna e produz sobre ela e a sua constituição um efeito destruidor. A comuna pode igualmente mudar em virtude da sua própria dialéctica, pelo empobrecimento, etc.; sobretudo pela guerra e a conquista, cuja influência, por exemplo em Roma, pesa essencialmente entre as condições econômicas da comuna e destrói o laço real em que ela assenta. Em todas estas formas, a base do desenvolvimento reside, por um lado, na reprodução das relações mais ou menos naturais ou históricas e tradicionais entre o indivíduo e a sua comuna e, por outro lado, em circunstâncias objetivas determinadas que predeterminam o comportamento do indivíduo face às condições de trabalho e para com os seus co-trabalhadores, irmãos de tribo, etc. Daí que o desenvolvimento não possa deixar de ser limitado, mas, desaparecendo o limite, ele declina e desintegra-se. Tal é o desenvolvimento da escravatura, a concentração da propriedade fundiária, a troca, o sistema monetário, as conquistas, etc. Assim Roma, ainda que todos estes elementos, considerados como simples abusos, tenham até certo ponto parecido compatíveis com as suas instituições, cujas bases pareciam inocentemente alargar. Grandes evoluções podem produzir-se no interior de uma dada esfera. Os indivíduos podem parecer dotados de grandeza. Mas um pleno e livre desenvolvimento do indivíduo e da sociedade é aqui inconcebível: tal desenvolvimento está em contradição com a organização primitiva.
O problema de saber que forma de propriedade fundiária, etc., é mais produtiva, ou. cria maior riqueza, jamais preocupou os Antigos. A seus olhos, a riqueza não é o objetivo da produção, possa embora Catão interrogar-se quanto à maneira mais rentável de cultivar um campo ou Bruto emprestar o seu dinheiro à taxa de juro mais favorável. A investigação refere-se sempre à pergunta: que modo de propriedade cria os melhores cidadãos? Só entre raros povos comerciantes que monopolizam o comércio dos transportes que vivem nos poros do mundo antigo, como os Judeus na sociedade medieval, é que a riqueza surge como, um fim em si. Ora, por um lado, a riqueza é uma coisa realizada em coisas, produção material a que o homem faz face enquanto sujeito; por outro lado, enquanto valor, é o mero poder de encomendar o trabalho de outrem, não com objetivos de dominação, mas para fruição privada. Em todas as suas formas, ela apresenta-se sob um aspecto material, seja como coisa, seja como uma relação mediatizada pela coisa, mas sempre fora do indivíduo ou" acidentalmente, a seu lado. Que sublime surge assim a velha idéia que faz do homem - seja qual for a estreiteza do seu estatuto nacional, religioso e político o objetivo da produção, face ao mundo moderno em que a produção é o objetivo do homem, e a riqueza o objetivo da produção. No entanto, despojando a riqueza dos limites da sua forma burguesa, que vemos? Uma coisa, em verdade: a riqueza é a universalidade das necessidades, das capacidades, dos gozos, das forças produtivas, etc., dos indivíduos, universalidade produzida na troca universal; é o domínio plenamente desenvolvido do homem sobre as forças naturais, tanto sobre a sua própria como sobre aquela a que se chama natureza. É o desenvolvimento dos seus dotes criadores, que mais não pressupõe que o desenvolvimento de todas as faculdades humanas como tais, sem as aferir por um padrão dado. Aí o homem reproduz-se não em um caráter determinado mas na sua totalidade; não procura ser uma coisa imobilizada, antes se encontra no movimento absoluto do devir. Na economia burguesa - na época de produção que lhe corresponde - este pleno desenvolvimento da interioridade humana revela-se despojamento total e esta objetivação universal, alienação total; a destruição de todos os fins parciais revela-se abandono e sacrifício do fim em si a fins absolutamente exteriores. Pôr isso o infantil mundo antigo surge como um mundo superior de cada vez que nos lançamos à procura de formas perfeitamente acabadas, no seio de uma limitação dada, Esse mundo é a satisfação ao seu nivel limitado; o mundo moderno, em contrapartida, deixa-nos insatisfeitos e, mesmo quando está satisfeito consigo, não é mais que vulgaridade.
Notas
1 «Quando os áugurcs - escreve Niebuhr - asseguraram a Numa que a sua eleição tinha obtido a sanção divina, a primeira preocupação deste piedoso rei não foi o culto religioso. mas a sorte dos homens. Distribuiu as terras que haviam sido conquistadas por Rómulo na guerra e abandonadas à ocupação: fundou o culto de Terminu!. Todos os legisladores antigos, a começar por Moisés. alicerçaram o êxito das suas disposições a respeito da virtude, da eqüidade, dos bons costumes. na propriedade da terra, ou, pelo menos, na posse do solo hereditariamente garantida para o maior número possível de cidadão». História Romalla, 2.& ed., vaI. I, p. 245.
2 Onde a propriedade existe unicamente como propriedade comunal, o indivíduo como tal é apenas possuidor de uma parte distinta, hereditária ou não, porquanto nenhuma fração da propriedade pertence a uma pessoa como tal, mas a um indivíduo enquanto membro direto da comuna, diretamente unido a ela e não distinto dela. Este indivíduo é, portanto, somente possuidor. O que existe é apenas a propriedade comunitária e a posse privada. Os modos desta propriedade em relação à propriedade comum podem ser historicamente, localmente, etc., muito diversos, consoante o próprio trabalho que efetua independentemente do possuidor privado ou é, por sua vez, determinado pela comuna ou pela unidade que paira acima da comuna particular.
3 «Nenhum Romano tinha o direito de viver do comércio ou de um oficio.»
4 o indivíduo que trabalha não aparece pois imediatamente como tal, nesta abstração; ele possui na propriedade da terra um modo de existência objetivo. condição da su.J. atividade e não simples resultado desta. Esta propriedade é urna condição da sua atividade ao mesmo título que a sua pele, os seus órgãos sensoriais, que" é certo, ele reproduz e desenvolve no processo vital, mas que presidem a esse mesmo processo de reprodução.
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