Texto extraído do artigo " O encontro de Hegel e Marx com a Economia Política Clássica" (grifo meu)
Partindo das diferentes formas aparentes da riqueza social (salário, lucro, renda da terra e juros), a EPC(economia política clássica) procura reduzi-las a seu elemento comum: o trabalho. Noutras palavras, partindo do valor de troca, a EPC chega ao valor e daí a sua fonte: as quantidades de trabalho despendidas na produção das mercadorias.
Para demonstrar que o trabalho é a verdadeira fonte do valor, Adam Smith(5) idealiza a existência de um estado hipotético habitado por caçadores, que vivem da troca dos produtos de seus diferentes trabalhos. De posse desta ficção teórica, ele intenta demonstrar que as quantidades de trabalho inseridas nas mercadorias são as únicas regras que os homens devem observar ao permutar seus diferentes produtos. Neste estado original, onde não há propriedade privada da terra nem acumulação de capital, não havia, portanto, patrões nem empregados, o valor do produto do trabalho pertencia integralmente a quem o produzia. Nestas condições, como diz Smith, "todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador; e a quantidade de trabalho normalmente empregada em adquirir ou produzir uma mercadoria é a única circunstância capaz de regular ou determinar as quantidades de trabalho que ele normalmente deve comprar, comandar ou pelo qual deve ser trocado"(6). Na ausência de propriedade privada, o valor produzido pelo trabalhador lhe pertence integralmente e, por isso, o valor de sua mercadoria é igual à quantidade de trabalho nela inserida, ou igual à quantidade a certa de trabalho que essa mesma mercadoria pode comandar ou adquirir. Em vista disto, a remuneração que cada um recebe por seu trabalho, para falar em termos smithiano, é igual ao valor do produto, ou, se se preferir, salário e valor são duas grandezas iguais. Nestas condições a troca obedece ao princípio da equivalência.
Entretanto, Smith(7) é levado a reconhecer que este princípio perde sua validade na sociedade capitalista. Nesta sociedade, porque dividida entre proprietários e não-proprietários(8), o produto do trabalho não mais pertence integralmente a quem o produz, ao trabalhador, pois, agora, ele é obrigado a ceder parte do que produziu com quem o empregou. Neste caso, a igualdade entre salário e valor do produto deixa de existir. Neste sentido, a quantidade de trabalho que uma dada mercadoria pode comprar ou comandar é maior que a quantidade de trabalho nela inserida (contida). Um exemplo esclarece melhor tudo isso. "Suponha-se que em uma mercadoria estão contidas 100 horas de trabalho, proporcionadas por trabalhadores cuja subsistência custa 50 horas de trabalho: então, com essa mercadoria pode-se proporcionar a subsistência de um número de trabalhadores capaz de proporcionar 200 horas de trabalho. Nesse caso, o trabalho contido é 100 e o trabalho ordenado (comandado) é 200"(9).
Mas, qual desses dois trabalho deverá ser a medida do valor das mercadorias? O trabalho contido ou o trabalho comandado? Uma coisa é certa: com o conceito de trabalho comandado, Smith queria dar conta da troca entre capital e trabalho para mostrar como surge a mais-valia na sociedade capitalista. Mas, o seu raciocínio, neste particular, é tautológico. Com efeito, se se considerar que a mercadoria que o trabalhador recebe sob a forma de salário é a base explicativa do valor por ela comandado, este último (o valor comandado), para ser conhecido, exige que se conheça primeiro o valor da mercadoria recebida pelo trabalhador. Chega-se, assim, a uma proposição destituída de sentido: o valor depende do valor(10).
Adam Smith nada faz para sair desse círculo vicioso. Continua expondo a sua teoria do valor sem se importar com as seguidas contradições em que se envolve(11). De fato, no capítulo VII, em que trata do preço natural e do preço de mercado, ele volta a sustentar a tese anterior, segundo a qual as mercadorias são trocadas umas pelas outras na proporção do tempo de trabalho nelas inseridas e não pela quantidade de trabalho que podem comandar. Surgem, assim, duas teorias do valor: a do trabalho contido e a do trabalho comandado.
