Texto extraído do site: http://e-revista.unioeste.br/index.php/educereeteducare/article/download/2642/2011
Como principais fontes inspiradoras para o estudo da dialética destacam-se Platão, Hegel, Marx e Heidegger. Neste sentido, merece destaque que o debate subordinado ao tema: “A dialética é apenas uma lei histórica ou é também uma lei da natureza?”, reuniu, em 1961, diversos filósofos e cientistas franceses, cujo resultado foi publicado com o título de Marxismo e Existencialismo. Sartre deu início às discussões apontando que, para ele, tratava-se de saber de que região da realidade surgiu a dialética. De fato, a centralidade dessas discussões está em saber se a dialética é uma lei apropriada ao todo do real (à natureza, à história e ao conhecimento) ou se ela se verifica apenas em um ou em diversos setores da realidade. Ou seja, ela rege todo o real ou é apenas uma lei particular? Entretanto, esta questão torna-se inexequível sem a elucidação prévia de toda esta problemática em bases ontológicas, pois uma coisa é saber a extensão da dialética, isto é se a dialética se aplica à história e se exclui ou não o mundo da natureza. Outra coisa refere-se à gênese, isto é, saber de onde vem a dialética1. As diferenças ônticas somente podem ser respeitadas a partir da diferença ontológica, pela diferença entre o ser e o ente:
Antes de adentrarmos na discussão focada em Engels e Marx a respeito da “dialética da natureza”, é preciso deixar claro, de antemão, que nem sempre o conjunto do pensamento de Marx é visto de forma dialética. Buscam-se passagens ou frases de uma ou de algumas de suas obras, objetivando ter encontrado o “Abre-te Sézamo” que explicaria o conjunto de seu pensamento. Pensamos, ao contrário, esta chave (não de “explicação”, porém de “abertura”) existe; é a dialética, mas ela somente pode estar no conjunto de seu pensamento e, de modo particular, em O Capital. O que há de dialético em O Capital é a “exposição”. De modo geral, no próprio tratamento dado por vários estudiosos de O Capital, há uma falha metodológica comum, visto que buscaram explicar as crises, por exemplo, a partir da noção empírica de “causa”:
Outro complicador é que, mesmo quando alguns autores se referem à dialética em Marx, não o fazem sem certos equívocos metodológicos. Ora, se isto ocorre com a obra fundamental de Marx, o que se dirá de outros escritos que se referem à dialética, ou, como argumentam alguns, à dialética da natureza?
A filosofia, de modo geral, constrói um discurso sobre a verdade. Para Marx, na sociedade capitalista, o “engano” e a “aparência” são ontológicos. Para Marx, o que para o ser humano comum é “abstrato”, para ele é “concreto”. Abstrato tem a noção de “isolado” (simples), separado da totalidade. Assim, portanto, como expor esta verdade que parte do abstrato ao concreto?
Marx não vê a essência da realidade no Espírito absoluto, e sim no próprio homem que se produz a si mesmo pela produção dos seus meios de vida. Nesse artigo partimos da hipótese de que, nas obras de Marx, não há um conceito de dialética da natureza, portanto diferindo daquilo que foi exposto por Engels em A Dialética da Natureza3 e no Anti-Dühring4. Como é sabido, nessas duas obras, Engels elaborou a tese de que haveria, nos processos naturais, uma dialética puramente objetiva, que se realizaria sem qualquer intervenção humana. Daí o título de sua obra “dialética da natureza”, pois, para ele, a natureza é a pedra de toque da dialética, entendendo que a natureza se move, em última análise, pelos canais da dialética. Em outras palavras, enquanto em Engels temos a reflexão acerca da dialética da natureza que ocorre de forma inteiramente objetiva, em Marx não observamos um tratamento desta questão, visto que não tratou a natureza como um domínio separado da práxis, ou seja, dos processos de transformação realizados pelos seres humanos por meio de sua atividade produtiva.
Importante observar que falamos, inicialmente, em “prováveis diferenças entre Marx e Engels” pelo fato de que, ainda que haja uma diferença perceptível entre os dois revolucionários e amigos, não é facilmente possível, entretanto, estabelecer uma nítida linha de demarcação entre os pensamentos de Marx e os de Engels, sem um aprofundamento metodológico – o que alimenta a polêmica estabelecida. Esta linha, porém, é buscada ou negada, procurando fundamentá-la num rigoroso trabalho de interpretação, e que tem sido feito por diferentes escolas políticas no âmbito do marxismo, notadamente por autores trotskistas5 (que argumentam no sentido de estabelecer esta linha) e stalinistas (que negam existir esta linha). Claro, sobre isso há enormes divergências no pensamento revolucionário mundial, divergências que se expressam em diferentes partidos políticos e organizações6. Este pequeno artigo insere-se nesta polêmica, cujo esforço está em buscar uma linha de demarcação.
Não ignoramos, todavia, que, por mais que Marx não tenha buscado reflexões semelhantes àquelas realizadas por Engels nas duas obras citadas, ao que parece não é certo assim que ele tenha formulado discordâncias com relação a Engels. Nunca é demais lembrarmos que o próprio Anti-Dühring, obra na qual Engels apresenta o que ele chama de “visão comunista de mundo”, com a sua correspondente dialética da natureza, foi lido e revisto por Marx antes de ser publicado. No Prefácio da segunda edição do Anti-düring, Engels invoca Marx como colaborador de seu livro e informa, inclusive, que o capítulo Sobre a história crítica foi escrito por Marx:
Ao que sabemos, não há, por enquanto, nenhum escrito de Marx publicado, ou mesmo registro em papéis pessoais, que possa explicitar, objetiva e claramente, o que ele pensava a respeito da chamada dialética da natureza. O que, por outro lado, não significa que não possamos conjugar esforços metodológicos, procurando mostrar que, no fundo, há, sim, esta divergência entre os dois autores que queremos salientar.
Entendemos, nesta perspectiva, que, para Marx, parece não haver dialética na natureza nem na relação natural entre o homem e ela, não obstante ele considere haver, sim, transformação e movimento. Ocorre, todavia, que “transformação” e “movimento” não equivalem necessariamente à “dialética”.
O pensamento de Marx é dialético porque é um pensamento do devir, do autodesenvolvimento dos conteúdos e da contradição; porém principalmente por afirmar que o antagonismo é necessário e que é interno a uma totalidade dada (por exemplo: o capital e o trabalho são os dois termos antitéticos de uma mesma realidade, a acumulação capitalista), e porque se originam do próprio movimento de oposição. Dessa maneira, os antagonismos sociais extraem sua superação da própria luta de classes. Marx, portanto, não se preocupa, diretamente, com o ser do espírito ou das coisas.
Em Marx, o conceito de dialética surge como um processo através do qual o ser humano transforma a realidade natural imediatamente dada, e produz, sobre essa base, uma realidade não natural, humanizada. Essa realidade criada pelos seres humanos consiste, portanto, numa superação dialética do dado natural. Nem os objetos naturais nem os homens deixam de ser aquilo que são em sua origem, ou seja, não deixam de ser natureza, apenas adquirem novas formas, que o homem introduz por meio do trabalho.
Dessa maneira, não há contradição nas mudanças de forma ocorridas na natureza. Não há contradição alguma entre a forma líquida e a forma gasosa da água, por exemplo, porque o conteúdo continua o mesmo, porém há contradição quando a essas formas naturais se agrega uma forma social (não natural, portanto), como a forma mercadoria. Sob a forma mercadoria, a água não existe como água em sua determinação natural, mas como água em sua determinação social, isto é, como mercadoria. E, como mercadoria, não importando sua forma natural, ela serve para enriquecer o capitalista, (para “valorizar o valor”, como diz Marx, n’O Capital) e não para cumprir com suas funções naturais.
