quarta-feira, 20 de agosto de 2008

O Encontro de Marx com a Economia Política Clássica - Francisco José Soares Teixeira

Texto extraído do artigo "O Encontro de Hegel e Marx com a Economia Política Clássica"

Qual é, então, a razão desse fracasso que sofre a teoria do valor nas mãos de Smith e Ricardo? Noutras palavras, por que os economistas clássicos, que tão bem definiram o princípio segundo o qual o valor das mercadorias é determinado pelas quantidades de trabalho necessárias à sua produção, não foram capazes de levar adiante esta sua descoberta? Uma das razões, senão a mais importante, deve‑se, segundo Marx, ao método utilizado por eles. De acordo com este pensador, Smith e Ricardo passam por cima das mediações que fundamentam a passagem das formas aparentes de riqueza à sua fonte: ao trabalho. É o que se pode ler na seguinte passagem das Teorias da Mais‑Valia, onde Marx reconhece que " economia clássica procura pela análise reduzir as diferentes formas de riqueza, fixas e estranhas entre si, à unidade intrínseca delas, despojá‑las da configuração em que existem lado a lado, independentes umas das outras; quer apreender a conexão interna que se contrapõe à diversidade das formas da aparência... [Entretanto], Nessa análise a economia clássica se contradiz em certos pontos com freqüência de maneira direta, sem elos intermediários, tenta empreender essa redução e demonstrar que as diferentes formas têm a mesma fonte"(18).

Desdobrando melhor essa crítica de Marx, o que ele quer com ela mostrar é o fato de que a EPC não conseguiu fazer, com sucesso, o caminho de volta ao ponto de onde ela parte. Como assim? A EPC, conforme foi visto antes, foi capaz de, partindo da aparência, chegar à essência. Essa redução é, contudo, insuficiente. Ela (EPC) teria que retornar ainda às formas aparentes da riqueza para, aí, descobrir como as leis da essência se põem neste nível. Acontece que, para isto, ela teria que ter tomado essas formas de riquezas como formas historicamente determinadas e não como tendo validade para todas as formas sociais de produção. Infelizmente, o método analítico, com que a crítica e a compreensão têm de iniciar, diz Marx, "... não tem interesse em analisar como nascem as diferentes formas, mas em convertê‑las, pela análise, à unidade delas, pois parte destas formas como pressupostos dados. Mas a análise é indispensável para se revelar a gênese, para se compreender o processo real de formação nas diferentes fases"(19).

Essa falta de interesse de que fala Marx deve‑se ao fato de que o método da EPC trabalha com conceitos que nada mais são do que formas impostas ao objeto pelo sujeito do conhecimento. Trabalha, portanto, com generalizações que abstraem todas as diferenças para guardar o que julga que é comum a todo e qualquer objeto dado imediatamente pela experiência. Neste sentido, o real, para a EPC, é resultado de uma construção e que, por isto mesmo, os conceitos são da ordem do pensamento, que emprestam à realidade caótica uma racionalidade posta pelo sujeito cognoscente. Daí porque Smith e Ricardo, quando se defrontam com as contradições da realidade capitalista, procuram transformá‑las em contradições do pensamento, da teoria mesma. É desta perspectiva que Ricardo procura eliminar as contradições da teoria Smith.

Sem negar a importância da EPC, que havia organizado a experiência, aparentemente caótica, numa série ordenada de conceitos, Marx, ao dialogar com os economistas clássicos, procura "devolver" à realidade o que dela foi "tirado" pelo método analítico: as diferenças, que são justamente quem dão vida e movimento ao real. Isso ele o faz investigando como nascem as diferentes formas de riqueza, o que lhe permitiu descobrir que elas são produtos de formas específicas de sociabilidade, que as determinam em consonância com as diferentes condições históricas. Sua investigação, portanto, permite desnaturalizar o método analítico, que concebe as formas abstratas da riqueza capitalistas como formas naturais que regem por igual toda e qualquer forma histórica de sociedade.