Para livrar a teoria de Smith destas contradições, Ricardo passa a sustentar que, tanto no estado de natureza, como na sociedade capitalista, o valor das mercadorias é determinado pelas quantidades de trabalho nelas inseridas. Noutras palavras, para ele é o conceito de trabalho contido e não o de trabalho comandado que deve ser afirmado na construção da teoria do valor.
Para sustentar que o trabalho contido nas mercadorias é a verdadeira medida do valor, Ricardo elabora o conceito de valor do trabalho. De acordo com este conceito, o valor do trabalho se mede como o de qualquer outra mercadoria: pelas quantidades de trabalho contidas nos meios de subsistência do trabalhador. Ora, se o trabalho é uma mercadoria como outra qualquer, a troca entre capital e trabalho obedece o mesmo princípio da troca das mercadorias em geral: troca se valor por valor, equivalente por equivalente. Conseqüentemente, a lei do valor vale tanto para o rude estado de natureza como para a sociedade capitalista.
Desse modo, Ricardo julga haver resolvido a contradição smithiana e demonstrado que o trabalho contido é a única e verdadeira medida do valor. E o que é mais importante: ao fazer do trabalho contido a única medida do valor, ele põe fim à falsa idéia, em parte defendida por Smith, de que o salário determina o preço das mercadorias. Rechaçar essa concepção foi o seu grande mérito, ao acabar de uma vez por todas com o dogma de que o valor é resultado de uma soma que acrescenta ao salário o lucro do capitalista e a renda do proprietário. Se o valor fosse resultado de uma simples soma não haveria limites para as classes participarem na apropriação do produto, já que cada uma dela poderia receber uma maior fatia simplesmente aumentando as parcelas que compõem essa soma. O sistema seria, assim, um sistema onde não haveria lugar para a luta de classes(12).
Superadas as contradições da teoria do valor de Smith, Ricardo tinha agora como tarefa pensar a passagem dos valores aos preços, ou, se se preferir, analisar como as leis internas do capital se põem no nível da aparência do sistema, isto é, como aparecem na interação dos diversos capitais, na concorrência. Entretanto, como se sabe, ele não consegue realizar com sucesso a passagem da essência para a aparência. Ao tentar realizá-la acaba por escamotear a origem da mais-valia. Realmente, o modo como calcula a taxa de lucro esconde a idéia do lucro como excedente produzido pelo trabalho. Parte simplesmente do fato de que o valor dos salários é menor do que o valor do produto, sem explicar as razões dessa diferença(13).
A origem da mais-valia se torna mais obscura ainda quando se tem presente o modo pelo qual Ricardo concebe o conceito de valor do trabalho. Ao determinar o "valor de trabalho" pelo tempo de trabalho necessário que o trabalhador despende para prover sua subsistência, ele pressupõe que o tempo de trabalho contido nos meios de subsistência é igual ao tempo de trabalho diário que o trabalhador realiza. Ora, estas duas expressões só são equivalentes quando se trata de trabalho materializado(14). São diferentes quando se referem a trabalho materializado e a trabalho vivo. Como a troca entre capital e trabalho é uma troca de trabalho vivo (do lado do trabalhador) por trabalho materializado (do lado do capitalista), Ricardo só consegue salvar a teoria do valor de Smith passando por cima da realidade desta troca. Assim, acaba por mascarar a origem da mais-valia.
Mas o que realmente impede Ricardo realizar a passagem da essência para a aparência do sistema é o fato de ele considerar o capital adiantado como se resolvendo unicamente em salários. Por isso, a taxa de lucro que ele calcula é na verdade a taxa de mais-valia. Ao tomar uma pela outra, descobre que capitais da mesma magnitude só fornecerão lucros iguais se tiverem a mesma composição orgânica. Ora, isto nunca acontece na realidade, que mostra que capitais iguais, mesmo dentro de um determinado ramo, geralmente têm composições distintas. Sendo assim, como sustentar o princípio da igualdade do lucro, que dita que capitais de magnitude igual, pela força da concorrência, devem gerar a mesma quantidade de lucro? É, parece que a teoria do valor, neste particular, torna-se incompatível com os fenômenos positivos da produção capitalista, com as leis da concorrência.
