terça-feira, 6 de setembro de 2011

Fim do Socialismo, China - Eric Hobsbawm

Extraído do livro: ERA DOS EXTREMOS O breve século XX 1914-1991. Tradução: MARCOS SANTARRITA.  Companhia das Letras. Páginas 447-457


A chave para atingir a modernização é o desenvolvimento de ciência e tecnologia [...] Conversa mole não vai levar nosso programa de moderni­zação a parte alguma: precisamos ter conhecimento e pessoal treinado [...] Agora parece que a China está uns bons vinte anos atrás dos países desenvolvidos em ciência, tecnologia e educação [...] Já na Restauração Meiji, os japoneses começaram a fazer um grande esforço em ciência, tecnologia e educação. A Restauração Meiji foi uma espécie de campa­nha de modernização empreendida pela emergente burguesia japonesa. Como proletários devemos, e podemos, fazer mais.

Deng Xiaoping, "Respeitem o conhecimento, respeitem o pessoal treinado", 1977.


I

 Um país socialista na década de 1970 preocupava-se particularmente com seu relativo atraso econômico, quando nada porque o vizinho, o Japão, era o mais espetacularmente bem-sucedido dos Estados capitalistas. O comunismo chinês não pode ser encarado simplesmente como uma subvariedade do comu­nismo soviético, e menos ainda como parte do sistema de satélites soviético. Antes de mais nada, triunfou num país com uma população muito maior que a da URSS, ou, aliás, de qualquer outro Estado. Mesmo descontando-se as in­certezas da demografia chinesa, alguma coisa em torno de um em cada cinco seres humanos era um chinês vivendo na China continental. (Havia também uma substancial diáspora chinesa no leste e sudeste da Ásia.) Além disso, a China era não só muito mais nacionalmente homogênea que a maioria dos outros países - cerca de 94% da população era de chineses han -, mas for­mara uma unidade política única, embora intermitentemente perturbada, pro­vavelmente por um período de no mínimo 2 mil anos. Mais objetivamente ainda, durante a maior parte desses dois milênios o império chinês, e presumivelmente a maioria de seus habitantes que tinham opinião sobre essas ques­tões, havia considerado a China o centro e modelo da civilização mundial. Com raras exceções, todos os demais países onde triunfaram regimes comu­nistas, da URSS em diante, eram e viam-se como culturalmente atrasados e mar­ginais, em relação a algum centro avançado e paradigmático de civilização. A própria estridência com que a URSS insistia, nos anos de Stalin, em sua não-de­pendência intelectual e tecnológica do Ocidente e na origem interna de todas as grandes invenções, do telefone aos aviões, era um sintoma denunciador desse senso de inferioridade.(1)

O mesmo não se dava com a China, que, muito corretamente, via sua civi­lização, arte, escrita e sistema de valores sociais clássicos como a reconhecida inspiração e modelo para outros - não menos o próprio Japão. Certamente não tinha nenhum senso de qualquer inferioridade cultural e intelectual, cole­tivo ou individual, em comparação com qualquer outro povo. O fato mesmo de a China não ter Estados vizinhos que pudessem mesmo levemente ameaçá-la, e, graças à adoção de armas de fogo, não ter qualquer dificuldade de repelir os bárbaros em sua fronteira, confirmava o senso de superioridade, embora dei­xasse o Império despreparado para a expansão imperial do Ocidente. A inferio­ridade cultural da China, que se tomou demasiado evidente no século XIX, não se deveu a alguma incapacidade técnica ou educacional, mas ao próprio senso de auto-suficiência e autoconfiança da civilização chinesa tradicional. Isso a fez relutar em fazer o que fizeram os japoneses após a Restauração Meiji, em 1868: mergulhar na "modernização", adotando no atacado modelos europeus.
Isso só poderia ser feito e só o seria sobre as ruínas do antigo império chinês, guardião da antiga civilização, e pela revolução social, que foi ao mesmo tempo uma revolução cultural contra o sistema confuciano.

