terça-feira, 10 de agosto de 2010

CUBA Direção castrista: da expropiação à restauração - Martín Hernández

Texto extraído da revista Marxismo Vivo nº 14. Disponível em: https://www.archivoleontrotsky.org/download.php?mfn=7086

Houve muita resistência nas organizações de esquerda a reconhecer que o capitalismo fora restaurado na ex-URSS e no restante do Leste europeu. De certa forma, isso é lógico, porque o triunfo da Revolução Russa foi a maior vitória da história do proletariado mundial, e não é fácil reconhecer que ela tenha terminado em uma derrota. No entanto, hoje, vinte anos depois de iniciada a restauração, essa questão está deixando de ser polêmica. Quaseninguém se dispõe a negar a realidade. Mas em relação a Cuba a coisa é diferente.

Embora a realidade cubana não possa dar margem a dúvidas, tanto sobre a restauração quanto sobre o papel de protagonista de Fidel Castro nessa tarefa, são muito poucos aqueles que reconhecem esses fatos. A maioria do movimento trotskista, por exemplo, opina que Cuba contínua sendo um Estado operário e que a direção cubana, com Fidel Castro à frente, continua, no mínimo, antiimperialista. Contudo, nem uma coisa nem outra é verdadeira.

Como falar de um Estado operário onde não há monopólio do comércio exterior, onde a economia não responde a uma planificação central e onde imperam as leis do mercado capitalista? E em relação à direção cubana: como afirmar que continua sendo antiimperialista no momento em que está entregando o pais ao imperialismo europeu e justo quando Fidel faz elogios escancarados a seus governos, em especial ao rei da Espanha?

Seria possível dizer que Fidel não é antiimperialista, e sim antiamericano, mas isso tampouco é verdadeiro. Fidel Castro, como 80% das pessoas do planeta, é anti-Bush. É contra o governo dos EUA,'mas atualmente não está contra o imperialismo americano. Um exemplo: não está contra o Partido Democrata dos EUA, pelo contrário, busca um acordo com ele. Por isso, em seu recente livro em forma de entrevista “Fidel Castro. Biografia a duas vozes”, faz todo tipo de elogios aos seus dirigentes. Entre outras coisas, diz do ex-presidente John Kennedy (o mesmo que iniciou a Guerra do Vietnã, mandou invadir Cuba e ordenou dezenas de atentados contra o próprio Fidel): “(..) o presidente Kennedy, realmente uma pessoa de talento, teve a desgraça de enviar essa expedição contra nós, a da Praia Girán e teve que assumi-la. Foi corajoso frente à derrota”.(1) Sobre a família do ex-presidente, afirma: “(..) depois do assassinato de John Kennedy, mantiveram contato conosco e travamos relações realmente amistosas. São provas de que no nos deixamos levar pelo ódio”. (2) Sobre Jimmy Carter (3), ex-presidente pelo Partido Democrata, diz: ”(..) Carter era um homem étieo. S ua política foi eonstrutiva em relação a Cuba e ele foi um dos presidentes mais honrados dos EUA. Tinha uma ética, uma moral. Carter não era rapaz de dizer sequer uma mentira. Era um homem bom, deeente... poderíamos ter discutido a Lei de Ajustes, mas não o fizemos porque não queríamos perder tempo e preyudieá-lo. Resolvemos até os seqüestros de aviões... chegavam a Cuba aviões seqüestrados nos EUA.' Nós os devolvemos a Carter Tenho a impressão de que os seqüestradores foram condenados a 40 anos de prisão... tomamos a decisão de entregá-los às autoridades americanas. ” (5)

Os fatos, e muitas das declarações de Fidel, são categóricos. Por que então é tão difícil aceitar que em Cuba o capitalismo foi restaurado e sua direção, atualmente, não tem nada de anticapitalista e é muito pouco antiimperialista? Porque, por um lado, Cuba foi, no continente americano, o mesmo que a Rússia no mundo: a maior vitória da história do proletariado, e, por outro, porque à frente de Cuba encontra-se Fidel Castro, 0 homem que dirigiu a luta contra o ditador Batista, a ruptura com o imperialismo, a expropriação da burguesia, e que justamente por ter feito tudo isso se converteu na direção de milhões de trabalhadores, camponeses e jovens não só de Cuba mas também da América Latina e do mundo. Justamente por isso, para milhões de seus seguidores é inaceitável sequer pensar que o homem que dirigiu a revolução e expropriou os capitalistas possa ser agora o chefe da restauração.