Ao conceber as formas de riqueza da sociedade burguesa como formas históricas e não naturais, Marx pôde compreender sua conexão interna como algo de determinado, também, historicamente. Por isso, o movimento que ele realiza, ao passar do valor de troca ao valor e daí ao seu fundamento ‑ ao trabalho ‑, não é um movimento unicamente do pensamento, como o é na EPC, mas, sim, também da realidade. Ou como ele o diz na Crítica da Economia Política, as categorias estão dadas tanto na realidade efetiva como no cérebro, elas expressam formas de ser. Seu pensamento tem, portanto, peso ontológico.

É assim que Marx enfrenta as limitações e contradições em que se viu enredada a EPC. Para isto, ele tem que investir a dialética na economia para obrigá‑la a dar conta das contradições, não como sendo produto do pensar, mas, sim, como resultado da realidade capitalista mesma. Afinal de contas, "... o processo de troca das mercadorias encerra relações contraditórias e mutuamente exclusivas. O desenvolvimento da mercadoria não suprime essas contradições, mas gera a forma dentro da qual elas podem mover‑se. Esse é, em geral, o método com o qual as contradições reais se resolvem. É uma contradição, por exemplo, que um corpo caia constantemente em outro e, com a mesma constância, fuja dele. A elipse é uma das formas de movimento em que essa contradição tanto se realiza como se resolve"(20).

Se a contradição é, portanto, inerente à forma capitalista de produção, não há como dela fugir. Sendo assim, cabia a Marx descobrir e expor as formas sociais dentro das quais se movem e se realizam as contradições da realidade capitalista. A EPC já tinha realizado um grande trabalho de pesquisa, o que lhe permitiu revelar, ainda que de maneira incompleta e inadequada, as categorias da sociedade burguesa. Restava ainda captá‑las detalhadamente, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão interna, para em seguida expô‑las adequadamente enquanto expressão do movimento do objeto pesquisado, no caso, a sociedade burguesa e suas leis de funcionamento(21).

Admitindo‑se que O Capital é o momento da exposição das categorias que traduzem o movimento de produção e reprodução da sociedade burguesa, tais categorias são apresentadas numa ordem tal que deve reproduzir a hierarquia lógico‑estrutural do sistema burguês de produção. Sendo assim, esta exposição é essencialmente crítica e num duplo sentido: ao expor as determinações do capital, da sua estrutura e de seu movimento contraditório, esta exposição é uma crítica da realidade existente, pois ela revela que o capital é uma relação social, cuja pretensão de dominação de toda sociedade leva a que os indivíduos se transformem em suporte desta relação, ao invés de ser seus verdadeiros sujeitos. Por outro lado, ao reproduzir, idealmente, a hierarquia do sistema, Marx pôde se confrontar criticamente com as teorias que falam desta realidade: a EPC, na voz de seus maiores representantes (Smith e Ricardo).

No que concerne à sua crítica à EPC, por questão de espaço, convêm tomar apenas dois pontos:
(1) o círculo vicioso em que caiu a teoria do valor, quando Smith tenta fazer do trabalho comandado a medida do valor
(2) relação entre valor e preço, ou se se preferir: a passagem das leis internas de funcionamento do capital para as suas formas de manifestações visíveis. Adiante‑se que, aqui, serão feitas apenas indicações bem gerais de como Marx enfrenta estas questões.

O esforço ricardiano para livrar a teoria do valor do círculo vicioso em que ela se encontrava nas mãos de Smith, diz Marx, não foi bem sucedido, pois Ricardo continua prisioneiro deste mesmo círculo. Com efeito, a expressão "valor do trabalho" é uma tautologia no sentido de que o trabalho, que é a medida imanente do valor, teria que ter valor(22). Para superar este erro lógico, Marx descobre que o que o trabalhador vende, no mercado, é a sua força de trabalho e não trabalho. Ou como diz Marx: "o que se defronta diretamente ao possuidor de dinheiro, no mercado, não é, de fato, o trabalho, mas o trabalhador. O que este último vende é a sua força de trabalho. Tão logo seu trabalho realmente começa esta já deixou de pertencer‑lhe e portanto não pode mais ser vendida por ele"(23). E o que é mais importante destacar: se o trabalhador vendesse, de fato, trabalho, e seu trabalho fosse realmente pago, como admite Ricardo, não haveria possibilidade do dinheiro, que foi adiantado para comprar este trabalho, se transformar em capital.

