segunda-feira, 11 de outubro de 2010

O Estado Operário Revolucionário - Nahuel Moreno

Extraído do livro "Conversando com Moreno", cap. 5, entrevista com Nahuel Moreno, 1986)


(...) Suponhamos, concretamente, que nosso partido tome o poder: como seria o Estado? Quais seriam suas principais diferenças com os Estados dirigidos pela burocracia?

Moreno: A primeira de todas é que nos opomos a dizer que nosso partido toma o poder; é uma afirmação perigosa. Se um exército guerrilheiro ou um partido operário oportunista encabeça uma revolução e toma o poder, podemos apoiar esse processo como progressivo, mas, programaticamente, somos contra a que esse exército ou partido operário tome o poder, como organização em si.

Nosso programa reivindica a tomada do poder pela classe operária através de suas organizações, das quais devem participar todos os partidos de classe, e nessas organizações nós tentaremos ter a maioria, para dirigí-Ias. Esta é a nossa primeira grande diferença com a burocracia.

A segunda, que decorre da primeira, é que não queremos construir um Estado totalitário, absolutamente controlado por nosso partido, e sim exatamente ao contrário. Queremos substituir o parlamento burguês por organismos muito mais democráticos, como podem ser os sindicatos, as comissões de fábricas, soviets, enfim, as organizações nas quais a classe operária acredita. Além disso, alentaremos a criação de organismos tais como as cooperativas, as organizações de bairro etc., onde reine a democracia permanentemente.

Alguns defensores dos Estados operários existentes[1] dizem que neles há democracia "de base" ou "de massas" - assim a chamam -, porque existem organizações de bairro, onde se discutem os problemas locais, com a coleta do lixo ou o asfalto das ruas. Não nos enganemos: não existe democracia se não reina o direito de formar tendências, facções e partidos em todas as organizações de massas e instituições do Estado central, para discutir e resolver sobre todos os problemas, desde o plano econômico nacional até a construção de uma pequena estrada; desde a Constituição Nacional até uma lei de menor importância.

Existiria um parlamento?

M.: Sim, mas um parlamento operário.

Qual seria a diferença com um parlamento burguês?

M.: Primeiro, que concentraria os três poderes do Estado, não só o legislativo. Na democracia burguesa os três poderes estão separados, porque isso serve aos interesses da classe dominante. Por exemplo, se o parlamento aprova uma lei favorável ao proletariado, aí estão o Poder Executivo e a Justiça para demorar sua aplicação, freá-la de mil maneiras diferentes, impedir que se aplique. O parlamento é suscetível às pressões das massas, os outros dois poderes são criados para contrabalançar essas pressões. Nós queremos uma instituição ágil, que permita aplicar de forma imediata as resoluções dos trabalhadores. Por isso, queremos que o Executivo e a Justiça sejam braços do poder legislativo operário.

Significa que à frente da República Socialista Argentina, ou como se chame, haveria um organismo parecido a um congresso de sindicatos ou conselhos operários?

M.: Exatamente. O proletariado de cada país decidirá que tipo de organismo quer. Isso depende da realidade local. Por exemplo, quando uma boa parte do trotskismo mundial levantou a palavra de ordem de "organismos populares ou "frentes únicas de partidos" na Bolívia, nós nos opusemos. As únicas organizações de massas que podem tomar o poder na Bolívia, por enquanto, são os sindicatos e a central operária, por isso propomos "todo o poder à COB[2]". Somos contra as organizações fantasmas, inexistentes na realidade, existentes somente na imaginação de dirigentes como Guillermo Lora[3]. Até agora nenhum organismo fantasma tomou o poder. Não acreditamos em fantasmas, muito menos na política. O movimento operário deve se dar as formas organizativas que quiser, e que correspondam às suas tradições e experiência.

Como as comissões de operários e soldados, e as organizações de moradores da revolução portuguesa de 1974[4].

M.: Claro, ou como os soviets na Alemanha de 1918. Mas depois da revolução de 1918[5] não voltaram a surgir esses sovietes na Alemanha, e sim apareceram comissões de fábricas. Trotsky[6] disse, nesse momento, que o PC devia esquecer os sovietes e tentar se fortalecer nas comissões, para tomar o poder através delas. Sempre privilegiamos a forma mais representativa, que a própria base do movimento operário se tenha dado.

Retomando as diferenças com a democracia burguesa, o parlamento operário elegeria uma comissão ou um presidente, que seria responsável perante os deputados e destituível a qualquer momento. Por outro lado, os deputados seriam responsáveis perante seus eleitores, os quais também poderiam destituí-los a qualquer momento.