O comunismo chinês, portanto, era ao mesmo tempo social e, se assim se pode dizer, nacional. O explosivo social que alimentou a revolução comunista foi a extraordinária pobreza e opressão do povo chinês, inicialmente das mas­sas trabalhadoras nas grandes cidades costeiras do centro e do sul da China, que formavam enclaves sob controle imperialista estrangeiro e, às vezes, da própria indústria moderna - Xangai, Cantão, Hong Kong -, e, depois, do campesinato, que formava 90% da vasta população do país. Sua condição era muito pior até mesmo que a da população urbana chinesa, cujo consumo, per capita, era qualquer coisa tipo duas vezes e meia maior. A simples pobreza da China já é difícil de imaginar para leitores ocidentais. Assim, na época da tomada comunista (dados de 1952), o chinês médio vivia essencialmente com meio quilo de arroz ou grãos por dia, e consumia pouco menos de 0,08 quilo de chá por ano. Adquiria um novo par de calçados a cada cinco anos, mais ou menos (China Statistics, 1989, tabelas 3.1, 15.2 e 15.5).

O elemento nacional no comunismo chinês operava tanto através dos inte­lectuais de origem nas classes alta e média, que proporcionaram a maior parte da liderança de todos os movimentos políticos chineses do século xx, quanto através do sentimento, sem dúvida generalizado entre as massas chinesas, de que os bárbaros estrangeiros não representavam nada de bom nem para os indi­víduos chineses com quem tinham negócios, nem para a China como um todo. Como a China fora atacada, derrotada, dividida e explorada por todo Estado estrangeiro ao alcance desde meados do século xx, essa suposição não era implausível. Movimentos antiimperialistas de massa com uma ideologia tradi­cional já eram conhecidos antes do fim do império chinês, por exemplo a cha­mada Rebelião dos Boxers, de 1900. Há pouca dúvida de que a resistência à conquista japonesa da China foi o que transformou os comunistas chineses de uma derrotada força de agitadores sociais, o que eram em meados da década de 1930, nos líderes e representantes de todo o povo chinês. O fato de que tam­bém exigiam a libertação social dos pobres chineses fazia seu apelo de liberta­ção e regeneração nacionais soar mais convincente para as massas (sobretudo rurais).

Nisso, os comunistas tinham uma vantagem sobre seus rivais, o (mais velho) Partido do Kuomintang, que tentara reconstruir uma república chinesa única, poderosa, a partir dos fragmentos dispersos do império chinês, coman­dado por líderes militarizados locais, após sua queda, em 1911. Os objetivos a curto prazo dos dois partidos não pareciam incompatíveis, a base política dos dois se achava nas cidades mais avançadas do sul da China (onde a república estabelecera sua capital), e sua liderança consistia em grande parte no mesmo tipo de elite educada, descontando-se uma certa tendência para comerciantes em um, e para camponeses e operários em outro. Os dois, por exemplo, conti­nham praticamente a mesma porcentagem de homens vindos dos latifúndios tradicionais e da fidalguia culta, as elites da China imperial, embora os comu­nistas tendessem a ter mais líderes com educação superior do tipo ocidental (North & Pool, 1966, pp. 378-82). Os dois vinham do movimento antiimperial da década de 1900, reforçado pelo "Movimento de Maio", o levante nacional de estudantes e professores em Pequim após 1919. Sun Yat-sen, o líder do Kuomintang, era um patriota, democrata e socialista, que contava para acon­selhamento e apoio com a Rússia soviética - única potência revolucionária e antiimperialista - e achava o modelo bolchevique de Estado de partido único mais adequado que os modelos ocidentais para a sua tarefa. Na verdade, os comunistas se tomaram uma força poderosa em grande parte graças a essa ligação soviética, que lhes permitiu integrar-se no movimento nacional oficial, e, após a morte de Sun Yat-sen, em 1925, partilhar do grande avanço pelo qual a República estendeu sua influência à metade da China que não controlava. O sucessor de Sun, Chiang Kai-shek (1897-1975), jamais conseguiu estabelecer completo controle sobre o país, embora em 1927 rompesse com os russos e eliminasse os comunistas, cujo principal corpo de apoio de massa nessa época se achava entre a pequena classe operária urbana. 