É assim mesmo o que pensa Ricardo. Entretanto, ele não aceita passivamente essa incompatibilidade. A forma de como vai tentar superá-la chega a ser desesperadora(15). Na seção IV de seu livro, dedicada a esta questão, ele desenvolve um raciocínio extremamente intrincado e obscuro. Supõe que dois homens empregam cada um 100 trabalhadores, por um ano. Em seguida imagina que um deles emprega seus trabalhadores para cultivar trigo e o outro para produzir máquinas. No fim do ano ambos dispõem de um produto de mesmo valor, já que foi empregada a mesma quantidade de trabalho. O produtor de trigo vende sua colheita e reembolsa o capital que havia adiantado para pagar os salários de seus 100 trabalhadores. O produtor da máquina não a vende, pois a produzir para com ela produzir novas mercadorias. Reembolsado capital inicial, o produtor de trigo reinicia um novo período de produção, contratando novamente 100 trabalhadores. O produtor de máquinas, por sua vez, contrata no segundo ano novamente 100 trabalhadores, desta feita para trabalhar com a máquina e não mais para produzí-la. O que acontece, então, com o valor de seus respectivos produtos ao fim do segundo período de produção? Ricardo responde da seguinte maneira: "durante o segundo ano, todos eles terão empregado a mesma quantidade de trabalho, mas os produtos e máquina do fabricante de tecido de lã (...) terão resultado do trabalho de 200 homens empregado por um ano; ou melhor do trabalho de 100 homens durante dois anos, enquanto o trigo terá sido produzido pelo trabalho de 100 homens durante um ano"(16).
Tomando esses resultados, tais como Ricardo os apresenta, é claro que no fim do segundo ano, o industrial dispõe de um produto que vale duas vezes mais do que o do agricultor. A máquina e o produto dela resultante vale o dobro do trigo. Até aí tudo pode ser explicado com base na teoria do valor: os produtos do fabricante e do agricultor podem ser trocados na proporção do tempo de trabalho neles incorporado; na proporção de 2 para 1. Acontece que neste caso, o industrial sairia perdendo, pois teve que esperar dois anos para poder reaver seu capital, enquanto que o produtor de trigo recuperou todo o seu capital no final do primeiro ano. Por isso, diz Ricardo, os produtos do agricultor e do fabricante não terão valor na exata proporção da quantidade de trabalho gasto na sua produção; mas numa proproção maior para compensar o tempo em que o fabricante levou para recuperar o seu capital.
Diante disto, Ricardo é forçado a renunciar entender os fenômenos positivos da produção capitalista. A prova disto é o fato de que ele foi obrigado a admitir que o trabalho não é a única fonte de valor. É o que se pode constatar a partir da seção IV do primeiro capítulo de sua obra. O subtítulo que abre esta seção traduz muito bem essa sua mudança de postura, ao anunciar claramente que, "O princípio de que a quantidade de trabalho empregada na produção de mercadorias regula seu valor relativo é consideravelmente modificado pelo emprego de maquinaria e de outros capitais fixo e duráveis". Esta modificação viria pôr em xeque toda a sua teoria. De fato, se não tinha como justificar que o valor é base sobre a qual se apóia os preços, Ricardo não poderia explicar as leis de manifestação do capital ao nível de sua aparência. Diante disso, só lhe restava uma saída: sustentar a validade da teoria do valor por um ato de fé. É o que se pode deduzir da seguinte passagem: "ao avaliar, portanto, as causas das variações no valor das mercadorias, seria errôneo omitir totalmente o efeito produzido pelo encarecimento ou barateamento do trabalho, mas seria igualmente errôneo atribuir lhe muita importância. Assim, embora apenas ocasionalmente mencione esta causa na parte restante desta obra, considerarei todas as grandes variações que ocorrem no valor relativo das mercadorias como sendo produzidas pela maior ou menor quantidade de trabalho que, em épocas diferentes, seja necessária para produzi las"(17).