A segunda grande diferença é, então, que os funcionários eleitos não cumpririam período fixos e, sim que poderiam ser destituídos no momento em que os trabalhadores considerassem necessário.

Todo mundo poderia votar? Os padres, por exemplo? A Revolução Russa lhes tirou o voto.

M.: Depende da situação. Nisto não há leis a priori. Pode haver padres muito ligados à classe operária, partidária do poder operário: por que deveríamos tirar-lhe o voto? Os padres do povo tiveram um papel muito importante na Revolução Francesa.

Os padres?

M.: Claro. Todos os textos de expropriação da nobreza foram redigidos com base nas informações das paróquias. Cada paróquia enviava seu programa à Convenção, indicando o que se devia fazer, quem devia ser expropriado. São documentos extraordinários, como expressão da vontade popular. E estavam muito bem redigidos pelos párocos das aldeias, esses padres mortos de fome, que odiavam seus bispos e cardeais.

Nisto não há receita. A Revolução Russa estabeleceu, a princípio, que cada voto operário valia por cinco camponeses, para contrabalançar o fato de que os camponeses eram a ampla maioria da população. A democracia operária decide e nós acatamos ainda quando o que resolva seja contrário às nossas posições ou programa.

Um sistema assim não seria caótico?

M.: Por que? É caótico o parlamento burguês?

Mas a burguesia impõe a ordem através do exército.

M.: Vou lhe responder com um exemplo. Quando eu era jovem vivi um processo de criação dos clubes de futebol de bairro, que foi mais ou menos desde 1910 até fins da década de cinqüenta. Nesses anos, se criaram milhares de clubes de futebol na Argentina, foi um fenômeno massivo de organização social. Também nesse período se criaram os sindicatos e, antes do auge do cinema, centenas e centenas de teatros independentes nos bairros.

Esses clubes realizavam uma atividade muito efetiva, organizavam equipes e campeonatos de futebol, bailes nos bairros, de tudo. E seu funcionamento era muito democrático. As diretorias surgiam de eleições, havia o direito de formar chapas, inclusive os partidos políticos podiam intervir e de fato o faziam quando lhe interessava ganhar a direção de algum clube. De alguns deles nasceram os grandes clubes de hoje. E essa grande democracia não lhes impediu de levar adiante suas atividades nem de converter-se, alguns deles, em verdadeiras potências desportivas.

Voltando ao Estado operário, para mim é questão de ter confiança na classe, nos trabalhadores. Se foram capazes de levar o esporte a milhares de jovens e de organizar democraticamente a vida social e esportiva de seus bairros, por que não seriam capazes de levar essa mesma democracia ao Estado, quando tomarem em suas mãos a planificação da vida política e social da nação?

Na revolução portuguesa de 1974 se formaram milhares de comitês de operários, de soldados, de moradores. Esse processo foi bastante caótico.

M.: Num sentido, sim, porque destroçou todas as formas de democracia formal e de autoritarismo do governo. Mas foi um exemplo de democracia o fato de que os comitês de moradores distribuíssem casas a famílias sem teto. O problema é que o processo não se desenvolveu, e é justamente aí onde nosso partido tem uma grande tarefa a cumprir. O partido marxista revolucionário procura ganhar a maioria nesse comitê para desenvolver a mobilização, para que o processo não aborte, como ocorreu em Portugal.

Diz-se que o regime da democracia parlamentar, no qual por exemplo se elegem deputados cada dois anos e um presidente a cada seis, é superior a qualquer ditadura. Se se confia que o povo saberá exercer a democracia a cada seis anos, por que não poderia fazer um exercício diário dessa democracia, com eleição de delegados e formação de fortes organismos em qualquer nível? Para mim não seria um caos e sim uma ordem no marco de uma democracia ativa, quotidiana, através de sindicatos, cooperativas, organizações de fábricas etc.. Neste processo é necessário criar, inculcar nos trabalhadores o reflexo da democracia operária.

Como sintetizar, então, as principais diferenças entre a democracia burguesa e a democracia operária?

M.: Bem, a Constituição argentina diz que o povo somente governa através de seus representantes eleitos. E esses representantes, por mais que traiam o país ou vão contra o mandato de quem os elegeu, são irremovíveis. Em alguns países exercem sua função durante dois ou quatro anos, na Argentina os senadores têm nove anos de mandato. Os juízes podem ser vitalícios e nomeados pelo executivo e pelo poder legislativo, não são eleitos pelo povo. A tudo isto se une a divisão dos três poderes, como assinalei antes.