As coisas se transformam e se modificam segundo leis naturais e cada transformação é uma afirmação das características que já estão presentes na natureza das coisas. Por exemplo: transformar couro em sapato é uma operação natural do trabalho, mas, transformar o sapato em mercadoria é uma operação artificial, social, que efetivamente nega ao sapato sua natureza de servir como certo “valor de uso” útil aos homens. Dessa maneira, aqui, sim, o trabalho entra em contradição com a natureza, porque ele não possui mais uma finalidade humana e natural. Os seres humanos não cessam de agir no mundo e, simultaneamente, de produzir-se a si próprios.
Nesse sentido, queremos debater a instigante ideia desenvolvida por importantes estudiosos, a de que “o trabalho nega a natureza” ou, mais especificamente, queremos problematizar o “conceito de dialética da natureza de Marx”:
Marx dá vários nomes ao trabalho: trabalho produtivo, trabalho determinado, trabalho útil, trabalho particular, trabalho natural. Do nosso ponto de vista, porém, o trabalho não “nega” a natureza. Marx opera com duas noções fundamentais de trabalho em O Capital: “trabalho concreto” e “trabalho abstrato”. O trabalho concreto, a rigor, não “nega” a natureza, apenas modifica suas formas segundo uma necessidade humana. Por exemplo: quando transformamos o boi em couro e este em sapato, não estamos negando a natureza do boi e do couro. Nós estamos, na verdade, afirmando essa natureza do boi e do couro, a de servirem como coisa útil aos homens, a de servirem como calçado para nossa proteção e conforto. Essa relação natural, mediada pelo trabalho concreto do sapateiro, entre homem e natureza, não é dialética porque não existe contradição nela. A modificação do boi em sapato não se opõe à natureza do boi, pois não há aí um elemento negativo que retira do boi sua natureza de servir como coisa útil ao homem. Ao contrário: essa modificação apenas afirma o boi como coisa natural útil ao homem.
Extrair do boi suas qualidades úteis para satisfazer uma necessidade humana não constitui uma contradição no sentido filosófico da palavra, como ocorre, por exemplo, quando o camponês emprega o boi como animal de tração. Esse emprego não nega ao boi sua condição de animal de tração. Muito pelo contrário. O trabalho do camponês estaria apenas empregando o animal dentro das possibilidades comportadas pela sua própria natureza enquanto boi. A contradição estaria, sim, caso usássemos o próprio homem, em lugar do boi, como animal de tração, como ocorria no mundo antigo. Aqui, o escravo era empregado como animal de tração e como propriedade de um senhor.
Como diziam os antigos, o escravo não se diferenciava em natureza com os animais de tração, podendo, segundo eles, ser, por isso, empregados como instrumentos de trabalho. Nesse caso, sim, haveria uma contradição, pois o trabalhador, ao invés de sujeito do trabalho, teria sido convertido em objeto e instrumento vivo dele. No mundo antigo há uma contradição viva no seio da própria sociedade, e não no interior da natureza. No interior da natureza, antes da intervenção das relações de trabalho fundadas na divisão em classes, não há contradição. A contradição se instaura quando a ordem natural se modifica segundo uma outra ordem, a ordem fundada na vontade humana.
O que significa o conceito de troca material em Marx? Para responder a essa primeira questão, argumenta-se que este conceito busca designar o sistema de trocas que ocorre no interior de uma totalidade: a natureza. Para Marx, a natureza é o conjunto da realidade, é o todo que inclui tanto o homem como a realidade extra-humana, tanto a natureza não apropriada pelo homem como aquela que ele transformou. Enfim, a natureza é a totalidade do mundo sensível, do qual o homem faz parte.
Em que consiste a troca do homem com a natureza? Para responder a essa segunda questão, argumenta-se que, em primeiro lugar, o que o homem troca com a natureza são “mediações”. O homem só pode conservar a sua existência por meio da natureza. É através da natureza que o homem obtém tanto os meios de subsistência imediatos como os meios de realização de sua atividade produtiva. No entanto, é apenas através do homem que a natureza chega à consciência de si mesma e alcança um nível superior de seu desenvolvimento.
Em segundo lugar, essa troca se dá num nível imediatamente fisiológico, como uma simples troca de elementos entre as sociedades humanas e o meio natural. O homem se apropria dos elementos da natureza e após o seu consumo os devolve à natureza. O caráter imediatamente fisiológico desse conceito de troca material torna-se evidente na crítica de Marx acerca da separação entre a cidade e o campo, típica das sociedades dominadas pelo capital, onde ele vê sensivelmente alterado a troca material entre o homem e a terra, isto é, a volta à terra dos elementos do solo consumidos pelo ser humano sob a forma de alimentos e de vestuário, violando assim a eterna condição natural da fertilidade permanente do solo.
Frente a tais afirmações, queremos colocar uma indagação: É possível, entretanto, existir troca entre homem e natureza? Para Marx, a superação da realidade criada pelo homem consiste numa superação do dado natural, numa Aufhebung da natureza. Inicialmente, porém, devemos esclarecer que o conceito de troca material, ainda que seja possível interpretá-lo, é, todavia, um conceito que Marx jamais formulou explicitamente. Além disso, em alemão há duas palavras para se referir à troca: Austausch ou apenas Tausch (que Marx geralmente emprega como troca no sentido econômico) e Wechsel, que, na cultura alemã, possui um sentido não econômico e mais geral. Marx esclarece que ele está usando o termo Wechsel entre homem e natureza neste sentido genérico. É neste sentido que ele emprega o termo Stoffwechsel (Stoff = matéria) que pode ser melhor traduzido como metabolismo. Em O Capital, na passagem onde Marx cita Pietro Verri7, está assim: “um den Stoffwechsel zwischen Mensch und Natur” – “metabolismo entre homem e natureza”.
Observe-se, portanto, que essa referência ao italiano Verri encontra-se exatamente na parte em que Marx estuda o caráter natural do trabalho, o chamado trabalho concreto. Este aspecto do trabalho é ainda um aspecto abstrato, pois não possui realidade histórica, e serve apenas para demonstrar o conflito que existe entre o caráter do trabalho na sociedade capitalista, voltado para a valorização do valor, e o caráter do trabalho natural, como trabalho criador de valores de uso destinados a satisfazer uma necessidade humana. Marx chama a este trabalho concreto de “eterna necessidade natural do homem e de mediação do metabolismo (Stoffwechsel = e não da troca) entre ele e a natureza”. Esta passagem se encontra no parágrafo anterior à citação de Pietro Verri. Inclusive, Marx diz, no trecho da citação, que, ao proceder como a natureza, o homem apenas “muda” (sem negar no sentido dialético) as “formas” da matéria. Claro está que, na natureza, há movimento e transformação e claro está que o trabalho modifica a natureza segundo suas necessidades, mas essa transformação e esse movimento não são dialéticos porque não são contraditórios, porque há apenas mudanças de forma e não de conteúdo. O conteúdo é sempre o mesmo: a matéria natural. Apenas a forma é que se modifica, de boi em couro e de couro em sapato, porém, ao transformar o sapato em mercadoria, então há, sim, uma negação dialética, pois aí ocorre uma mudança de conteúdo do trabalho e do sapato.
Agora o sapato serve apenas como mercadoria e como meio de valorização do valor. A mercadoria nega ao sapato sua condição natural de sapato e o converte em “portador do valor de troca”, em meio de se obter dinheiro e não conforto e proteção para os pés. A contradição não está entre o sapato e a natureza bruta, mas, sim, entre o sapato e a forma mercadoria. Neste esquema, o sapato funciona como a forma natural do trabalho e a mercadoria funciona como a forma social dele. A contradição que existe é entre a forma natural e a forma social do trabalho, entre o sapato como valor de uso e o sapato como mercadoria, como valor de troca.