Assim, a tentativa de Ricardo de salvar a teoria do valor de Smith redunda num grande fracasso. A razão deste fracasso encontra se, em grande parte, no método utilizado por Smith e Ricardo.
5 - Para uma exposição mais demorada da teoria de Smith, ver Teixeira, Francisco José Soares. "Smith: Lido e Comentado", in A Teoria do Valor em Smith e Marx. Coletânea de ensaios do autor, publicada pela EDUECE: Editora da Universidade Estadual do Ceará UECE, 1992.
6 - Smith, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas - São Paulo: Nova Cultural, 1985. P. 77
7 - Ver Smith, Adam. Op, especialmente capítulos V, VI, VII e VIII.
8 - ... no momento em que o patrimônio ou o capital se acumulou nas mãos de pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, fornecendo-lhes matérias-primas e subsistência a fim de auferir lucro com a venda do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que esse trabalho acrescenta ao valor desses materiais. Ao se trocar o produto acabado por dinheiro ou por trabalho, ou por outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os salários dos trabalhadores, deve resultar algo para para pagar os lucros do empresário, pelo seu trabalho e pelo risco que ele assume ao empreender esse negócio"(idem, ibidem).
9 - Napoleoni, Claudio. Smith, Ricardo e Marx: Considerações sobre a história do pensamento econômico - Rio de Janeiro: Grall, 1983. P. 98.
10 - "Sabemos que, de acordo com a concepção clássica do salário, ou as quantidades físicas dos bens-salários são consideradas como dadas. O seu valor de troca deve, evidentemente, ser determinado na base do princípio da quantidade de trabalho que comandam. Mas essa quantidade de trabalho só se pode conhecer se se conhecer anteriormente o valor de troca dos dos bens-salários. Voltamos ao ponto de partida" (Benetti, Carlo. Valor e Repartição - Coimbra: Centelha, 1978; p. 40-41)
11 - Marx chama a atenção para as contradições de Smith, quando diz que ele (Smith) se move "... com grande ingenuidade em contradição contínua. Ora investiga as conexões causais das categorias econômicas ou a estrutura oculta do sistema econômico burguês. Ora junta a essa pesquisa as conexões tais como se exteriorizam na aparência dos fenômenos da concorrência, se manisfestam portanto ao observador não científico e, do mesmo modo, ao que na prática está preso e interessado no processo de produção burguesa (...). Isso nele se justifica /.../, pois na realidade sua tarefa era dupla. Numa procura penetrar na fisiologia interna da sociedade burguesa e, na outra, empreende várias tentativas: descrever, pela primeira, as formas vitais aparentes, externas dessa sociedade e apresentar suas conexões como aparecem exteriormente (...). Uma tarefa interessa-o tanto quanto a outra, daí resultam modos de apresentação absolutamente contraditórios" (Marx, Karl. Teorias da Mais-Valia, Vol.III. P.597/8).
12 - "... deve-se reconhecer a Ricardo o grande mérito de haver destruído até os fundamentos (...) o velho erro, tão divulgado e gasto, de que o salário determina o preço, falácia rechaçada por Adam Smith e seus predecessores franceses na parte verdadeiramente científica de suas investigações, mas que, não obstante, eles reproduziram nos seus capítulos mais superficiais e de vulgarização" (Marx, Karl. Salário, preço e lucro - São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 152 [os economistas]).
13 - Ricardo, diz Marx, "parte da realidade presente da produção capitalista. O valor do trabalho é menor do que o valor do que que ele gera (...). Como este fato surge, permanece obscuro. A jornada inteira é maior que o segmento dela requerida para produzir o salário. Não se evidência o porquê" (Teorias da mais-valia. op. cit. Vol. II, p. 837).
14 - a este respeito, o leitor deve consultar o volume II das Teorias da Mais Valia de Marx, notadamente o capítulo XV.
15 - Ver Teixeira, Francisco José Soares. Pensando com Marx: uma leitura crítico-comentada de O capital - São Paulo: Editora Ensaio, 1995.
16 - Ricardo, David. Princípios de Economia Política e tributação - São Paulo: Nova Cultural, 1985. P. 54.
