quinta-feira, 10 de junho de 2010

China, 1949: uma revolução no país mais populoso da Terra - Cecília Toledo e Marcos Margarido

Extraído da revista Marxismo Vivo nº 22 disponível no sítio: http://www.archivoleontrotsky.org/revista.php?revista=6847&p=26


Há 60 anos, no dia 1º de outubro de 1949, Mao Tsé-tung anunciava a fundação da República Popular da China. A vitória da Revolução Chinesa foi a culminação de um longo processo revolucionário que sacudiu a China desde 1911, com a queda do império manchu, a revolução nacionalista de 1925-27, a guerra contra o imperialismo japonês nos anos 30 e finalmente a vitória do Exército de Libertação Popular em 1949. Dois grandes acontecimentos mundiais – a primeira guerra mundial de 1914 a 18 e a revolução russa de 1917 - determinaram todo o processo chinês. A primeira guerra teve como causa a disputa pelas colônias entre as potências imperialistas, devido às pretensões expansionistas da Alemanha e Japão, e uma nova divisão mundial do trabalho; a revolução russa impôs a ditadura do proletariado no país capitalista mais atrasado da Europa, dando dali em diante um novo marco para os movimentos de libertação nacional e anticoloniais.

Hoje pouco resta dessa grandiosa revolução. Exemplo máximo disso é que o povo chinês foi proibido de assistir aos festejos de aniversário de uma revolução pela qual deu a vida e na qual depositou todas as suas esperanças.


A luta contra o imperialismo

A primeira fase da revolução chinesa, em 1911, apesar de ter derrubado o império manchu, não conseguiu cumprir tarefas fundamentais, como fazer a reforma agrária e, sobretudo, expulsar as potências imperialistas e realizar a unificação nacional. A Primeira Guerra Mundial, em 1914, colocou o país diante da necessidade de romper com seu passado pré-capitalista e definir-se como um país independente. O mesmo propósito que levara as potências ocidentais às revoluções dos séculos XVIII e XIX agora sacudia a China. Mas o mundo já era outro. O capitalismo já estabilizara a divisão internacional do trabalho e um mundo colonial já se estabelecia, do qual a China fazia parte. Harold Isaacs definiu a situação complicada da China na época: “A China, como o restante dos países dependentes do Leste, teve de tentar se transformar em uma nação no mesmo momento em que a nação, como tal, havia se esgotado como instrumento adequado para o progresso humano”.1 A política norte-americana que emergiu da guerra causou enorme impacto, sobretudo na Ásia, que buscava emancipar-se do atraso em relação às potências capitalistas ocidentais. A China teve de aceitar, no Tratado de Versalhes, que o Japão, um sócio menor das potências imperialistas, evacuasse a província chinesa de Shandong, mas mantivesse o controle sobre a Manchúria.

A esperança, portanto, vinha da Rússia. A Revolução Russa, de outubro de 1917, significou para as massas chinesas um horizonte possível e as bandeiras da ditadura do proletariado e do internacionalismo, as idéias do marxismo e do socialismo, penetraram com força em toda a China. Em 1919 ocorrem poderosas lutas anti-imperialistas, e em 1921 Sun Yat-sen, fundador e líder do Kuomintang, o maior partido burguês da China, é eleito presidente da república e proclama sua determinação em continuar a luta contra os “senhores da guerra” e de realizar a unificação do país. Mas os trabalhadores chineses já estavam protagonizando um enorme ascenso nas mais importantes cidades do país; no campo, os milhões de camponeses, homens e mulheres viviam em uma situação de pobreza e exploração imensas (80% das terras cultiváveis estavam em mãos de latifundiários ou estrangeiros). Em meio a esse ascenso, em 12 de julho de 1921, é fundado o Partido Comunista Chinês em Xangai, e em 27 de janeiro de 1923 Sun Yat-sen assina um acordo com o governo soviético, cujo objetivo era a ajuda da URSS ao Kuomintang e a cooperação entre este e o PCCh na luta anti-imperialista.

No entanto, essa segunda onda revolucionária (entre 1925 e 1927) explode justamente no momento em que ocorre a morte de Lênin e a subida ao poder de Stalin e sua camarilha na União Soviética. Numa guinada contra a expansão mundial da revolução, o Comintern orienta-se para a teoria do “socialismo num só país”2. A política de coexistência pacífica com o imperialismo, a partir da divisão do mundo em esferas de influência, marcaria a orientação comunista dali em diante.