Os comunistas, obrigados a voltar sua atenção principal para o campo, travaram então uma guerra de guerrilha contra o Kuomintang - graças, não menos, a suas próprias divisões e confusões e à distância de Moscou das rea­lidades chinesas -, em geral com pouco sucesso. Em 1934 seus exércitos foram forçados a recuar para um canto remoto do extremo noroeste, na herói­ca "Longa Marcha". Esses fatos fizeram de Mao Tsé-tung, que há muito defendia a estratégia rural, o indisputado líder do Partido Comunista em seu exílio em Yenan, mas não ofereceram nenhuma perspectiva imediata de pro­gresso comunista. Ao contrário, o Kuomintang foi estendendo constantemen­te seu controle sobre a maior parte do país até a invasão japonesa de 1937.

Contudo, a falta de genuíno apelo de massa do Kuomintang para os chi­neses, além do abandono do projeto revolucionário, que era ao mesmo tempo um projeto de modernização e regeneração, não o tomava um páreo para seus rivais comunistas. Chiang Kai-shek jamais se tomou um Ataturk – outro chefe de uma revolução modernizante, antiimperialista e nacional que se viu fazendo amizade com a jovem república soviética, usando os comunistas locais para seus próprios fins e dando-lhes as costas, embora de modo menos estridente que Chiang. Como Ataturk, ele tinha o exército: mas não era um exército com lealdade nacional, isso para não falar no moral revolucionário dos exércitos comunistas, e sim uma força recrutada entre homens para os quais, em momentos de problemas e colapso social, um uniforme e uma arma são a melhor maneira de ir levando, e tendo como oficiais homens que sabiam - como o próprio Mao Tsé-tung - que nessas horas o "poder surgia do cano de uma arma", e também o lucro e a riqueza. Chiang Kai-shek tinha bastante apoio da classe média urbana, e talvez mais ainda de ricos chineses do além­ mar: mas 90% dos chineses, e quase todo o território do país, estavam fora das cidades. Estas eram controladas, se eram, por notáveis locais e homens de força, desde os chefes locais com seus homens armados até famílias fidalgas e relíquias da estrutura de poder imperial, com os quais Chiang Kai-shek che­gou a um acordo. Quando os japoneses partiram para conquistar a China a sério, os exércitos do Kuomintang não puderam impedi-las de quase imedia­tamente tomar as cidades costeiras, onde estava a sua verdadeira força. No resto da China, eles se tornaram o que sempre tinham sido potencialmente: mais um regime corrupto de chefes e senhores locais, resistindo ineficazmente aos japoneses, quando resistiam. Enquanto isso, os comunistas mobilizavam efetivamente a resistência de massa aos japoneses nas áreas ocupadas. Quando tomaram a China, em 1949, tendo varrido quase com desprezo as forças do Kuomintang numa breve guerra civil, os comunistas eram para todos, com exceção dos restos de poder do Kuomintang em fuga, o governo legítimo da China, verdadeiros sucessores das dinastias imperiais após um interregno de quarenta anos. E foram tanto mais aceitos como tais porque, com sua experiên­cia de partido marxista-leninista, puderam forjar uma organização disciplinada nacional capaz de levar a política do governo do centro até as mais remotas aldeias do gigantesco país - como devia fazer, na mente da maioria dos chi­neses, um império de verdade. Organização, mais que doutrina, foi a principal contribuição do bolchevismo de Lenin para mudar o mundo. 