17 - Ricardo, David. Op. Cit. P. 56.
Partindo das diferentes formas aparentes da riqueza social (salário, lucro, renda da terra e juros), a EPC(economia política clássica) procura reduzi-las a seu elemento comum: o trabalho. Noutras palavras, partindo do valor de troca, a EPC chega ao valor e daí a sua fonte: as quantidades de trabalho despendidas na produção das mercadorias.
Para demonstrar que o trabalho é a verdadeira fonte do valor, Adam Smith(5) idealiza a existência de um estado hipotético habitado por caçadores, que vivem da troca dos produtos de seus diferentes trabalhos. De posse desta ficção teórica, ele intenta demonstrar que as quantidades de trabalho inseridas nas mercadorias são as únicas regras que os homens devem observar ao permutar seus diferentes produtos. Neste estado original, onde não há propriedade privada da terra nem acumulação de capital, não havia, portanto, patrões nem empregados, o valor do produto do trabalho pertencia integralmente a quem o produzia. Nestas condições, como diz Smith, "todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador; e a quantidade de trabalho normalmente empregada em adquirir ou produzir uma mercadoria é a única circunstância capaz de regular ou determinar as quantidades de trabalho que ele normalmente deve comprar, comandar ou pelo qual deve ser trocado"(6). Na ausência de propriedade privada, o valor produzido pelo trabalhador lhe pertence integralmente e, por isso, o valor de sua mercadoria é igual à quantidade de trabalho nela inserida, ou igual à quantidade a certa de trabalho que essa mesma mercadoria pode comandar ou adquirir. Em vista disto, a remuneração que cada um recebe por seu trabalho, para falar em termos smithiano, é igual ao valor do produto, ou, se se preferir, salário e valor são duas grandezas iguais. Nestas condições a troca obedece ao princípio da equivalência.
Entretanto, Smith(7) é levado a reconhecer que este princípio perde sua validade na sociedade capitalista. Nesta sociedade, porque dividida entre proprietários e não-proprietários(8), o produto do trabalho não mais pertence integralmente a quem o produz, ao trabalhador, pois, agora, ele é obrigado a ceder parte do que produziu com quem o empregou. Neste caso, a igualdade entre salário e valor do produto deixa de existir. Neste sentido, a quantidade de trabalho que uma dada mercadoria pode comprar ou comandar é maior que a quantidade de trabalho nela inserida (contida). Um exemplo esclarece melhor tudo isso. "Suponha-se que em uma mercadoria estão contidas 100 horas de trabalho, proporcionadas por trabalhadores cuja subsistência custa 50 horas de trabalho: então, com essa mercadoria pode-se proporcionar a subsistência de um número de trabalhadores capaz de proporcionar 200 horas de trabalho. Nesse caso, o trabalho contido é 100 e o trabalho ordenado (comandado) é 200"(9).
Mas, qual desses dois trabalho deverá ser a medida do valor das mercadorias? O trabalho contido ou o trabalho comandado? Uma coisa é certa: com o conceito de trabalho comandado, Smith queria dar conta da troca entre capital e trabalho para mostrar como surge a mais-valia na sociedade capitalista. Mas, o seu raciocínio, neste particular, é tautológico. Com efeito, se se considerar que a mercadoria que o trabalhador recebe sob a forma de salário é a base explicativa do valor por ela comandado, este último (o valor comandado), para ser conhecido, exige que se conheça primeiro o valor da mercadoria recebida pelo trabalhador. Chega-se, assim, a uma proposição destituída de sentido: o valor depende do valor(10).
Adam Smith nada faz para sair desse círculo vicioso. Continua expondo a sua teoria do valor sem se importar com as seguidas contradições em que se envolve(11). De fato, no capítulo VII, em que trata do preço natural e do preço de mercado, ele volta a sustentar a tese anterior, segundo a qual as mercadorias são trocadas umas pelas outras na proporção do tempo de trabalho nelas inseridas e não pela quantidade de trabalho que podem comandar. Surgem, assim, duas teorias do valor: a do trabalho contido e a do trabalho comandado.