Os argumentos para justificar o injustificãvel são os mais variados. A maioria opina que não há restauração porque Fidel e o povo cubano são contra. Muitos, possivelmente a maioria, consideram que Fidel, dado o isolamento da Ilha, se viu obrigado a fazer concessões ao capitalismo, mas consideram essas concessões inevitáveis para manter o caráter socialista da revolução. Também há os mais críticos, que opinam que as medidas restauracionistas estão crescendo, mas o responsável por isso não é Fidel, e sim aqueles que 0 rodeiam. Por fim, há uma importante minoria opinando que realmente o capitalismo esta sendo restaurado e Fidel é o principal responsável, mas chegam à nostalgica conclusão de que tudo seria diferente se Che Guevara estivesse vivo.


Os indivíduos na história

Para o senso comum é muito difícil acreditar que a mesma pessoa que dirigiu uma revolução que expropriou a burguesia possa chegar a dirigir a restauração do capitalismo. E verdade que esta é uma contradição, mas também é verdade que se trata de uma contradição muito freqüente.

Stalin, ninguém pode negar, foi um abnegado militante revolucionário, construtor do Partido Bolchevique e, como tal, em mais de uma oportunidade, colocou sua vida em risco. A esse respeito basta recordar que de todos os dirigentes bolcheviques ele foi quem passou mais tempo nas prisões do czarismo. No entanto, esse mesmo Stalin haveria de se transformar no verdugo da revolução e do Partido Bolchevique. Ninguém pode negar também que na Nicarágua, Daniel Ortega e seus companheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional foram heróicos militantes na luta contra a ditadura de Anastasio Somoza. Porém, hoje, o mesmo Daniel Ortega disputa as eleições presidenciais de seu pais como candidato de uma aliança entre a FSLN e o PLN (Partido Liberal Nacionalista), fundado por Anastasio Somoza (pai), o assassino do general Augusto Cesar Sandíno. A história está cheia desse tipo de situações. Por isso é impossível entender o que está ocorrendo em Cuba em função do passado revolucionário de Fidel Castro.

Para o senso comum, a história é a resultante da luta entre homens bons e maus. Para os marxistas, a história, desde que existe a sociedade dividida em classes, é a resultante do enfrentamento entre as classes sociais: "A história da sociedade é a história da luta de Classes”.(6) O marxismo não nega a importância dos indivíduos na história, como Hitler, Lênin, Perón, Lula, Fidel Castro, Francisco Franco ou Che Guevara. Mas para o marxismo esses indivíduos, mais ou menos talentosos, mais ou menos valentes, nunca tiveram uma existência alheia à luta de classes. Por isso, para entender o comportamento dessas personalidades, nesse caso o de Fidel Castro, é necessário fazer não só uma analise polídca desses indivíduos e dessas direções, como também uma análise de classe. Qual é sua origem social? A que classes representam ou representaram? Em que classe se apoiavam ou se apóiam?


O caráter de classe da direção castrista e do Estado cubano


Se analisamos a direção castrista do ponto de vista de suas propostas políticas encontraremos uma profunda contradição entre seu passado e seu presente. Mas se analisamos essa mesma direção do ponto de vista social, tal contradição desaparecerá.

O Movimento 26 de Julho, que levou adiante a luta contra o ditador Batista, era um movimento de origem e caráter pequeno-burguês, que se apoiou fundamentalmente nos camponeses pobres, no movimento estudantil e nas classes médias das cidades. Como ral, foi um movimento extremamente progressivo e teve um papel revolucionário, a tal ponto que avançou muito além de suas intenções originais, chegando a expropriar o imperialismo e a burguesia e dando origem assim a um Estado de novo caráter, um Estado operário, já que estava baseado em uma economia estatizada e planificada.