Para existir contradição é necessário mais que uma oposição entre dois termos. É necessário que esta oposição se realize no interior de uma unidade cindida. Quando o sapateiro transforma a natureza (o boi, em nosso caso) em sapato, em coisa útil destinada à satisfação de uma necessidade humana, mesmo que esta necessidade não seja a do próprio sapateiro, há, sim, uma unidade entre homem e natureza, mas não há oposição entre ambos. Esta relação permanece restrita ao âmbito da unidade porque permanece fixada no interior da ordem natural. A ordem natural das coisas comporta, sem refutar, o trabalho humano voltado às satisfações. A contradição se instaura quando esta unidade originária entre homem e Natureza se cinde em uma oposição. Desta oposição surge a diferença e, daqui, a contradição. Quando o produto do trabalho não se destina mais a satisfazer as necessidades do produtor direto ou da comunidade natural à qual ele pertence e passa a satisfazer as necessidades de uma segunda figura, estranha à ordem natural das coisas, como são as figuras do não trabalhador e das classes dominantes, então se instaura a contradição no seio da comunidade, antes inexistente.
A natureza não comporta, em seu seio, a figura do não trabalhador, daquele que se apropria de seus frutos sem a mediação do trabalho. A figura do não trabalhador é uma figura que está em contradição com a ordem natural, pois como admitir, sem cairmos em contradições, que o trabalho é o fundamento natural da riqueza (“o pai da riqueza”, como dizia Marx – já que a Natureza seria “a mãe”) se há homens que enriquecem sem trabalhar? Essa contradição não pertence à ordem da natureza, mas ao contrário, ela é uma violação da ordem natural. Esta comporta o enriquecimento do trabalhador e da comunidade a partir da transformação dos recursos naturais pelo trabalho, mas não o empobrecimento de ambos em detrimento do enriquecimento do não trabalhador. Na ordem natural não é possível enriquecimento que não seja mediado pelo trabalho. Na ordem humana, porém, tudo ocorre ao contrário. A contradição existiria, assim, no interior desta segunda ordem e na relação entre ambas.
Existiria contradição no interior da ordem humana porque agora aquele que trabalha diretamente se empobrece com o próprio trabalho. Existiria contradição entre ordem natural e ordem social porque agora esta segunda ordem vê na Natureza não mais uma fonte de recursos destinada à satisfação humana, mas, sim, uma fonte destinada a ser transformada em riqueza. Caso o produto do trabalho for uma mercadoria, então toda a finalidade da sociedade será a de transformá-lo em dinheiro: a forma irracional da riqueza. A sociedade trabalhará, assim, para satisfazer esta necessidade artificial e não natural.
O dinheiro se contrapõe diretamente a todas as formas naturais da riqueza porque, com ele, nenhuma necessidade pode ser satisfeita diretamente. Voltemos ao nosso exemplo do sapato. Este representa a forma natural e útil da riqueza. O dinheiro representa a forma social e não útil da riqueza. Não podemos satisfazer nossa necessidade de vestir os pés com dinheiro, como sabemos. Somente o sapato pode nos satisfazer, contudo, na sociedade capitalista, o trabalho não é organizado segundo nossas necessidades naturais, como a de proteger os pés, mas, sim, segundo nossas necessidades sociais, ou seja, segundo a necessidade de tudo ser transformado em dinheiro. Aquilo que não puder ser transformado em dinheiro não será produzido e tudo o que for produzido terá por meta ser transformado em dinheiro. Essa é a base irracional e contraditória da ordem social. Numa ordem baseada na natureza, tudo ocorreria de modo contrário. Toda a produção seria destinada ao consumo e à satisfação das necessidades. Por isso, seria incorreto conceber que entre homem e natureza haveria troca, mesmo que seja uma troca natural.
Entre homem e natureza, visto evidentemente de um ponto de vista abstrato, existe um intercâmbio que Marx chama de metabolismo (Stoffwechsel). Troca (Austausch), no sentido restrito da palavra, há apenas no interior da sociedade. Troca é sempre intercâmbio de mercadorias, seja por dinheiro ou diretamente por outra mercadoria. Stoffwechsel, assim, é um termo que desconhece a noção de contradição, enquanto Austausch é um termo carregado de sentido contraditório.
Assim, para Marx, não existe uma relação de “troca” entre homem e natureza. A troca é um fenômeno econômico e por isso um artifício humano. Pensamos que, na base desta ideia de que há “troca” na natureza (mesmo que não seja uma troca econômica, evidentemente), se esconde uma antiga ideia dos Economistas Clássicos, dos chamados fisiocratas especialmente, de que as leis econômicas do capitalismo seriam as mesmas encontradas na natureza. Os fisiocratas foram uma das primeiras escolas de economia surgidas a partir da crise das concepções mercantilistas. A própria etimologia da palavra pode nos indicar algo interessante: Fisio = natureza e crata = forma de governo. Desse modo, para os fisiocratas, as leis que governavam a sociedade e as trocas capitalistas eram as mesmas que governavam a physis (natureza). Apesar de Marx usar o termo troca algumas vezes para referir-se à relação entre homem e natureza, o termo mais apropriado seria metabolismo entre homem e natureza. Trocas só existem entre homens e não entre homem e natureza.
A antítese que nega o boi como coisa natural útil ao homem está no fato de que, na sociedade capitalista, o sapato se converte em mercadoria e o trabalho concreto do sapateiro adquire uma segunda propriedade: a de ser trabalho abstrato. Como mercadoria, o sapato e o trabalho do sapateiro estarão em contradição com a natureza útil do boi, do couro e do sapato, porque agora o sapato não tem mais como meta servir a uma necessidade natural do homem (a de proteger seus pés da natureza), mas, sim, a de enriquecer o capitalista. Aqui, efetivamente, há uma antítese entre homem e natureza, porque agora o boi não é mais convertido em sapato para satisfazer uma necessidade natural do homem, mas, sim, para satisfazer uma necessidade social e artificial: a de valorizar o valor e de enriquecer o capitalista.
Considerações finais
Em razão do exposto acima, não pensamos que haja em O Capital uma dialética do trabalho, nem dialética da natureza. O esquema triádico de Hegel de tese-antítese-síntese não se aplica inteiramente a Marx. Em Hegel temos um sistema fechado onde as contradições geralmente possuem um termo final, mas em Marx as contradições nunca se resolvem de modo verdadeiro. Elas apenas se ampliam sem se resolverem. É a conversão do sapato em mercadoria que cria a contradição e esta nunca se resolve inteiramente na sociedade capitalista porque o sapato (como todos os demais valores de uso) sempre continuará a existir como mercadoria.
A última palavra ainda não foi dada sobre esta polêmica, e provavelmente não será jamais possível isto ocorrer. Infelizmente, Marx anunciou que iria escrever um texto sobre a dialética, mas nunca pode realizá-lo, todavia escreveu um texto chamado Contribuição à Crítica da Economia Política8, texto no qual expõe algumas ideias acerca da dialética. Neste texto, ele pensa a dialética como procedimento de análise da realidade que parte do concreto-empírico e, através da abstração, chega ao concreto-pensado, reconstituindo a realidade no pensamento. O processo de abstração assume importância fundamental neste contexto e as principais categorias da dialética são: abstrato, concreto, totalidade, determinação fundamental, entre outras.
Como argumentamos ao longo deste artigo, Engels apresentou uma outra visão de dialética, retomando alguns aspectos da dialética hegeliana, inclusive a tese de que existem “leis na natureza e na sociedade”, que também seriam as “leis do pensamento”. Engels retomou de Hegel a perspectiva de que a dialética é a história do espírito, das contradições do pensamento que ela repassa ao ir da afirmação à negação. Em alemão, aufheben significa “supressão” e, ao mesmo tempo, significa “manutenção” da coisa suprimida. De forma que aquilo que é negado permanece no interior da totalidade. Esta contradição não é apenas do pensamento, mas da realidade, já que ser e pensamento são idênticos. Observemos as palavras de Engels, no Prefácio à segunda edição do Anti- Düring:
Mais adiante, Engels acrescentou que Marx e ele estiveram certamente sozinhos na tarefa de salvar da filosofia idealista alemã a dialética consciente para integrá-la na concepção materialista da natureza e da história.