Na China, cresce a organização da classe trabalhadora com grandes lutas, como a poderosa greve dos marinheiros e estivadores de Hong Kong entre janeiro e março de 1922, inúmeras manifestações estudantis, e as greves nas fábricas têxteis japonesas instaladas na China. Esse processo desemboca na greve geral em Xangai em junho de 1925, na greve em Hong Kong e no boicote às mercadorias inglesas em Cantão. Todas essas lutas foram duramente reprimidas. Em 30 de maio de 1925, a polícia anglo-americana de Xangai abre fogo sobre uma enorme manifestação antijaponesa e mata doze estudantes e operários chineses. Em 11 de junho do mesmo ano, os marinheiros britânicos atiram sobre manifestantes chineses em Hankow e dez dias depois, em Cantão, uma manifestação de operários chineses é metralhada por soldados ingleses e franceses.

Em 1927, após libertarem Xangai, as forças revolucionárias são massacradas pelo exército do próprio Kuomitang liderado por Chiang Kai-chek, com o qual a III Internacional mantinha relações políticas, em nome da suposta liderança da burguesia na conquista da unidade nacional. O PCCh recebera, por isso, a orientação de dissolver-se no Kuomitang, perdendo sua independência política, o que foi motivo de um debate intenso na União Soviética entre a Oposição de Esquerda, dirigida por Trotsky, e a direção stalinista.

Do oportunismo mais nefasto aplicado durante o levante revolucionário de 1925 a 1927, “os comunistas chineses passaram ao extremo oposto do aventureirismo no período da contrarrevolução do Kuomitang”3, que culminou na trágica sublevação de Cantão, sufocada em dezembro de 1927, selando a derrota da segunda revolução. Chiang Kai-chek instaura uma ditadura de ferro, reprime todas as organizações sindicais e políticas dos trabalhadores, persegue os camponeses e permite o fortalecimento do imperialismo japonês, demonstrando o caráter pró-imperialista e reacionário da burguesia chinesa e a impossibilidade de sua aliança com o proletariado, tão sonhada por Stalin. A razão da derrota de Cantão deve ser creditada, não à força da burguesia chinesa, mas ao “curso triunfante da contrarrevolução mundial e seu reflexo no movimento operário internacional: o stalinismo”4.

Mas, apesar disso, Trotsky – em discussão com a Oposição comunista chinesa em 1929 – previu a continuidade do processo revolucionário. “É impossível prever a duração do período inter-revolucionário, já que depende de muitos fatores internos e externos. Mas o surgimento de uma terceira revolução é inevitável; deriva-se absoluta e totalmente das circunstâncias criadas pela derrota da segunda revolução”.5

Com o isolamento da classe operária causado pela derrota da segunda revolução, o PCCh, liderado pela tendência de Mao Tsé-tung, que privilegiava o movimento camponês, parte para o interior rural, no episódio conhecido como a Longa Marcha. Lá, coloca-se à frente das guerrilhas camponesas, iniciando a formação de Comunas Populares, inspiradas nos sovietes russos, com experiências bem sucedidas de exploração coletiva da terra, mas isolados do proletariado urbano. Entre 1934 e 1935, porém, Chiang Kai-chek consegue dizimar as Comunas, apesar da resistência heróica das massas camponesas.


A guerra contra o Japão

O Japão, que controlava a Manchúria, passou a uma ofensiva em 1937, em direção ao norte da China e ao vale do rio Yang-tsé. Os camponeses, que voltavam a levantar a cabeça, reagiram com a ocupação de terras a partir da guerra de guerrilhas. Esta reação popular deu-se por fora do controle do PCCh, que, por abraçar a política das Frentes Populares de Stalin, continuava sua aliança com Chiang Kai-chek, considerado pelos comunistas o único governo da China, e abandonava a luta pela reforma agrária.

A Segunda Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, fortalecera a ingerência do Japão na China. Na Primeira Guerra, o Japão ocupara partes do território chinês, e queria consolidar suas posições contra os interesses da França e da Inglaterra. A situação econômica da China era crítica, e no aspecto político estava totalmente dividida. Para evitar o colapso econômico do país e que ele caísse sob o controle japonês, os Estados Unidos concederam ao Kuomintang empréstimos entre US$25 e 50 milhões entre 1938 e 19416. O governo Roosevelt também enviou pilotos para treinar os chineses e combater ao lado dos “nacionalistas”, além de caças P-40 para engrossar a força aérea de Chiang Kai-chek.


