Primeira parte do livro de Nahuel Moreno extraído de: http://www.marxists.org/portugues/moreno/1969/moral/cap01.htm
Moral Bolche ou Moral Espontaneísta?
Meu contato com o partido, devido minha situação, tem sido durante estes meses através da correspondência. Não posso me queixar porque tem sido bastante intenso. Sem querer, levado pelo intercâmbio de cartas, fui me metendo no problema moral, desviando-me um tanto de meu projeto de escrever um trabalho sobre a situação peruana. É que vários dos companheiros e companheiras que me escreviam esboçavam ou defendiam posições sobre a moral que eu considerava alheias as nossas tradições e concepções.
"Há que ser honesto consigo mesmo", me escrevem, repetindo uma velha frase minha aprendida dos mestres; "tenho ânsias de viver e quero satisfaze-las"; "a primavera, o cheiro das flores, a conversa com as companheiras ou amigas fazem com que se possa passar qualquer coisa e tudo o que ocorrer está bem"; "não tenho que ter esquemas ou dogmas no problema sexual ou moral"; "nossa moral é fazer o que gostamos em qualquer momento".
Destas formulações teóricas passaram a dar-me todo um programa concreto de ação moral, "que louco é o companheiro tal que vive pensando em sua companheira presa, diz que cada vez a quer mais, quando a separação física por razões objetivas provoca inevitavelmente desamor, afastamento", "com minha companheira presa atuo de forma diferente, saio ou trato de sair com outras companheiras, assim consigo uma espera "ativa" e não "estática" etc., etc... Todas estas são citações textuais ou quase textuais, com ligeiras modificações para evitar sua identificação.
Antes da divisão "os combatentes" [1*] atacaram os companheiros da Zonal Norte por terem, segundo eles, essa moral. Naquele momento nos levantamos indignados contra tal infâmia e falsidade, que provinha justamente de dirigentes cuja moral pessoal era verdadeiramente repugnante, da pior que tenho visto em minha longa militância. Acreditava que essa polêmica com os combatentes havia aclarado o panorama. Parece que não é assim.
Na última escola de quadros tive a intenção de tocar neste tema, já que o considerava parte importante da educação militante. Por razões de tempo, me foi impossível fazê-lo. Creio que a grande quantidade de novos companheiros, a debilidade de sua formação, a falta de tradição marxista revolucionária, como o grave perigo de que companheiros de prestigio por serem ou haverem sido parte da direção nacional, tenham essas falsas posições e possam influir nos novos quadros partidários, exige que de uma vez por todas abordemos o problema. Sem dar muitas voltas direi que considero que existe todo um setor do partido que por um grave processo degenerativo, social, político, sua lumpenização, tem adotado posições sobre o problema moral que atentam contra a marcha e o fortalecimento de nossa organização. O tema toca, por outro lado, de forma muito mais profunda na realidade contemporânea. Vivemos a época mais revolucionaria da história, o salto da sociedade de classes, da pré-história humana para a sua história. Isso significa que estamos passando de formas de vida, costumes, relações econômicas, entre os sexos, das distintas esferas da atividade social arcaicas às novas. Porém estas últimas estão muito longe de se terem cristalizado, justamente porque estamos numa época de transição. Nestes períodos históricos nenhuma norma se fixa, se cristaliza; se derrubam umas, aparecem outras. A moral não uma exceção, pelo contrario, é um dos aspectos da vida que sofre uma maior comoção. Os velhos valores entram em crise antes que triunfem os novos e que os mesmos tenham se estruturado. Todas as épocas de mudanças revolucionária, nos tem mostrado uma situação similar de confusão moral, de amoralismo oficial, de choques entre distintas morais. O renascimento italiano com seus Papas, os Borgia, ou seus artistas, como Benvenutto Cellini, nos mostra um amoralismo que nos deixa estupefatos. A decadência do Império Romano, com suas orgias, seus imperadores "marido de todas mulheres e mulher de todos os maridos da corte" outra prova do que vínhamos dizendo. Que destas épocas tenham surgido as tremendas morais de Savonarola, Calvino, a primeira; o catolicismo dos primeiros séculos, a segunda, não faz mais que confirmar que na luta contra o amoralismo oficial, decadente, se foram estruturando uma nova moral, que refletia uma nova época e classe.