A democracia operária é o oposto. Não somente une os três poderes no ramo legislativo, como também o povo exerce o poder em forma direta. Por exemplo, os trabalhadores de um bairro fazem uma assembléia e o que eles resolvem se faz. Todos os funcionários são eleitos, e quem não cumpre seu mandato pode ser removido a qualquer momento. Por isso não é uma democracia indireta, e sim direta.

O que você acha das teses dos discípulos de Mandel, segundo a qual em Cuba existe uma grande democracia "de base", ou seja, organismos onde se discutem livremente os problemas locais, e uma burocracia ao nível do poder central?

M.: O autor dessa tese é Jean-Pierre Beauvais, um discípulo francês de Mandel. Ele diz que Cuba é um fenômeno contraditório. Eu discordo: creio que a democracia operária tem, efetivamente, suas contradições, mas não nesse plano. Pode ocorrer, por exemplo, que os operários de uma fábrica peçam aumentos salariais extraordinários, que entrem em contradição com o plano econômico nacional aprovado democraticamente pelo organismo estatal correspondente. Ou então, que, determinado partido critique implacavelmente o plano por considerá-lo equivocado. Esses seriam contradições dentro da estrutura global da democracia operária.

O que eu não aceito é essa maneira de definir um regime, segundo a qual uma parte seria democrática e outra totalitária, ou uma parte revolucionária e a outra contra-revolucionária. Esse método é inaceitável para um marxista. Todo fenômeno é total e tem uma definição essencial. Primeiro tem que se definir a essência e depois ver quais são as contradições.

O que é o essencial em Cuba? Vejamos um exemplo. Em 1968, a URSS invadiu a Tchecoslováquia. Fidel Castro apoiou a invasão. Os trabalhadores cubanos, que se opunham a essa invasão, tinham direito a se apresentar na televisão nacional para condená-la? Podiam exigir a realização de um "plebiscito" nacional para determinar a política cubana nessa ocasião? Tinham liberdade para apresentar a moção "O povo e o governo de Cuba manifestam sua solidariedade incondicional ao movimento operário tchecoslovaco e repudiam a criminosa invasão soviética", e os trabalhadores cubanos podiam se expressar através do voto? Nada disso: a política de Cuba foi a resolvida por Castro em seu círculo de dez ou quinze amigos do Burô Político, de apoio à burocracia da URSS. Por isso digo que não há contradição no terreno que Beauvais coloca: Cuba é um Estado operário burocrático, totalitário.

Suponhamos que seu partido tenha maioria no organismo estatal, e que numa votação democrática perca essa maioria e tenha de entregar o governo. O faria?

M.: Eu acho que sim. Novamente me remeto a um caso real. Lenin tinha prometido que o Partido Bolchevique no poder respeitaria a autodeterminação nacional dos povos que faziam parte do império czarista. Um dos países submetidos a esse império era a Finlândia, que, por sua vez, era um centro muito importante do proletariado e do Partido Bolchevique. Depois da Revolução de Outubro, se reuniu na Finlândia a assembléia constituinte, e resolveu por maioria, contra a posição bolchevique, que o país seria independente e não faria parte da União Soviética. Lenin respeitou essa decisão democrática, que não compartilhava.

Eu não vejo nenhum problema em entregar o governo a um partido que respeite a Constituição. Diferente seria o caso de um partido que diz, por exemplo, que vai fuzilar todos os trotskistas, se chegar ao poder. Mas se se perde um organismo, tem-se que entregá-lo. O importante é criar na classe operária o reflexo de que tudo se discute e se aprova por votação.

Essa democracia seria extensiva a partidos não operários?

M.: Sim, eu não vejo motivos para não outorgar-lhes a legalidade. Também não há motivos para dá-Ia de antemão: não sabemos se serão fascistas ou se comprometerão com ações contra-revolucionárias. Se não for assim, repito, não há motivos para lhes negar a legalidade. Nós respeitaremos toda expressão democrática dos trabalhadores, mesmo que apoie uma corrente burguesa, reacionária.

Concretamente, na Argentina, você daria legalidade ao partido de Alsogaray[7]?

M.: Pode ser, se tiver alguma representação popular. Diferente seria se gente como Alsogaray ou Martínez de Hoy pedisse a legalidade e somente tivesse o respaldo de 0.01 por cento da população: aí eu acho que não obteriam a legalidade. Mas se fossem seguidos por um setor da população, ainda que minoritário, eu votaria por lhes dar a legalidade. A democracia operária tem que ser mais ampla que a democracia burguesa.