1949: a vitória da revolução chinesa

A destruição provocada pelos japoneses durante a ocupação exacerbou a pobreza e a miséria no campo, entre os trabalhadores das cidades e inclusive da pequena-burguesia. Mas o fim da 2ª Guerra combina essa situação com o enfraquecimento do imperialismo no Oriente: a derrota do imperialismo japonês, a preocupação dos europeus com a reconstrução de seus próprios países e do norte-americano frente à necessidade de apoiar política e financeiramente os imperialismos europeus e evitar a revolução social no velho continente. Os EUA não enviam dinheiro nem soldados para apoiar Chiang Kai-chek.

Este, que passava a representar o setor mais reacionário das classes dominantes - os latifundiários - exercia um governo ditatorial, contrário a qualquer modificação da estrutura social do campo e, portanto, à reforma agrária e às ocupações das terras que, através das comunas camponesas, já atingiam 100 milhões de pessoas nas zonas liberadas ao norte do país, cerca de 20% da população na época, promovendo uma ruptura de fato entre a direção política que o Kuomitang exercera até então e as massas camponesas revoltosas.

Na Europa, os dirigentes soviéticos “evoluíam” da política de frente popular com a burguesia democrática para a de aliança com o próprio imperialismo “democrático” e assinavam os acordos de Yalta e Potsdam, para devolver a Europa ocidental ao domínio capitalista. Na China, um acordo com os Estados Unidos permite a entrega da Manchúria ao Kuomitang, enquanto Stalin exerce pressão sobre Mao para que aceite a formação de um governo de coalizão nacional com Chiang Kai-chek. Um acordo nesse sentido foi assinado em 11 de outubro de 1945 onde uma Conferência Consultiva Popular “adotou uma série de resoluções sobre a organização de um governo de coalizão, a reconstrução do país, os problemas militares, a convocação de uma assembléia constituinte... e a unificação das Forças Armadas”.7

Mas Chiang não respeita o acordo e lança um ataque contra os territórios liberados. Finalmente, após um ano de vacilações, o PCCh lança a política de expropriação e repartição das terras dos latifundiários no verão de 1946. Esse processo de confisco dos latifúndios espalhou-se por toda a China e o entusiasmo revolucionário toma conta do país:

Lutando pela terra o camponês cria seus próprios organismos dirigentes, sindicatos camponeses, associações de arrendatários... Tal partição da terra, ao suprimir as leis do senhor, abriu as portas às eleições e pôs assim os governos das aldeias nas mãos de pessoas favoráveis à causa comunista.8

O confisco de terras ultrapassa os limites impostos pelos comunistas e atinge a burguesia e os camponeses ricos. Segundo Li Shao Chi, “as massas camponesas e nossos militantes rurais não puderam, ao fazer a reforma agrária, seguir as diretivas publicadas em 4 de maio de 1946 pelo CC do Partido Comunista, as quais exigiam considerar invioláveis no essencial a terra e os bens dos camponeses ricos”.

No início de 1948, a situação do Kuomintang já era desesperadora. Submerso em uma imensa crise econômica e política, o governo entra em colapso, e Chiang Kai-chek renuncia à presidência no início de 1949. Em 1º de outubro, Mao Tsé-tung declara a fundação da República Popular da China:

O povo de toda a China ficou submerso em tribulações e num amargo sofrimento desde que o governo reacionário do Kuomitang de Chaing Kai-chek traiu a pátria, conspirou com os imperialistas e lançou a Guerra contrarrevolucionária... Agora, a guerra popular de libertação está praticamente ganha e a maioria do povo do país foi libertado... Representando a vontade de toda a nação, a primeira sessão da Conferência Consultiva Política do Povo da China... sancionou a lei orgânica do Governo Central da República Popular da China.9

Fundava-se, assim, um Estado operário no país mais populoso do planeta.