Contudo, claro, os comunistas eram mais que o Império revivido, embo­ra sem dúvida se beneficiassem das enormes continuidades da história chine­sa, que estabelecia tanto o modo como o chinês comum esperava relacionar-se com qualquer governo que desfrutasse o "mandato do céu" quanto o modo como os que administravam a China esperavam pensar sobre suas tarefas. Em nenhum outro país os debates políticos dentro de um sistema comunista se rea­lizariam com referência ao que um mandarim leal dissera ao imperador Chia­ching, da dinastia Ming, no século XVI.(2) A isso se referia um inflexível obser­vador da China - o correspondente do Times de Londres - na década de 1950, ao afirmar, chocando os que o ouviram na época, como este autor, que não restaria comunismo algum no século XXI a não ser na China, onde sobre­viveria como a ideologia nacional. Para a maioria dos chineses, tratava-se de uma revolução que era basicamente uma restauração: de ordem e paz; de bem ­estar; de um sistema de governo cujos funcionários públicos se viam apelan­do para precedentes da dinastia T'ang; da grandeza de um excelso império e civilização. 

E, nos primeiros anos, era isso que a maioria dos chineses parecia estar obtendo. Os camponeses elevaram sua produção de grãos em mais de 70% entre 1949 e 1956 (China Statistics, 1989, p. 165), supostamente porque ainda não se interferia muito com eles, e embora a intervenção da China na Guerra da Coréia de 1950-2 criasse um sério pânico, a capacidade do exército chinês de primeiro derrotar e depois manter a distância os poderosos EUA dificilmen­te deixaria de impressionar. O planejamento do desenvolvimento industrial e educacional começou no início da década de 1950. Contudo, muito em breve a nova República Popular, sob o agora incontestado e incontestável Mao, começou a entrar em duas décadas de catástrofes em grande parte arbitrárias provocadas pelo grande timoneiro. A partir de 1956, as relações em rápida deterioração com a URSS, que terminaram no clamoroso racha entre as duas potências comunistas em 1960, levaram à retirada da importante ajuda mate­rial e de outras, vindas de Moscou. Contudo, isso mais complicou que causou o calvário do povo chinês, assinalado por três estações principais da cruz: a ultra-rápida coletivização da agricultura camponesa em 1955-7; o "Grande Salto Avante" da indústria em 1958, seguido pela grande fome de 1959-61, provavelmente a maior do século xx;(3) e os dez anos de Revolução Cultural, que acabaram com a morte de Mao, em 1976. 