Para livrar a teoria de Smith destas contradições, Ricardo passa a sustentar que, tanto no estado de natureza, como na sociedade capitalista, o valor das mercadorias é determinado pelas quantidades de trabalho nelas inseridas. Noutras palavras, para ele é o conceito de trabalho contido e não o de trabalho comandado que deve ser afirmado na construção da teoria do valor.
Para sustentar que o trabalho contido nas mercadorias é a verdadeira medida do valor, Ricardo elabora o conceito de valor do trabalho. De acordo com este conceito, o valor do trabalho se mede como o de qualquer outra mercadoria: pelas quantidades de trabalho contidas nos meios de subsistência do trabalhador. Ora, se o trabalho é uma mercadoria como outra qualquer, a troca entre capital e trabalho obedece o mesmo princípio da troca das mercadorias em geral: troca se valor por valor, equivalente por equivalente. Conseqüentemente, a lei do valor vale tanto para o rude estado de natureza como para a sociedade capitalista.
Desse modo, Ricardo julga haver resolvido a contradição smithiana e demonstrado que o trabalho contido é a única e verdadeira medida do valor. E o que é mais importante: ao fazer do trabalho contido a única medida do valor, ele põe fim à falsa idéia, em parte defendida por Smith, de que o salário determina o preço das mercadorias. Rechaçar essa concepção foi o seu grande mérito, ao acabar de uma vez por todas com o dogma de que o valor é resultado de uma soma que acrescenta ao salário o lucro do capitalista e a renda do proprietário. Se o valor fosse resultado de uma simples soma não haveria limites para as classes participarem na apropriação do produto, já que cada uma dela poderia receber uma maior fatia simplesmente aumentando as parcelas que compõem essa soma. O sistema seria, assim, um sistema onde não haveria lugar para a luta de classes(12).
Superadas as contradições da teoria do valor de Smith, Ricardo tinha agora como tarefa pensar a passagem dos valores aos preços, ou, se se preferir, analisar como as leis internas do capital se põem no nível da aparência do sistema, isto é, como aparecem na interação dos diversos capitais, na concorrência. Entretanto, como se sabe, ele não consegue realizar com sucesso a passagem da essência para a aparência. Ao tentar realizá-la acaba por escamotear a origem da mais-valia. Realmente, o modo como calcula a taxa de lucro esconde a idéia do lucro como excedente produzido pelo trabalho. Parte simplesmente do fato de que o valor dos salários é menor do que o valor do produto, sem explicar as razões dessa diferença(13).
A origem da mais-valia se torna mais obscura ainda quando se tem presente o modo pelo qual Ricardo concebe o conceito de valor do trabalho. Ao determinar o "valor de trabalho" pelo tempo de trabalho necessário que o trabalhador despende para prover sua subsistência, ele pressupõe que o tempo de trabalho contido nos meios de subsistência é igual ao tempo de trabalho diário que o trabalhador realiza. Ora, estas duas expressões só são equivalentes quando se trata de trabalho materializado(14). São diferentes quando se referem a trabalho materializado e a trabalho vivo. Como a troca entre capital e trabalho é uma troca de trabalho vivo (do lado do trabalhador) por trabalho materializado (do lado do capitalista), Ricardo só consegue salvar a teoria do valor de Smith passando por cima da realidade desta troca. Assim, acaba por mascarar a origem da mais-valia.
Mas o que realmente impede Ricardo realizar a passagem da essência para a aparência do sistema é o fato de ele considerar o capital adiantado como se resolvendo unicamente em salários. Por isso, a taxa de lucro que ele calcula é na verdade a taxa de mais-valia. Ao tomar uma pela outra, descobre que capitais da mesma magnitude só fornecerão lucros iguais se tiverem a mesma composição orgânica. Ora, isto nunca acontece na realidade, que mostra que capitais iguais, mesmo dentro de um determinado ramo, geralmente têm composições distintas. Sendo assim, como sustentar o princípio da igualdade do lucro, que dita que capitais de magnitude igual, pela força da concorrência, devem gerar a mesma quantidade de lucro? É, parece que a teoria do valor, neste particular, torna-se incompatível com os fenômenos positivos da produção capitalista, com as leis da concorrência.