Entretanto, esse Estado operário nasceu com uma grave contradição: à sua frente não estava a classe operária com seus organismos e menos ainda havia qualquer vestígio de democracia operária. Por isso, do ponto de vista científico, era equivocado definir o Estado cubano simplesmente como “operário”. O correto era defini-lo, desde seu nascimento, como um Estado operário burocratizado. O caráter do novo Estado cubano é uma continuidade do caráter do Movimento 26 de julho, um “partido-exército”, cheio de corajosos lutadores mas no qual não havia a menor democracia, nem operária e nem de nenhum outro tipo.

O caráter de classe da direção castrista deu origem a muitas controvérsias no interior do movimento trotskista. Muitos setores dizem que é verdade que o Movimento 26 de Julho e sua direção tinham caráter pequeno-burguês, mas ao efetuar uma ação revolucionária (expropriar a burguesia e o imperialismo e construir um Estado operário) modificou seu caráter social, convertendo-se em uma direção operária revolucionária. Esse tipo de raciocínio nega o marxismo porque um indivíduo pode chegar a mudar de classe, mas um movimento social não pode fazer o mesmo. Como diz Nahuel Moreno: "Nenhum setor social privilegiado aceita perder seus privilégios e transformar-se em outro setor social inferior, diferente. Pelo contrário, todo setor social com privilégios tende a aumentá-los". (7) A direção de um setor privilegiado, burguês ou pequeno-burguês, pode “obrigada pelas circunstâncias objetivas, ir mais longe do que pretendia no terreno político para defender seus privilégios e aumenta-los, quando se vê ameaçada de perdê-los, mas nunca combaterá seus próprios privilégios unindo-se aos setores mais explorados que lutam contra eles." (8)

É justamente essa análise de Moreno que explica porque o Movimento 26 de Julho, contradizendo seus planos políticos originais, chegou a expropriar a burguesia e o imperialismo. Mas é também essa análise que explica porque essas direção foi incapaz de levar até o fim o processo revolucionário e a partir daí começou a retroceder até chegar à restauração do capitalismo.


O castrismo foi além de suas intenções


A direção castrista foi muito mais conseqüente em sua luta contra a ditadura que a direção sandinista na Nicarágua. Por isso, não se conformou com a derrubada da ditadura, e procurou recuperar a economia destroçada pelo governo corrupto de Batista. Sua intenção não era expropriar o imperialismo e a burguesia, mas se viu obrigada a fazê-lo em função do boicote de ambos.

Assim, por exemplo, o novo governo cubano fez um acordo muito vantajoso com a URSS para importar petróleo. O governo dos EUA se opôs a esse acordo e as destilarias instaladas em Cuba, que eram todas americanas, negaram-se a destilar o produto importado da URSS. Essa medida deixou o governo cubano sem alternativas, o que o levou a expropriar as destilarias americanas. Esse processo foi ocorrendo gradualmente e, em pouco tempo, atingiu o conjunto da economia.

A luta conseqüente por apoiar o novo governo surgido da luta contra Batista levou a direção do Movimento 26 de Julho não só a expropriar o capitalismo e a burguesia como também a diferenciar-se inclusive da URSS e do stalinismo a nível mundial. A direção castrista tinha consciência de que Cuba estava isolada e para se defender precisaria atacar. Assim, no mesmo momento em que a URSS e todo o stalinismo mundial defendiam a “coexistência pacífica com o imperialismo", Fidel Castro dizia que era necessário “transformar a Cordilheira dos Andes na Sierra Maestro do continente americano” (9) e Che Guevara clamava pela construção de "dois, três, muitos Víetnãs". Essas não eram frases de efeito ao estilo daquelas que pronuncia atualmente Hugo Chávez. Para concretizar seu projeto, Fidel Castro colocou Manuel “Barba Roja” Piñeiro, que era vice-ministro do interior, à frente do secreto Departamento de Libertação, encarregado de organizar o treinamento político e militar de centenas de guerrilheiros de vários países latino-americanos e coordenar as medidas de apoio a vários movimentos de libertação nacional, como foi o caso do movimento encabeçado por Ben Bella na Argélia.