O papel da classe operária

Maioria absoluta da população, os camponeses e trabalhadores rurais foram os grandes protagonistas da Revolução Chinesa. Mas a classe operária, mesmo minoritária, teve um papel importante, sobretudo nos momentos decisivos. Se na insurreição de 1925-27 os operários foram massacrados em Cantão e Xangai, graças à política ultraesquerdista de Stalin, e tiveram seus sindicatos ferreamente controlados pelo Kuomintang no período da Segunda Guerra Mundial, nos anos 40 a classe operária chinesa entrou em uma poderosa onda grevista que acabou por desestabilizar de vez o governo burguês e abrir o caminho para a vitória de Mao. A partir do final da guerra, a China entrou em uma crise econômica e financeira profunda, com a inflação chegando às alturas e o desemprego em larga escala, resultante da redução da indústria bélica e a desmobilização de muitos soldados.

Cerca de 30% da população economicamente ativa perdeu seus empregos, os salários foram congelados e os preços dos alimentos dispararam. Para se ter uma idéia, um saco de arroz era vendido por 6,7 milhões de yuans no início de junho de 1948 e em agosto já custava 63 milhões. No mesmo período, um saco de 22 quilos de farinha passou de 1,95 milhão a 21,8 milhões de yuans e um barril de óleo de cozinha subiu de 18,5 milhões para 190 milhões de yuans. (Os preços desses produtos em 1937 eram 12, 42 e 22 yuans respectivamente)10.

A situação tornou-se insustentável, e a classe operária explodiu. Em 1946 houve 1716 greves e uma sequência de conflitos trabalhistas. Apesar do férreo controle burocrático, os comunistas conseguiram se infiltrar nos sindicatos e nas empresas. Membros do partido tinham se instalado às ocultas na Indústria Têxtil Nacional de Xangai Número 12, na Coletoria da Alfândega de Xangai, na Fábrica de Máquinas Dalong, na Companhia Francesa de Água, Energia e Bondes, no Cotonifício Número 9, na Companhia de Energia Elétrica de Xangai e em várias lojas de departamentos da cidade. Esquemas semelhantes desenvolveram-se em outras cidades com concentração industrial, como Tianjin, Wuhan e Cantão.11

A primeira greve significativa do pós-guerra ocorreu na Companhia de Energia Elétrica de Xangai. O movimento começou no final de janeiro de 1946, depois da demissão de representantes dos trabalhadores. Ao protestar, seus companheiros foram mantidos fora da usina, mas conseguiram impedir que outros trabalhadores colocassem a central elétrica em funcionamento. Sem energia, as negociações foram feitas à luz de velas. Quarenta sindicatos locais uniram-se em uma manifestação de protesto no início de fevereiro, seguida por uma demonstração de solidariedade envolvendo representantes de 70 empresas e lojas. A greve foi vitoriosa e os demitidos voltaram ao trabalho.


A luta das mulheres

Em muitas dessas empresas, grande parte da mão-de-obra era feminina. Com frequência, o número de mulheres trabalhadoras superava o dos homens, compondo 65% da mão-de-obra de certas indústrias têxteis, com salários ainda mais baixos. Parte importante da pequena classe operária chinesa, as mulheres tiveram um papel fundamental em todo o processo revolucionário. Submetidas a costumes retrógrados, como amarrar os pés desde criança para que se mantivessem pequenos (na verdade, para que não fugissem de casa!), o casamento arranjado desde o berço, ser tratada como propriedade do pai e do marido, as mulheres chinesas viram no estudo do marxismo e na vitória da Revolução Socialista na Rússia uma forma concreta de conquistar a libertação.

Conforme o ELP avançava, surgiam nas aldeias as associações de mulheres que, entre outras tarefas, eram as encarregadas de punir os homens que maltratavam as mulheres, e que ao mesmo tempo organizavam e treinavam as mulheres para deixar suas casas e trabalhar no campo como forma de participar do esforço revolucionário, ajudando o ELP. Essas associações também costumavam organizar “greves” de mulheres contra os homens que não as deixavam trabalhar ou demonstravam covardia e se negavam a alistar-se no ELP. Assim, as mulheres foram impondo seus direitos na prática: escolher o parceiro, divorciar, trabalhar fora de casa, comer a mesma comida que o marido e o sogro, participar das eleições das aldeias, fazer treinamento com armas. A conscientização das mulheres foi um apoio fundamental à revolução.