É assim mesmo o que pensa Ricardo. Entretanto, ele não aceita passivamente essa incompatibilidade. A forma de como vai tentar superá-la chega a ser desesperadora(15). Na seção IV de seu livro, dedicada a esta questão, ele desenvolve um raciocínio extremamente intrincado e obscuro. Supõe que dois homens empregam cada um 100 trabalhadores, por um ano. Em seguida imagina que um deles emprega seus trabalhadores para cultivar trigo e o outro para produzir máquinas. No fim do ano ambos dispõem de um produto de mesmo valor, já que foi empregada a mesma quantidade de trabalho. O produtor de trigo vende sua colheita e reembolsa o capital que havia adiantado para pagar os salários de seus 100 trabalhadores. O produtor da máquina não a vende, pois a produzir para com ela produzir novas mercadorias. Reembolsado capital inicial, o produtor de trigo reinicia um novo período de produção, contratando novamente 100 trabalhadores. O produtor de máquinas, por sua vez, contrata no segundo ano novamente 100 trabalhadores, desta feita para trabalhar com a máquina e não mais para produzí-la. O que acontece, então, com o valor de seus respectivos produtos ao fim do segundo período de produção? Ricardo responde da seguinte maneira: "durante o segundo ano, todos eles terão empregado a mesma quantidade de trabalho, mas os produtos e máquina do fabricante de tecido de lã (...) terão resultado do trabalho de 200 homens empregado por um ano; ou melhor do trabalho de 100 homens durante dois anos, enquanto o trigo terá sido produzido pelo trabalho de 100 homens durante um ano"(16).
Tomando esses resultados, tais como Ricardo os apresenta, é claro que no fim do segundo ano, o industrial dispõe de um produto que vale duas vezes mais do que o do agricultor. A máquina e o produto dela resultante vale o dobro do trigo. Até aí tudo pode ser explicado com base na teoria do valor: os produtos do fabricante e do agricultor podem ser trocados na proporção do tempo de trabalho neles incorporado; na proporção de 2 para 1. Acontece que neste caso, o industrial sairia perdendo, pois teve que esperar dois anos para poder reaver seu capital, enquanto que o produtor de trigo recuperou todo o seu capital no final do primeiro ano. Por isso, diz Ricardo, os produtos do agricultor e do fabricante não terão valor na exata proporção da quantidade de trabalho gasto na sua produção; mas numa proproção maior para compensar o tempo em que o fabricante levou para recuperar o seu capital.
Diante disto, Ricardo é forçado a renunciar entender os fenômenos positivos da produção capitalista. A prova disto é o fato de que ele foi obrigado a admitir que o trabalho não é a única fonte de valor. É o que se pode constatar a partir da seção IV do primeiro capítulo de sua obra. O subtítulo que abre esta seção traduz muito bem essa sua mudança de postura, ao anunciar claramente que, "O princípio de que a quantidade de trabalho empregada na produção de mercadorias regula seu valor relativo é consideravelmente modificado pelo emprego de maquinaria e de outros capitais fixo e duráveis". Esta modificação viria pôr em xeque toda a sua teoria. De fato, se não tinha como justificar que o valor é base sobre a qual se apóia os preços, Ricardo não poderia explicar as leis de manifestação do capital ao nível de sua aparência. Diante disso, só lhe restava uma saída: sustentar a validade da teoria do valor por um ato de fé. É o que se pode deduzir da seguinte passagem: "ao avaliar, portanto, as causas das variações no valor das mercadorias, seria errôneo omitir totalmente o efeito produzido pelo encarecimento ou barateamento do trabalho, mas seria igualmente errôneo atribuir lhe muita importância. Assim, embora apenas ocasionalmente mencione esta causa na parte restante desta obra, considerarei todas as grandes variações que ocorrem no valor relativo das mercadorias como sendo produzidas pela maior ou menor quantidade de trabalho que, em épocas diferentes, seja necessária para produzi las"(17).