Mas com isto não está propondo uma democracia ilimitada como a que postula Mandel, contra a qual você polemizou[8]?

M.: O tema dessa polêmica era se esse tipo de democracia é possível como perspectiva imediata. É um problema teórico, uma hipótese. Não discutimos se nosso objetivo programático é outorgar liberdades totais, sobretudo aos trabalhadores. Um operário, pelo simples fato de sê-lo, poderá dizer o que quiser, criticar o regime com toda dureza, e na televisão e nos jornais. Todos os cidadãos terão direito à mais ampla liberdade, sempre que expressem algum setor do povo.

A discussão com Mandel é outra. Nós opinamos que todo país onde os trabalhadores tomem o poder será atacado imediata e implacavelmente pelo imperialismo; que o poder operário, antes de se afirmar, terá que passar por uma tremenda guerra civil, provavelmente combinada com ataques do exterior. A questão é se nessa etapa podem-se outorgar liberdades democráticas irrestritas a todo o mundo. Por exemplo, de acordo com o critério de Mandel, o governo sandinista deve convidar os "contras" a irem a Manágua, com todas as garantias para abrirem sedes e se expressarem através da imprensa. No caso de enfrentamento armado, não se poderia matar um "contra", mas se teria de prendê-lo para submetê-lo a julgamento, assegurando-lhe que conte com advogado de defesa. E em El Salvador teria que se oferecer as mesmas garantias ao major D'Aubuisson e seus capangas fascistas.

Nós sustentamos, contra Mandel, que nesta etapa não existem condições para dar essas liberdades totais, e o principal "culpado" disso é imperialismo. Veja a Nicarágua: o governo sandinista não convocou a assembléia constituinte nem expropriou a burguesia, como devia ter feito na nossa opinião, e sim chamou a eleições ao estilo burguês, e deixou a propriedade burguesa intacta. Mesmo assim, o imperialismo a ataca por todos os meios. Os norte-americanos preferem regimes como o salvadorenho, o de Pinochet ou o guatemalteco, dizem que são regimes mais democráticos que o nicaraguense e lhes outorgam todo tipo de empréstimos, ao mesmo tempo que armam os "contras" nicaragüenses.

Outra divergência com Mandel é que seu documento, escrito numa etapa tão dura da luta de classes mundial, nem sequer menciona a possibilidade de invasões imperialista, guerras civis, guerras entre Estados. Nós, sim, prognosticamos esses fatos e dissemos que era necessário adequar nosso objetivo de outorgar liberdades democráticas à necessidade de derrotar a burguesia e o imperialismo. Parece-nos muito bem que o governo sandínista imponha a lei marcial nas províncias atacadas pela guerrilha pró-imperialista desde suas bases em Honduras, e mande fuzilar sumariamente os "contras". O documento de Mandel pinta uma situação idílica, na qual não existe lei marcial nem nada semelhante.

Esse ataque armado por parte do imperialismo não condena a revolução à burocratização?

M.: O ataque imperialista é um fator a favor da burocratização, sem dúvida, mas não devemos confundir a restrição das liberdades com a burocratização. Vejamos novamente o exemplo da Revolução Russa.

No primeiro ano da revolução, antes da guerra civil, as liberdades democráticas eram muito amplas. Por exemplo, o partido Kadete[9] publicava seu jornal e apresentava suas posições nos sovietes, e olhe que era inimigo mortal do poder operário, suas posições eram parecidas com as dos radicais de direita na Argentina sob o peronismo. Também existiam liberdades artísticas e científicas. Lenin não gostava das correntes literárias e plásticas modernas, mas nunca falou de tirar-lhe a liberdade de expressão e de publicação.

De repente, todas as liberdades políticas, artísticas, científicas, foram reduzidas pela guerra civil e invasões estrangeiras. Em determinado momento a revolução ficou reduzida a uma zona muito pequena ao redor de Moscou, enquanto que o resto da Rússia caía nas mãos dos exércitos contra-revolucionários. Foi então que o governo bolchevique resolveu limitar as liberdades dos partidos da contra-revolução. Mesmo assim, Lenin e Trotsky sempre insistiram no caráter temporário dessas medidas. Foi assim que Martov[10], um menchevique e crítico implacável do governo - o que não lhe impediu de se opor à contra-revolução durante a guerra civil -, teve plenas liberdades para apresentar suas posições nos soviets, uma vez derrotada a contra-revolução. As polêmicas entre Martov e Lenin no ano de 1921 foram tremendas. E isso ocorreu apesar de que o país estava afundado na fome e na catástrofe econômica, provocada pela guerra.