Disso tudo resulta para nós que, ainda que Marx tenha tomada conhecimento desta ideias de Engels, como afirmamos inicialmente, preferiu entretanto restringir suas investigações e conclusões tão somente à ontologia do ser social, ao passo que, em Engels, há a extensão para uma ontologia geral e universal. Engels, assim como toda a tradição posterior que se apoiou na falsa ideia de que haveria contradição e movimento (no sentido dialético) no interior da ordem natural, parte de uma ideia filosófica de natureza muito semelhante às concepções de Hegel e de Spinosa. Estes, procurando explicar os movimentos da sociedade e da natureza a partir de uma visão unitária e filosófica, entendiam que as leis da natureza não se diferenciavam em seus fundamentos da ordem divina e racional.
Hegel, como cristão e racionalista, acreditava que o Absoluto se manifestava tanto na terra quanto no céu, ou seja, acreditava que as leis da natureza e da sociedade eram apenas diferentes maneiras de realização do mesmo Absoluto. Para Hegel, só uma lei governava o universo (humano e natural): as leis do Absoluto, que muitas vezes se confundia com o próprio Deus cristão. Spinosa, aparentemente menos idealista que Hegel e que mais tarde seria recuperado por Althusser e sua “escola”, também entendia que não haveria duas ordens distintas e opostas se contrapondo no universo. Sua visão panteísta e monista da vida também acreditava que o mundo era uma unidade perfeita e que as leis da natureza não se opunham às leis humanas e sociais. Ou seja, o problema, pois, das relações entre o espírito e a matéria é resolvido por Spinoza, fazendo da matéria e do espírito dois atributos da única substância divina. O monismo de ambos, no fundo, acreditava que a ordem da natureza era tão espiritual quanto a ordem humana.
Com a falsa ideia de que Marx apenas haveria invertido Hegel de cabeça para cima, foi relativamente fácil para Engels e sua “escola”, então, argumentar que haveria uma dialética da matéria e que esta dialética seria a mesma da sociedade e do capitalismo. Na base da concepção de que a história ocidental seria explicada pelo desenvolvimento espontâneo e “dialético” das forças produtivas materiais – e não pela luta de classes – está a concepção de Engels sobre a dialética da matéria. Foi a partir desta concepção que Althusser chegou à conclusão de que a história ocidental teria sido sempre uma “história sem sujeito”, já que tudo é “matéria” e tudo se explica a partir de suas leis supostamente objetivas.
Ao que parece, esta concepção engelsiana de dialética também foi desenvolvida por Lênin, Stálin9, Mao Tse-Tung10, entre outros, e se tornou hegemônica graças ao domínio da social-democracia e do stalinismo, mas foi profundamente criticada por pensadores inspirados no trotskismo, especialmente.
Como é sabido, Lenin desenvolveu suas ideias filosóficas sobre a dialética, no seu livro Materialismo e Empiriocriticismo11, respaldado em Engels e Plekhánov, de modo particular nos dois livros já citados de Engels (A Dilalética da Natureza e Anti-Düring):
Esta profícua polêmica continuou posteriomente com os escritos dos já citados Jean-Paul Sartre12 e Louis Althusser13, bem como com os de Lucien Goldmann14, entre outros, gerando muitas questões interessantes. Finalmente, ainda que não seja possível tratar aqui, não podemos deixar de, ao menos, mencionar uma terceira tendência que parece se configurar, no interior desta polêmica sobre a dialética, e que se encontra em Karl Korsch15, Anton Pannekoek16, Ernest Bloch17, entre outros, que procuram refutar a existência do chamado materialismo dialético ao colocar a dialética como basicamente um “instrumento heurístico” (Korsch) e que não existem “leis” e que “matéria” não constitui “objetos físicos”, e sim relações sociais concretas (Pannekoek).
O nosso dizer sobre a dialética é sempre menor do que o ser da dialética. Em razão disso, considerando que estamos frente a um tema complexo, visto que os autores definem e inerpretam a dialética de diferentes maneiras, queremos concluir perguntando pelo ser da dialética ou mais precisamente: – Até que ponto se pode dizer o ser da dialética?
Referências
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Notas
1 BORNHEIN, Gerd A. Dialética: teoria, práxis; ensaio para uma crítica da fundamentação ontológica da dialética. Porto Alegre: Globo; São Paulo: EDUSP, 1977. p. 8-9.
2 BORNHEIN, Gerd A. Dialética: teoria, práxis; ensaio para uma crítica da fundamentação ontológica da dialética. Porto Alegre: Globo; São Paulo: EDUSP, 1977, p. 10.
3 ENGELS, Friedrich. A Dialética da natureza. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
4 ENGELS, Friedrich. Anti-Düring. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
5 ANTUNES, Jadir, BENOIT, Hector. A Exposição Dialética do Conceito de Crise em O Capital. Revista Mais Valia 2, março-junho 2008.
6 CONCEIÇÃO, G. H. Partidos políticos e educação. Cascavel: EDUNIOESTE, 2000.
7 VERRI, Pietro. “Meditazioni sulla economia política”. Nesta edição dos economistas italianos supervisionada por Custodi, impressa em 1771, v. XV, p. 21-22. In: MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. Livro I, p. 65, nota 13.
8 MARX, K. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo: Martins Fontes, 1983.
9 STALIN, J. Materialismo dialético e materialismo histórico. São Paulo: Global, 1982.
10 TSE-TUNG, Mao. Sobre a contradição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
11 LENIN, W. Materialismo e empireocriticismo. Rio de Janeiro: Mandacaru, 1986.
12 SARTRE, Jean Paul. Crítica da razão dialética. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
13 ALTHUSSER, L. Materialismo histórico e materialismo dialético. São Paulo: Global, 1986. Disponível em: . Acesso em: 23. out. 2008.
14 GOLDMANN, Lucien.Ciências humanas e filosofia. O que é a sociologia? São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.
15 KORSCH, Karl. Marxismo e filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.
16 PANNEKOEK, Anton. Lênin filósofo. Buenos Aires: PYP, 1970. A visão de Pannekoek da Revolução Russa é a de que ela se caracterizou por ser uma “contra-revolução burocrática” que criou um regime denominado por ele como Capitalismo de Estado.
17 BLOCH, E. O princípio esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.
Como principais fontes inspiradoras para o estudo da dialética destacam-se Platão, Hegel, Marx e Heidegger. Neste sentido, merece destaque que o debate subordinado ao tema: “A dialética é apenas uma lei histórica ou é também uma lei da natureza?”, reuniu, em 1961, diversos filósofos e cientistas franceses, cujo resultado foi publicado com o título de Marxismo e Existencialismo. Sartre deu início às discussões apontando que, para ele, tratava-se de saber de que região da realidade surgiu a dialética. De fato, a centralidade dessas discussões está em saber se a dialética é uma lei apropriada ao todo do real (à natureza, à história e ao conhecimento) ou se ela se verifica apenas em um ou em diversos setores da realidade. Ou seja, ela rege todo o real ou é apenas uma lei particular? Entretanto, esta questão torna-se inexequível sem a elucidação prévia de toda esta problemática em bases ontológicas, pois uma coisa é saber a extensão da dialética, isto é se a dialética se aplica à história e se exclui ou não o mundo da natureza. Outra coisa refere-se à gênese, isto é, saber de onde vem a dialética1. As diferenças ônticas somente podem ser respeitadas a partir da diferença ontológica, pela diferença entre o ser e o ente:
Em primeiro lugar, a dialética ôntica, constatável em certos setores da realidade, não constitui um problema que possa ser desvinculado da consideração ontológica da dialética, e, em segundo lugar, se há essa vinculação entre o ôntico e o ontológico, então toda a problemática da dialética deve ser eleborada na perspectiva da história do ser. As questões da dialética não podem ser limitadas à legalidade de um setor particular, por importante que este seja.2
Antes de adentrarmos na discussão focada em Engels e Marx a respeito da “dialética da natureza”, é preciso deixar claro, de antemão, que nem sempre o conjunto do pensamento de Marx é visto de forma dialética. Buscam-se passagens ou frases de uma ou de algumas de suas obras, objetivando ter encontrado o “Abre-te Sézamo” que explicaria o conjunto de seu pensamento. Pensamos, ao contrário, esta chave (não de “explicação”, porém de “abertura”) existe; é a dialética, mas ela somente pode estar no conjunto de seu pensamento e, de modo particular, em O Capital. O que há de dialético em O Capital é a “exposição”. De modo geral, no próprio tratamento dado por vários estudiosos de O Capital, há uma falha metodológica comum, visto que buscaram explicar as crises, por exemplo, a partir da noção empírica de “causa”:
Pensamos que o fracasso de todas as tentativas de encontrar uma explicação coerente e sistemática sobre as crises, em O Capital de Marx, explica-se pelo fato de que nenhum autor, até agora, se propôs a expor o conceito de crise a partir da própria dialética expositiva de O Capital, ou seja, o seu “modo de exposição” (die Darstellungsweise). Conduzidos pelo uso da noção não-dialética de “causa”, os diversos autores que procuraram explicar as crises do capital a partir de Marx se desviaram do âmago do problema, procurando descobrir, afinal, qual era a “verdadeira causa das crises” e em qual passagem de O Capital Marx teria exposto “melhor” ou “de forma mais completa” a sua concepção principal de crise. (ANTUNES, 2008, p. 41).
