sexta-feira, 10 de julho de 2009

Formações Econômicas Pré-Capitalistas - Parte 2 - Karl Marx

Título original: Formen die der Kapitalistiscllen Produktion vorhergehtl

Tradução de Alberto Saraiva sobre a versão francesa de Maximilien Rubel, in K. Marx. Oeuvres: Economie II, . Bibliothéque de la Pléiade. Editions Gatlimard. Paris, 1968.


PROPRIEDADE E APROPRIAÇÃO


Aquilo a que o sr. Proudhon chama a gênese extra-econômica da propriedade - com o quer precisamente é referir-se à propriedade fundiária - é a relação pré-burguesa do indivíduo face às condições objetivas do trabalho, e, em primeiro lugar, face às suas condições objetivas naturais. Quado que o sujeito que trabalha é um indivíduo natural, uma realidade natural, a primeira condição objetiva do seu trabalho surge como natureza, terra, como o seu corpo não orgânico, ele próprio não é apenas um corpo orgânico: é essa natureza não orgânica enquanto sujeito. Esta condição não é produto do indivíduo; ele encontra-a acabada perante si, como uma realidade natural anterior e exterior a ele. Antes de prosseguirmos a nossa análise, uma observação: o pobre Proudhon não só podia como devia igualmente denunciar a origem não econômica do capital e do, trabalho assalariado enquanto formas da propriedade. Efetivamente, se o operário encontra perante si e de si separadas as condições objetivas do trabalho sob a forma de capital e se o capitalista encontra perante si o trabalhador privado de qualquer propriedade, o trabalhador abstrato, isso acontece porque, tal como se opera, a troca entre o valor e o trabalho vivo pressupõe um processo histórico. Embora o .capital e o trabalho assalariado reproduzam eles próprios esta relação e a amadureçam em toda a sua profundidade e extensão objetiva, eles pressupõem, repitamo-lo, um processo histórico que constitui a sua gênese. Por outras palavras: a gênese extra-econômica da propriedade não significa mais do que a gênese histórica da economia burguesa, das formas de produção que se exprimem teoricamente e idealmente nas e pelas categorias da economia política. Dizer que a cada fase da história pré-burguesa corresponde a sua economia, dizer que o seu movimento tem uma base econômica é, no fundo, afirmar uma tautologia pura. É dizer que a vida do homem foi sempre fundada, de uma maneira ou de outra, na produção, na produção social, cujas relações são precisamente designadas por nós como relações econômicas.

As condições primitivas da produção não podem ser elas próprias produtos ou resultados da produção. do mesmo modo aliás e é a mesma coisa - que a reprodução de seres humanos. cujo número aumenta pelo processo natural dos sexos. Se esta reprodução aparece, por um lado. como apropriação dos objetos pelos sujeitos, aparece, por outro lado, como formação. subjugação dos objetos a um fim subjetivo, sua transformação em resultados e em receptáculos .da atividade subjetiva. O que requer uma explicação não é a unidade dos indivíduos ativos e das condições não orgânicas do seu metabolismo com a natureza de que se apropriam: esta unidade não é de modo nenhum resultado de um processo histórico. O que precisa de ser explicado é antes a separação entre a existência humana ativa e as condições- não orgânicas da existência. separação que é perfeitamente visível na reação entre o trabalho assalariado e o capital. Ela não se verifica nem no sistema escravagista nem no feudalismo: aí, uma parte da sociedade é tratada pela outra como a condição não orgânica e natural da sua própria reprodução. O escravo não está em nenhuma relação com as condições objetivas do seu trabalho; pelo contrário, na pessoa do escravo como na do serve, o próprio trabalho é considerado como condição não orgânica da produção, ao mesmo título que o trabalho dos outros seres naturais, ao lado do gado ou como acessório do solo. O mesmo é dizer que as condições primitivas da produção surgem como os pressupostos naturais da existência natural do produtor; do mesmo modo, o seu corpo vivo, que ele reproduz e desenvolve realmente, aparece não como obra sua mas como a sua própria condição: a sua existência (física) é um pressuposto natural, que ele não criou. Estas condições naturais de existência, com as quais ele se encontra em relação como seu próprio corpo não orgânico, são elas mesmas duplas: 1. de natureza subjetiva; 2. de natureza objetiva. Ele vê-se membro de uma família. de um clã. de uma tribo, etc., as quais, misturando-se e opondo-se a outras, adoptam formas historicamente diferentes; e, como tal, ele encontra-se em relação com uma natureza determinada (dígamo-lo de novo: a terra. o solo) como sua própria existência não orgânica enquanto condição da sua produção e da sua reprodução. Membro natural da comunidade, ele tem a sua parte .la propriedade comum, possui uma fração particular dela, tal como o cidadão romano, por direito de nascença, tem um direito ideal (pelo menos) sobre o ager publicus e um direito real sobre tantas Jeiras de terra, etc. A sua propriedade - isto é, as condições naturais da sua produção, com as quais ele está relacionado como sendo as suas próprias - é mediatizada pela sua qualidade de. membro natural de uma comunidade. Por exemplo, é evidente que o indivíduo isolado está em relação com a sua língua como sua unicamente enquanto é um membro natural de uma comunidade humana. Uma língua produto de um s6 indivíduo é um absurdo. O mesmo se pode dizer da propriedade. A própria linguagem é produto de uma comunidade tanto como, sob outros aspectos, é a existência mesma da comunidade. o modo de expressão espontâneo dessa comunidade(5).

A produção e a propriedade comuns como se vêem, por exemplo, no Peru são manifestamente uma forma secundária; foram introduzidas e transmitidas por tribos conquistadoras que conheceram elas próprias a propriedade e a produção comuns sob. uma forma antiga e mais simples, tal como se encontra na índia e entre os Eslavos. Do mesmo modo, a forma que encontramos nos Geltas, no país de Gales, por exemplo, parece ser uma forma herdada, secundária, introduzi da por conquistadores nas tribos conquistadas, relegadas nessa altura para um nível inferior. O surgimento mais tardio destes sistemas mostra que eles foram metodicamente elaborados e completados a partir de um centro supremo. Assim, o feudalismo introduzido em Inglaterra era mais acabado na sua forma que o feudalismo que nascera em França de modo espontâneo.

Entre as tribos de pastores nômadas - e todos os povos pastoris são, na origem, nômadas - a terra, bem como outras condições naturais, aparece como um elemento ilimitado, por exemplo nas estepes e nos elevados planaltos da Asia. Ela é entregue como pastagem aos rebanhos que a «consomem» para, por seu turno, servirem de subsistência aos povos pastoris:- Estes encontram-se em relação com a terra como propriedade sua, embora jamais lhe dêem um estatuto fixo. Assim, os terrenos de caça entre as tribos índias selvagens da América. A tribo considera uma dada região como seu terreno de caça, que defende pela violência contra outras tribos; ou então tenta expulsar outras tribos das terras que elas defendem. De fato, entre as tribos de pastores nômadas, a comuna está sempre reunida - migração, caravana, horda - e as formas hierárquicas de dominação e subordinação desenvolvem-se a partir das condições deste modo de existência- Aqui, só o rebanho é possuído e reproduzido: não a terra, todavia sempre explorada em comum temporariamente, de cada vez que é escolhido um lugar de permanência. O único obstáculo (passando imediatamente aos povos sedentários) que a comunidade pode encontrar na sua atitude possessiva em relação às condições naturais, à terra, é uma outra comunidade, que as reclama como seu próprio corpo não orgânico. Por isso é a guerra uma das atividades primordiais da comunidade natural, simultaneamente para defender a propriedade adquirida . e para adquirir novas terras.(6)


PRODUÇÃO E PROPRIEDADE

Originariamente, portanto, a propriedade não significa mais do que o comportamento do homem face às suas condições naturais de produção como fazendo com ele um só, como sendo suas, e tais quais foram dadas conjuntamente com a sua própria existência. Fundamentos naturais da sua própria pessoa, elas constituem, por assim dizer, o prolongamento do seu próprio corpo. Na realidade, não existe um comportamento face às condições da produção; o indivíduo tem aqui uma existência dupla: subjetivamente, enquanto ele mesmo, e objetivamente, nas condições naturais e não orgânicas da sua existência. Também as formas destas condições são duplas: 1. o indivíduo existe como membro de uma comunidade, a qual, na sua forma primitiva e com modificações mais ou menos importantes, é uma instituição tribal; 2. por intermédio da sua comunidade, o indivíduo comporta-se como proprietário em relação ao solo. Propriedade colectiva do -solo, ao mesmo tempo que posse individual pelo membro particular da comuna; ou então há partilha dos frutos, enquanto a terra e a uma o cultivo permanecem comuns. Pertencer sociedade natural. a uma tribo, etc., é, para o indivíduo, uma condição natural do seu trabalho. E já já esta pertença que, por exemplo, determina a sua língua, etc.; a sua própria existência produtiva só é possível nesta condição. Dela igualmente decorre a sua existência subjetiva, tanto como depende do fato de ele estar em relação com a terra como sua oficina.8

Por conseguinte, quem diz propriedade diz pertença a uma tribo (comunidade), diz existência simultaneamente subjetiva e objetiva. O comportamento da comunidade em relação ao solo, seu corpo não orgânico, determina o comportamento do indivíduo em rela" ção ao solo, sua condição exterior primeira. A terra é,ao mesmo tempo, matéria-prima, instrumento .e fruto, que faz parte do indivíduo . em suma, o pressuposto e é o seu modo de existência.

Nós reduzimos esta. propriedade ao comportamento do sujeito face às condições da produção. Perguntar-se-á: por que não às condições do consumo, já que, originariamente, a atividade produtora do indivíduo se limita à reprodução do seu próprio corpo pela apropriação de objetos que a própria natureza prepara e oferece? Mas, mesmo quando se trata apenas de encontrar, de descobrir, torna-se imediatamente necessário um trabalho: um esforço – como na caça, na pesca, na pastorícia; é preciso que o sujeito produza (isto é, desenvolva) certas aptidões. Se circunstâncias há em que, sem qualquer instrumento (portanto, sem. a ajuda de produtos do trabalho destinados, eles próprios, à produção). O homem pode apropriar-se daquilo que se lhe oferece sem lhe mudar a forma (o que acontece ainda na pastorícia), é preciso considerá-Ias, mesmo no estado primitivo, como transitórias e de . modo nenhum normais. De resto, condições da produção englobam as matérias que se consomem diretamente sem trabalho (frutos, animais, etc.); em suma, o próprio fundo de consumo aparece como parte integrante do fundo primitivo da produção.

A condição fundamental da propriedade fundada na instituição da tribo (resultado da primitiva dissolução da comunidade) consiste na pertença à tribo. Esta condição tem como conseqüência o fato de as tribos estrangeiras, conquistadas e submetidas, serem despojadas da sua propriedade e colocadas, elas próprias, entre as condições não orgânicas dá reprodução de que o conquistador se apropria. A escravatura e a servidão resultam do ulterior desenvolvimento da propriedade fundada na instituição da tribo. Necessariamente modificam todas as formas dessa propriedade, sendo, no entanto, a do tipo asiático a menos afetada. A unidade autárcica da manufatura e da agricultura é o fundamento deste tipo de propriedade, de tal modo que as conquistas se tornam menos necessárias do que quando a propriedade fundiária e a agricultura predominam de forma exclusiva. De resto, tal como nesta forma, o indivíduo isolado jamais se torna proprietário, mas apenas possuidor. No fundo, ele próprio é a propriedade, o escravo daquele que personifica a unidade da comuna; a escravatura não suprime aqui as condições do trabalho, nem tão-pouco modifica a sua relação fundamental.

Eis outro ponto de agora em diante esclarecido:

Na medida em que a propriedade não é mais que o comportamento consciente de cada indivíduo – legalmente instituído, proclamado e garantido em – relação às suas condições de produção, na medida, portanto, em que a existência do produtor aparece entre as condições objetivas que lhe pertencem, esta forma de propriedade realiza-se exclusivamente através da própria produção. A apropriação con_creta. faz-se não numa relação teórica, mas numa relação ativa, real, com essas condições, que são então estatuídas como as condições mesmas da sua atividade subjetiva.