As limitações do castrismo


Quando os bolcheviques dirigiram a tomada do poder, buscaram a todo o momento, por intermédio dos Soviets e dos sindicatos, e com base na democracia operária, assegurar que a classe trabalhadora tomasse em suas mãos a construção do novo Estado. Por outro lado, a direção bolchevique aproveitou o prestígio adquirido por sua revolução para chamar a construção do estado-maior da revolução mundial, a III Internacional, em que os bolcheviques se integraram como parte minoritária da direção.

Revolucionários de muitas partes do mundo procuraram, depois do triunfo da Revolução Russa, sem levar em consideração a realidade da luta de classes, construir soviets e tomar o poder. A direção bolchevique, Lênin em particular, combateu duramente esses falsos bolcheviques e chamou-os a respeitar o movimento real da classe operária e das massas.

Com a direção castrista aconteceu o oposto e, por isso, tudo o que fez de progressivo acabou se transformando em seu contrário. Expropriou a burguesia e o imperialismo, mas em nenhum momento lutou para que a própria classe operária e o povo, por intermédio de suas organizações, estivessem à frente do novo Estado.

A direção castrista buscou impulsionar a revolução em outros países mas, ao contrário da direção bolchevique, nunca viu a revolução cubana como algo tático em função da revolução latino-americana e mundial. Encarou a revolução nos outros países como uma tática para defender a revolução cubana; isso significa que a direção cubana sempre viu a revolução mundial desde uma ótica nacional.

A máxima expressão do caráter nacionalista dessa direção é o fato de que nunca defendeu, apesar de seu prestígio no mundo inteiro, a construção de uma direção internacional da qual ela deveria fazer parte. Assim, o caráter nacionalista e pequeno-burguês da direção castrista acabou afetando o conjunto da política internacional do castrismo e fazendo com que a Revolução Cubana se isolasse cada vez mais.

Por toda a América Latina surgiram jovens, na maioria das vezes provenientes da pequena-burguesia, dispostos a repetir a experiência cubana em seus países. A direção cubana, longe de orientá-los em direção à classe operária, suas organizações e suas lutas, os convocou a organizar focos guerrilheiros, sem levar em conta a situação da luta de classes, para “criar” as condições para a revolução.

Essas posições da direção castrista penetraram profundamente entre muitos lutadores, especialmente na vanguarda estudantil latino-americana e, como não poderia deixar de ser, essa experiência terminou em tragédia. Processos revolucionários foram abortados. Golpes sangrentos foram provocados. Milhares de honestos militantes morreram nessa aventura. Entre eles o próprio Che Guevara, assassinado na Bolívia. Frente a esses desastres, a direção cubana, dada sua natureza de classe, foi incapaz de fazer um balanço e reorientar sua política em direção à classe operária e suas lutas. Pelo contrário, acabou se integrando de forma definitiva ao bloco dirigido pela URSS e sua política de “coexistência pacífica” com o imperialismo.

A nova política de Cuba passou por sua maior prova em 1979. Nesse ano, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, depois de destruir a Guarda Nacional de Somoza, tomou o poder na Nicarágua. As simpatias que existiam na Nicarágua pela Revolução Cubana eram muito grandes. Por outro lado, os dirigentes sandinistas se consideravam discípulos de Fidel Castro. Depois de tomar o poder, a direção da FSLN viajou a Cuba para conversar com Fidel, que os felicitou e lhes deu um conselho: "Não façam da Nicarágua uma nova Cuba”. O conselho foi claro. Em outras palavras, Fidel disse aos sandinistas: não avancem além da derrubada da ditadura, não expropriem o imperialismo e a burguesia, não construam um Estado operário. Com esse conselho o destino da Nicaragua estava selado _ e o de Cuba também.