Os companheiros que captamos, são, principalmente, estudantes, vêem de uma sociedade em falência, repugnante, com pais separados ou que traem um ao outro; com amigos ou conhecidos que relatam orgias sexuais reais ou imaginarias; com filmes que se divertem em descrever todas as variantes de perversão sexual, com a leitura diária sobre a quantidade de maconha ou ácido lisérgico que consome a juventude norte-americana ou européia; com filmes pornográficos japoneses ou suecos que superam tudo o produzido na pré-guerra pelos franceses ou alemães; com pederastas ou lésbicas; com crimes ou assaltos vários; com delinqüentes públicos transformados em grandes personagens que gozam de todos os favores e prestígio social; com uma escala aristocrática onde as artistas de cinema e televisão, rodeadas de playboys, são supra sumo da moda, dos costumes, da moral; com uma frieza entre os sexos nos países avançados, onde se esta produzindo a liberação da mulher, que preocupa aos sociólogos; com a pílula como elemento fundamental na liberação da mulher. Estes companheiros chegam ao partido vindos de uma sociedade totalmente corrompida, sem valores de nenhuma espécie, onde a família, a amizade e as relações entre os sexos estão totalmente em crise. Isto não pode menos que refletir-se nas próprias filas partidárias, já que não vivemos enlatados a vácuo, mas sim dentro dessa sociedade.
Frente a esta situação se impõe a necessidade de precisarmos então que classe de moral temos, e inclusive se temos alguma.
Como Encaram Teórica e Praticamente Nossos Mestres o Problema Moral
O "Velho", em seu conhecido folheto "A Moral Deles e a Nossa" (ou Moral e Revolução) deu as linhas gerais da moral revolucionaria. Combatendo a concepção da pequena-burguesia, principalmente a intelectual, que sustentava e sustenta que há uma moral acima das classes que obriga a todos os homens a respeitar certos princípios, deveres morais, reivindicou a relatividade e o caráter de classe de nossa moral, como da moral em geral.
Nada de princípios absolutos, gerais, para a moral; a base da nossa é a revolução proletária. Tudo que a favoreça em nossa conduta é moral, entra dentro de nossos valores: tudo que a debilite ou vá diretamente contra a revolução, é imoral. Estes princípios nos obrigam a colocar o eterno problema dos meios e dos fins. Como sabemos que tal meio ou atitude moral serve à revolução? "Os fins justificam os meios" dizia a velha moral dos jesuítas. Trotsky respondia; "sim, sempre que os meios levem aos fins". Ou seja, entre fins e meios há uma dialética, já que nem todos os meios são viáveis, úteis. Mentir ao movimento de massas não serve para nada ainda que quem o faça tenha as melhores intenções, já que rebaixa o nível de compreensão dos fenômenos políticos e sociais pelos trabalhadores. É, portanto, não só um erro político, senão uma grave falta moral. Porém, um companheiro que tem uma missão dentro de um ambiente inimigo tem que mentir sistematicamente, porque sua mentira vai a favor do desenvolvimento do partido e da revolução. Se por exemplo, um companheiro despedido da Kaiser de Córdoba vem a Buenos Aires para buscar trabalho, por ter sido incluído nas listas negras da patronal cordobesa, logicamente não dirá a verdade aos novos patrões: "fui demitido da Kaiser porque era ativista sindical". Sua mentira é valida, estritamente moral.
Os intelectuais pequeno-burgueses assustados pelos que dizem que existe um principio moral sagrado, "não mentir", dizem: "portanto esse companheiro cordobés de vocês é um imoral de marca maior, vive mentindo a todos os patrões de Buenos Aires a quem pede trabalho".
Este principio moral situado por Trotsky: servir à revolução como critério básico deixa muito campo livre para a independência e desenvolvimento pessoal no campo das relações entre os sexos, a família e os outros companheiros. As diferenças apreciáveis na vida de nossos grandes mestres o demonstra. Não é segredo que Marx teve relações pessoais que alguns críticos modernos consideram de "moral vitoriana": fidelidade absoluta no matrimônio, relações exageradamente sérias com suas filhas, que noivaram e se casaram com todas as convenções da lei (inclusive a que se uniu livremente a seu companheiro inglês, que depois se suicidou, também o fez de forma bastante séria), aparentemente certa atitude depreciativa frente as relações de Engels com suas companheiras irlandesas, as duas irmãs, que nunca visitaram a família Marx (ainda que não me conste, me dizem que Bernstein, em um de seus livros, comenta que na casa de Marx eram muito mal vistas as relações deste com a irlandesa). Engels era o oposto de Marx. Em lugar de uma só noiva como este, que depois foi sua esposa, ainda com um bom lote (quando da revolução alemã de 48, chegou vários dias depois de combinado porque havia passado por Alsácia e Lorena a pé, onde "havia muitas mulheres lindas e bons vinhos" foi sua desculpa). Marx vivia assustado com as manias de Engels pela equitação e as " relações sociais". Os mexeriqueiros europeus, que também existem em grande quantidade, estão muito preocupados averiguando se andava com as duas irmãs ao mesmo tempo. O "Velho" comentava a correspondência dos dois amigos diz que surgem como maravilhas humanas, principalmente Engels. Eu compartilho desta opinião.