Daqui resulta. Entre outras coisas, que estas condições mudam. Só a atividade da caça faz com que um território se torne um terreno de caça: só pela agricultura se torna o solo o prolongamento do corpo do indivíduo. Se os cidadãos trabalham os campos sob. as muralhas de Roma por fim construí da. é porque as condições da comunidade mudaram. O objetivo de todas estas comunidades é a conservação, por outras palavras, a reprodução dos indivíduos que as constituem enquanto proprietários, reprodução que visa o modo de existência objetiva que molda o comportamento dos membros uns em relação aos outros e, portanto, a própria comuna. Mas. ao mesmo tempo e necessariamente, esta reprodução cria novas formas e destrói as antigas; por exemplo, quando cada indivíduo há-de possuir tantos acres mesmo que a população vá aumentando e que só a colonização possa obviar a isso, o que torna inevitável a guerra de conquista, a qual arrasta a caça aos escravos, etc. De onde o alargamento do ager publicus e a ascensão dos patrícios, que representam a comunidade, etc. Assim, a conservação da antiga comunidade implica a ruína das condições em que assenta e transforma-se no seu contrário. Suponhamos, por exemplo. que. num mesmo espaço, pode ser aumentada a produtividade pelo desenvolvimento das forças produtivas (na agricultura tradicional, este desenvolvimento atinge o cúmulo da lentidão): daí resultariam novos modos. novas combinações de trabalho, o emprego de uma grande parte do dia em outras tarefas. Isso significaria que as anteriores condições econômicas da comunidade estariam ultrapassadas. No ato da reprodução, não são só as condições objetivas que mudam (a aldeia torna-se cidade; a floresta virgem campo desbravado; etc), mas os próprios produtores, desenvolvendo novas qualidades transformando-se, por sua vez, pelo trabalho, tornando-se seres novos, formando novas forças e novas idéias, novos modos de comunicação, novas necessidades, uma nova linguagem. Quanto mais ligado às tradições se conserva o modo de produção longo na agricultura, o tempo é-o ainda mais na forma oriental, que combina a agricultura e a manufatura por outras palavras. quanto mais imutável é o processo real da apropriação e n:ais constantes são as antigas formas de propriedade, tanto mais estagnada é a comunidade. Quando os membros da comuna, tornados proprietários privados, adquiriram uma existência distinta na comuna urbana e como possuidores do território urbano, surgiram as condições em que o indivíduo pode perder a sua propriedade: é a dualidade de uma relação em que ele é cidadão a parte igual. membro da comuna, proprietário. Na forma oriental, este risco é quase inexistente, salvo em conseqüência de circunstâncias inteiramente exteriores, já que a relação de um membro individual com a sua comuna nunca é suficientemente livre para que ele se arrisque a perder o laço objetivo e econômico que a ela o liga. Aí, o indivíduo faz corpo com a sua comuna. Isso resulta, entre outras coisas, do fato de a manufatura e a agricultura, a cidade (a aldeia) e o campo estarem unidos. Entre os Antigos. a manufatura é considerada como uma decadência (é ocupação para os escravos libertos, os clientes. os metecos), etc. Este desenvolvimento do trabalho produtivo (libertado da sua submissão à agricultura doméstica, como trabalho de libertos destinado apenas à agricultura e à guerra, ou à manufatura limitada ao culto religioso e à comunidade - construção de casas, estradas e templos) verifica-se necessariamente graças ao comércio externo, aos escravos. à necessidade de trocar o sobreproduto, etc. Ele dissolve o modo de produção que serve de fundamento à comunidade e ao cidadão objetivamente individualizado. ou seja, ao Romano, ao Grego, etc. A troca produz o mesmo efeito, tal como o endividamento, etc.

A primitiva unidade entre uma forma particular da comunidade (tribal) e o modo de apropriação ou o comportamento face às condições objetivas da produção enquanto natureza, enquanto preexistência objetiva do indivíduo mediatizada pela comuna - essa unidade revelada pela forma particular da propriedade manifesta-se concretamente no modo de produção determinado. Este modo surge ao mesmo tempo como o comportamento dos indivíduos entre si e como o seu comportamento ativo para com a natureza não orgânica do se\! modo de trabalho determinado (que é sempre uma atividade familiar e. frequentemente, um trabalho da comuna). A própria comunidade aparece como a primeira grande força produtiva. Consoante o modo particul,ar das condições de trabalho (por exemplo, criação de gado, agricultura). vemos desenvolver-se um modo particular de produção e forças produtivas particulares, tento subjetivas faculdades dos indivíduos como objetivas.

DISSOLUÇÃO DAS FORMAS PRIMITIVAS

Um certo nível de desenvolvimento das forças produtivas dos sujeitos que trabalham nível a que correspondem as relações destes sujeitos entre si e para com a natureza eis no que se resumem. em última instância, a sua comunidade e a propriedade nela fundada. Até um certo ponto, há reprodução e, depois, dissolução.

Tal é o primitivo sentido da propriedade nas suas formas asiática, eslava, antiga e germânica: o comportamento do sujeito que trabalha (produz ou se reproduz) face às condições da sua produção ou da sua reprodução, de que se apropria. As formas da propriedade particularizam-se segundo as condições dessa produção. Esta tem por único objetivo a reprodução dos produtores em e com as suas condições objetivas . de existência. O comportamento do indivíduo enquanto proprietário estado pressuposto, que não é resultado trabalho, isto é, da produção implica um certo modo de vida como membro de uma tribo ou de uma comunidade (da qual o próprio sujeito é, até certo Ponto, propriedade). Consideremos a escravatura, a servidão, etc., onde, aos olhos de um terceiro ou de uma comunidade, o trabalhador figura, ele próprio, entre as condições naturais da produção (isto passa-se assim apenas na perspectiva europeia e não, por exemplo, na escravatura geral no Oriente). Aqui, a propriedade deixo de ser o comportamento do trabalhador em relação às condições objetivas do seu trabalho. Esta escravatura, esta servidão são sempre secundárias, nunca primárias; trata-se de conseqüências necessárias e tardias da propriedade fundada na comunidade e no trabalho na comunidade. Evidentemente, é muito fácil imaginar um homem possante, fisicamente superior, que, após dominar o animal, domina o homem e o força a caçar para si, numa palavra, que se serve dele como de uma condição natural para a sua reprodução (reduzindo-se nessa altura o seu próprio trabalho a exercer o poder, etc.) exatamente como se se tratasse de qualquer outra espécie natural. Tal perspectiva é idiota: ela seria justa se se considerassem organizações tribais ou sociedades comunais determinadas; mas ela parte do desenvolvimento de indivíduos isolados. Ora. é só através do processo histórico que o homem se particulariza. Primitivamente, ele aparece como um ser genérico, tribal, como um animal gregário de modo algum como um zôon politikon no sentido político. A própria troca é um dos principais meios dessa particularização. Ela torna supérfluo o estado gregário e provoca a sua dissolução. A partir de então, o homem, indivíduo isolado, passa a estar em relação apenas consigo próprio; mas o meio de atingir essa individualização é tornar-se um ser geral e comum. A existência objetiva do indivíduo como proprietário, digamos: como proprietário fundiário. está aí pressuposta e realiza-se em certas condições que o acorrentam à comunidade, ou melhor: que dele fazem um elo da cadeia. No mundo burguês, o trabalhador existe no estado de sujeito puro, desprovido de objeto; mas o objeto que lhe faz face, tornou-se a verdadeira comunidade, da qual ele tenta alimentar-se e que dele se alimenta.

Todas as formas (mais ou menos naturais, mas, ao mesmo tempo, resultados do processo histórico) nas quais a -comunidade pressupõe sujeitos unidos objetivamente às suas condições de produção, ou em que uma determinada existência subjetiva pressupõe as próprias comunidades como condições de produção todas essas formas correspondem necessariamente a um desenvolvimento essencialmente limitado das forças produtivas. O desenvolvimento das forças produtivas, dissolve-as, e essa mesma dissolução é um desenvolvimento das forças produtivas humanas. Inicialmente, o trabalho faz-se a partir de uma certa base natural; mais tarde, torna-se uma condição histórica. Seguidamente, este fundamento ou pressuposto é,ele próprio, suprimido ou toma um caráter transitório, tornando-se demasiado estreito para o desenvolvimento do rebanho humano em vias de progressão. Na medida em que reaparece na propriedade parcelar moderna, a propriedade antiga releva, ela própria, da economia política. Dela falaremos na parte reservada à propriedade fundiária. Vejamos, para começar, do que se trata: a relação entre o trabalho e o capital, ou as condições objetivas do trabalho enquanto capital, pressupõe um processo histórico que dissolve as diversas formas em que ou o trabalhador é proprietário ou o proprietário trabalha. Por conseguinte há, antes de mais nada: 1. dissolução da relação com a terra, com o solo, enquanto condição natural de produção a que o trabalhador se refere como sua própria existência não orgânica, laboratório das suas forças e domínio da sua vontade. Todas as formas em que se encontra esta propriedade pressupõem uma comunidade cujos membros, apesar das diferenças formais, são, enquanto membros, proprietários. A forma primitiva "desta propriedade é, conseqüentemente, ela própria propriedade comum direta (forma oriental, modificada na forma eslava; desenvolvida até se transformar no seu, contrário, mas ainda base secreta e contrastada, da ,propriedade antiga e germânica); 2. dissolução da relação em que o trabalhador aparece como proprietário do instrumento. Tal como a primeira forma da propriedade pressupõe uma comunidade geral, esta propriedade do instrumento pressupõe uma forma particular de desenvolvimento do trabalho manufatureiro enquanto trabalho artesanal; ao que se liga o sistema do mestrado e das corporações, etc. Aqui, o trabalho é ainda metade artístico, metade " mestria como fim em si. O capitalista é ainda o próprio mestre. A perícia particular garante ao mesmo tempo a posse do instrumento. Existe, por assim dizer, hereditariedade do modo, da organização e do instrumento do trabalho. A cidade medieval. Aqui o trabalho é ainda pessoal; há um desenvolvimento bem determinado e espontaneamente aceite de aptidões parciais, etc.; 3. um e outro implicam que, para poder viver como produtor, o trabalhador possua os meios de consumo antes dos da produção, enquanto produz e antes que termine o seu trabalho. Como proprietário fundiário, ele parece dispor diretamente do fundo de consumo necessário; enquanto mestre-artesão, adquiriu-o quer por herança quer pelo seu trabalho, fazendo economias. Jovem, começa por se aprendiz. Nesta função, ainda não é verdadeiramente um trabalhador independente; à maneira patriarcal, partilha as refeições do mestre. Quando é companheiro (verdadeiro). ,existe entre eles uma certa posse comum do fundo de consumo pertencente ao mestre. Conquanto este fundo não seja propriedade do companheiro, ele é pelo menos seu co-possuidor, em virtude das leis e das tradições da corporação;" 4. dissolução das condições em que o próprio trabalhador e as formas de trabalho se contam ainda diretamente entre as condições objetivas da produção e são como tais apropriadas; são pois escravos ou servos. Para o capital, não é o trabalhador. mas sim o trabalho, que e cria a condição da produção. Tanto melhor se o capital pode fazer executar o trabalho por meio de máquinas, ou mesmo com água ou ar. E ele apropria-se não do trabalhador, mas do seu trabalho não diretamente, mas por meio da troca.

Estes são, por um lado, os fatores históricos que fazem com que o trabalhador, enquanto trabalhador livre, força de trabalho sem objeto, puramente subjetiva, se encontre face às condições objetivas da produção como sua não-propriedade, como propriedade de outrem, como valor por si, como capital. Por outro lado, surge a pergunta: quais devem ser as condições para que o trabalhador encontre perante si um capital?