Quer dizer que a russa foi a única revolução que impôs a democracia operária...

M.: Precisemos: foi a única entre as que triunfaram. Na revolução espanhola[11] reinou uma grande democracia, no começo, alentada pelos anarquistas, o POUM[12], os trotskistas, inclusive pela esquerda socialista. Todas as organizações tinham amplas liberdades na República, até que os stalinistas conseguiram esmagar os anarquistas no ano seguinte de iniciada a guerra civil, e as eliminaram. De qualquer modo, a revolução espanhola foi derrotada pelo franqüismo, de modo que é inútil especular se se teria burocratizado ou não, se vencesse. Também as revoluções alemã e húngara de 1918 se basearam em organismos operários democraticamente autodeterminados.

E as revoluções do pós-guerra não se burocratizaram todas?

M.: Já vinham burocratizadas antes da tomada do poder. Algumas foram dirigidas por partidos stalinistas, que transferiram seus métodos organizativos ao seio do Estado. É o caso da China. Outras, como a cubana, tiveram à sua frente exércitos guerrilheiros: nelas o comandante da guerrilha fixava as posições políticas como parte das decisões militares. O resultado foi o mesmo.

A pergunta é, então, se é verdade, como dizem alguns autores, que a revolução está condenada, inexoravelmente, a se burocratizar.

M.: Eu a formularia de outra maneira: se o proletariado é ou não é, historicamente, capaz de tomar o poder para instaurar um regime de democracia operária. A esta altura a resposta tem que ser hipotética, não pode ser absoluta. A única coisa que se pode dizer é que a alternativa para a humanidade é socialismo com democracia operária ou barbárie.

Agora, se me pergunta: qual é, para mim a hipótese mais provável, devo dizer que eu vejo uma classe operária cada vez mais culta, de maior nível para administrar democraticamente o Estado. Não há motivo para crer que será incapaz de superar os níveis de democracia e de atividade revolucionaria alcançados pelo proletariado russo, alemão ou europeu em geral.

A classe operária polonesa, com o Solidariedade, deu um alto exemplo de democracia. Já sabemos que Walesa[13] é uma espécie de cavalo de Tróia metido na organização, mas o essencial é que as questões importantes se resolvem por votação, e Walesa tem-se visto em apertos ao perder umas quantas. Parece que num dado momento quis dissolver a organização e não o fez.

Outro exemplo foi a grande mobilização operária e estudantil na França, em 1968[14]. Todo mundo podia expressar suas posições, desde Sartre[15], que era neomaoísta, até os trotskistas, que cumpriram um papel de primeira ordem nas barricadas.

Em Portugal, nossos companheiros, que eram poucos e muito jovens, conseguiram uma casa grande para instalar sua sede. Iam aos regimentos, incitavam os soldados e saíam com eles a expropriar as casas da aristocracia para distribuí-las entre os habitantes das favelas. Havia uma grande democracia operária e popular.

Também na Nicarágua houve muita democracia nos primeiros tempos da revolução sandinista.

M.: Isso mesmo, se fundavam sindicatos por todos os lados. A Brigada Simón Bolívar[16] tinha liberdade para atuar em qualquer parte do país, fundar sindicatos, ter sedes.

Todos estes exemplo que demos, desde a Revolução Russa até a nicaragüense, são amostras do que vai ocorrer no futuro. Para mim, é só questão de que a classe operária retome suas tradições. Aqui é onde entramos no terreno das hipóteses. Alguns sustentam que Portugal ou a Nicarágua ou a Polônia são os últimos suspiros de um processo iniciado pela classe operária ha muitos anos - o da democracia operária direta - e que caducou. Eu opino o contrário, que o processo tende a se desenvolver cada vez mais. Um só triunfo revolucionário que imponha a democracia operária terá efeito de demonstração tremendo, porque a classe operária verá a possibilidade de ascender a uma qualidade de vida infinitamente superior à que tem atualmente.

O que ocorrerá com a arte sob o regime da democracia operária? Terá maiores liberdades para se expressar?

M.: Tomo novamente o exemplo da Revolução Russa. Não foi por acaso que Isadora Duncan[17], por exemplo, foi morar e trabalhar na União Soviética: a revolução atraiu, na época, os grandes artistas do mundo. Uma das conseqüências mais trágicas do stalinismo foi a perseguição das correntes artísticas, ao exaltar uma arte oficial.