Assim, a tentativa de Ricardo de salvar a teoria do valor de Smith redunda num grande fracasso. A razão deste fracasso encontra se, em grande parte, no método utilizado por Smith e Ricardo.
5 - Para uma exposição mais demorada da teoria de Smith, ver Teixeira, Francisco José Soares. "Smith: Lido e Comentado", in A Teoria do Valor em Smith e Marx. Coletânea de ensaios do autor, publicada pela EDUECE: Editora da Universidade Estadual do Ceará UECE, 1992.
6 - Smith, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas - São Paulo: Nova Cultural, 1985. P. 77
7 - Ver Smith, Adam. Op, especialmente capítulos V, VI, VII e VIII.
8 - ... no momento em que o patrimônio ou o capital se acumulou nas mãos de pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, fornecendo-lhes matérias-primas e subsistência a fim de auferir lucro com a venda do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que esse trabalho acrescenta ao valor desses materiais. Ao se trocar o produto acabado por dinheiro ou por trabalho, ou por outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os salários dos trabalhadores, deve resultar algo para para pagar os lucros do empresário, pelo seu trabalho e pelo risco que ele assume ao empreender esse negócio"(idem, ibidem).
9 - Napoleoni, Claudio. Smith, Ricardo e Marx: Considerações sobre a história do pensamento econômico - Rio de Janeiro: Grall, 1983. P. 98.
10 - "Sabemos que, de acordo com a concepção clássica do salário, ou as quantidades físicas dos bens-salários são consideradas como dadas. O seu valor de troca deve, evidentemente, ser determinado na base do princípio da quantidade de trabalho que comandam. Mas essa quantidade de trabalho só se pode conhecer se se conhecer anteriormente o valor de troca dos dos bens-salários. Voltamos ao ponto de partida" (Benetti, Carlo. Valor e Repartição - Coimbra: Centelha, 1978; p. 40-41)
11 - Marx chama a atenção para as contradições de Smith, quando diz que ele (Smith) se move "... com grande ingenuidade em contradição contínua. Ora investiga as conexões causais das categorias econômicas ou a estrutura oculta do sistema econômico burguês. Ora junta a essa pesquisa as conexões tais como se exteriorizam na aparência dos fenômenos da concorrência, se manisfestam portanto ao observador não científico e, do mesmo modo, ao que na prática está preso e interessado no processo de produção burguesa (...). Isso nele se justifica /.../, pois na realidade sua tarefa era dupla. Numa procura penetrar na fisiologia interna da sociedade burguesa e, na outra, empreende várias tentativas: descrever, pela primeira, as formas vitais aparentes, externas dessa sociedade e apresentar suas conexões como aparecem exteriormente (...). Uma tarefa interessa-o tanto quanto a outra, daí resultam modos de apresentação absolutamente contraditórios" (Marx, Karl. Teorias da Mais-Valia, Vol.III. P.597/8).
12 - "... deve-se reconhecer a Ricardo o grande mérito de haver destruído até os fundamentos (...) o velho erro, tão divulgado e gasto, de que o salário determina o preço, falácia rechaçada por Adam Smith e seus predecessores franceses na parte verdadeiramente científica de suas investigações, mas que, não obstante, eles reproduziram nos seus capítulos mais superficiais e de vulgarização" (Marx, Karl. Salário, preço e lucro - São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 152 [os economistas]).
13 - Ricardo, diz Marx, "parte da realidade presente da produção capitalista. O valor do trabalho é menor do que o valor do que que ele gera (...). Como este fato surge, permanece obscuro. A jornada inteira é maior que o segmento dela requerida para produzir o salário. Não se evidência o porquê" (Teorias da mais-valia. op. cit. Vol. II, p. 837).
14 - a este respeito, o leitor deve consultar o volume II das Teorias da Mais Valia de Marx, notadamente o capítulo XV.
15 - Ver Teixeira, Francisco José Soares. Pensando com Marx: uma leitura crítico-comentada de O capital - São Paulo: Editora Ensaio, 1995.
16 - Ricardo, David. Princípios de Economia Política e tributação - São Paulo: Nova Cultural, 1985. P. 54.
17 - Ricardo, David. Op. Cit. P. 56.
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