Entre Lenine e Trotsky há diferenças parecidas às existentes entre Engels e Marx respectivamente. Trotsky se casa duas vezes e tem relações sérias, quase "vitorianas", segundo os seus críticos europeus. Lenine, segundo insinua Deutsher e asseguram os fofoqueiros de turno, parece que teve algumas relações com suas ajudantes. Segundo os comentários que corriam em Moscou em fins da década de 20, o segredo da capitulação de sua magnífica companheira, Krupskaia, à Stalin, era a chantagem de que havia sido objeto por parte desse chacal: se não capitulasse a denunciaria como não tendo sido a companheira de Lenine e tiraria de sua manga alguns dos casos deste para ser reivindicada como tal. Por outro lado, Pola Negri, em suas memórias que li, não me contaram, relata que na Suíça, onde ela trabalhava em um cabaré ou algo parecido, havia estado com um homem de pequena estatura que foi a pessoa mais extraordinária que havia conhecido em toda sua vida. Essa pessoa era Lenine. Se isto for certo e não uma manobra publicitária de Pola Negri, duvido muito que a amizade entre ambos tenha sido justamente para jogar cartas.
Por um problema que Trotsky teve ao final de sua vida com sua companheira nos inteiramos do tipo de relação que tinham. Parece que o "Velho" e a senhora de Diego Rivera haviam se simpatizado em demasia, até provocar a indignação da Velha.
Isto provocou uma emocionante troca de cartas entre os dois Velhos: Don Leon lhe dizia em sua carta que ele jamais lhe havia pedido satisfação sobre as relações dela com seu secretário durante a guerra civil, apesar das presunções ou comentários de que tinham relações. Isto revela que Trotsky tinha a concepção de que cada um dos cônjuges era livre para fazer o que quisesse, sem ter que prestar contas ao outro: a independência pessoal mais absoluta. Deixando de lado que a Velha esclareceu o equivoco e a falsa versão ou presunção e que o Velho não recebeu mais a senhora de Diego Rivera, a posição que surge pela correspondência é contraditória, porque embora nela Trotsky afirma que nunca pediu prestação de contas, de fato nas duas cartas trocadas há, uma indireta e sutil intenção de prestação de contas, de estabelecer relações francas, verdadeiras, entre ambos e não da liberdade total absoluta e secreta.
Deste breve resumo, podemos tirar uma conclusão: que nossos mestres, dentro da moral geral que todos eles observaram no desenvolver da revolução, tiveram pronunciados matizes diferenciadas, inclusive contraditórios, na moral cotidiana com o outro sexo, a família e os companheiros, provocados por razões da época ou formação individual. A constatação deste fato pode nos levar a uma conclusão apressada e perigosa: que não há nenhuma relação entre a moral geral revolucionária e a que temos que empregar todos os dias em nossa vida de relação mais íntima. Dito de outra maneira, que não há normas ou linhas concretas em nossa moral, mas apenas generalidades.
Creio que pelo contrário, este é um terreno, como tantos outros, que não aprofundamos e que essa é a razão pela qual podemos tirar essa falsa conclusão. Não é casual que nesta etapa da revolução, como de nosso partido, comecemos a estudar o problema, tratando de solucionar, de descobrir, as leis que nos permitam retirar da lei geral de nossa moral, de que tudo o que ajuda à revolução e ao partido revolucionário é lícito, as normas justas de atuação cotidiana, principalmente em relação aos companheiros, nossas famílias e especialmente com o outro sexo.
O Que é a Moral?
Para avançar neste terreno, devemos começar por nos colocarmos de acordo em o que é a moral, o que significam os valores e deveres morais.
O homem vive em sociedade, formando parte de agrupamentos humanos, classes, grupos, famílias, nações, bairros. Essas estruturas sociais, para se manterem e se desenvolverem necessitam impor aos indivíduos que a formam, uma série de normas, obrigações, que garantam a conquista de objetivos como a solidez dessas estruturas. Essas normas que toda estrutura social impõe a seus indivíduos, são justamente as Morais. A ciência moderna, tende a dividir essas normas entre as mais abstratas, que estuda a ética, e as mais concretas, os deveres, que analisa uma nova ciência, a deontologia ou ciência dos deveres. Não quero me perder nos detalhes, que para o nosso caso são secundários. O importante é compreender o papel social fundamental que cumprem as normas sociais: o meio de garantir que o indivíduo, pressionado pelos valores e deveres de sua organização social, responda às necessidades desta.