Da “coexistência pacífica” à restauração capitalista

A teoria utópica e reacionária de Stalin do socialismo em um só país
levou à política contra-revolucionária da coexistência pacífica com o imperialismo e esta, como não poderia deixar de ser, conduziu à restauração do capitalismo no coniunto dos ex-estados operários. A coexistência pacífica com o imperialismo significou, na prática, permitir que as maiores potências econômicas do planeta não apenas mantívessem sua superioridade, e com isso seu domínio sobre a economia mundial, como também ampliassem esse domínio em dettimento dos Estados operários. Esse fato levou os novos estados a uma crise crescente, do ponto de vista econômico e social, de tal forma que terminaram frente a duas alternativas: ou retomavam, mediante a luta pela revolução mundial, a batalha por recuperar suas economias, ou se entregavam, mediante a restauração do capitalismo, aos braços do imperialismo. A crise era tão grave que não lhes restava mais do que essas duas alternativas. A história é bastante conhecida. Por razões de classe, as burocracias governantes não estavam dispostas a pôr em risco seus priviégios, por isso, de conjunto, caminharam em direção à segunda opção.

Como os demais Estados operários, Cuba estava diante dessas mesmas alternativas, e é evidente que não optou por expandir a revolução. Basta ver a experiência da Nicarágua que citamos anteriormente. Dessa forma, frente ao isolamento que ela mesma havia contribuído para criar, só lhe restava a restauração como opção. E assim, por essa razão, estamos presenciando o triste rim de uma direção que, por suas limitações políticas e especialmente de classe, foi incapaz de levar sua própria experiência às últimas conseqüências.


E se o Che estivesse vivo?

Como dizíamos anteriormente, há muita gente, mesmo em Cuba, que diz que tudo seria diferente se 0 Che estivesse vivo. De certa forma, isso também é lógico, porque Che Guevara morreu quando ainda prevalecia a linha de exportar a revolução cubana por meio da guerrilha. Por outro lado, a imagem do Che está associada ã sua valentia, a seu desprendimento em relação aos bens materiais e à sua luta contra qualquer privilégio pessoal.

Evidentemente, não se trata de fazer ficção política, mas é bastante difícil imaginar que se o Che estivesse vivo o capitalismo não teria sido restaurado em Cuba, ou que o Che estaria encabeçando, contra Fidel, a luta contra a restauração. Por que dizemos isso? Porque a direção cubana seguiu o curso que seguiu por suas profundas limitações, que não eram essencialmente políticas ou teóricas, e sim de classe, e o Che não era diferente do resto. Muito pelo contrário, era quem mais expressava essas limitações. Che Guevara fazia parte de uma geração de jovens de esquerda argentinos, da década de 50, que foi o que de mais reacionário existiu nesse país. A juventude universitária, de “esquerda”, em função de seu antiperonismo, odiava o movimento operário. A juventude universitária, dirigida pelo radicalismo e pelo PC, desfilava nas mas com a bandeira: “Livros sim alpargatas, não!

A respeito do Che e de sua falta de relação com o movimento operário há um fato muito significativo: ele era um jovem muito simples e ficou impactado com a luta para derrubar o ditador Batista. Entretanto, não se sentiu tão impactado pela revolução boliviana de 1952, apesar de ter passado pela Bolivia alguns meses depois de iniciado o processo. A maior revolução operária do continente, a derrota do exército pelos mineiros, a fundação da COB, as milícias operárias e camponesas que impuseram o duplo poder na Bolívia, não causaram grande impressão em Che Guevara. Ele nunca estudou esse processo e muito menos extraiu qualquer conclusão do mesmo; a tal ponto que quando voltou à Bolívia em 1966 para organizar o foco guerrilheiro, em nenhum momento procurou entrar em contato com os mineiros, vanguarda incontestável por décadas da revolução boliviana e latino-americana.