A grande tarefa da classe operária ao se autodeterminar democraticamente é a transformação da sociedade. É uma tarefa político-social, centrada em primeiro lugar no econômico, não no artístico nem no científico. Para nós, não existe uma arte operária nem uma ciência operária, também não existe uma arte ou uma ciência oficial do partido dirigente. Exatamente o contrário, o Estado operário deve outorgar plenas liberdades às escolas científicas e artísticas, e isso inclui proporcionar-lhes os meios materiais para que possam trabalhar e se expressar. Nesse terreno a liberdade deve ser ilimitada.

Isso inclui a liberdade de imprensa?

M.: Sim.

Mas não está condicionada pela força ou pela representatividade dos partidos ou correntes de opinião?

M.: Eu me nego a fixar normas através de minhas respostas. Se dizemos que a classe operária no poder deve outorgar a mais ampla democracia, será ela que decidira de que maneira garantirá a liberdade de imprensa.

Para mim, a liberdade de imprensa e de expressão mais absoluta é uma arma formidável nas mãos da classe operária, tão importante como o desenvolvimento da ciência. Para o governo da classe operária e do partido revolucionário que o dirija, é questão de vida ou morte conhecer as correntes de opinião que existem, assim como contar com informação verídica do que ocorre no país e no mundo.

O que significa informação verídica?

M.: É uma pergunta muito importante, porque um burocrata do governo poderia tentar censurar uma notícia ou opinião de que não goste, com a desculpa de que "não é verídica". Para o movimento operário, para um partido revolucionário, a veracidade surge da contraposição de opiniões, e, inclusive, do direito de mentir. Liberdade de imprensa significa que um jornal pode dizer o que lhe dê na telha. Se não, há censura. Se um jornal mente, outro tem a possibilidade de demonstrá-lo e a opinião pública decidirá qual dos dois diz a verdade. Tem que se permitir o livre jogo da competição jornalística para que os leitores decidam qual é a publicação mais verídica, ágil, amena. Não é o Estado quem deve decidir.

O que ocorreria com a religião?

M.: Eu creio que se deve respeitar a liberdade religiosa, mas, desde já, sem que o Estado dê um só tostão aos padres e à Igreja.

Ou seja, que os próprios paroquianos os sustentem economicamente?

M.: Creio que quase certamente será assim. Isso o decidirá o Estado operário. A única coisa que se pode dizer é que o culto será um assunto privado. Nesse sentido, a Igreja estará na mesma situação que um clube esportivo ou uma associação literária.

Significa que se permitirá a existência de colégios de padres ou de freiras?

M.: Ah, isso não, de nenhuma maneira. A educação é como o correio ou o comércio exterior. São instituições de vital importância, que devem ser nacionalizadas, não podem nem devem estar em mãos privadas.

Mas por que os crentes não poderiam ter sua própria escoIa?

M.: Porque todos os habitantes do país devem receber uma educação conforme os planos e programas que o poder operário resolva democraticamente. A educação é uma tarefa que o Estado não pode dividir nem delegar a ninguém, menos ainda às igrejas, que para nós, que somos ateus, são uma instituição e uma ideologia a serviço dos exploradores.

E se o "parlamento operário" resolvesse democraticamente, por maioria, que os padres podem ter suas próprias escolas?

M.: Acataríamos essa decisão, em dissidência. Isso faz parte da essência da democracia operária: tomar as decisões por maioria e acatar o que se vota.

Há algo que preocupa muitíssima gente: o Estado operário permitiria a livre entrada e saída de pessoas do país?

M.: Faria muito mais que isso. Procuraria firmar acordos com a maior quantidade de países que fosse possível, para que os cidadãos pudessem viajar sem passaporte nem visto, somente apresentando a carteira de identidade. É o oposto do que ocorre hoje em quase todos os países do mundo. Por exemplo, para sair da Argentina é necessário renovar o passaporte a cada dois anos. Um exemplo contrário é o Mercado Comum Europeu[18]: todo cidadão de um dos países comunitários pode viajar a qualquer outro, residir, trabalhar, estudar, só com a apresentação da carteira de identidade. Não há outra região do mundo que ofereça tanta liberdade nesse sentido como o MCE: temos que reconhecer. Algo parecido ocorre entre a Argentina e seus países limítrofes, mas é mais restrito, porque somente existe o direito de viajar, não o de trabalhar e residir permanentemente. .

O último capítulo da autobiografia de Trotsky se chama “O Planeta sem Visto”. Alí, ele relata como passou vários anos exilado na Turquia, tentando obter visto para residir em diversos países: França, Inglaterra, etc.. A Alemanha inclusive, lhe negou o visto para receber tratamento médico. Nós vamos eliminar essa monstruosidade, para que ninguém volte a escrever algo parecido.