Concorda-se em geral que esses mergulhos cataclísmicos se deveram, em grande parte, ao próprio Mao, cujas políticas eram muitas vezes recebidas com relutância na liderança do partido, e às vezes - mais notadamente no caso do "grande salto avante" - com franca oposição, que ele só superou lançando a Revolução Cultural. Contudo, não podem ser entendidas sem um senso das peculiaridades do comunismo chinês, do qual Mao se fez o porta-voz. Ao con­trário do comunismo russo, o chinês praticamente não tinha relação direta com Marx e o marxismo. Foi um movimento pás-Outubro, que chegou a Marx via Lenin, ou, mais precisamente, via o "marxismo-leninismo" de Stalin. O conhecimento de teoria marxista do próprio Mao parece ter derivado quase inteiramente da História do PCUs [b]: breve curso, de 1939. E no entanto, por baixo da cobertura marxista-leninista havia - e isso é bastante evidente no caso de Mao, que nunca viajou para fora da China até tomar-se chefe de Estado, e cuja formação intelectual era inteiramente nacional- um utopismo muito chinês. Este, naturalmente, tinha pontos de contato com o marxismo: todas as utopias social-revolucionárias têm alguma coisa em comum, e Mao, sem dúvida com toda a sinceridade, pegou os aspectos de Marx e Lenin que se encaixavam em sua visão e usou-os para justificá-la. Contudo, essa visão de sociedade ideal unida por um consenso total, e na qual, já se disse, "a total abnegação do indivíduo e a total imersão na coletividade (são) bens últimos [...] uma espécie de misticismo coletivista", é o oposto do marxismo clássico, que, pelo menos em teoria e como objetivo último, previa a completa libera­ção e auto-realização do indivíduo (Schwartz, 1966). A ênfase característica no poder de transformação espiritual para se conseguir isso, remodelando o homem, embora recorra à crença de Lenin e depois de Stalin, na consciência e no voluntarismo, foi muito além dela. Com toda a sua crença no papel da ação e decisão políticas, Lenin jamais perdeu de vista o fato - como poderia tê-lo feito? - de que circunstâncias práticas impunham severas limitações à efetividade da ação, e mesmo Stalin reconhecia que seu poder tinha limites. Contudo, sem a crença em que "forças subjetivas" eram todo-poderosas, e que os homens podiam mover montanhas e tomar o céu de assalto se quisessem, são inconcebíveis as loucuras do "grande salto avante". Especialistas diziam o que se podia fazer e não fazer, mas só o fervor revolucionário poderia superar todos os obstáculos materiais, e a mente transformar a matéria. Daí, ser "vermelho" era não só muito mais importante que ser especialista, mas sua alternativa. Uma enorme onda de entusiasmo em 1958 iria industrializar a China imediatamente, saltando para o futuro por cima de eras, quando o comu­nismo entrasse imediatamente em plena operação. Os incontáveis altos-forno­zinhos de fundo de quintal, de baixa qualidade, com os quais a China iria duplicar sua produção de aço dentro de um ano - e na verdade mais que tri­plicou em 1960, antes de recair em 1962 para menos que antes do "grande salto" - representaram um lado da transformação. As 24 mil "comunas populares" de agricultores, estabelecidas nuns meros dois meses de 1958, representaram o outro lado. Eram completamente comunistas, porque não ape­nas todos os aspectos da vida camponesa haviam sido coletivizados, inclusive a familiar - as creches e refeitórios comunais libertando as mulheres das tare­fas domésticas e do cuidado das crianças e mandando-as, arregimentadas, para os campos -, mas também o fornecimento gratuito de seis serviços básicos iria substituir salários e a renda em dinheiro. Esses seis serviços eram alimen­tação, assistência médica, educação, funerais, corte de cabelo e cinema. Visivelmente, não deu certo. Em poucos meses, diante da resistência passiva, abandonaram-se os aspectos mais extremos do sistema, embora não antes de ele ter se (como a coletivização de Stalin) combinado com a natureza para pro­duzir a fome de 1960- 1. 

Num aspecto, essa crença na capacidade de transformar pela vontade se apoiava numa crença maoísta mais específica no "povo", disposto a ser trans­formado e portanto a participar, criativamente e com toda a inteligência e engenhosidade tradicionais chinesas, na grande marcha avante. Era a visão essencialmente romântica de um artista, embora, segundo depreendemos por aqueles que podem julgar a poesia e caligrafia que ele gostava de praticar, não um artista muito bom. ("Não tão ruim quanto a pintura de Hitler, mas não tão boa quanto a de Churchill", na opinião do orientalista britânico Arthur Waley, usando a pintura como uma analogia para a poesia.) Isso o levou, contra os céticos e a opinião realista de outros líderes chineses, a convocar intelectuais da velha elite a contribuir com seus talentos para a campanha das "Cem Flores" de 1956-7, na suposição de que a revolução, e talvez ele próprio, já os tivesse transformado. ("Que desabrochem cem flores, que disputem cem escolas de pensamento.") Quando, como camaradas menos inspirados haviam previsto, essa explosão de livre-pensamento se mostrou deficiente em entusiasmo unâ­nime pela nova ordem, confirmou-se a desconfiança inata de Mao dos intelec­tuais como tais, que iria encontrar expressão espetacular nos dez anos da Grande Revolução Cultural, quando a educação superior praticamente parou e os intelectuais que já existiam foram regenerados em massa pelo trabalho bra­çal compulsório no campo. (4) Apesar disso, a crença de Mao nos camponeses, exortados a resolver todos os problemas de produção durante o "grande salto", segundo o princípio de "que todas as escolas [isto é, de experiência local] dis­putem", permaneceu inalterada. Pois - e esse era mais um aspecto do pensa­mento de Mao que encontrava apoio no que ele lia na dialética marxista – ele estava fundamentalmente convencido da importância da luta, do conflito e da alta tensão como algo não apenas essencial à vida, mas que também impedia a recaída da antiga sociedade chinesa em insistir na permanência e harmonia imutáveis, o que fora sua fraqueza. A revolução e o próprio comunismo só poderiam ser salvos de degenerar em estagnação por uma luta constantemen­te renovada. A revolução não podia acabar nunca. 