Outro complicador é que, mesmo quando alguns autores se referem à dialética em Marx, não o fazem sem certos equívocos metodológicos. Ora, se isto ocorre com a obra fundamental de Marx, o que se dirá de outros escritos que se referem à dialética, ou, como argumentam alguns, à dialética da natureza?
A filosofia, de modo geral, constrói um discurso sobre a verdade. Para Marx, na sociedade capitalista, o “engano” e a “aparência” são ontológicos. Para Marx, o que para o ser humano comum é “abstrato”, para ele é “concreto”. Abstrato tem a noção de “isolado” (simples), separado da totalidade. Assim, portanto, como expor esta verdade que parte do abstrato ao concreto?
Marx não vê a essência da realidade no Espírito absoluto, e sim no próprio homem que se produz a si mesmo pela produção dos seus meios de vida. Nesse artigo partimos da hipótese de que, nas obras de Marx, não há um conceito de dialética da natureza, portanto diferindo daquilo que foi exposto por Engels em A Dialética da Natureza3 e no Anti-Dühring4. Como é sabido, nessas duas obras, Engels elaborou a tese de que haveria, nos processos naturais, uma dialética puramente objetiva, que se realizaria sem qualquer intervenção humana. Daí o título de sua obra “dialética da natureza”, pois, para ele, a natureza é a pedra de toque da dialética, entendendo que a natureza se move, em última análise, pelos canais da dialética. Em outras palavras, enquanto em Engels temos a reflexão acerca da dialética da natureza que ocorre de forma inteiramente objetiva, em Marx não observamos um tratamento desta questão, visto que não tratou a natureza como um domínio separado da práxis, ou seja, dos processos de transformação realizados pelos seres humanos por meio de sua atividade produtiva.
Importante observar que falamos, inicialmente, em “prováveis diferenças entre Marx e Engels” pelo fato de que, ainda que haja uma diferença perceptível entre os dois revolucionários e amigos, não é facilmente possível, entretanto, estabelecer uma nítida linha de demarcação entre os pensamentos de Marx e os de Engels, sem um aprofundamento metodológico – o que alimenta a polêmica estabelecida. Esta linha, porém, é buscada ou negada, procurando fundamentá-la num rigoroso trabalho de interpretação, e que tem sido feito por diferentes escolas políticas no âmbito do marxismo, notadamente por autores trotskistas5 (que argumentam no sentido de estabelecer esta linha) e stalinistas (que negam existir esta linha). Claro, sobre isso há enormes divergências no pensamento revolucionário mundial, divergências que se expressam em diferentes partidos políticos e organizações6. Este pequeno artigo insere-se nesta polêmica, cujo esforço está em buscar uma linha de demarcação.
Não ignoramos, todavia, que, por mais que Marx não tenha buscado reflexões semelhantes àquelas realizadas por Engels nas duas obras citadas, ao que parece não é certo assim que ele tenha formulado discordâncias com relação a Engels. Nunca é demais lembrarmos que o próprio Anti-Dühring, obra na qual Engels apresenta o que ele chama de “visão comunista de mundo”, com a sua correspondente dialética da natureza, foi lido e revisto por Marx antes de ser publicado. No Prefácio da segunda edição do Anti-düring, Engels invoca Marx como colaborador de seu livro e informa, inclusive, que o capítulo Sobre a história crítica foi escrito por Marx:
Uma observação de passagem: tendo sido criada por Marx, e em menor escala por mim, a concepção exposta neste livro, não conviria que eu publicasse à revelia do meu amigo. Li-lhe o manuscrito inteiro antes da impressão; e o décimo capítulo da parte segunda, consagrada à economia política (Sobre a história crítica) foi escrito por Marx. Infelizmente, eu o tive de resumir por motivos extrínsecos. Era, aliás, hábito nosso ajudarmo-nos mutuamente na especialidade de cada um. (ENGELS, p. 9).
Ao que sabemos, não há, por enquanto, nenhum escrito de Marx publicado, ou mesmo registro em papéis pessoais, que possa explicitar, objetiva e claramente, o que ele pensava a respeito da chamada dialética da natureza. O que, por outro lado, não significa que não possamos conjugar esforços metodológicos, procurando mostrar que, no fundo, há, sim, esta divergência entre os dois autores que queremos salientar.
Entendemos, nesta perspectiva, que, para Marx, parece não haver dialética na natureza nem na relação natural entre o homem e ela, não obstante ele considere haver, sim, transformação e movimento. Ocorre, todavia, que “transformação” e “movimento” não equivalem necessariamente à “dialética”.
O pensamento de Marx é dialético porque é um pensamento do devir, do autodesenvolvimento dos conteúdos e da contradição; porém principalmente por afirmar que o antagonismo é necessário e que é interno a uma totalidade dada (por exemplo: o capital e o trabalho são os dois termos antitéticos de uma mesma realidade, a acumulação capitalista), e porque se originam do próprio movimento de oposição. Dessa maneira, os antagonismos sociais extraem sua superação da própria luta de classes. Marx, portanto, não se preocupa, diretamente, com o ser do espírito ou das coisas.
Em Marx, o conceito de dialética surge como um processo através do qual o ser humano transforma a realidade natural imediatamente dada, e produz, sobre essa base, uma realidade não natural, humanizada. Essa realidade criada pelos seres humanos consiste, portanto, numa superação dialética do dado natural. Nem os objetos naturais nem os homens deixam de ser aquilo que são em sua origem, ou seja, não deixam de ser natureza, apenas adquirem novas formas, que o homem introduz por meio do trabalho.
Dessa maneira, não há contradição nas mudanças de forma ocorridas na natureza. Não há contradição alguma entre a forma líquida e a forma gasosa da água, por exemplo, porque o conteúdo continua o mesmo, porém há contradição quando a essas formas naturais se agrega uma forma social (não natural, portanto), como a forma mercadoria. Sob a forma mercadoria, a água não existe como água em sua determinação natural, mas como água em sua determinação social, isto é, como mercadoria. E, como mercadoria, não importando sua forma natural, ela serve para enriquecer o capitalista, (para “valorizar o valor”, como diz Marx, n’O Capital) e não para cumprir com suas funções naturais.
Podemos observar um par de sapatos ou qualquer outra mercadoria tanto na sua qualidade estática de produto acabado, na sua quieta condição de ser mercadoria nas prateleiras de um supermercado, como também podemos observar esses mesmos objetos também indagando pela inquietude do trabalhador e do trabalho que está contida neles e que dá conta da sua gênese, do seu movimento, do seu vir a ser contraditório. (BENOIT, 1996, p. 15).