Como será a organização militar? Haverá um exército profissional?

M.: Enquanto existir o perigo de guerra, o exército profissional será inevitável. A guerra requer conhecimentos científicos, que, por sua vez, exigem uma formação profissional. Isto vai desde o mais elementar - calcular quantas horas diárias pode um homem marchar portando uma determinada carga - até o mais complicado, as armas modernas, os foguetes, a aviação. Daria no mesmo perguntar se vai haver contadores no Ministério de Economia, ou engenheiros nas siderúrgicas.

Em que se diferencia de um exército burguês?

M.: Em que reinaria a grande liberdade política. Os oficiais, suboficiais e soldados poderiam participar dos partidos políticos, haveria instrução política e discussão nos quartéis. As organizações operárias exerceriam seu controle sobre as forças armadas. Também os soldados teriam seus organismos de controle. Falo de controle político, não militar. Por exemplo, se um grupo de oficiais começasse a falar de um golpe de Estado, os comitês de soldados poderiam denunciá-los e, inclusive, prendê-los.

Haveria serviço militar?

M.: Provavelmente sim, mas não seria um fenômeno traumático como é agora. Dentro do possível, a instrução militar se realizaria no próprio local de trabalho, sob controle operário e popular.

Ou seja, se trataria de não tirar o soldado do lugar onde mora e trabalha.

Você sabia que na Espanha o regulamento militar obriga o cidadão a fazer o serviço militar a mais de trezentos quilômetros do lugar onde mora?

M.: Claro, assim o soldado é alheio à população local, não se sente atado por suas amizades ou por sua família, sobretudo se tiver que reprimir uma mobilização. Nós pensamos que deve ser bem o contrário, o soldado deve ficar o mais perto possível do lugar onde mora e trabalha.

Para finalizar esse tema, qual será o papel do partido revolucionário depois da tomada do poder?

M.: Bom, eu já estava com medo de que não me perguntasse isso. Já respondi em parte nas minhas respostas anteriores, mas há alguns aspectos que quero destacar.

A existência de um partido como o nosso, que reivindica a democracia operária, a expropriação da burguesia e a mobilização permanente da classe operária, é uma condição necessária para o desenvolvimento do processo revolucionário. Se toma o poder um partido reformista, que não crê no desenvolvimento da revolução mundial, que não crê que a grande tarefa é derrotar o imperialismo no mundo inteiro, e que para isso a república operária deve fazer o máximo de sacrifícios, se criará uma contradição aguda, uma crise. Acho que se resolveria rapidamente, que o poder voltaria rapidamente às mãos do partido revolucionário, mas o fato é que existe a possibilidade de que durante um período o poder fique nas mãos de um partido oportunista ou centrista, não tão extremista como o nosso, cuja mira está sempre posta na derrota do imperialismo mundial.

É esse o eixo central de todas as respostas, que pretendo dar hoje, porque nós pensamos que para derrotar o imperialismo mundial é necessário ganhar os operários dos países imperialistas. E para isso devemos comover a consciência desses trabalhadores, convencê-los de que o futuro socialista será infinitamente superior ao do imperialismo. Devemos buscar a maneira de fazê-los superar essa consciência atrasada, distorcida pelo exemplo dos chamados países socialistas, com seus regimes totalitários. Retomamos a campanha da Terceira Internacional, que foi capaz de convencer enormes setores do proletariado mundial de que a única saída é o socialismo e a derrota do imperialismo. Devemos insistir, incansavelmente, no caráter ultrademocrático e, também, revolucionário do nosso programa, porque isto pega na consciência do setor fundamental dos trabalhadores do mundo. Devemos, em síntese, convencer o proletariado norte-americano de que haverá muito mais democracia se eles tomarem o poder do que se o poder continuar nas mãos da oligarquia democrata-republicana.




[1] Refere-se aos chamados “países socialistas” (também chamados de países do “Segundo Mundo”), onde a burguesia havia sido expropriada por processos revolucionários. Existiram até a derrocada da União Soviética e a restauração do capitalismo em todos estes países.

[2] Central Operária Boliviana.

[3] Dirigente do Partido Operário Revolucionário da Bolívia.

[4] Conhecida como a Revolução dos Cravos, derrubou a ditadura de Antônio Salazar.

[5] Revolução detonada com a derrota do Império Alemão na Primeira Guerra Mundial. Os operários e soldados revolucionários construíram Sovietes, seguindo o exemplo do proletariado russo. A revolução foi derrotada pelo governo da socialdemocracia.