CAPITAL, PROPRIEDADE E INSTRUMENTOS DE TRABALHO

Quando o trabalho vivo está relacionado negativamente com a matéria-prima. com o instrumento e os meios de subsistência necessários durante o trabalho, quando esta relação é a da não-propriedade., a definição do capital implica desde início a negação da propriedade fundiária. do estado em que o indivíduo que trabalha se encontra em relação com a terra como coisa que lhe pertence: ele trabalha e produz como proprietário do solo. No melhor dos casos, ele não é apenas o que trabalha a terra, mas ainda o que, tendo a terra em sua propriedade, com ela se relaciona enquanto sujeito que trabalha. Virtualmente, a propriedade do solo inclui tanto. a propriedade da matéria-prima como do instrumento original, a própria terra, e dos frutos espontâneos desta. Considerada na sua forma primitiva, esta relação mostra-nos o individuo apropriando-se da terra, encontrando nela a matéria-prima, o instrumento e os meios de subsistência criados não pelo trabalho, mas pela própria terra. Uma vez reproduzida esta relação, vêem-se surgir instrumentos secundários e os frutos da terra criados pelo próprio trabalho, estando tudo isto incluído na propriedade fundiária sob as suas formas primitivas. Este estado histórico, enquanto relação de propriedade mais substancial, é pois desde início negado na relação entre o trabalhador e as condições de trabalho enquanto capital. É o estado histórico nº 1 que é negado nesta relação ou que se considera ter nela sofrido a sua dissolução histórica. Segundo estado: a propriedade do instrumento, a relação do trabalhador com o seu instrumento, que é pessoal; ele trabalha como proprietário do instrumento"; é o trabalhador proprietário, ou ainda o proprietário trabalhador. É uma forma independente, estabelecida ao lado e à margem da propriedade fundiária; é o desenvolvimento artesanal e urbano do trabalho, que já não é, como no primeiro caso, um fator acidental e acessório da propriedade fundiária. Propriedade do artesão, a matéria-prima e os meios de subsistência são doravante mediatizados pelo seu ofício e a sua propriedade do instrumento. Estamos já num segundo patamar histórico que existe simultaneamente com o primeiro e separada dele, mas que apresenta os sinais de uma importante modificação, pelo fato de esta segunda forma de propriedade ou de proprietário trabalhador se ter tornado uma instituição autônoma. Uma vez que o próprio Instrumento e um produto do trabalho, que ele é, por seu turno, um elemento constitutivo da propriedade obtida pelo trabalho, a comunidade já não pode surgir na sua forma espontânea e natural, como no caso anterior, enquanto base deste novo tipo de propriedade. Muito pelo contrário, trata-se aqui de uma comunidade produzida pelo próprio trabalhador, uma comunidade criada. a um nível secundário.

Evidentemente, quando a propriedade do instrumento implica a propriedade .das condições de produção do trabalho, o instrumento já não é mais, na atividade se real, do que o meio do trabalho individual. A arte se apropriar realmente do instrumento, de o manipular enquanto meio de trabalho, surge como um talento particular do trabalhador, que faz dele o proprietário do instrumento. Em suma, o caráter essencial do sistema do mestrado e das corporações onde o trabalho artesanal constitui em sujeito e, nessa medida, em proprietário - define-se pela relação com o instrumento de produção (instrumento de trabalho como propriedade). diferentemente da relação com a terra, com. o solo (com a matéria-prima como tal) detido em propriedade. O que estabelece o sujeito quer como trabalhador proprietário, quer como proprietário trabalhador,. é- a sua relação com um momento particular das condições número 2, que, pela sua natureza só pode existir, como estado oposto ao primeiro, ou, se se quiser. como estado, complementar modificado. e que. também ele, é negado na primeira fórmula do capital.

A terceira fórmula possível de uma relação.. de . propriedade concerne os meros meios. de subsistência dados como condição natural do sujeito trabalhador, sem que esta relação se aplique nem ao solo nem ao instrumento. nem. por conseqüência,. ao próprio trabalho. É, em última instância. a forma da escravatura e da servidão, também ela negada e que é considerada como estado historicamente dissolvido na relação do trabalhador com as condições de produção enquanto capital. As formas primitivas da propriedade dissolvem-se necessariamente na, relação com os diversos fatores objetivos que condicionam a produção e que se possuem; elas constituem igualmente a base econômica dos diversos tipos de comunidade, ao mesmo tempo que, por seu turno, pressupõem certos tipos sociais. Estas formas são profundamente alteradas pelo fato de o próprio trabalho ser colocado entre as condições objetivas da produção (servidão e escravatura). de maneira que o caráter simplesmente afirmativo dos modos de propriedade abrangidos no n 1 se perde e se modifica. Todas contêm a escravatura em potência e, portanto, a sua própria abolição. Evidentemente, no que se refere ao n 2 e ao seu modo particular de trabalho (o mestrado está ai realizado e a propriedade do instrumento implica a das condições de produção). a escravatura e a servidão estão excluídas; mas este modo pode ter um desenvolvimento análogo, negativo, no sistema das castas.


RELAÇÕES DE DOMINAÇÃO E DE SERVIDÃO

A menos que se dissolva na escravatura e na servidão, a terceira forma de propriedade dos meios de subsistência não pode conter uma relação entre o indivíduo trabalhador e as condições de produção ou de existência. Ela só pode ser o estatuto do membro da comunidade primitiva. fundada na propriedade fundiária. como a plebes romana na época do panem et circenses: é o homem privado da primeira forma da sua propriedade. sem ter ainda atingido a segunda. O sistema do senhor com o seu séqüito, o da prestação pessoal. é essencialmente diferente. Ele é, no fundo. o modo de existência do próprio proprietário. que já não trabalha mas cuja propriedade inclui, entre as condições de produção. os próprios trabalhadores como servos, etc. Esta relação de dominação apresenta-se aqui como uma relação essencial de apropriação. Não pode haver uma relação de dominação para com o animal, o solo, etc., pelo fato da apropriação, ainda que o animal desempenhe uma tarefa é a apropriação de uma vontade alheia que condiciona esta relação d!J dominação. o que não tem vontade, o animal por exemplo, pode decerto servir, mas o seu possuidor não se torna com isso seu senhor. Mas nós vemos aqui que a relação de dominação e a relação de servidão estão igualmente englobadas neste conceito da apropriação dos instrumentos de produção; formam um fermento necessário do desenvolvimento e do desaparecimento de todas as relações primitivas de propriedade e de produção, ao mesmo tempo que exprimem os seus limites. É bem verdade que, no capital, estas relações são reproduzi das - sob forma mediata - e tornam-se assim o fermento da dissolução e o símbolo do caráter limitado do capital.(13)

É legítimo pressupor desde início processos históricos que colocaram uma massa de indivíduos de uma nação, etc., senão na situação de trabalhadores livres ainda não o são – pelo menos na de trabalhadores virtualmente livres, cuja única propriedade é a sua força de trabalho, que podem" trocar por valores existentes. Perante estes indivíduos, todas as condições objetivas da produção existem enquanto propriedade de outrem, sua não-propriedade, mas, ao mesmo tempo, como valores permutáveis que, num certo grau, podem ser adquiridos pelo trabalho vivo. Estes processos históricos de dissolução apresentam-se sob diversos aspectos: com"o dissolução das relações de servidão que acorrentam o trabalhador ao solo e ao seu senhor, mas lhe deixam de fato a propriedade das subsistências, conquanto se trate na verdade, de um processo que separa o trabalhador da terra; como dissolução das relações de propriedade que fizeram dele um yeoman, um franco tenente ou um rendeiro (colonus), um camponês livre"; dissolução do sistema do mestrado, em que o trabalhador é proprietário do seu instrumento de trabalho e em que o próprio trabalho, enquanto perícia artesanal determinada, é propriedade (e não apenas fonte desta); dissolução do sistema dos clientes sob as suas diversas formas, no qual, não-proprietários fazem parte do séqüito do seu senhor, consomem com este os produtos excedentes, usam a sua libré, tomam parte nas suas guerras, prestam-lhe serviços pessoais, imaginários ou reais, etc. Quando se examinam de perto estes processos, constata-se que se trata da dissolução das relações de produção em que predomina o valor de uso., ,produção para o uso imediato. O valor de troca e a sua produção pressupõem a predominância da outra forma; por isso que, em todas estas condições, as prestações e os serviços em espécie predominam sobre o pagamento e a prestação em dinheiro, Notemos isto de passagem. Um exame aprofundado mostrará que todos estes fenômenos de dissolução s6 eram possíveis num certo nível de desenvolvimento; das forças produtivas materiais (e também, por conseguinte, das forças sociais intelectuais). .

O que aqui nos interessa, antes de mais nada, é o seguinte: o processo de dissolução que transforma uma massa de indivíduos de um povo, etc" em assalariados virtualmente livres-indivíduos que só a indigência obriga a trabalhar e a vender o seu trabalho – pressupõe não o desaparecimento, mas a transformação das antigas fontes e condições de propriedade: passando como fundo livre para outras mãos ou mesmo ficando parcialmente nas mesmas mãos" o seu modo de existência transformou-se.

Uma coisa é clara: o processo que, de uma maneira ou de outra, separou uma massa de indivíduos das suas antigas relações positivas com as condições objetivas de trabalho, que, liquidando estas, os transformou em trabalhadores livres, esse mesmo processo libertou virtualmente essas condições – a terra, a matéria-prima, as subsistências, os instrumentos de trabalho, o dinheiro, tudo isso - do laço que até aí as liga aos indivíduos. Estes, por sua vez, estão doravante libertos dessas condições. Elas existem ainda, mas sob uma outra forma, como fundo livre, em que todas as antigas relações políticas, etc., foram aboli das; assumindo doravante unicamente a forma de valores absolutamente ligados a si mesmos, elas fazem face a indivíduos sem ligações e sem fortuna. O mesmo processo que situou indivíduos como trabalhadores livres face às condições objetivas de trabalho situou estas como capital face aos trabalha dores livres. O processo histórico consistia em separar elementos até aí reunidos; daí resulta não o desaparecimento de um desses elementos, mas uma situação em que cada elemento se relaciona negativamente com o outro: o trabalhador livre (virtualmente) de um lado, o capital (em potência) do outro. A separação entre as condições objetivas e as classes laboriosas, tornadas. livres, tem necessariamente como resultado que essas mesmas condições adquirem; no seu pólo oposto, uma autonomia total. Pode considerar-se a relação entre o capital e o trabalho assalariado na sua gênese histórica não como um fenômeno que doravante determina e domina o conjunto da produção"; por outras palavras, pode considerar-se a transformação primitiva do dinheiro em capital, o processo de troca entre, por um lado, o, capital existindo virtualmente e, por outro, os trabalhadores livres existindo virtualmente. Far-se-á então muito naturalmente a constatação (a que os economistas dão tanta importância) de que a parte que se apresenta como capital deve estar de posse de matérias-primas, de instrumentos de trabalho e de subsistências, para que o trabalhador possa viver antes e enquanto a produção se completa. É-se então levado a pensar que teve de haver uma acumulação - anterior ao trabalho e não fruto dele - da parte do capitalista, que lhe permiti-o pôr o operário a trabalhar, mantê-lo em atividade e conservá-lo como força de trabalho viva ". Este ato do capital - ato independente do trabalho, não estabelecido pelo trabalho é seguidamente isolado do seu processo de gênese e transformado em um momento da sua realidade e da sua eficácia, em um momento da sua autogênese. Por fim, deduz-se daí o direito eterno do capital a apropriar-se dos frutos do trabalho de outrem, ou antes:, deduz-se o seu modo de aquisição a partir das, leis simples e «justas» da troca de equivalentes. A riqueza que se apresenta sob a forma de dinheiro pode trocar-se pelas condições objetivas do trabalho somente por estas estarem, e deverem estar, separadas do mesmo trabalho. Nós vimos, é certo, que o dinheiro pode, em parte, ser acumulado pela mera troca de equivalentes; mas é uma fonte com tão pouca importância que se pode desprezá-Ia do ponto de vista histórico supondo que o dinheiro foi adquirido por troca de trabalho pessoal. e antes a fortuna monetária, a fortuna mobiliária, acumulada graças à usura - praticada, primeiro que tudo, sobre a propriedade fundiária - e aos lucros mercantis, que se transforma em capital propriamente dito, em capital industrial. Teremos mois adiante oportunidade de tratar destes dois modos de acumulação, que, sob a sua forma de riqueza antiga, aparecem não como capital, mas como pressupostos do capital.