As coisas se transformam e se modificam segundo leis naturais e cada transformação é uma afirmação das características que já estão presentes na natureza das coisas. Por exemplo: transformar couro em sapato é uma operação natural do trabalho, mas, transformar o sapato em mercadoria é uma operação artificial, social, que efetivamente nega ao sapato sua natureza de servir como certo “valor de uso” útil aos homens. Dessa maneira, aqui, sim, o trabalho entra em contradição com a natureza, porque ele não possui mais uma finalidade humana e natural. Os seres humanos não cessam de agir no mundo e, simultaneamente, de produzir-se a si próprios.
Nesse sentido, queremos debater a instigante ideia desenvolvida por importantes estudiosos, a de que “o trabalho nega a natureza” ou, mais especificamente, queremos problematizar o “conceito de dialética da natureza de Marx”:
A dialética do trabalho identifica-se com a dialética da natureza. Esse processo dialético desencadeado pela atividade mediadora do homem jamais se interrompe ao longo de toda a história humana. Ele só poderia ser interrompido se o homem deixasse de existir. Enquanto continuar existindo, o homem deverá necessariamente prosseguir realizando a “necessidade natural” do trabalho e, por conseqüência, engendrará o processo que estamos chamando de dialética da natureza. Se a dialética é um processo que ocorre ao longo de toda a história humana, o modo como esse processo ocorre depende do modo como os homens se relacionam entre si. Só é possível compreender concretamente o modo como os homens se relacionam com a natureza quando se compreende o modo como os homens produzem/reproduzem a sua vida material. O trabalho realiza a mediação primária entre o homem e a natureza, mas essa atividade só pode ser realizada no âmbito das mediações secundárias historicamente cambiantes, colocadas pela forma de organização social da vida humana (TSE-TUNG, 2008, p. 3).
Marx dá vários nomes ao trabalho: trabalho produtivo, trabalho determinado, trabalho útil, trabalho particular, trabalho natural. Do nosso ponto de vista, porém, o trabalho não “nega” a natureza. Marx opera com duas noções fundamentais de trabalho em O Capital: “trabalho concreto” e “trabalho abstrato”. O trabalho concreto, a rigor, não “nega” a natureza, apenas modifica suas formas segundo uma necessidade humana. Por exemplo: quando transformamos o boi em couro e este em sapato, não estamos negando a natureza do boi e do couro. Nós estamos, na verdade, afirmando essa natureza do boi e do couro, a de servirem como coisa útil aos homens, a de servirem como calçado para nossa proteção e conforto. Essa relação natural, mediada pelo trabalho concreto do sapateiro, entre homem e natureza, não é dialética porque não existe contradição nela. A modificação do boi em sapato não se opõe à natureza do boi, pois não há aí um elemento negativo que retira do boi sua natureza de servir como coisa útil ao homem. Ao contrário: essa modificação apenas afirma o boi como coisa natural útil ao homem.
Extrair do boi suas qualidades úteis para satisfazer uma necessidade humana não constitui uma contradição no sentido filosófico da palavra, como ocorre, por exemplo, quando o camponês emprega o boi como animal de tração. Esse emprego não nega ao boi sua condição de animal de tração. Muito pelo contrário. O trabalho do camponês estaria apenas empregando o animal dentro das possibilidades comportadas pela sua própria natureza enquanto boi. A contradição estaria, sim, caso usássemos o próprio homem, em lugar do boi, como animal de tração, como ocorria no mundo antigo. Aqui, o escravo era empregado como animal de tração e como propriedade de um senhor.
Como diziam os antigos, o escravo não se diferenciava em natureza com os animais de tração, podendo, segundo eles, ser, por isso, empregados como instrumentos de trabalho. Nesse caso, sim, haveria uma contradição, pois o trabalhador, ao invés de sujeito do trabalho, teria sido convertido em objeto e instrumento vivo dele. No mundo antigo há uma contradição viva no seio da própria sociedade, e não no interior da natureza. No interior da natureza, antes da intervenção das relações de trabalho fundadas na divisão em classes, não há contradição. A contradição se instaura quando a ordem natural se modifica segundo uma outra ordem, a ordem fundada na vontade humana.
O que significa o conceito de troca material em Marx? Para responder a essa primeira questão, argumenta-se que este conceito busca designar o sistema de trocas que ocorre no interior de uma totalidade: a natureza. Para Marx, a natureza é o conjunto da realidade, é o todo que inclui tanto o homem como a realidade extra-humana, tanto a natureza não apropriada pelo homem como aquela que ele transformou. Enfim, a natureza é a totalidade do mundo sensível, do qual o homem faz parte.
Em que consiste a troca do homem com a natureza? Para responder a essa segunda questão, argumenta-se que, em primeiro lugar, o que o homem troca com a natureza são “mediações”. O homem só pode conservar a sua existência por meio da natureza. É através da natureza que o homem obtém tanto os meios de subsistência imediatos como os meios de realização de sua atividade produtiva. No entanto, é apenas através do homem que a natureza chega à consciência de si mesma e alcança um nível superior de seu desenvolvimento.
Em segundo lugar, essa troca se dá num nível imediatamente fisiológico, como uma simples troca de elementos entre as sociedades humanas e o meio natural. O homem se apropria dos elementos da natureza e após o seu consumo os devolve à natureza. O caráter imediatamente fisiológico desse conceito de troca material torna-se evidente na crítica de Marx acerca da separação entre a cidade e o campo, típica das sociedades dominadas pelo capital, onde ele vê sensivelmente alterado a troca material entre o homem e a terra, isto é, a volta à terra dos elementos do solo consumidos pelo ser humano sob a forma de alimentos e de vestuário, violando assim a eterna condição natural da fertilidade permanente do solo.
Frente a tais afirmações, queremos colocar uma indagação: É possível, entretanto, existir troca entre homem e natureza? Para Marx, a superação da realidade criada pelo homem consiste numa superação do dado natural, numa Aufhebung da natureza. Inicialmente, porém, devemos esclarecer que o conceito de troca material, ainda que seja possível interpretá-lo, é, todavia, um conceito que Marx jamais formulou explicitamente. Além disso, em alemão há duas palavras para se referir à troca: Austausch ou apenas Tausch (que Marx geralmente emprega como troca no sentido econômico) e Wechsel, que, na cultura alemã, possui um sentido não econômico e mais geral. Marx esclarece que ele está usando o termo Wechsel entre homem e natureza neste sentido genérico. É neste sentido que ele emprega o termo Stoffwechsel (Stoff = matéria) que pode ser melhor traduzido como metabolismo. Em O Capital, na passagem onde Marx cita Pietro Verri7, está assim: “um den Stoffwechsel zwischen Mensch und Natur” – “metabolismo entre homem e natureza”.
Observe-se, portanto, que essa referência ao italiano Verri encontra-se exatamente na parte em que Marx estuda o caráter natural do trabalho, o chamado trabalho concreto. Este aspecto do trabalho é ainda um aspecto abstrato, pois não possui realidade histórica, e serve apenas para demonstrar o conflito que existe entre o caráter do trabalho na sociedade capitalista, voltado para a valorização do valor, e o caráter do trabalho natural, como trabalho criador de valores de uso destinados a satisfazer uma necessidade humana. Marx chama a este trabalho concreto de “eterna necessidade natural do homem e de mediação do metabolismo (Stoffwechsel = e não da troca) entre ele e a natureza”. Esta passagem se encontra no parágrafo anterior à citação de Pietro Verri. Inclusive, Marx diz, no trecho da citação, que, ao proceder como a natureza, o homem apenas “muda” (sem negar no sentido dialético) as “formas” da matéria. Claro está que, na natureza, há movimento e transformação e claro está que o trabalho modifica a natureza segundo suas necessidades, mas essa transformação e esse movimento não são dialéticos porque não são contraditórios, porque há apenas mudanças de forma e não de conteúdo. O conteúdo é sempre o mesmo: a matéria natural. Apenas a forma é que se modifica, de boi em couro e de couro em sapato, porém, ao transformar o sapato em mercadoria, então há, sim, uma negação dialética, pois aí ocorre uma mudança de conteúdo do trabalho e do sapato.