[6] León Trotsky (1879-1940) - em 1917, liderou, junto com Lênin, a tomada do poder pelo proletariado na Rússia. Principal organizador do Exército Vermelho. Liderou a resistência contra a burocratização do Partido Bolchevique e do Estado Soviético, comandada por Stalin, tendo sido expulso da União Soviética em 1928. Organizou a Oposição de Esquerda no interior da III Internacional (Comunista) e, em 1938, fundou a Quarta Internacional. Viveu seus últimos anos no exílio, sendo assassinado a mando de Stalin, no México, em 1940.

[7] Alsogaray – político burguês de direita argentino que serviu como ministro em vários governos, inclusive na ditadura militar.

[8] Ernest Mandel (1923-1995) - trotsquista de nacionalidade belga, foi o principal dirigente do Secretariado Unificado da Quarta Internacional (SU), organização internacional à qual é vinculada a Democracia Socialista (DS) do Brasil. Foi também um dos mais importantes economistas marxistas contemporâneos. Os documentos centrais desta polêmica de Moreno com Mandel são “Ditadura do proletariado e democracia socialista”, aprovado pelo Secretariado Unificado, e “A ditadura revolucionária do proletariado”, apresentado pela Fração Bolchevique, nesse momento corrente interna dessa organização, depois precursora da Liga Internacional dos Trabalhadores (Quarta Internacional).

[9] Kadete - sigla do Partido Democrata Constitucionalista, o principal partido da burguesia liberal monárquica russa.

[10] Julius Martov (1873-1923) foi um dos primeiros dirigentes da socialdemocracia russa e co-diretor, com Lênin, de seu jornal lskra (A Chispa). A partir da divisão do partido no congresso de 1903, foi um destacado dirigente da ala menchevique e se opôs a Revolução de Outubro.

[11] Grande revolução dos operários e camponeses do estado espanhol, iniciada em 1934, que levou à guerra civil e ao controle da maior parte do país pelas milícias revolucionárias. Foi finalmente derrotada pelas tropas fascistas do general Franco, em 1939, devido à política de colaboração de classes dos anarquistas, estalinistas e poumistas.

[12] O Partido Operário de Unificação Marxista (POUM) foi o fruto da unificação do chamado Bloco Operário e Camponês com uma corrente que se separou da seção espanhola da Oposição de Esquerda Internacional, precursora da Quarta Internacional. Andrés Nin (1892-1937) era um dos dirigentes mais importantes desse partido, ainda que o verdadeiro líder fosse Joaquín Maurín, preso ao iniciar-se a guerra civil. Foi amigo pessoal de Trotsky, que se distanciou politicamente de Nin quando este pronunciou-se a favor da frente popular durante a Revolução Espanhola. Foi Ministro de Justiça e Generalidade da Catalunha em 1936. Os stalinistas o assassinaram em 1937.

[13] Lech Walesa (1943- ) – operário dos estaleiros de Gdansk, na Polônia, ligado à Igreja Católica, foi o principal dirigente do sindicato Solidariedade, que encabeçou a revolução antiburocrática de 1981. Favorável à restauração do capitalismo, foi eleito presidente em 1991.

[14] Em maio de 1968, na França, o movimento estudantil iniciou uma grande onda de manifestações que se espalhou pelo país e depois incorporou o movimento operário, questionando as instituições políticas e o sistema capitalista-imperialista.

[15] Jean Paul Sartre (1905-1980) – filósofo existencialista francês.

[16] A Brigada de Combatentes Internacionalistas Simon Bolívar, integrada por militantes de diversos países latino-americanos em apoio à revolução nicaragüense em 1979, participou de numerosos combates que conduziram à derrubada da ditadura de Somoza, junto à Frente Sandinistas. Depois da vitória se dedicou a promover a criação de sindicatos e da central operária. Foi impulsionada politicamente pela Fração Bolchevique e sua seção colombiana, o Partido Socialista dos Trabalhadores. O governo sandinista a expulsou da Nicarágua, quando a Brigada tentou promover uma política de desenvolvimento da mobilização das massas para a desapropriação da burguesa e do imperialismo.

[17] Isadora Duncan: dançarina de origem norte-americana que revolucionou a arte da dança.

[18] Acordo firmado em 1957, que incluiu a França, Itália, República Federal da Alemanha e os países do Benelux (Bélgica, Holanda e Luxemburgo), formando o Mercado Comum Europeu (MCE) ou a Comunidade Econômica Européia (CEE), predecessores da atual União Européia

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