Quanto à relação entre valor e preço, que tanto preocupou Ricardo, Marx descobre, no preço de produção, a forma social dentro da qual as divergências entre estas duas grandezas encontram sua resolução. Esta forma social mostra que as mercadorias não são vendidas segundo seus valores (C + V + M), mas, sim, de acordo com seus preços de produção, que são a soma do preço de custo (capital adiantado para comprar meios de produção e força de trabalho) mais o lucro médio estabelecido pela partilha do conjunto mais‑valia, segundo a grandeza de cada capital(24). O fato de as mercadorias não serem vendidas por seus valores não significa que Marx tenha renunciado à teoria do valor como fundamentação. A incongruência entre preço e valor é uma imposição da realidade mesma. As coisas têm que ser necessariamente assim, pois o capital é uma forma social de produção que separa, espacial e temporalmente, a produção do valor de sua realização. Essa separação nasce do fato de que os elementos do processo de trabalho, meios de produção e força de trabalho, são propriedades privadas, isto é, pertencem a sujeitos econômicos formalmente independentes entre si, e que só entram em relação no mercado. Sendo assim, a mais‑valia que cada capital individualmente produz, e que se encontra embutida em suas mercadorias, só pode ser efetivamente por ele apropriada no mercado, quando ela então é transformada na sua forma dinheiro, que é o que unicamente interessa ao capitalista. Por isso, para cada capital individual, o seu lucro não depende unicamente da mais‑valia por ele criada, do trabalho contido nos seus produtos, mas, sim, depende de quanto ele pode transformar em dinheiro essa mais‑valia gerada no processo de produção. Esse poder é proporcional à magnitude de cada capital, que expressa a força de cada um no seu embate com os demais.



(18) Marx, Karl. Teorias da Mais‑Valia ‑ São Paulo: Difel, 1980‑1985. Vol.III, p.1358. Os grifos são por nossa conta.

(19) Marx, Karl. Teorias da Mais‑Valia ‑ São Paulo: Difel, 1980‑1985. Vol.III, p. 1538. Os grifos são por nossa conta.

(20) Marx, Karl. O Capital... op. cit. Liv.I, Vol.I, p.93. Os grifos são por nossa conta.

(21) No Posfácio da segunda edição de O Capital, Marx apresenta o método dialético por ele utilizado nesta obra. Nesta apresentação, ele distingue o método de exposição do método de pesquisa, dando a entender que O Capital é a exposição dos resultados do trabalho de pesquisa.

(22) Se o trabalho tivesse valor, a forma burguesa de produção regeria por igual todas as formas sociais de produção.

(23) Marx, Karl. O Capital, Livro I, Vol.II, p.128.

(24) A transformação dos valores em preço é uma questão em aberto no debate acadêmico. Mário Possas, em trabalho publicado pela Revista de Economia Política, 1982, constrói uma tipologia das principais posturas que têm debatido esta questão. Segundo ele, as mais importantes são: [1] a posição neoricardiana, que defende a tese de que a teoria do valor deve ser abandonada, por sua incapacidade de explicar a determinação não circular da taxa de lucro e dos preços; [2] uma outra postura defende a idéia de que a transformação, como aparece em Marx, não é a do valor em preço, e sim a da mais-valia em lucro médio; [3] a terceira posição nega a existência de qualquer problema, quer seja de natureza metodológica ou teórica, na passagem efetuada por Marx dos valores aos preços de produção; [4] a quarta posição reconhece que a transformação dos valores em preço é um problema sério e não resolvido. A este respeito ver Teixeira, Francisco José Soares. "Transformação dos valores em preço: o mau infinito e um debate" in Revista Ensaio, número 17/18, São Paulo, 1989.

Um comentário:

  1. Teu Blog é nota 10 cara, encontrei por acaso. Parabéns pela tua dedicação e divulgação de idéias, sem sere tendencioso. Obrigado
    Marcos Farias
    zidodp@yahoo.com.br

    ResponderExcluir