Agora o sapato serve apenas como mercadoria e como meio de valorização do valor. A mercadoria nega ao sapato sua condição natural de sapato e o converte em “portador do valor de troca”, em meio de se obter dinheiro e não conforto e proteção para os pés. A contradição não está entre o sapato e a natureza bruta, mas, sim, entre o sapato e a forma mercadoria. Neste esquema, o sapato funciona como a forma natural do trabalho e a mercadoria funciona como a forma social dele. A contradição que existe é entre a forma natural e a forma social do trabalho, entre o sapato como valor de uso e o sapato como mercadoria, como valor de troca.
Para existir contradição é necessário mais que uma oposição entre dois termos. É necessário que esta oposição se realize no interior de uma unidade cindida. Quando o sapateiro transforma a natureza (o boi, em nosso caso) em sapato, em coisa útil destinada à satisfação de uma necessidade humana, mesmo que esta necessidade não seja a do próprio sapateiro, há, sim, uma unidade entre homem e natureza, mas não há oposição entre ambos. Esta relação permanece restrita ao âmbito da unidade porque permanece fixada no interior da ordem natural. A ordem natural das coisas comporta, sem refutar, o trabalho humano voltado às satisfações. A contradição se instaura quando esta unidade originária entre homem e Natureza se cinde em uma oposição. Desta oposição surge a diferença e, daqui, a contradição. Quando o produto do trabalho não se destina mais a satisfazer as necessidades do produtor direto ou da comunidade natural à qual ele pertence e passa a satisfazer as necessidades de uma segunda figura, estranha à ordem natural das coisas, como são as figuras do não trabalhador e das classes dominantes, então se instaura a contradição no seio da comunidade, antes inexistente.
A natureza não comporta, em seu seio, a figura do não trabalhador, daquele que se apropria de seus frutos sem a mediação do trabalho. A figura do não trabalhador é uma figura que está em contradição com a ordem natural, pois como admitir, sem cairmos em contradições, que o trabalho é o fundamento natural da riqueza (“o pai da riqueza”, como dizia Marx – já que a Natureza seria “a mãe”) se há homens que enriquecem sem trabalhar? Essa contradição não pertence à ordem da natureza, mas ao contrário, ela é uma violação da ordem natural. Esta comporta o enriquecimento do trabalhador e da comunidade a partir da transformação dos recursos naturais pelo trabalho, mas não o empobrecimento de ambos em detrimento do enriquecimento do não trabalhador. Na ordem natural não é possível enriquecimento que não seja mediado pelo trabalho. Na ordem humana, porém, tudo ocorre ao contrário. A contradição existiria, assim, no interior desta segunda ordem e na relação entre ambas.
Existiria contradição no interior da ordem humana porque agora aquele que trabalha diretamente se empobrece com o próprio trabalho. Existiria contradição entre ordem natural e ordem social porque agora esta segunda ordem vê na Natureza não mais uma fonte de recursos destinada à satisfação humana, mas, sim, uma fonte destinada a ser transformada em riqueza. Caso o produto do trabalho for uma mercadoria, então toda a finalidade da sociedade será a de transformá-lo em dinheiro: a forma irracional da riqueza. A sociedade trabalhará, assim, para satisfazer esta necessidade artificial e não natural.
O dinheiro se contrapõe diretamente a todas as formas naturais da riqueza porque, com ele, nenhuma necessidade pode ser satisfeita diretamente. Voltemos ao nosso exemplo do sapato. Este representa a forma natural e útil da riqueza. O dinheiro representa a forma social e não útil da riqueza. Não podemos satisfazer nossa necessidade de vestir os pés com dinheiro, como sabemos. Somente o sapato pode nos satisfazer, contudo, na sociedade capitalista, o trabalho não é organizado segundo nossas necessidades naturais, como a de proteger os pés, mas, sim, segundo nossas necessidades sociais, ou seja, segundo a necessidade de tudo ser transformado em dinheiro. Aquilo que não puder ser transformado em dinheiro não será produzido e tudo o que for produzido terá por meta ser transformado em dinheiro. Essa é a base irracional e contraditória da ordem social. Numa ordem baseada na natureza, tudo ocorreria de modo contrário. Toda a produção seria destinada ao consumo e à satisfação das necessidades. Por isso, seria incorreto conceber que entre homem e natureza haveria troca, mesmo que seja uma troca natural.
Entre homem e natureza, visto evidentemente de um ponto de vista abstrato, existe um intercâmbio que Marx chama de metabolismo (Stoffwechsel). Troca (Austausch), no sentido restrito da palavra, há apenas no interior da sociedade. Troca é sempre intercâmbio de mercadorias, seja por dinheiro ou diretamente por outra mercadoria. Stoffwechsel, assim, é um termo que desconhece a noção de contradição, enquanto Austausch é um termo carregado de sentido contraditório.
Assim, para Marx, não existe uma relação de “troca” entre homem e natureza. A troca é um fenômeno econômico e por isso um artifício humano. Pensamos que, na base desta ideia de que há “troca” na natureza (mesmo que não seja uma troca econômica, evidentemente), se esconde uma antiga ideia dos Economistas Clássicos, dos chamados fisiocratas especialmente, de que as leis econômicas do capitalismo seriam as mesmas encontradas na natureza. Os fisiocratas foram uma das primeiras escolas de economia surgidas a partir da crise das concepções mercantilistas. A própria etimologia da palavra pode nos indicar algo interessante: Fisio = natureza e crata = forma de governo. Desse modo, para os fisiocratas, as leis que governavam a sociedade e as trocas capitalistas eram as mesmas que governavam a physis (natureza). Apesar de Marx usar o termo troca algumas vezes para referir-se à relação entre homem e natureza, o termo mais apropriado seria metabolismo entre homem e natureza. Trocas só existem entre homens e não entre homem e natureza.
A antítese que nega o boi como coisa natural útil ao homem está no fato de que, na sociedade capitalista, o sapato se converte em mercadoria e o trabalho concreto do sapateiro adquire uma segunda propriedade: a de ser trabalho abstrato. Como mercadoria, o sapato e o trabalho do sapateiro estarão em contradição com a natureza útil do boi, do couro e do sapato, porque agora o sapato não tem mais como meta servir a uma necessidade natural do homem (a de proteger seus pés da natureza), mas, sim, a de enriquecer o capitalista. Aqui, efetivamente, há uma antítese entre homem e natureza, porque agora o boi não é mais convertido em sapato para satisfazer uma necessidade natural do homem, mas, sim, para satisfazer uma necessidade social e artificial: a de valorizar o valor e de enriquecer o capitalista.
Considerações finais
Em razão do exposto acima, não pensamos que haja em O Capital uma dialética do trabalho, nem dialética da natureza. O esquema triádico de Hegel de tese-antítese-síntese não se aplica inteiramente a Marx. Em Hegel temos um sistema fechado onde as contradições geralmente possuem um termo final, mas em Marx as contradições nunca se resolvem de modo verdadeiro. Elas apenas se ampliam sem se resolverem. É a conversão do sapato em mercadoria que cria a contradição e esta nunca se resolve inteiramente na sociedade capitalista porque o sapato (como todos os demais valores de uso) sempre continuará a existir como mercadoria.
A última palavra ainda não foi dada sobre esta polêmica, e provavelmente não será jamais possível isto ocorrer. Infelizmente, Marx anunciou que iria escrever um texto sobre a dialética, mas nunca pode realizá-lo, todavia escreveu um texto chamado Contribuição à Crítica da Economia Política8, texto no qual expõe algumas ideias acerca da dialética. Neste texto, ele pensa a dialética como procedimento de análise da realidade que parte do concreto-empírico e, através da abstração, chega ao concreto-pensado, reconstituindo a realidade no pensamento. O processo de abstração assume importância fundamental neste contexto e as principais categorias da dialética são: abstrato, concreto, totalidade, determinação fundamental, entre outras.