Guevara, como roda a direção castrista, nunca lutou para que a classe operária cumprisse um papel destacado na revolução e na transição ao socialismo - e muito menos lutou pela construção do partido revolucionário da classe operária a nível nacional e mundial. Para sermos mais precisos, a direção castrista e o Che em particular, com sua teoria do “foco guerrilheiro”, tinham uma posição contrária ã tradição marxista nesse terreno. Por outro lado, com freqüência Che Guevara é retratado como um lutador contra a burocratização do Estado operário cubano. Isso é um equívoco. O Che foi um exemplo vivo de uma luta contra privilégios materiais para os dirigentes da revolução e do Estado, mas nunca lutou contra a burocratização do Estado; nunca defendeu a democracia operária, a única possibilidade de lutar, com possibilidades de êxito, contra a burocratização.

O Estado operário cubano não se degenerou anos depois da tomada do poder; ele nasceu burocratizado e Ernesto Guevara foi, desde o início, um dos principais dirigentes desse Estado.


As direções russa e cubana diante da restauração


No decorrer deste texto mostramos a diferença qualitativa entre a direção bolchevique, de Izênin e Trotsky, e a direção cubana de Fidel Castro e Che Guevara. No entanto, uma leitura superficial poderia nos levar a pôr um sinal de igual entre o comportamento de ambas as direções frente à restauração. Em ambos os processos houve uma direção que encabeçou a expropriação do imperialismo e da burguesia e ambos terminaram com a restauração do capitalismo. Entretanto, a diferença é qualitativa, já que a ex-URSS só pôde chegar à restauração com a destruição prévia do Partido Bolchevique pelas mãos do stalinismo. Pelo contrário, em Cuba não foi necessário destruir a antiga direção para restaurar o capitalismo. A mesma direção que dirigiu a expropriação da burguesia foi a que, sem crises, encabeçou a restauração. Isso demonstra que sempre houve uma profimda unidade de classe entre a direção russa e a cubana, mas não entre a direção de Lênin e Trotsky com a de Fidel, e sim entre a direção stalinista e a de Fidel, unidade que existiu mesmo nos momentos em que a direção castrista tinha posições políticas diferentes das posições stalinistas.


O balanço da direção castrista e a construção da direção revolucionária

Em meio a uma situação revolucionária como a que se vive atualmente na América Latina, a batalha por construir uma direção revolucionária é a “mãe de todas as batalhas”, mas essa construção não começa do zero. Trotsky, fazendo o balanço da Revolução Russa, dizia: "Sabemos com certeza que qualquer povo, qualquer classe e mesmo qualquer partido se instruem principalmente por experiência própria, mas isso não significa, de modo algum, que seja de pouca monta a experiência dos demais países, classes e partidos. Sem um estudo da grande Revolução Francesa, da revolução de 1848 e da Comuna de Paris, jamais teríamos levado a cabo a Revolução de Outubro." (10) É impossível chegar à vitória no continente americano se não formos capazes de estudar e extrair todas as conclusões da única revolução socialista triunfante no continente, a Revolução Cubana. Essa é a importância desse balanço histórico da direção castrista, não só para o presente, mas sobretudo para o futuro.

Há conclusões fundamentais a extrair da grande Revolução Cubana que iluminam nossa batalha no continente, tanto no terreno objetivo como no subjetivo. Em primeiro lugar, a Revolução Cubana mostrou que é possível enfrentar e derrotar a burguesia e o imperialismo. Se isso foi possível em um pequeno pais situado a poucos quilômetros dos EUA, por que não seria possível em países muito mais importantes do continente, como Argentina, Brasil, Colômbia, Chile ou México? Em segundo lugar, as conquistas da Revolução Cubana, na eliminação da pobreza e na melhoria da saúde e da educação, mostram que esses problemas, que pareciam endêmicos do continente, podem ser resolvidos com a expropriação da burguesia e do imperialismo. Em terceiro lugar, a realidade mostrou que sem a extensão da revolução ao resto do continente e do mundo, o caminho de toda revolução vitoriosa que exproprie o capitalismo é inevitavelmente a restauração do próprio capitalismo. Em quarto lugar, a realidade também mostrou que a direção cubana, que apareceu em seu momento aos olhos de milhões de lutadores de todo o mundo como uma alternativa de direção revolucionária frente à decadente burocracia stalínísta, sucumbiu vítima de suas graves contradições politicas e de classe. Em quinto lugar, e a título de conclusão: é inegável que a Revolução Cubana potencializou no mundo inteiro as energias revolucionárias da classe operária e dos povos, mas, contraditoriamente, em relação à superação da crise de direção revolucionária, o castrismo cumpriu um papel nefasto. O prestígio adquirido pela direção castrista por haver dirigido a revolução foi tão grande que atrasou por décadas a grande tarefa de superar a crise da direção revolucionária. O castrismo cumpriu um papel objetivo de afastar a vanguarda das duas grandes tarefas estratégicas dos revolucionários: a relação com a classe operária e a construção do partido da revolução a nível nacional e mundial.