GÊNESE DO CAPITAL

Vimos que, tal como a sua gênese, o conceito mesmo de capital implica que ele proceda do dinheiro, da riqueza sob forma de dinheiro. Implica igualmente que, provindo da circulação, ele apareça como o produto da circulação. Por conseguinte, a formação do capital não procede da propriedade fundiária (com excepção, quando muito, do caso do rendeiro, na medida em que ele é um comerciante de produtos, agrícolas), nem tão-pouco da corporação (embora aqui haja alguma possibilidade), mas sim da riqueza comercial e usurária. Ora, esta só encontra trabalho livre para comprar depois de ele ter sido separado, por um processo histórico, das suas condições objetivas de existência. É só então que encontra a possibilidade de comprar estas próprias condições. No sistema das corporações, por exemplo, onde a regulamentação prescreve o número de teares que um artesão pode utilizar, etc., o dinheiro que não seja ele próprio de origem corporativa, que não seja o dinheiro do mestre, não pode comprar os teares para os fazer trabalhar. Em suma, o instrumento faz de tal modo corpo com o próprio trabalho vivo - do qual parece ser o servo – que verdadeiramente não circula. O que permite à riqueza monetária tornar-se capital é o fato de encontrar perante si, por um lado, trabalhadores livres, por outro lado, as subsistências e os materiais, etc., que, outrora, de uma maneira ou de outra, haviam sido propriedade das massas. Estas estão agora desprovidas de tudo; por isso são doravante livres e vendáveis. Quanto à outra condição do trabalho - uma certa perícia, o instrumento como meio de trabalho - o capital encontra-a já pronta neste período preliminar ou primeiro, como resultado quer do sistema corporativo urbano quer da indústria doméstica ou dos ofícios conexos da agricultura. O processo histórico não é o resultado do capital, mas o seu pressuposto; é através dele que o capitalista vem seguidamente interpor-se como intermediário (histórico) entre a propriedade fundiária – ou, simplesmente, a propriedade - e o trabalho. A história ignora de todo as representações sentimentais segundo as quais o capitalista e o trabalhador constituíram associações: tão-pouco se encontram traços delas na formação do conceito de capital. Pode acontecer, de forma esporádica, que a manufatura se desenvolva .localmente ao lado dás corporações, num enquadramento que pertence ainda a um período absolutamente diferente, como, por exemplo, nas cidades italianas. Mas, para que o capital se torne o tipo predominante de uma época, as condições da sua gênese devem ser desenvolvidas não , só localmente, mas a uma grande escala(17).

É evidente (sobretudo para quem examina a época de que estamos a tratar) que o período de dissolução dos antigos modos de produção e das antigas relações dos trabalhadores com as condições objetivas do trabalho é, ao mesmo tempo, um período em que, por um lado, as fortunas monetárias conheceram já uma grande extensão e, por outro lado, continuam a aumentar e a expandir-se rapidamente, graças às mesmas circunstâncias que apressaram essa dissolução. As próprias fortunas em dinheiro são um dos fatores dessa dissolução, da mesma forma que esta condiciona a transformação dessas fortunas em capital. Mas a sua mera existência, nem mesmo a supremacia que possam ter atingido, não é de modo algum suficiente para engendrar essa dissolução e essa transformação em capital. Sem o que, a antiga Roma, Bizâncio, etc., teriam concluído a sua história, ou melhor: teriam iniciado uma nova fase da sua história, com o trabalho livre e o capital. A dissolução das antigas relações de propriedade esteve, também aí, ligada ao desenvolvimento da riqueza em dinheiro, do comércio, etc.; mas, em vez de levar à indústria, essa dissolução levou, na realidade, à supremacia do campo sobre a cidade.

Fica-se com uma idéia errada da gênese do capital se, se pensar que, na origem, ele acumulou meios de subsistência, instrumentos de trabalho e matérias-primas, ,.em suma, as condições objetivas do trabalho desligadas do solo e já combinadas com o trabalho humano(18). Ora, não é o capital que cria as condições 6bjectivas do trabalho. A sua origem deve-a ele a um fato simples: graças ao processo histórico que dissolve o antigo modo de produção, o valor constituído na forma de riqueza em dinheiro tem a faculdade de, por um lado, comprar as condições objetivas do trabalho e, por outro lado, trocar por dinheiro o trabalho vivo oferecido pelos trabalhadores tornados livres. Todos estes momentos existem; a sua separação é um produto histórico, um processo de dissolução, e é ele que confere ao dinheiro a faculdade de se transformar em capital. O próprio dinheiro participa ativamente neste processo, na medida em que nele intervém como um fator de separação extremamente enérgico. Contribui dessa forma para fazer nascer trabalhadores livres e despojados" prontos para serem tosquiados, não certamente criando-lhes as condições objetivas da sua existência, mas, pelo contrário, apressando a sua separação dessas condições, numa palavra, a sua despossessão. Assim, por exemplo, quando os grandes proprietários ingleses mandaram embora o seu séqüito, com o qual consumiam o sobreproduto da terra, quando, além, disso, os seus rendeiros expulsaram os Dequenos agricultores, etc., qual foi a conseqüência? Em primeiro lugar: uma massa de forças vivas foi lançada no mercado do trabalho, massa livre no duplo sentido da palavra: estes homens estavam libertos das antigas condições de clientela, de servidão e de serviço e, desprovidos de qualquer fortuna e qualquer modo de existência objetiva e material, estavam livres de toda e qualquer propriedade, sem outro recurso que não fosse vender a sua força de trabalho ou então procurar a sua subsistência na mendicidade, na vagabundagem e no roubo. A história mostra que eles começaram por tentar este último meio; mas foram desviados pela forca. o pelourinho e o chicote. e tomaram o estreito carreiro que leva ao mercado do trabalho. É assim que certos governos. por exemplo os de Henrique VII. de Henrique VIII, etc., surgem como precipitadores do processo de dissolução histórica e como os criadores das condições para a existência do capital. Por outro lado. as subsistências. etc., que anteriormente os proprietários fundiários consumiam com o seu séqüito estavam doravante à disposição do dinheiro, que. ao comprá-los, comprava, por seu intermédio. trabalho. .Q dinheiro não criou nem acumulou esses meios de subsistência: eles existiram, foram consumidos e reproduzidos antes de o serem por sua intervenção. O que havia de novo era esses meios de subsistência serem, a partir de então. lançados no mercado das trocas; é que eles já não serviam diretamente para alimentar o séqüito. etc.; é que, de valores de uso, tinham-se transformado em valores de troca, caindo assim sob o domínio e a supremacia da riqueza monetária. Outro tanto se pode dizer dos instrumentos de trabalho: o dinheiro não criou I nem a roda de fiar nem o tear. Mas. após terem sido separados das suas terras. fiandeiros e tecelões passaram com rodas e teares para sob o comando da riqueza monetária, etc. O capital tem uma única particularidade, a de reunir a massa de braços e instrumentos que encontra diante de si. Conglomera-os sob o seu comando. É tudo o que ele acumula realmente. Concentra trabalha-. dores e seus instrumentos em certos pontos. Trataremos desta questão a propósito daquilo a que se chama a acumulação do capital. Evidentemente. a riqueza monetária - como riqueza comercial apressou a dissolução das antigas relações de produção e permitiu, por exemplo, ao proprietário fundiário, como tão bem o mostrou A. Smith. trocar o seu trigo, o seu gado. etc., por valores de uso importados do estrangeiro. em vez de esbanjar com o seu séqüito os gêneros que ele mesmo produziu e de considerar como padrão da sua riqueza a multidão de seguidores que com ele consumiam.

A seus olhos, o dinheiro tinha dado superior uma significação ao valor de troca do seu rendimento. O mesmo fenômeno se deu com os rendeiros, já semi-capitalistas, ainda que de forma muito dissimulada. O desenvolvimento e personificado pelo do valor. de troca - favorecido dinheiro da classe comerciante - dissolve a produção que se centra principalmente no valor de uso imediato. do mesmo modo que dissolve as formas de propriedade correspondentes (relações entre o trabalho e as suas condições objetivas), apressando assim a criação do mercado do trabalho (que é preciso distinguir bem do mercado dos escravos). Todavia. esta ação do dinheiro só é possível graças à emulação dos oficios urbanos, que não assenta no capital e no trabalho assalariado mas sim na organização do trabalho em corporações, etc. O próprio trabalho urbano tinha criado os meios de produção para os quais as corporações se tinham tornado um estorvo; o mesmo acontecia com uma agricultura melhorada - ela própria em parte conseqüência do acréscimo de mercado oferecido aos produtos agrícolas pelas cidades uma agricultura que entrava em choque com as condições antiquadas da propriedade fundiária. Outras circunstâncias – por exemplo, o aumento, no século XVI, da massa das mercadorias e do dinheiro em circulação. a criação de novas necessidades. a elevação do valor de troca dos produtos locais. a alta dos preços. etc. - apressaram a dissolução das antigas relações de produção, a separação do trabalhador. atual ou virtual, das condições objetivas da sua reprodução: tudo isso favoreceu a transformação do dinheiro em capital.

Nada de mais inepto. por conseguinte, do que imaginar que, na sua origem. o capital tinha criado e acumulado as condições objetivas da produção meios de subsistência. matérias-primas, instrumentos - para as oferecer ao trabalhador que delas estava privado. Muito pelo contrário, a riqueza monetária ajudou, em parte a despojar dessas condições as forças de trabalho dos indivíduos válidos; em parte. esse processo de separação desenrolou-se sem a intervenção do dinheiro. Uma vez atingido um certo nível neste desenvolvimento, o dinheiro pôde interpor-se como mediador entre as condições objetivas da vida assim libertadas e as forças de trabalho tornadas livres ao mesmo tempo que desprovidas de tudo. O dinheiro estava em situação de comprar essas condições e, com isso, os trabalhadores. Quanto à- formação da própria riqueza monetária, antes da sua transformação em capital, isso pertence à pré-história da economia burguesa. A usura, o comércio, a vida urbana e o sistema fiscal, que se desenvolvem paralelamente, desempenharam o papel principal. O aforro dos rendeiros, dos camponeses, etc., contribuiu para isso, mas em menor grau.

Isto mostra-nos ainda que o desenvolvimento da troca e do valor de troca veiculado pelo comércio, que toma dente, o nome do seu título papel que de mediador - na profissão comercial, o dinheiro adquire uma existência ao mesmo – independente, ao mesmo tempo que a circulação, arrasta consigo a dissolução dos laços de propriedade que unem o trabalho às suas condições de existência; tem igualmente como conseqüência o fato de o próprio trabalho ser colocado entre as condições objetivas da produção. Tudo isto exprime ainda a predominância do valor de uso e da produção centrada no uso imediato, bem como a existência de uma comunidade real que é a condição direta dessa produção. A produção fundada na troca destes valores parece estabelecer, como vimos no capítulo anterior, a propriedade como pura emanação do trabalho e a propriedade privada do produto do trabalho pessoal como a condição mesma dessa comunidade. Mas é o trabalho, condição geral da riqueza, que pressupõe e produz a separação entre o trabalho e as suas condições objetivas. Essa troca de equivalentes não é mais que a aparência superficial de uma produção baseada na apropriação do trabalho de outrem. Não há troca, mas aparência de troca. Este sistema apóia-se no capital, que é a ,sua base, e se o considerarmos isolado do seu fundamento, como aliás ele se apresenta à superfície, com todo o aspecto de um sistema independente, vemos que ele não é mais do que aparência, mas aparência necessária. Não há portanto nada de surpreendente em o sistema dos valores de troca troca de equivalentes medidos pelo trabalho se desintegrar subitamente ou, melhor, descobrir os seus fundamentos ocultos e revelar ser apropriação de trabalho de ou"trem sem troca, separação total entre o trabalho e a propriedade. Em verdade, a predominância e a produção dos valores de troca pressupõem que a própria força de trabalho de outrem é um valor de troca, por ,.outras palavras; que a força de trabalho viva está separada das suas condições objetivas, que ela se encontra em relação com estas com a sua própria objectividade - como com uma propriedade alheia. Estas condições e esta objectividade são, numa palavra, o capital. É só nos períodos de desintegração do feudalismo, quando as lutas são ainda intestinas -:- como na Inglaterra no século XIV e na primeira metade do século XV que se pode situar a idade de ouro do trabalho em vias de emancipação. Para que o trabalho se aproprie de novo das suas condições objetivas, e necessário que um outro sistema venha substituir o sistema da troca privada, que, como vimos, impõe a troca do trabalho materializado pela força de trabalho e, desse modo, a apropriação do trabalho sem contra partida.