Como argumentamos ao longo deste artigo, Engels apresentou uma outra visão de dialética, retomando alguns aspectos da dialética hegeliana, inclusive a tese de que existem “leis na natureza e na sociedade”, que também seriam as “leis do pensamento”. Engels retomou de Hegel a perspectiva de que a dialética é a história do espírito, das contradições do pensamento que ela repassa ao ir da afirmação à negação. Em alemão, aufheben significa “supressão” e, ao mesmo tempo, significa “manutenção” da coisa suprimida. De forma que aquilo que é negado permanece no interior da totalidade. Esta contradição não é apenas do pensamento, mas da realidade, já que ser e pensamento são idênticos. Observemos as palavras de Engels, no Prefácio à segunda edição do Anti- Düring:
Tratava-se de que eu, ao fazer a recapitulação das matemáticas e ciências naturais, procurava convencer-me sobre uma série de pontos concretos – sobre o conjunto eu não tinha dúvidas, - de que, na natureza, se imporem, na confusão das mutações sem número, as mesmas leis dialéticas do movimento que, também na história, presidem à trama aparentemetne fortuita dos acontecimentos; as mesmas leis que, formando igualmente o fio que acompanha, de começo ao fim, a história da evolução realizada pelo pensamento humano, lcançam pouco a pouco a consciência do homem pensante; leis essas primeiramente desenvolvidas por Hegel, mas sob uma forma que resultou mística, a qual o nosso esforço procurou tornar acessível ao espírito, em toda a sua simplicidade e valor universal. (ENGELS, 1979, p. 11).
Mais adiante, Engels acrescentou que Marx e ele estiveram certamente sozinhos na tarefa de salvar da filosofia idealista alemã a dialética consciente para integrá-la na concepção materialista da natureza e da história.
Disso tudo resulta para nós que, ainda que Marx tenha tomada conhecimento desta ideias de Engels, como afirmamos inicialmente, preferiu entretanto restringir suas investigações e conclusões tão somente à ontologia do ser social, ao passo que, em Engels, há a extensão para uma ontologia geral e universal. Engels, assim como toda a tradição posterior que se apoiou na falsa ideia de que haveria contradição e movimento (no sentido dialético) no interior da ordem natural, parte de uma ideia filosófica de natureza muito semelhante às concepções de Hegel e de Spinosa. Estes, procurando explicar os movimentos da sociedade e da natureza a partir de uma visão unitária e filosófica, entendiam que as leis da natureza não se diferenciavam em seus fundamentos da ordem divina e racional.
Hegel, como cristão e racionalista, acreditava que o Absoluto se manifestava tanto na terra quanto no céu, ou seja, acreditava que as leis da natureza e da sociedade eram apenas diferentes maneiras de realização do mesmo Absoluto. Para Hegel, só uma lei governava o universo (humano e natural): as leis do Absoluto, que muitas vezes se confundia com o próprio Deus cristão. Spinosa, aparentemente menos idealista que Hegel e que mais tarde seria recuperado por Althusser e sua “escola”, também entendia que não haveria duas ordens distintas e opostas se contrapondo no universo. Sua visão panteísta e monista da vida também acreditava que o mundo era uma unidade perfeita e que as leis da natureza não se opunham às leis humanas e sociais. Ou seja, o problema, pois, das relações entre o espírito e a matéria é resolvido por Spinoza, fazendo da matéria e do espírito dois atributos da única substância divina. O monismo de ambos, no fundo, acreditava que a ordem da natureza era tão espiritual quanto a ordem humana.
Com a falsa ideia de que Marx apenas haveria invertido Hegel de cabeça para cima, foi relativamente fácil para Engels e sua “escola”, então, argumentar que haveria uma dialética da matéria e que esta dialética seria a mesma da sociedade e do capitalismo. Na base da concepção de que a história ocidental seria explicada pelo desenvolvimento espontâneo e “dialético” das forças produtivas materiais – e não pela luta de classes – está a concepção de Engels sobre a dialética da matéria. Foi a partir desta concepção que Althusser chegou à conclusão de que a história ocidental teria sido sempre uma “história sem sujeito”, já que tudo é “matéria” e tudo se explica a partir de suas leis supostamente objetivas.
Ao que parece, esta concepção engelsiana de dialética também foi desenvolvida por Lênin, Stálin9, Mao Tse-Tung10, entre outros, e se tornou hegemônica graças ao domínio da social-democracia e do stalinismo, mas foi profundamente criticada por pensadores inspirados no trotskismo, especialmente.
Como é sabido, Lenin desenvolveu suas ideias filosóficas sobre a dialética, no seu livro Materialismo e Empiriocriticismo11, respaldado em Engels e Plekhánov, de modo particular nos dois livros já citados de Engels (A Dilalética da Natureza e Anti-Düring):
Com efeito, para o Anti-Düring, Engels valeu-se de pesquisas que já realizara com vistas a A Dialética da Natureza. Esta problemática obra, que permaneceu inconclusa, cujos materiais só foram inteiramente publicados em 1925 e cujo paralelo, na história do marxismo, pode ser encontrado no trabalho de Lenin, Materialismo e Empiriocriticismo (1909) [...] concebe o marxismo como já ocorrera no Anti-Düring, como uma concepção de mundo e pretende lançar as bases de uma ontologia materialista. [..] Do projeto, tal como ele nos chegou, resulta a conclusão de que as formas gerais do movimento do ser são dialéticas – mas, resulta, ainda, uma tácita identificação entre a dialética operante na natureza e a dialética do ser social. Daí a problemáticidade do penbsamento engelsiano; porque, se não parece discutível a dialética da natureza, é pertinente o debate acerca da homologia que, nos seus esboços, Engels dá a impressão de afirmar, entre esta dialética e o movimento do ser social. (NETTO,1981, p. 44).
Esta profícua polêmica continuou posteriomente com os escritos dos já citados Jean-Paul Sartre12 e Louis Althusser13, bem como com os de Lucien Goldmann14, entre outros, gerando muitas questões interessantes. Finalmente, ainda que não seja possível tratar aqui, não podemos deixar de, ao menos, mencionar uma terceira tendência que parece se configurar, no interior desta polêmica sobre a dialética, e que se encontra em Karl Korsch15, Anton Pannekoek16, Ernest Bloch17, entre outros, que procuram refutar a existência do chamado materialismo dialético ao colocar a dialética como basicamente um “instrumento heurístico” (Korsch) e que não existem “leis” e que “matéria” não constitui “objetos físicos”, e sim relações sociais concretas (Pannekoek).
O nosso dizer sobre a dialética é sempre menor do que o ser da dialética. Em razão disso, considerando que estamos frente a um tema complexo, visto que os autores definem e inerpretam a dialética de diferentes maneiras, queremos concluir perguntando pelo ser da dialética ou mais precisamente: – Até que ponto se pode dizer o ser da dialética?
Sem dúvida, não se poderia definir o ser da mesma forma como se define este ou aquele ente. O ser não é integralmente redutível ao discurso; muito mais, o discurso pressupõe o ser: há discurso porque há ser. Porque o ser é, pode o homem falar e definir; o discurso acolhe o ser. Disso se pode inferir que o ser da dialética em algum sentido transcende a dialética. O ser seria algo como o princípio de possibilidade da dialética. (BORNHEIN, 1977, p. 153).
Referências
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BENOIT, A. Hector R. Sobre a crítica (dialética) de O Capital. Revista Crítica Marxista, n. 03, 1996.
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BORNHEIN, Gerd. A. Dialética: teoria, práxis; ensaio para uma crítica da fundamentação ontológica da dialética. Porto Alegre: Globo; São Paulo: EDUSP, 1977
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