O castrismo influenciou e confundiu várias gerações de lutadores bem como organizações inteiras e importantes dirigentes marxistas revolucionários. Nahuel Moreno, sem dúvida o mais importante dirigente do trotskismo latino-americano, não conseguiu escapar da pressão do castrismo nos primeiros anos da revolução. Assim, por exemplo, em um texto de polêmica com Che Guevara, expressava idéias como esta: “Fidel e Che demonstraram nos fatos e popularizaram várias questões políticas e teóricas de fundamental importância, que nos permitem dizer deles, parafraseando o que Sartre disse da filosofia de Marx, que não há hoje em dia outra corrente revolucionária na America a não ser o castrismo”. (11)

Nahuel Moreno, ao contrário da ampla maioria dos outros dirigentes do trotskismo, manteve-se fiel à classe operária e ao marxismo e, por essa via, foi rompendo qualquer tipo de relação com o castrismo. Prova disso é que as reflexões que expusemos neste artigo estão inspiradas nas elaborações de Moreno das décadas de 70 e 80. No livro Conversando com Nahuel Moreno, ele faz uma reflexão muito profunda sobre esse processo de sua relação e ruptura com o castrismo, que deve ser levada em conta por todos aqueles que lutam pelo poder da classe operária. Moreno diz: "Ao longo de minha vida política, depois, por exemplo, de observar com simpatia o regime que surgiu da Revolucão Cubana, cheguei à conclusão de que é necessário continuar com a política revolucionária de classe, ainda que atrase nossa chegada ao poder em vinte ou trinta anos ou o quanto for necessário. Nós desejamos que a classe operária chegue ao poder verdadeiramente, por isso queremos dirigi-la”.



Notas

(1) "Fidel Castro. Biografia a duas vozes". Entrevista de Ignacio Ramonet, Editorial Boitempo, São Paulo, Brasil, p.272
(2) Idem.
(3) Jimmy Carter, convidado por Fidel Castro, visitou Cuba entre 12 e 17 de maio de 2092. Realizou uma conferência na Universidade de Havana, transmitida ao vivo para toda a Ilha, em que desferiu um duro ataque contra a Revolução Cubana. Posteriormente, Fidel fez uma homenagem a Jimmy Carter diante de milhares de pessoas em um estádio de beisebol.
(4) Depois do triunfo da revolução houve muitos casos em que ativistas antiimperialistas seqüestravam aviões nos EUA e os levavam a Cuba e pediam asilo político.
(5) “Fidel Castro. Biografia a duas vozes." pp.370/371
(6) Manifesto Comunista, Karl Marx.
(7) Teses para a atuazizacão do Programa de Transifãø, Nahuel Moreno, CS Editora, São Paulo, Brasil, p. 61
(8) Idem, pp. 61/62
(9) Discurso de Fidel Castro, 21 de julho de 1961, Santiago de Cuba
(10) Lecciones de Octubre, León Trotsky, El Yunque Editora, Buenos Aires, p.15.
(11) "Dos Métodos Frente a la Revolución Latinoamericana", Nahuel Moreno.

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