O Governo Central Popular

Em janeiro de 1949, Chiang Kai-Shek renuncia (seis meses depois, instala-se em Taiwan) e é substituído na presidência pelo militarista Guangxi Li Zongren, que resiste até outubro. Por fim, forma-se o “Governo Central Popular”, de coalizão com outros 14 partidos políticos e Mao na presidência. Pequim foi designada a capital do país. A política de colaboração de classes, conhecida como “bloco das quatro classes”, foi aplicada por Mao desde o início, e ficou estampada na bandeira nacional, com a estrela dourada de cinco pontas e suas quatro estrelas secundárias. A estrela grande representava o PCCh e as quatro menores as quatro classes que formavam o novo governo: a burguesia nacional, a pequena burguesia, os operários e os camponeses.

Mas, empurrada pelas massas, a burocracia se vê obrigada a ir mais longe do que pretendia, e passa a tomar medidas no sentido de criar as bases do Estado operário na China. O primeiro ato do novo governo garante a todos, exceto os chamados “reacionários políticos”, liberdade total. Concentra os esforços na industrialização e traça um plano de reforma agrária, que foi concluída nos anos 5012. Nas cidades, o governo tenta evitar os confrontos advindos da crise econômica e do desemprego. Cria novos sindicatos, controlados pelo PCCh, bem como uma rede de comitês de rua, grupos compostos por vizinhos que trabalham na limpeza das ruas, suprimento de água, programas de saúde e vacinação, para controlar as epidemias, além de funcionarem como patrulhas locais para a segurança pública. Esses comitês deflagraram campanhas maciças contra a prostituição e o ópio.

Sob a direção de Mao e do PCCh, a China adota o seu Primeiro Plano Quinquenal para reestruturar a economia conforme o modelo soviético. Apesar de várias crises dentro da estrutura bonapartista de poder, a economia planificada mostrou seu potencial como única forma de fazer com que a China vencesse a fome secular. Com a colaboração de milhares de assessores técnicos soviéticos, muitas fábricas destruídas pela guerra são reconstruídas e voltam a produzir segundo um planejamento industrial, conseguindo um boom na produção jamais visto. Também se dedicam esforços ao melhor aproveitamento da energia elétrica, a rede ferroviária é aumentada e até mesmo a arquitetura urbana merece atenção. O plano incluiu também um programa especial para os camponeses, que passaram a vender mais de um quarto de sua produção total de grãos ao Estado. No campo, os camponeses foram agrupados em cooperativas de produção com a introdução de técnicas mecanizadas na lavoura. Em 1953, Mao preparava o terreno para a naci- nalização da indústria privada, deixando a China com apenas duas formas de organização industrial: a estatal e a mista estatal-privada, afirmando que a transformação socialista da indústria privada seria conseguida através do capitalismo de estado, procurando sempre o “equilíbrio” entre as classes:

Alguns capitalistas mantêm uma grande distância do Estado e não mudaram sua mentalidade de lucro-acima-de-tudo. Alguns operários estão avançando muito rápido e não permitem que os capitalistas tenham qualquer lucro. Nós precisamos educar estes operários e capitalistas e ajudá-los a adaptar-se gradualmente à política de Estado... no rumo do capitalismo de Estado.13

Todos esses avanços na economia, que permitiram fazer com que o país produzisse mais alimentos, fortalecesse a industrialização e melhorasse as condições de vida da população, enfrentavam as contradições da política de colaboração de classes de Mao e do caráter bonapartista do regime maoísta.

Nesse sentido, diferenciava-se do regime da burocracia stalinista, resultante do ascenso da contrarrevolucão mundial a partir de 1923 e da destruição do Partido Bolchevique de Lênin. O maoísmo, ao contrário, é produto da luta e da vitória das massas camponesas revolucionárias sobre o invasor japonês, primeiro, e os latifundiários e camponeses ricos, depois. Forma-se, porém, sob o peso da ideologia stalinista, da revolução por etapas, da colaboração de classes e do socialismo em um só país. E constrói um partido-exército de caráter stalinista14, com uma burocracia dirigente e sem nenhuma democracia interna. É, no entanto, independente do imperialismo e da burocracia soviética, com a qual tem atritos permanentes, até a ruptura completa em 1963. Moreno chamava o regime maoísta, devido a estas características, de “bonapartista revolucionário”, “árbitro entre o stalinismo, as massas e as distintas classes do campo”15, que adquire um caráter sui generis ao apelar para a mobilização para enfrentar o imperialismo.