Vejamos como, historicamente e muito concretamente, o dinheiro se transforma em capital. O mercador por exemplo, põe a trabalhar para si vários fiandeiros e tecelões que, até então, tinham praticado no campo a fiação e a tecelagem como profissão subsidiária: esta ocupação secundária torna-se nessa altura para eles o ganha-pão? principal. A partir de então, eles estão entregues ao mercador, que assim assegura os seus serviços e os submete à sua autoridade como trabalhadores assalariados. O passo seguinte é arrancá-los aos seus lares para os reunir num local de trabalho. É um processo muito simples, no qual, evidentemente, o mercador não preparou matérias-primas nem instrumentos, nem tão-pouco os meios de subsistência, para o fiandeiro e o tecelão. Tudo o que ele fez foi confiná-los pouco a pouco num tipo de trabalho em que o seu destino depende da venda, do comprador, do mercador, e em que eles acabam por produzir unicamente para e por este. Originariamente, ele adquirira o seu trabalho pela simples compra do seu produto: mal eles são obrigados a limitar-se a produzir um valor de troca, e, portanto, diretamente valores de troca, mal se vêem obrigados a trocar por dinheiro todo o seu trabalho, para poderem prolongar a sua existência, caem sob a sua autoridade: acaba-se a ilusão que fazia crer que eles vendiam produtos ao mercador. Este compra-lhes o trabalho e retira-lhes a propriedade do produto, primeiro, e do instrumento, em seguida; ou então deixa-lhes um e outro como propriedade fictícia, a fim de diminuir as suas próprias despesas de produção.


MANUFATIRA E CAPITAL

Vejamos agora as primeiríssimas formas históricas em que o capital. surgindo esporadicamente e localmente ao lado dos antigos modos de produção, os destrói pouco a pouco e por todo o lado. Em primeiro lugar, a manufatura propriamente dita (não é ainda a fábrica), que nasce onde se produz em massa para a exportação, para o mercado externo, portanto, na base de um comércio marítimo e terrestre, em pontos particularmente nevrálgicos. como nas cidades italianas, em Constantinopla, nas cidades flamengas, holandesas, certas cidades espanholas como Barcelona, etc. A manufatura assenhoreía-se, em primeiro lugar, não dos ofícios ditos urbanos, mas das atividades secundárias do campo, fiação e tecelagem. trabalhos que requerem muito pouca perícia artesanal ou formação artística. Estabelece os seus primeiros centros não nas cidades, mas no campo. em aldeias que escapam ao regime das corporações, etc. Exceptuam-se apenas os grandes empórios comerciais, que têm a sua base num mercado externo - manufaturas diretamente ligadas à navegação, ou mesmo aos próprios estaleiros navais, etc., cuja produção é, por assim dizer espontaneamente, centrada na valor de troca. Se a manufatura recruta largamente no artesanato rural, é porque os ofícios urbanos, para serem explorados industrialmente, requerem um elevado nível de produção. O mesmo se passa com qualquer outro ramo de produção – fábricas de vidro e de metal. Serrações, etc. - que exija uma maior concentração das forças de trabalho, que empregue à partida mais recursos naturais, que tenda para a produção em massa e pressuponha, portanto, a concentração dos instrumentos de trabalho. As fábricas de papel, etc., entram nesta categoria. Em seguida, o aparecimento do rendeiro e a transformação dos agricultores em jornaleiros livres. Conquanto esta transformação se realize no campo na sua forma mais pura e levada às últimas conseqüências, começa aí muito cedo. Por isso os Antigos. que nunca souberam ultrapassar o nível da destreza artística próprio da cidade, jamais conseguiram chegar à grande indústria. Esta pressupõe, em primeiro lugar. que o campo seja arrastado, numa escala muito grande, para a produção não de valores de uso, mas de valores de troca. As fábricas de vidro, de papel, de metal, etc., não podem funcionar pelos métodos das corporações. Elas requerem a produção em massa, o escoamento num mercado universal, meios financeiros nas mãos do empresário - não que este crie as condições subjetivas ou objetivas, mas porque, sob as antigas relações de propriedade e de produção, estas condições não podem ser reunidas. Progressivamente. a dissolução do sistema feudal e o incremento da manufatura transformam todos os ramos da produção em empresas do capital. Em verdade, as próprias cidades oferecem na pessoa dos jornaleiros, dos trabalhadores não especializados, etc., que escapam ao controlo das corporações, um elemento construtivo do trabalho assalariado.

Vimos que a transformação do dinheiro em capital um processo histórico que teve por resultado separar o trabalhador das condições objetivas do trabalho e conferir a estas uma existência autónoma face ao trabalhador. Depois, uma vez nascido o capital, esse processo tem por efeito subjugar toda a produção , desenvolver e completar por toda a parte a separação entre o trabalho e a propriedade, entre o trabalho e as condições objetivas do trabalho. A nossa análise mostrará ainda que, o capital destrói o trabalho artesanal, a pequena propriedade do camponês trabalhador, etc e que se destrói a si mesmo nas formas em que não aparece um contraste com o trabalho, ou seja, no pequeno capital e nos tipos intermédios e híbridos entre a os modos de produção antigos (ou que se renovaram com base no capital); que se destrói a si mesmo nas formas de produção clássicas que lhe são próprias. -

A única acumulação que está pressuposta na gênese do capital é a da fortuna monetária, que, em si e por si, é absolutamente improdutiva, porquanto resulta da simples circulação e pertence apenas à circulação do capital. O capital cria rapidamente o seu mercado interno liquidando os ofícios acessórios do campo: fia e tece para toda a gente, veste toda a gente, em suma, dá a todos os produtos outrora confeccionados como valores de uso a forma de valores de troca. Este processo é a conseqüência natural da separação entre os trabalhadores e a terra e a propriedade (mesmo sob a forma da servidão) das condições de produção.

O objetivo imediato e principal da produção dos ofícios citadinos é a subsistência dos artesã os enquanto tais, logo o valor de uso e não o enriquecimento; não é o valor de troca como tal, embora este artesanato seja essencialmente fundado na troca e na criação de valores de troca. A produção está por toda a parte subordinada a um consumo preexistente, a oferta é função da procura e só lentamente se expande.

Por, conseqüência, o processo de valorização do capital tem como resultado principal a produção de capitalistas e de trabalhadores assalariados. É o que a economia simplista, que só toma em consideração as coisas produzidas, esquece completamente. Neste processo, o trabalho materializado afirma-se ao mesmo tempo como não-materialidade do trabalhador, por outras palavras, como subjetividade de uma realidade oposta ao trabalhador, como propriedade de uma vontade estranha àquele que trabalha. Daqui se infere- que o capital é ao mesmo tempo, e necessariamente, personificado pelo capitalista e que é absolutamente errado pensar, como o fazem certos socialistas, que nós precisamos do capital mas não dos capitalistas. O conceito de capital implica que as condições objetivas do trabalho e produzidas pelo trabalho se personificam face ao trabalho, por outras palavras, que estão estabelecidas como propriedade de uma pessoa estranha ao trabalhador: o conceito de capital implica o de capitalista. Não é menor o erro, por exemplo, dos filólogos que falam de capital na Antiguidade e de capitalistas romanos e gregos. É como se se dissesse" que em Roma e na Grécia o trabalho era livre, o que esses senhores não ousariam certamente afirmar. Se nós hoje chamamos capitalistas aos proprietários de plantações na América e eles são-no, de fato - é porque se trata de uma anomalia na história de um mercado mundial baseado no trabalho livre. Se nos ativermos à palavra «capital» - que não se encontra nos Antigos(20) - então as hordas que ainda hoje vemos deslocarem-se com os seus rebanhos nas estepes da Asia Central seriam grandes capitalistas, já que «capital» significava primitivamente gado, e é por isso que o contrato de métairie ainda freqüente na França meridional se chama excepcionalmente «bail de bestes à cheptel». Em mau latim, os nossos capitalistas ou capitales homines seriam os que debent censum de capite.

O conceito de capital é mais difícil de definir do que o de dinheiro. O capital é, por essência, o capitalista; mas ao mesmo tempo o capital difere. da existência do capitalista: é a produção que é em, tudo é por tudo o capital. Veremos, além disso, que o capital engloba muitos elementos que parecem não pertencer ao conceito. Por exemplo, o capital pode emprestar-se, acumular-se. etc. Em todas estas determinações ele parece não ser mais do que uma coisa e confundir-se inteiramente com a matéria de que é feito. Mas tudo isso será esclarecido no decorrer da análise.

O dinheiro conserva sempre a mesma forma na mesma substância e por isso é mais facilmente considerado como uma coisa. Mas esta coisa, ora mercadoria, ora moeda, etc., pode representar capital ou rendimento, etc. Por isso, mesmo os economistas compreendem que o dinheiro não é algo de concreto, de palpável, mas que uma mesma coisa pode ser concebida ora sob a determinação do capital, ora sob uma determinação diferente, ou mesmo contrária; e que ela é ou não é capital consoante a sua determinação. O dinheiro exprime evidentemente uma relação determinada e, como tal, só pode ser uma relação de produção.



Notas


5 A idéia abstrata de uma comunidade cujos membros nada têm em comum, salvo, eventualmente, a língua, etc.. é, evidentemente. produto de circunstâncias históricas muito mais tardias.

6 De fato, poderemos limitar-nos a falar aqui da propriedade primitiva do solo. pois que, entre os povos pastoris, a propriedade dos produtos naturais da terra - dos carneiros, por exemplo - significa ao mesmo tempo a propriedade das pastagens que eles percorrem. De um modo geral, a propriedade do s010 compreende li dos seus produtos orgânicos. Quando o homem é conquistado com o 50]0 como acessório orgânico deste, faz parte integrante das condições de produção. Assim nascem a escravatura e a servidão, que rapidamente adulteram e modificam as formas primitivas de todas as comunidades e delas se tornam mesmo a base. A organização !:iimpJes adquire assim uma significação negativa.

7 As habitações, no entanto, nem que sejam os carros Citas, são sempre possessões individuais.

8 Originariamente, é certo, a propriedade é móvel, pois homem começa por se apoderar dos frutos da terra, nos quais têm que incluir-se, entre outros, os animais, particularmente os que se podem domesticar. Todavia, este estado - caça, pesca, pastorícia, apanha dos frutos das árvores – pressupõe ele também, a apropriação do solo para fixação, para nomadização ou então como pastagem dos para os animais, etc.

9 A tudo isto teremos de voltar de forma mais desenvolvida e mais aprofundada.

10 O sistema manufatureiro do Oriente antigo pode já ser examinado na primeira fábrica.

11 Este ponto terá que ser aprofundado.os ricos

12 É a etapa em que o instrumento está subordinado ao trabalho individual; é um nível particularmente limitado do desenvolvimento da. produtividade do trabalho.

13 «Vender-se em caso de necessidade, a si e aos seus, era um direito tão geral como deplorável; era corrente no Norte, tal como entre os Gregos e na Ásia. O direito do credor de se apoderar do devedor em falta e dele fazer seu escravo, enfim, de se indemnizar, tanto quanto possível, quer pelo seu trabalho quer pela venda da sua pessoa, não era muito menos universal » (Niebuhr, I. c., t. I p. 600.) Niebuhr declara noutra passagem que os autores gregos que escreviam na época de Augusto tiveram dificuldade em compreender a relação entre os patrícios e os plebeus e que confundiram essa relação com a existente entre os patranos e os clientes. Este erro derivava do fato de que eles «escreviam num tempo em que os ricos e os pobres constituíam as lí"icas verdadeiras classes de cidadão, em que o indigente, por mais nobre que fosse sua origem, tinha necessidade de um protetor; em que o milionário, mesmo quo:: fosse um liberto, era como tal procurado. Só com muita dificuld3.dc encontravam ainda estes historiadores a1guns vestígios de dependi:ncia hereditária.» (L. c., t. L p. 620.)