A peculiaridade da política maoísta era ser "ao mesmo tempo uma forma extrema de ocidentalização e uma reversão parcial aos padrões tradicionais", sobre os quais, na verdade, se apoiava em grande parte, pois o velho império chinês se caracterizava, pelo menos nos períodos em que o poder do imperador era forte e assegurado, e portanto legítimo, pela autocracia do governante e a aquiescência e obediência dos súditos (Hu, 1966, p. 241). O simples fato de que 84% das famílias camponesas chinesas se deixaram tranqüilamente ser coleti­vizadas num único ano (1956), ao que parece sem nenhuma das conseqüências da coletivização soviética, já fala por si. A industrialização, no modelo soviéti­co voltado para a indústria pesada, era a prioridade incondicional. Os absurdos mortais do "grande salto" se deveram basicamente à convicção, que o regime chinês partilhava com o soviético, de que a agricultura devia ao mesmo tempo alimentar a industrialização e manter-se sem o desvio de recursos de investi­mento industrial para ela. Em essência, isso queria dizer substituir incentivos "materiais" por "morais", o que significava, na prática, pôr o volume quase ilimitado de braços humanos disponíveis na China no lugar da tecnologia que não havia. Ao mesmo tempo, o campo continuou sendo a base do sistema de Mao, como sempre fora desde a época da guerrilha, e, ao contrário da URSS, o modelo do "grande salto" fez dele também o locus preferido de industrializa­ção. Ao contrário da URSS, a China não passou por industrialização em massa sob Mao. Só na década de 1980 a população rural foi cair abaixo de 80%. 

Por mais que nos possamos chocar com o registro dos vinte anos maoís­tas, um registro que combina desumanidade e obscurantismo em massa com os absurdos surrealistas das afirmações feitas em nome dos pensamentos do divino líder, não devemos esquecer que, pelos padrões do Terceiro Mundo, assolado pela pobreza, o povo chinês ia indo bem. No fim do período de Mao, o consumo médio de alimento chinês (em calorias) estava pouco acima da média de todos os países, acima do de catorze países nas Américas, 38 na África e mais ou menos metade dos asiáticos - bem acima do sul e sudeste da Ásia, com exceção da Malásia e Cingapura (Taylor & Jodice, 1983, tabela 4.4). A expectativa de vida média no nascimento subiu de 35 anos em 1949 para 68 em 1982, sobretudo devido à impressionante e - exceto nos anos da fome - contínua queda da mortalidade (Liu, 1986, pp. 323-4). Como a popu­lação chinesa, mesmo descontando-se a grande fome, aumentou de cerca de 540 milhões para cerca de 950 milhões entre 1949 e a morte de Mao, é evidente que a economia conseguiu alimentá-los - um pouco acima do nível de começos da década de 50 - e melhorou ligeiramente seu nível de roupas (China Statistics, 1989, tabela T15.1). A educação, mesmo no nível ele­mentar, sofreu tanto com a fome, que reduziu a freqüência em 25 milhões, quanto com a Revolução Cultural, que a reduziu em 15 milhões. Apesar disso, não há como negar que no ano da morte de Mao seis vezes mais crianças iam à escola primária do que quando ele chegou ao poder - isto é, uma taxa de matrícula de 96%, comparada com menos de 50% mesmo em 1952. Claro, ainda em 1987 mais de um quarto da população acima dos doze anos conti­nuava analfabeta e "semi-analfabeta" - entre as mulheres essa cifra chegava a 38% -, mas não devemos esquecer que a alfabetização na China é excessi­vamente difícil, e só se podia esperar que uma proporção bastante pequena dos 34% nascidos antes de 1949 a tivesse adquirido inteiramente (China Statistics, 1989, pp. 69-72 e 695). Em suma, embora as realizações do período maoísta possam não impressionar observadores ocidentais céticos - havia muitos sem ceticismo - certamente teriam parecido impressionante para, digamos, obser­vadores indianos e indonésios, e talvez não parecessem particularmente decep­cionantes para os 80% de chineses rurais, isolados do mundo, cujas expectati­vas eram as de seus pais.