O Grande Salto adiante

Estas contradições logo se fazem sentir. Em janeiro de 1956 é lançada a campanha das Cem Flores. O chamado do governo era: “Aos artistas e escritores dizemos: que floresçam cem flores. Aos cientistas, dizemos: que surjam cem escolas de pensamento”. Era uma defesa explícita da liberdade de expressão, mas quando as críticas atingiram a burocracia partidária e o movimento operário começou a formar “Comitês Fabris de Administração” desatou-se uma onda de prisões e de autocríticas públicas humilhantes por intelectuais e estudantes em 1957. Esta repressão não pode ser separada da insurreição ocorrida em 1956 na Hungria, violentamente esmagada pelos tanques enviados por Moscou, cujos tiros foram saudados entusiasticamente por Mao.

Na economia, Mao lançava campanhas de incentivo e convencimento ideológico, inspiradas em grandes feitos heróicos e voluntaristas, sem uma avaliação concreta das possibilidades reais das massas. Os trabalhadores e camponeses eram submetidos a pressões, perseguições e práticas militaristas de produção. Mas mesmo assim a produção agrícola nas fazendas cooperativas não avançava (a produção de grãos aumentou apenas 1% no ano de 1957, para um crescimento de 2% da população) e a produção industrial tampouco.

Em 1958 é lançado o “Grande Salto Adiante” durante o Segundo Plano Quinquenal, para transformar a China num grande país industrial. Mas a opção de construir indústrias rurais organizadas pelas Comunas para atender as necessidades locais da população levou o plano ao fracasso. Embora algumas metas de produção tenham sido atingidas, como a de carvão mineral, que ultrapassou a da Inglaterra, experimentou-se uma queda brutal na agricultura, com a queda da colheita por três anos seguidos, entre 1958 e 1960. Contribuíram para essa queda o deslocamento de camponeses para o trabalho nas indústrias rurais e a seca nestes anos. A requisição forçada de grãos foi responsável pela morte de 16 milhões de camponeses em três anos 16 e a utilização das reservas financeiras para a importação de alimentos levou à falta de investimentos na indústria nos anos seguintes.


O confito sino-soviético

Se a situação interna era de crise econômica, a política externa chinesa não era menos atribulada. Para os comunistas chineses, os países atrasados eram “o foco de todas as contradições do mundo capitalista, o elo mais fraco da corrente imperialista e o centro nervoso da revolução mundial”17, o que os levou a apoiar os movimentos de libertação dos países coloniais, como as guerras da Coreia e do Vietnã.

No início da década de 1960, os EUA iniciam um bombardeio aéreo sem precedentes sobre o Vietnã e ameaçam invadir a China para destruir suas instalações nucleares. A tímida resposta da burocracia soviética, com um suprimento limitado de armas ao Vietkong e sua negativa em declarar publicamente a defesa da China em caso de um ataque imperialista, leva Mao ao rompimento definitivo com a URSS, cuja disputa remonta à denúncia dos crimes de Stalin por Kruschev no 20º Congresso do Partido Comunista da URSS, em 1956.

O que era uma disputa ideológica, em torno à primazia de construir o “comunismo num só país” e à defesa do stalinismo, transformou-se numa divisão entre os dois maiores Estados operários, favorecendo enormemente o imperialismo. Mao recusa-se a participar de uma frente única dos Estados operários em defesa do Vietnã, sob o pretexto de que os soviéticos eram revisionistas e negociavam com os Estados Unidos, o que era verdade.

O PCCh também foi duramente atingido pelo massacre executado pelo exército do regime nacionalista burguês de Sukarno, ocorrido na Indonésia em 1965 18. A política de apoio a Sukarno e de recusa à luta pelo poder por parte do PC indonésio, o terceiro maior do mundo, era ativamente apoiada por Mao. Sua posição ultraesquerdista em relação à frente única contra os EUA e oportunista na Indonésia deixaram-no completamente isolado frente ao imperialismo mundial e as crises internas começaram a aflorar.


A Revolução Cultural

Em 1966, tem início na China uma das fases mais violentas desde que Mao assumiu o poder: a Revolução Cultural. A esquerda mundial teve conhecimento dela através da imprensa, como o New York Times, que estampava na primeira página de sua edição de 26 de junho de 1966: “Luta titânica na China vermelha”. E ficou conhecida como uma campanha de denúncias, purgas, prisões e humilhações de todo o tipo contra supostos renegados e traidores, fossem eles intelectuais, professores, vizinhos, familiares, pequenos proprietários. Vários dirigentes comunistas foram perseguidos e expulsos do partido, como Peng Chen, prefeito de Pequim e membro do Comitê Político do PCCh 19.