Nas duas classes - entre os metecos e os libertos e seus descendentes - havia operários, e o plebeu que renunciava à agricultura gozava dos mesmos direitos de cidadães que estes artesãos. Tão-pouco lhes faltavam as honras das corporações reconhecidas pela lei. os seus mesteres eram tão considerados que se apontava Numa como seu fundador; havia nove mesteres: 05 flautistas, os ourives, os carpinteiro!, os tintureiros, O~ corrceiros, os curtidores, os caldei reiros, os oJeiros e o nono mester compreendia todas as outras profissões em gcnl1 (n.) Aqueles de entre c!es que eram falsos burgueses independentes, os isopolitas que se não haviam oferecido a nenhum patrono (se é Que existiu t:11 direito) ~, além disso, os d.,:sceodentes de clientes cujo laço se tinha rompido pela extinção da casa dos seus palronos, todos estes foram sempre, sem dúvida a!sum:t, tão alheios às discórdias dos cidadãos primitivos e da comuna como os mestcirais de Florença às dissensões que dividiram as casas dos Guelfos c dos Ghibelinos. QU:1oto aos clientes, é provível que eles estivessem ainda todos às ordem dos patrícios.» (L. c.. .0. 623.) H comum

14 A dissolução das formas ainda mais antigas de propriedade e de sociedades comunitária é um fenômeno evidente.

15 Pois, neste caso, o capital pressuposto como condição do trabalho assalariado é produto dele; enquanto condição do trabalho assalariado, ele surge como seu próprio pressuposto ao mesmo tempo que pressuposto do trabalho por ele criado.

16 Uma vez que. o capital e o trabalho assalariado são concebidos como origem de si mesmos, como a base e a condição da própria produção, é-se levado a pensar que, além do fundo de matérias-primas e de meios de trabalho necessários para que o trabalhador se reproduza a si mesmo e fabrique as suas subsistências, ou seja, realize o trabalho necessário, o capitalista possui um fundo de matérias-primas e de meios de trabalho graças ao qual o trabalhador realiza o seu sobretrabalho, isto é, o lucro do capitalista. Levando a análise mais longe, descobre-se que O trabalhador está constantemente a criar um duplo fundo para o capitalista ou sob a forma de capital: uma parte desse fundo satisfaz constantemente as condições de existência do trabalhador e a outra, as do capital. Vimos que o capital excedente trabalho – por comparação com a sua relação antediluviana com o trabalho, cada elemento se apropria de todo o capital real e presente do qual é adquirido unicamente. como trabalho concreto de outrem, sem troca e sem o menor equivalente.

17 Isso não impede que, aquando da dissolução das corporações. um ou outro mestre se transforma em capitalista industrial; mas esses casos são naturalmente raros. O sistema das corpo rações desaparece no seu conjunto - tanto o mestre como o companheiro quando o capitalista e o trabalhador surgem.

19 Facilmente se verificará o absurdo deste círculo vicioso: por um lado, os trabalhadores que o capital tem que pôr a trabalhar para se afirmar como capital precisam primeiro de ser criados. postos no mundo, graças à sua acumulação; têm pois de esperar que o capital lhes grite: Sedel. Por outro lado o mesmo capital é incapaz de acumular sem o trabalho de outrem: apto quando muito a acumular o seu próprio trabalho, ele só poderia existir sob forma de não-capital e de não-dinheiro. Efetivamente, antes da existência do capital, o trabalho só pode valorizar-se sob a forma de artesanato, de pequena agricultura, etc., em suma, sob formas que pouco ou nada acumulam e que apenas admitem um sobreproduto de pouco importância, em grande parte destinado a ser consumido. Examinaremos noutro local esta idéia de acumulação.

19 Todavia, iremos encontrar nos Gregos a palavra arkaia, que corresponde à principalis summa rei creditae dos Romanos.

Formações Econômicas Pré-Capitalistas - Parte 1 - Karl Marx

Título original: Formen die der Kapitalistiscllen Produktion vorhergehtl

Tradução de Alberto Saraiva sobre a versão francesa de Maximilien Rubel, in K. Marx. Oeuvres: Économie II, . Bibliothéque de la Pléiade. Editions Gatlimard. Paris, 1968. (grifo meu)


COMUNA TRIBAL E DESPOTISMO ORIENTAL

O trabalho livre, a troca do trabalho livre por dinheiro com vista a reproduzir e valorizar o dinheiro são os pressupostos do trabalho assalariado e uma das condições históricas do capital. Nesta troca, o dinheiro é utilizado como valor de uso não para ser consumido; mas para produzir dinheiro. Um outro pressuposto do salariato e do capital é a separação entre o trabalho livre e as condições objetivas da sua realização, isto é, o meio e a matéria do trabalho. Temos assim, desde o início, o fato de o trabalhador estar separado da terra, seu laboratório natural, de onde a dissolução da pequena propriedade livre e da propriedade comum que tem o seu fundamento na comuna oriental.

Sob estas duas formas, o trabalhador é o proprietário das condições objetivas do seu trabalho relação que constitui a unidade natural do trabalho com os seus pressupostos materiais: aqui, independentemente do seu trabalho, o trabalhador possui uma existência objetiva. O indivíduo é, em relação a si mesmo, proprietário e dono das condições de sua realidade. A mesma relação face a terceiros: consoante esse estatuto emane da comuna ou das famílias que constituem a comuna, o indivíduo considera os outros como co-proprietários (outras tantas personificações da propriedade comum) ou como proprietários independentes a seu lado, proprietários privados. Neste último caso, a propriedade comum, que anteriormente absorvia todas as terras e dominava todas as pessoas, apresenta-se como ager publicus distinto, ao lado das numerosas propriedades privadas. Numa e noutra forma, os indivíduos não têm o estatuto de trabalhadores, mas de proprietários. Simultaneamente membros e co-proprietários de uma comunidade, é como tais, que nela trabalham. Embora os trabalhadores possam fornecer trabalho excedente para em troca obterem produtos alheios, produtos excedentes, o seu objetivo não é criar valores. O seu trabalho tem por finalidade a conservação de cada proprietário individual e da sua família, bem como a conservação da comunidade no seu conjunto. O indivíduo como trabalhador, na sua nudez de trabalhador, é um produto histórico.

Podemos verificar que, na primeira forma desta propriedade da terra, a comunidade natural é a condição primordial: quer por casamentos recíprocos, quer por associação, a família cresce até às dimensões da tribo. Podemos admitir que o estado pastoril e, em geral, a migração constituem o primeiro modo de existência; não que a tribo se fixe num certo território: ela vai apascentando nos prados que encontra no seu caminho; os homens não são sedentários por natureza (a menos que se encontrem num ambiente natural particularmente fértil e que vivam nas árvores como macacos; geralmente, erram à aventura como selvagens). Por conseguinte, a comunidade tribal, a comuna natural, aparece não como o resultado, mas como a condição da apropriação (temporária) e da utilização comuns do solo.

Uma vez fixada, esta comunidade primitiva sofrerá modificações mais ou menos profundas, conforme as diversas condições exteriores climáticas, geográficas, físicas, etc. - e as suas disposições naturais, o seu caráter tribal. A comunidade tribal primitiva, ou, se se quiser, o estado gregário, é a primeira condição - comunidade do sangue, da língua, dos costumes, etc. - da apropriação das condições objetivas da vida e da atividade reprodutora e criadora de produtos (como pastores, caçadores, agricultores, etc.). A terra é o grande laboratório, o arsenal que simultaneamente fornece os meios e os materiais do trabalho e a residência, base da comunidade. Em relação a esta base, propriedade da comuna, bem como em relação à comunidade que se produz e se reproduz no trabalho vivo, os homens conduzem-se de modo absolutamente ingênuo. Cada indivíduo detém o estatuto de proprietário ou de possuidor apenas enquanto membro da comunidade. É nestas condições - que não são produto do trabalho, antes que se efetua aparecem como naturais ou divinas - a apropriação real por intermédio do processo do trabalho.

Embora assente num fundamento invariável, esta forma pode realizar-se de diversas maneiras. Por exemplo, não há nada de contraditório em, como sucede na maior parte das formas asiáticas, a unidade centralizadora que se ergue por sobre as pequenas comunidades fazer figura de proprietário supremo ou único. aparecendo as comunas reais então como simples possuidores hereditários. Uma vez que a Unidade é o verdadeiro proprietário e o pressuposto real da propriedade comum, esta pode mesmo surgir como um fenômeno distinto e superior às numerosas comunas particulares, sendo nessa altura o individuo isolado de fato desprovido de propriedade. Por outras palavras, a propriedade isto é o comportamento do indivíduo em relação às condições naturais do trabalho e da reprodução que, enquanto natureza não orgânica fazendo corpo com a sua subjetividade, parecem pertencer-lhe objetivamente - é dada - ao indivíduo pela boa vontade da Unidade total realizada na pessoa do déspota, pai das diversas comunas, que a concede ao indivíduo por intermédio de determinada comuna particular. Daí que o sobreproduto, de resto legalmente fixado graças à apropriação real pelo trabalho, reverta automaticamente para essa unidade suprema. No seio do despotismo oriental e da não-propriedade, que.., I parece ter aqui uma base jurídica, a propriedade tribal ou comunal possui uma base efetiva e é, na maior parte das vezes, produto de uma combinação da manufatura com a agricultura no interior da pequena comuna. Esta torna-se assim inteiramente autárcica e contém em si mesma todas as condições da reprodução e da produção excedentária.

Uma parte do seu sobretrabalho pertence à comunidade superior, a qual acaba por tomar corpo numa pessoa. e este sobretrabalho manifesta-se tanto no tributo, etc" como nos trabalhos coletivos destinados a glorificar a Unidade incamada no déspota real ou no ser tribal imaginário que é o deus. Na medida em que, se realiza verdadeiramente no trabalho, este tipo de propriedade comunal. pode assumir formas variadas: as pequenas comunas têm uma existência vegetativa e independente umas ao lado das outras e cada indivíduo trabalha independentemente com a sua família no lote de terra que lhe é atribuído (determinado trabalho, por um lado, para o aprovisionamento comum, o seguro, quase poderíamos dizê-lo, e, por outro lado, para cobrir as despesas da comuna como tal: a guerra, o culto, etc.; o dominium senhorial, no seu sentido mais primitivo, só aqui se reencontra, por exemplo nas comunas eslavas, romenas, etc.; transição para o regime das corveias, etc.); ou então a unidade pode estender-se à comunidade no próprio trabalho, dando origem a um verdadeiro sistema, como no México e, especialmente, no Peru, entre os antigos Celtas, em algumas tribos indianas. O caráter comunitário pode, além disso, surgir no seio da tribo sob a forma de um chefe da família tribal, representante da unidade, ou como uma relação de mutualidade entre os pais de família. Temos nessa altura, conforme o caso, uma forma mais ou menos despótica ou democrática dessa comunidade. As condições comunitárias da apropriação real pelo trabalho (muito importantes entre os povos asiáticos), aquedutos, meios de comunicação, etc.. surgem então como obra da unidade superior, o governo despótico que paira acima das pequenas comunas. As cidades propriamente ditas formam-se ao lado destas aldeias, mas em pontos particularmente favoráveis para o comércio externo, ou então no local em que o chefe do Estado e os seus sátrapas trocam o seu rendimento (sobreproduto) pelo trabalho e o dispendem a título de fundo de mão-de-obra.


COMUNA E ESTADO EM ROMA

A segunda forma (tal como a primeira. deu origem a importantes variantes, locais, históricas, etc.) resulta de uma vida histórica mais movimentada, de um concurso de fatalidades e de transformações sobre vindas no seio das tribos primitivas. Ela pressupõe igualmente a comunidade como condição primordial, mas. não como no -primeiro caso - enquanto substância na qual o indivíduo não passa de um acidente ou de um elemento puramente natural; não pressupõe a terra como base, mas sim a cidade enquanto estância (centro) já criada de agricultores (proprietários fundiários). A superfície cultivada aparece como o território da cidade, que já não é a aldeia, simples acessório do campo. Em si, a terra sejam quais forem os obstáculos que possa oferecer ao cultivo e. à apropriação real - não se opõe à natureza não orgânica do indivíduo vivo; ela é a oficina, o instrumento de trabalho, o objeto, o meio de subsistência do sujeito. As dificuldades encontradas por uma comuna só podem provir de outras comunas que tenham já ocupado as terras ou a impeçam -de se instalar. Por isso é a guerra a grande tarefa total e o grande trabalho comum, exigidos quer para dominar as condições objetivas da existência viva, quer para proteger e perpetuar os fundamentos dessa dominação. É pois militarmente que em primeiro lugar se organiza a comuna composta por famílias; a organização militar e guerreira é uma das condições da sua existência como proprietária. A base desta organização militar é a concentração das habitações na cidade. A ordem tribal como tal leva à divisão em famílias superiores e inferiores, diferença que se desenvolve ainda mais pela fusão com clãs subjugados, etc. Aqui, , a propriedade da comuna - propriedade do Estado, ager publicus - é separada da propriedade privada. Contrariamente ao que se passa no primeiro caso, em que, separada da comuna, a propriedade não pertence ao indivíduo isolado conquanto ele detenha a sua posse, aqui a propriedade do indivíduo isolado não é diretamente a da comuna. Quanto menos susceptível é a propriedade individual de ser valorizada apenas pelo trabalho coletivo (por exemplo, os aquedutos no Oriente). tanto mais é o caráter puramente natural da tribo destruído pelo movimento histórico a migração; além disso, quanto mais a tribo se afasta da sua estância primitiva e mais territórios estrangeiros ocupa, quanto mais, portanto, se encontra em condições de trabalho essencialmente novas, tanto mais se desenvolve a energia dos indivíduo; isolados (surgindo aqui forçosamente o caráter comunitário como unidade negativa face ao exterior) e se vêem surgir as condições que fazem com que o indivíduo se torne proprietário privado do solo de uma parcela particular cujo cultivo particular lhe incumbe, a ele e à sua família.