Apesar disso, era inegável que, internacionalmente, a China perdera terre­no desde a revolução, e notadamente em relação a vizinhos não comunistas. Sua taxa de crescimento econômico per capita, embora impressionante nos anos de Mao (1960-75), foi menor que a do Japão, Hong Kong, Cingapura, Coréia do Sul e Taiwan - para citar os países leste-asiáticos nos quais os observadores chineses certamente teriam ficado de olho. Embora imenso, seu PNB era quase igual ao do Canadá, menor que o da Itália, e um simples quarto do Japão (Taylor & Jodice, 1983, tabelas 3.5 e 3.6). O desastroso curso em ziguezague seguido pelo Grande Timoneiro desde meados da década de 1950 só continuara porque Mao, em 1965, com apoio militar, lançou um movimento anárquico, inicialmen­te estudantil, de jovens “Guardas Vermelhos” contra a liderança do partido que o pusera discretamente de lado, e contra os intelectuais de lodo tipo. Foi a Grande Revolução Cultural que devastou a China por algum tempo, até que Mao chamou o exército para restaurar a ordem, e de qualquer modo se viu obri­gado a restaurar algum tipo de controle do partido. Como ele se achava visivel­mente nas últimas, e o maoísmo sem ele teria pouco apoio de fato, não sobrevi­veu à sua morte, em 1976, e à quase imediata prisão dos ultramaoístas do "Bando dos Quatro", encabeçados pela viúva do líder, Jiang Quing. O novo curso, sob o pragmático Deng Xiaoping, começou imediatamente.



 

II

O novo curso de Deng na China foi o mais franco reconhecimento públi­co de que eram necessárias mudanças dramáticas na estrutura do "socialismo realmente existente", mas à medida que a década de 1970 passava para a de 1980, foi ficando cada vez mais claro que havia alguma coisa de seriamente errado em todos os sistemas socialistas que assim se consideravam.



Notas
(1): As conquistas intelectuais e científicas da Rússia entre 1830 e 1930 foram de fato extraordinárias, e incluíram algumas impressionantes inovações tecnológicas, que o atraso rara­mente permitiu que fossem economicamente desenvolvidas. Contudo, o brilho e significação mundial de uns poucos russos só tomam mais óbvia para o Ocidente a inferioridade geral da Rússia.
(2): Cf. o artigo "Hai Tui repreende o imperador", no Diário do Povo em 1959. O mesmo autor (Wu Han) compôs um libreto para uma ópera clássica de Pequim, A demissão de Hai Tui, em 1960, que alguns anos depois ofereceu a ocasião que disparou a Revolução Cultural (Leys, 1917, pp. 30 e 34).
(3): Segundo estatísticas oficiais chinesas, a população do país em 1959 era 672.07 milhões. Na taxa de crescimento natural dos sete anos anteriores, que era de pelo menos 20 por mil ao ano (na verdade uma média de 21.7 por mil), seria de esperar que a população chinesa em 1961 fosse 699 milhões. Na verdade, era 658.59 milhões, ou 40 milhões menos do que seria de esperar (China Statistics, 1989, tabelas T3.1 e T3.2).
(4)): Em 1970, o número total de estudantes em todas as Instituições de Ensino Superior da China era 48 mil; nas escolas técnicas do país (1969), 23 mil; e nas Escolas de Formação de Professores (1969), 15 mil. A ausência de quaisquer dados sobre pós-graduados sugere que não havia provisão alguma para eles. Em 1970, um total de 4260 jovens começou a estudar ciências naturais nas Instituições de Ensino Superior, e um total de noventa começou a estudar ciências sociais. Isto num país de, na época, 830 milhões de pessoas (China Statistics, 1989, tabelas T17.4, T17.8 e T17.1O).

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