De fato, jornais controlados pelo PCCh, como o Bandeira Vermelha do ELP, afirmavam que “centenas de milhões de operários, camponeses e soldados... armados com o pensamento de Mao Tse-tung, engajaram-se no desmascaramento dos agentes escondidos da classe inimiga”. Mas ela era consequência direta dos fracassos de Mao em sua política externa:

A Revolução Cultural é a tentativa desesperada de frear as contradições provocadas pelo curso da revolução mundial, os avanços contra-revolucionários do imperialismo norte-americano no Vietnã como consequência do triunfo reacionário na Indonésia e os problemas internos originados pelo fortalecimento do proletariado e a crise sem saída do campesinato pobre”. 20

Agrega-se a estas causas a disputa de Mao contra os setores burocráticos pró-Moscou, “desejosos de uma política mais ‘realista’ que se apóie num acordo técnico econômico militar com a URSS e em um governo direto da burocracia”21. Mao apela para a mobilização da juventude e joga o país numa guerra civil que durou dez anos.

Em 1976 o país está exaurido, imerso numa imensa fome, e sua indústria paralisada. Mas o setor da burocracia comandado por Deng Shiaoping sai como o grande vencedor da guerra interna após a prisão da “gangue dos quatro”, o quarteto que tenta suceder Mao.

Contraditoriamente, a explicação para a derrota de Mao não é a força da ala “reformista”, mas sua própria fraqueza política. Embora adepto da “revolução permanente”22, no sentido de avanços graduais permanentes, Mao nunca rompeu com a política stalinista, o que o aproximava da burocracia soviética. Defensor irredutível da colaboração de classes, a ponto de inscrevê-la na bandeira chinesa, e do socialismo em um só país, nunca ofereceu como alternativa aos trabalhadores chineses a luta pela revolução mundial sob a direção de uma nova Internacional revolucionária, mesmo que o maoísmo tivesse adeptos em todo o mundo. A busca do socialismo (ou comunismo, após 1958) apenas na China, isolado inclusive do movimento comunista internacional, selou sua sentença de morte política.

Sua disputa com a União Soviética chegou a tal ponto que inicia uma aproximação com os EUA em 1971 para associar-se ao imperialismo contra o “principal inimigo”. Em 1972, Richard Nixon, então presidente dos Estados Unidos, viaja à China para reunir-se com Mao. As relações diplomáticas entre os dois países são restabelecidas e Mao assina vários acordos de importação de tecnologia americana. A coexistência pacífica com os EUA, tão criticada por Mao, é também abraçada por ele, consequência inevitável da política do “socialismo num só país”. O imperialismo sai como grande vencedor.


A restauração capitalista

Em 1976, no mesmo ano em que morrem Zhou Enlai e Mao Tsé-tung, explodem em Pequim enormes manifestações populares, as primeiras espontâneas desde 1949. Milhares de pessoas saem às ruas exigindo liberdades democráticas e o retorno do verdadeiro espírito do marxismo-leninismo. A luta interna acirra-se.

Em 1978, durante a sessão plenária do PCCh, Deng Xiaoping anuncia as primeiras reformas capitalistas batizadas de As Quatro Modernizações: na agricultura, na indústria, defesa nacional e nas áreas de ciência e tecnologia. No campo, as famílias receberam permissão para aumentar a quantidade de terra que podiam cultivar como lotes privados e para vender a produção no mercado aberto, a preços não tabelados. Na cidade, foram estimuladas as iniciativas privadas para abertura de negócios.

A restauração capitalista começa a gerar desigualdades sociais impensáveis no período anterior e o governo é assolado por uma enxurrada de denúncias de corrupção. Nos anos 80, a China entra numa crise econômica e política sem precedentes, com a exploração brutal da classe operária e a fome se espalhando pelo campo.

Em 1989 ocorrem novas manifestações de massas. Em maio, milhares de estudantes, exigindo liberdades democráticas e o fim da corrupção no governo, ocupam a Praça Tiananmen, em Pequim. Aos poucos, as manifestações se espalham por todo o país, e no momento em que elas começam a envolver a classe trabalhadora, nas fábricas e outros locais de trabalho, a burocracia do PCCh desata uma repressão sem precedentes, deixando centenas de mortos, feridos e presos.