A comuna, enquanto Estado, é a relação recíproca destes proprietários livres e iguais, a sua união face ao exterior; é, ao mesmo tempo, o penhor dessa união. A comunidade funda-se aqui no fato de os seus membros serem constituídos por proprietários fundiários que trabalham, Dor camponeses parcelares cuja independência reside nas suas relações recíprocas como membros da comuna, na garantia do ager publicus em quanto se refere às necessidades colectivas, à glória comum, etc. A apropriação do solo tem aqui por condição a pertença à comuna; mas, enquanto membro desta, o indivíduo isolado é proprietário privado. Para ele, a propriedade privada é a terra; mas é também a sua existência enquanto membro da comuna: conservando-se como tal, ele contribui para a conservar, e inversamente, etc. Sendo já um produto histórico, não só na sua realidade mas também na consciência, portanto o resultado de um processo, a comuna pressupõe a propriedade do solo, isto é, a relação do sujeito trabalhador com as condições naturais do trabalho como pertencendo a ele. Mas esta propriedade é mediatizada pelo seu estatuto de membro do Estado, pela existência do Estado, em suma, por um pressuposto considerado de ordem divina, etc. Concentração na cidade, cujo território se estende à zona rural; pequena agricultura trabalhando para o consumo direto; manufatura como ofício acessório das mulheres e das filhas (fiação e tecelagem) ou como atividade independente em certos ramos (fabri, etc.) A persistência da comunidade é garantida pelo respeito da igualdade entre os camponeses livres e independentes, cujo trabalho condiciona a manutenção da propriedade. Comportando-se em relação às condições naturais do trabalho como proprietários, eles têm que, pelo trabalho pessoal, incessantemente afirmá-Ias como condições e elementos objetivos da personalidade individual.

Por outro lado, esta pequena comunidade guerreira é levada, pelas suas próprias tendências, a ultrapassar esses limites, etc. (Roma, Creta, Judeus, etc.). Para arranjar com que viver, o indivíduo é colocado em condições tais que o objeto do seu trabalho não é a aquisição da riqueza mas a autarcia, a sua própria reprodução como proprietário da parcela de terra e, nessa medida, como membro da comuna. i) persistência da comuna requer a reprodução de todos os seus membros como camponeses independentes, cujo tempo excedente pertence justamente à comuna, ao trabalho da guerra, etc. Apropriam-se do seu próprio trabalho apropriando-se das condições do trabalho, da jeira de terra que é garantida pela existência da comuna, a qual é por sua vez garantida pelo sobretrabalho dos membros da comuna sob a forma de serviço militar, etc. O membro da comuna reproduz-se cooperando não na criação de riquezas, mas em trabalhos de interesse comum (imaginário ou real) com vista a manter a associação no interior e face ao exterior. A propriedade é quiritária, romana. O proprietário privado só o é na sua qualidade de Romano; mas, enquanto Romano, ele é proprietário privado.


PROPRIEDADE ROMANA E PROPRIEDADE GERMANICA

Uma das formas da propriedade em que os indivíduos trabalhadores, membros autárcicos da comunidade, se apropriam das condições naturais do seu trabalho é a propriedade germânica... Aqui - ao .contrário da forma especificamente oriental - o membro da comuna não é, como tal, co-possuidor da propriedade comum. Tão. .pouco é o solo ocupado pela comuna, como na forma romana, grega (em suma, da Antiguidade clássica). Não é solo romano. Uma parte fica em poder da comuna como tal, distinta dos membros da comuna, ager publicus nas suas diversas formas; a outra parte é distribuída, e cada parcela do solo é romana porquanto é a propriedade privada, o domínio de um Romano, a parte que lhe cabe no laboratório; mas, na verdade, ele não é Romano senão na medida em que possui esse direito soberano sobre uma parte da terra romana.

Na Antiguidade. os ofícios e o comércio citadinos eram pouco apreciados; em contrapartida. a agricultura era tida em grande estima. Na Idade Média passa-se o contrário. - O direito de explorar a terra comunal mediante ocupação cabia originariamente aos patrícios, os quais. por seu turno concediam feudos aos seus clientes; só os plebeus tinham o direito de concessão da propriedade do ager publicus; todas as concessões se fariam em proveito dos plebeus, que podiam ser indemnizados pela sua parte na terra comunal. A propriedade da torra propriamente dita. exceptuada a região em torno dos muros da cidade, estava originariamente apenas nas mãos dos plebeus. Mais tarde, esta propriedade será acolhida nas comunas rurais. O caráter fundamental da plebe romana é o de uma colectividade de agricultores, segundo a definição da propriedade quiritária. Os Antigos consideravam unanimemente a agricultura como a verdadeira profissão do homem e como a escola do soldado. é com ela que se conserva antiga estirpe da nação; muda de caráter nas cidades, onde os comerciantes e os artesãos estrangeiros se vêm estabelecer, tal como os autóctones atraídos pelo ganho. Por toda a parte em que esteja estabelecida a escravatura, os libertos instalam-se no comércio e no artesanato. que. muitas vezes, lhes proporcionam riquezas. É assim que, na Antiguidade, estas profissões estavam quase todas entre as suas mãos tornando-se por isso mesmo pouco próprias para o exercício da cidadania. Daí a opinião de que era perigoso o acesso dos artesãos à plenitude do direito dos cidadãos (por regra, entre os antigos Gregos, eram dele excluídos).3 Os Antigos não tinham qualquer noção da dignidade dos mesteres, como no-los mostra a história das cidades da Idade Média e é inegável que quando as corporações triunfaram sobre
as gentes,. o espírito guerreiro decaiu entre eles e acabou por se extinguir totalmente e com ele a reputação e a liberdade das cidades.

As tribos dos Estados antigos eram constituídas de duas maneiras: segundo as gentes que as compunham ou segundo o local que ocupavam. As tribos de famílias têm prioridade de data sobre as de local e quase por toda a parte lhes cedem o lugar. A sua forma mais rigorosa é o sistema de castas separadas umas das outras. impermeáveis ao casamento recíproco e de níveis absolutamente diferentes. Neste sistema. cada casta tem uma vocação exclusiva. imutável. Originariamente. as tribos correspondem a uma divisão da região em cantões e aldeias: quem quer que tivesse possessões numa aldeia na época em que a tribo se estabeleceu, por exemplo, na fi,..tica no tempo de Clístenes. era por isso mesmo inscrito, na qualidade de demotas (membro do demo ou aldeia), na tribo do cantão a que pertencia a sua aldeia. Seguidamente, os seus descendentes, sem consideração pelo local do seu domicilio, continuavam. regra geral. a fazer parte quer da mesma tribo quer do mesmo demo, o que introduziu, mesmo nesta divisão. uma aparência de genealogia. As gentes romanas não eram consangüíneos: Cícero, como característica de um nome comum. acrescenta a filiação de um liberto. Os sacra comuns dos membros da gens romana acabaram mais tarde (já na época de Cícero): o direito de herdar dos co-membros da gens falecidos sem deixar sucessores foi o que se conservou por mais tempo. Obrigação, nos tempos mais recuados, para os co-membros da gens de ajudar a suportar os encargos extraordinários dos que estavam em necessidade (originariamente, por todo o lado entre os Alemães, durante mais tempo entre as Dithmarschen). As gentes. espécie de corporações. Não houve no mundo antigo instituição mais geral do que a das gentes. :2 assim que, entre os Gaélicos, os nobres Campbell e os seus vassalos formavam um clã. Como o patrícia representa a comunidade a uma escala superior, ele é o possuidor do ager publicus e explora-o por intermédio dos seus clientes, etc. (e acaba por dele se apropriar). A comuna germânica não se concentra na cidade como centro da vida rural, domicílio dos operários agrícolas, sede das operações militares; em conseqüência dessa concentração urbana, a comuna passa a ter apenas uma existência externa, distinta da dos indivíduos isolados.

A história clássica antiga é a história da cidade. Mas as cidades têm por base a propriedade fundiária e a agricultura. A história asiática é uma espécie de unidade indiferenciada da cidade e do campo.(As grandes cidades propriamente ditas devem ser consideradas como simples acampamentos de nobres. instituição superfetatória acima da organização econômica propriamente dita).. A Idade Média - (época germânica) parte do campo, centro da hist6ria, cujo ulterior desenvolvimento se processa na oposição entre a cidade e o campo; é a urbanização do campo e não, como na Antiguidade. a »ruralização» da cidade.


Ao incorporar-se na cidade, a comuna como tal possui uma existência econômica; a simples existência da cidade como tal é diferente da multidão das casas independentes. Aqui, o todo não é composto pelas suas partes. É uma forma de organismo autónomo. Entre os Germanos, onde os chefes de família se fixam nas florestas e se encontram assim separados por grandes distâncias, a comuna só existe - do mero ponto de vista externo - pela reunião periódica dos seus membros, embora a sua unidade autónoma esteja estabelecida na origem, na língua, no passado comum, na história, etc. Em conseqüência, a comuna apresenta-se como reunião e não como união, como unificação cujos sujeitos autónomos são os proprietários do solo e não como unidade. Desse modo, a comuna não existe enquanto Estado, formação estatal, como entre os Antigos, porque não existe enquanto cidade. Para que a comuna adquira uma existência real, os proprietários fundiários livres têm que se reunir em assembleia, ao passo que, por exemplo, em Roma ela existe para além dessas assembleias, na presença da própria cidade e dos funcionários que estão à frente da mesma, etc. É verdade que também entre os Germanos se encontra o ager publicus, a terra comunal ou o território tribal, distinto da propriedade dos indivíduos particulares. É o terreno de caça, de pastagem, de corte da madeira, etc.; é a parte da terra que, devendo servir como meio de produção sob a sua forma dada, não pode ser dividida. Mas este ager publicus não surge, como por exemplo entre os Romans, sob o aspecto de uma entidade econômica particular do Estado ao lado dos proprietários individuais, que são mesmo proprietários privados na verdadeira acepção da palavra na medida em que, contrariamente aos plebeus, são excluídos do ager publicus. Entre os Germanos, o ager publicus surge antes como um simples complemento da propriedade individual e só figura como propriedade na medida em que é defendido contra o inimigo como propriedade comum de urna. tribo. A propriedade do individuo isolado não é mediatizada pela comuna, ao passo que a existência da comuna e da propriedade comunal .surge como mediatizada, isto é, como laço e relação recíprocos dos sujeitos autónomos. No essencial, cada casa particular contém o conjunto econômico, formando por si mesma um centro autónomo da produção (a manufatura é aqui urna atividade acessória puramente doméstica, reservada às mulheres, etc.). No mundo antigo, a cidade, com o seu termo rural. constitui O conjunto econômico; no mundo germânico, é o domicílio individual, ele próprio, um mero ponto da terra contigua: não uma concentração de vários proprietários, mas a família como unidade independente. Na forma asiática (pelo menos, na mais vulgar). não há. propriedade, mas unicamente posse individual; sendo a comuna o verdadeiro e real proprietário, a propriedade comum do solo é a única que existe. Entre os Antigos, a propriedade fundiária do Estado e a dos indivíduos privados são formas contrastantes, de tal modo que esta é mediatizada por aquela, a menos que a primeira exista sob essa dupla forma (os Romanos são o exemplo clássico; este tipo existia entre eles na sua forma mais acabada). Por isso é o proprietário privado ao mesmo tempo cidadão, homem da cidade. Do ponto de vista econômico, a cidadania reduz-se ao simples fato de o camponês ser habitante de uma cidade. Na forma germânica, o camponês não é cidadão, quer dizer não é habitante das cidades; a base é a casa familiar, isolada e independente, garantida pela união com outras casas semelhantes pertencentes à mesma tribo; é também a reunião ocasional destas famílias por razões de guerra, de religião, de arbitragem jurídica, etc., com vista a garantirem-se mutuamente. A propriedade fundiária individual não é aqui uma forma oposta à propriedade comunal; não é tão-pouco mediatizada por esta: pelo contrário, esta é mediatizada por aquela. A comuna apenas existe na relação recíproca destes proprietários individuais enquanto tais. A propriedade comunal surge somente como um acessório pertencendo em comum às famílias e às apropriações individuais do solo. A comuna não é a substância na qual o indivíduo não seria mais do que um acidente; não é tão-pouco a universalidade que, enquanto tal, constituiria, tanto no espírito dos indivíduos como na existência da cidade e das suas necessidades, uma unidade concreta distinta das necessidades individuais; não é a unidade no seu território urbano, como existência particular, distinta da existência econômica particular do membro da comuna. Pela língua, pelo sangue. etc.. a comuna como tal é, por um lado, o elemento comum que tem precedência sobre o proprietário individual; mas, por outro lado, só existe como realidade na sua reunião real com vista a fins comuns, e, na medida em que a comuna tem, uma existência econômica particular, ela manifesta-a nos terrenos comuns de caça, de pastagem, etc.; ela é explorada por cada proprietário individual como tal e não enquanto representante do Estado (como em Roma). A propriedade realmente comum é a dos proprietários individuais e não a da união desses proprietários, que possui na cidade uma existência distinta da dos indivíduos particulares.


A COMUNA ANTIGA E A RIQUEZA BURGUESA

O importante em tudo isto é o seguinte: em todas estas formas, a propriedade fundiária e a agricultura constituem a base da ordem econômica; por conseqüência, o objetivo econômico é a produção de valores de uso, a reprodução do indivíduo nas relações particulares . da sua comuna; é nestas relações que ele constitui o fundamento da comuna. Em todas estas formas, verificamos os fatos seguintes:
1.A apropriação da condição natural do trabalho, da terra, simultaneamente instrumento de trabalho, laboratório e reservatório das matérias-primas - apropriação que não é resultado do trabalho mas sua condição, considerando o indivíduo as condições objetivas do trabalho como suas próprias, como a natureza não orgânica da sua subjetividade, como o laço e a ocasião em que ele se realiza a si mesmo enquanto sujeito. A principal condição objetiva do trabalho não é um produto do trabalho, apresenta-se como natureza: por um lado, o indivíduo vivo. por outro., a terra, condição objetiva da sua reprodução.
2.Mas este comportamento para com a terra. propriedade do indivíduo trabalhador é diretamente mediatizado pela existência natural, mais ou menos desenvolvida e modificada historicamente, do indivíduo como membro da comuna, da sua existência natural como membro de um clã, etc. Um indivíduo isolado . não poderia ter a propriedade de uma terra do mesmo modo que não poderia ter uma linguagem. Poderia, sem duvida, alimentar-se da terra, da sua substância. como o fazem . O comportamento para com a terra como propriedade é sempre mediatizado pela ocupação, pacífica ou violenta. da terra pela tribo, pela comuna numa forma ainda mais ou menos autónoma ou já historicamente desenvolvida. Jamais o indivíduo se apresenta no isolamento em que surge quando é um simples trabalhador livre. Se se presume que as condições objetivas do seu trabalho lhe pertencem, presume-se subjetivamente o próprio indivíduo como membro de uma comuna, mediadora entre ele e a terra. A sua relação com as condições objetivas do trabalho é mediatizada pela sua existência como membro da comuna; do mesmo modo, a existência real da comuna propriedade, é determinada pela forma específica da sua.
que o torna senhor das condições objetivas do trabalho. São os seguintes os diversos tipos de relações que podem existir entre os membros da comuna ou da tribo e a terra em que a tribo se fixou:

A propriedade mediatizada pela existência da comuna pode aparecer como propriedade comum, não sendo aqui o indivíduo mais do que possuidor: a propriedade privada não existe. Ou então a propriedade apresenta-se sob a dupla forma de propriedade de Estado e de propriedade privada, coexistindo uma ao lado da outra, sendo todavia esta condicionada por aquela, de tal modo que só o cidadão é e deve ser proprietário privado, ao mesmo tempo que. a sua. propriedade como cidadão possui uma existência particular, ou ainda a propriedade comunal não é mais que o complemento da propriedade individual, mas esta: enquanto base da comuna, não tem outra existência para si que não seja no seio da reunião dos membros da comuna e da sua união com vista a fins coletivos.

Todas estas formas e todos estes comportamentos dependem, em parte, das disposições naturais da tribo e, em parte, das condições econômicas em que a tribo realmente se comporta enquanto proprietária em relação à terra, isto é, se apropria dos seus frutos pelo trabalho. Este comportamento, por seu turno, dependerá do clima, física do solo, das condições naturais da constituição da sua exploração, da atitude para com as tribos vizinhas ou inimigas e das mudanças provocadas por migrações, acontecimentos históricos, etc. Para que a comuna
enquanto tal possa continuar a existir como anteriormente, é preciso que os seus membros se reproduzam nas condições objetivas pressupostas. A própria produção, o progresso da população (que, também ele, faz parte da produção), suprimem pouco a pouco, necessariamente, estas condições; destruem-nas em vez de as reproduzirem, etc. Resultado: a comunidade desaparece ao mesmo tempo que as relações de propriedade em que se fundava.

A forma asiática tem a vida mais tenaz e mais longa, o que resulta da sua própria constituição. Nela, o indivíduo isolado não pode tornar-se independente da comuna. Esfera autárcica da produção; unidade da agricultura e do artesanato, etc. Se o indivíduo altera o seu comportamento em relação à comuna, ele transforma a comuna e produz sobre ela e a sua constituição um efeito destruidor. A comuna pode igualmente mudar em virtude da sua própria dialéctica, pelo empobrecimento, etc.; sobretudo pela guerra e a conquista, cuja influência, por exemplo em Roma, pesa essencialmente entre as condições econômicas da comuna e destrói o laço real em que ela assenta. Em todas estas formas, a base do desenvolvimento reside, por um lado, na reprodução das relações mais ou menos naturais ou históricas e tradicionais entre o indivíduo e a sua comuna e, por outro lado, em circunstâncias objetivas determinadas que predeterminam o comportamento do indivíduo face às condições de trabalho e para com os seus co-trabalhadores, irmãos de tribo, etc. Daí que o desenvolvimento não possa deixar de ser limitado, mas, desaparecendo o limite, ele declina e desintegra-se. Tal é o desenvolvimento da escravatura, a concentração da propriedade fundiária, a troca, o sistema monetário, as conquistas, etc. Assim Roma, ainda que todos estes elementos, considerados como simples abusos, tenham até certo ponto parecido compatíveis com as suas instituições, cujas bases pareciam inocentemente alargar. Grandes evoluções podem produzir-se no interior de uma dada esfera. Os indivíduos podem parecer dotados de grandeza. Mas um pleno e livre desenvolvimento do indivíduo e da sociedade é aqui inconcebível: tal desenvolvimento está em contradição com a organização primitiva.

O problema de saber que forma de propriedade fundiária, etc., é mais produtiva, ou. cria maior riqueza, jamais preocupou os Antigos. A seus olhos, a riqueza não é o objetivo da produção, possa embora Catão interrogar-se quanto à maneira mais rentável de cultivar um campo ou Bruto emprestar o seu dinheiro à taxa de juro mais favorável. A investigação refere-se sempre à pergunta: que modo de propriedade cria os melhores cidadãos? Só entre raros povos comerciantes que monopolizam o comércio dos transportes que vivem nos poros do mundo antigo, como os Judeus na sociedade medieval, é que a riqueza surge como, um fim em si. Ora, por um lado, a riqueza é uma coisa realizada em coisas, produção material a que o homem faz face enquanto sujeito; por outro lado, enquanto valor, é o mero poder de encomendar o trabalho de outrem, não com objetivos de dominação, mas para fruição privada. Em todas as suas formas, ela apresenta-se sob um aspecto material, seja como coisa, seja como uma relação mediatizada pela coisa, mas sempre fora do indivíduo ou" acidentalmente, a seu lado. Que sublime surge assim a velha idéia que faz do homem - seja qual for a estreiteza do seu estatuto nacional, religioso e político o objetivo da produção, face ao mundo moderno em que a produção é o objetivo do homem, e a riqueza o objetivo da produção. No entanto, despojando a riqueza dos limites da sua forma burguesa, que vemos? Uma coisa, em verdade: a riqueza é a universalidade das necessidades, das capacidades, dos gozos, das forças produtivas, etc., dos indivíduos, universalidade produzida na troca universal; é o domínio plenamente desenvolvido do homem sobre as forças naturais, tanto sobre a sua própria como sobre aquela a que se chama natureza. É o desenvolvimento dos seus dotes criadores, que mais não pressupõe que o desenvolvimento de todas as faculdades humanas como tais, sem as aferir por um padrão dado. Aí o homem reproduz-se não em um caráter determinado mas na sua totalidade; não procura ser uma coisa imobilizada, antes se encontra no movimento absoluto do devir. Na economia burguesa - na época de produção que lhe corresponde - este pleno desenvolvimento da interioridade humana revela-se despojamento total e esta objetivação universal, alienação total; a destruição de todos os fins parciais revela-se abandono e sacrifício do fim em si a fins absolutamente exteriores. Pôr isso o infantil mundo antigo surge como um mundo superior de cada vez que nos lançamos à procura de formas perfeitamente acabadas, no seio de uma limitação dada, Esse mundo é a satisfação ao seu nivel limitado; o mundo moderno, em contrapartida, deixa-nos insatisfeitos e, mesmo quando está satisfeito consigo, não é mais que vulgaridade.




Notas

1 «Quando os áugurcs - escreve Niebuhr - asseguraram a Numa que a sua eleição tinha obtido a sanção divina, a primeira preocupação deste piedoso rei não foi o culto religioso. mas a sorte dos homens. Distribuiu as terras que haviam sido conquistadas por Rómulo na guerra e abandonadas à ocupação: fundou o culto de Terminu!. Todos os legisladores antigos, a começar por Moisés. alicerçaram o êxito das suas disposições a respeito da virtude, da eqüidade, dos bons costumes. na propriedade da terra, ou, pelo menos, na posse do solo hereditariamente garantida para o maior número possível de cidadão». História Romalla, 2.& ed., vaI. I, p. 245.

2 Onde a propriedade existe unicamente como propriedade comunal, o indivíduo como tal é apenas possuidor de uma parte distinta, hereditária ou não, porquanto nenhuma fração da propriedade pertence a uma pessoa como tal, mas a um indivíduo enquanto membro direto da comuna, diretamente unido a ela e não distinto dela. Este indivíduo é, portanto, somente possuidor. O que existe é apenas a propriedade comunitária e a posse privada. Os modos desta propriedade em relação à propriedade comum podem ser historicamente, localmente, etc., muito diversos, consoante o próprio trabalho que efetua independentemente do possuidor privado ou é, por sua vez, determinado pela comuna ou pela unidade que paira acima da comuna particular.

3 «Nenhum Romano tinha o direito de viver do comércio ou de um oficio.»

4 o indivíduo que trabalha não aparece pois imediatamente como tal, nesta abstração; ele possui na propriedade da terra um modo de existência objetivo. condição da su.J. atividade e não simples resultado desta. Esta propriedade é urna condição da sua atividade ao mesmo título que a sua pele, os seus órgãos sensoriais, que" é certo, ele reproduz e desenvolve no processo vital, mas que presidem a esse mesmo processo de reprodução.