A maior reação à restauração capitalista é derrotada pelo governo chinês, que se converte em ditadura burguesa. O heroísmo das massas chinesas não conseguiu evitar que o conjunto da burocracia chinesa, incluída a ala bonapartista de Mao Tsé-tung, fizesse a China retroceder 40 anos e a levasse de volta às terríveis condições da exploração capitalista. Se foi Deng Shiaoping o artífice da restauração, a impossibilidade da política maoísta de levar o país ao socialismo, que será mundial ou não será, preparou o terreno. Mas as traições e inconsequências dos dirigentes não nos podem fazer esquecer uma das maiores revoluções de toda a história do socialismo mundial, protagonizada pelas massas camponesas e operárias chinesas.

Notas

1 ISAACS, Harold R. The Tragedy of the Chinese Revolution. Stanford University Press, 1961.
2 A idéia antimarxista de que o socialismo poderia ser construído dentro das fronteiras do Estado nacional.
3 TROTSKY, L. A guerra no extremo Oriente e as perspectivas revolucionárias. Em Documentos de fundação da IV Internacional.São Paulo: Ed. Sundermann, 2008, p. 109.
4 MORENO, N. Las revoluciones china e indochina. Buenos Aires: Ed.Pluma, 1973. Este livro pode ser encontrado em www.archivoleontrotsky.org
5 TROTSKY. A situação política na China e as tarefas da oposição bolchevique leninista. Junho de 1929.
6 Estes valores correspondem aproximadamente a 386 e 772 milhões de dólares em 2009.
7 CHI, Liu Shao. Discurso proferido ao C.N. do Conselho Consultivo Político em 14/06/1950.
8 BELDEN, citado por Moreno. Las revoluciones china e indochina.
9 ZEDONG, Mao. Proclamation of the Central People’s Government of the PRC. Em www.marxists.org, acesso em 15/10/09.
10 SPENCE, Jonathan D. Em Busca da China Moderna. Editora Companhia das Letras 2000, p.477.
11 Idem, p.476.
12 Os grandes latifúndios foram confiscados e redistribuídos, mas em muitos casos as terras dos camponeses ricos não foram tocadas. Mao justificou essa política como essencial para garantir o desenvolvimento econômico. Estimase que 40% da terra cultivada tenha sido desapropriada e redistribuída e que 60% da população tenha se beneficiado de alguma maneira.
13 ZEDONG, Mao. The only road for the transformation of capitalist industry and com mer ce. Discurso de 7/09/53. Em www.marxists.org, acesso em 15/10/09.
14 Entre 1921, ano da fundação do PCCh, e 1928, foram realizados seis congressos. O próximo congresso após o de 1928, realizado em Moscou, que marcou a ascensão de Mao no partido, ocorreu apenas em 1945, que se reuniria novamente em 1956, sete anos após a tomada do poder, em 1949.
15 MORENO, N. Las revoluciones china e indochina. Buenos Aires: Ed.Pluma, 1973.
16 LI, Minqi. The rise of China and the demise of the capitalist world economy. New York: Monthly Review Press, 2008.
17 Citado por NOVACK, George. New Judgment on the Sino-Soviet Rift: Monthly Review and the Great Debate. International Socialist Review, v. 34, n. 3, 1963. Em www.marxists.org, acesso em 15/10/09.
18 Na noite de 30/09/65 um golpe de estado mata 6 generais do exército indonésio. O general Suharto depõe Sukarno e desata um massacre aos membros do PC da Indonésia. Estima-se em 500 mil o número de mortos, mas a perseguição durou por mais dez anos, nos quais pelo menos 1,5 milhão de pessoas foram presas.
19 Além de Peng Shen os primeiros acusados foram o historiador Wu Han, delegado da prefeitura de Pequim, Teng To, secretário do Comitê Municipal do PCCh em Pequim, e Liao Mo-sha, ex-membro do Comitê Municipal do PCCh em Pequim.
20 MORENO, N. Las revoluciones china e indochina. Buenos Aires: Ed.Pluma, 1973.
21 MORENO, N. Carta a Livio Maitan, em www.archivoleontrotsky.org, acesso em 15/10/09.
22 Mao defendia a revolução permanente, mas fazia questão de declarar que sua concepção era diferente que a de Trotsky. Ver seu discurso Speech at the Supreme State Conference, de 28/01/58. Em www.marxists.org, acesso em 10/10/09.






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