Um exemplo: um sindicato é uma organização social, tem portanto, normas e deveres morais para com seus integrantes. Estas, entre outras, são as seguintes: acatar sempre o que os operários resolvam por maioria, ser solidário com todo pessoal em greve, não "furar greves" nunca. Estas normas garantem a solidez, desenvolvimento e conquista dos objetivos da organização sindical. Se não existissem ou se não se cumprissem, essa organização desapareceria em curto prazo. Estas normas morais se impõem por convencimentos dos indivíduos e por pressão moral e até física da organização social sobre eles. O que caracteriza é a pressão moral, ou seja, de opinião coletiva da organização.
Em torno deste último aspecto, surgem os pontos de contato e as diferenças entre o direito e a moral. Em um sentido, o direito é a moral mais um garrote, o do Estado ou qualquer outra superestrutura. Mas o direito é muito mais que isso, já que regulamenta muito mais relações que a moral. Enquanto esta apenas dá normas para a atuação individual dentro da organização, o jurídico dá leis ou resoluções que tratam de regulamentar todas as relações existentes na sociedade, entre as classes, os grupos, os indivíduos, de todos eles entre si, mas em benefício de uma classe e aplicado por um estado a serviço da mesma classe. Dai que o direito utiliza os meios diretamente compulsivos, a cadeia, as penalidades, próprios da força do estado, enquanto a moral utiliza a persuasão ou o repúdio moral, isto é, de opinião de grupo.
Algo semelhante ocorre com os costumes. Todo agrupamento tem seus hábitos de vida; se cumprimentam de tal forma, nós por exemplo, nos dizemos "como vai companheiro", outras organizações de esquerda "como vão camaradas". Fazem-se bailes ou almoços, ou ambas atividades de uma vez. Cada agrupamento social tem seus hábitos cotidianos de viver, são os costumes. Têm há ver com a pratica diária de existência desse agrupamento. Estes hábitos ou costumes cotidianos são fundamentais para a subsistência do agrupamento, mas não fazem à essência das relações, os costumes ou alguns deles, podem mudar sem afetar em nada o agrupamento. Também alguns indivíduos podem ser diferentes, não cumprimentam dizendo "como vai companheiro", mas sim, "como vão amigos e amigas", é contra o costume, mas não afeta em nada a estrutura do agrupamento, neste caso nosso partido. Os costumes são elemento espontâneo do agrupamento, tomado em sua média estatística. A moral funde suas raízes nos costumes, mas bem diferente, não é toda a vida cotidiana como esta última, mas um aspecto privilegiado desta, aquele aspecto que faz à sobrevivência da estrutura social de que se trata e, portanto, são normas estritas, severas, essenciais para serem aplicadas por indivíduos.
Aclaram-se assim as três escalas deste aspecto da vida social. - Os costumes é o espontâneo, o geral e o cotidiano da vida e práxis de todo agrupamento social. A moral são as regras, normas, deveres que garantem a sobrevivência, desenvolvimento e fins do agrupamento social, através dos indivíduos que o formam. O direito é uma superestrutura que tende a regulamentar todas as relações, não só as excepcionais e essenciais, como as morais, mas todas, desde as horas de reunião de um partido, até as relações entre as classes no direito público do estado burguês. Toda classe, organização social, tem então, seus costumes, moral e direito. Nosso partido, o partido bolchevique argentino, o PRT, não é uma exceção. Todos nós sabemos que temos nossos costumes, alguns parecem ter se esquecido que também temos uma moral e temos nosso direito (o estatuto).
A Crise da Moral Burguesa
A burguesia, em sua época de ascenso e plenitude, impôs uma sólida moral. A base dessa moral era dada pelas necessidades da acumulação primitiva capitalista. A célula fundamental dela era a família patriarcal burguesa, com muitos filhos e o domínio absoluto do pai, os máximos valores eram os familiares. O futuro, com seu afã de engrandecimento, condicionava todos os valores morais. A poupança, a economia, a obediência servil dos filhos e da mulher ao chefe da família, a acumulação de um capital antes de se casar, o que levava a que se casassem já maduros, o casamento acertado entre famílias para que as filhas se casassem o mais rápido possível, quase meninas, para que não fossem uma carga para o processo de acumulação, caracterizava esta moral. Como vemos, predominava a organização familiar e uma moral adequada a essa organização, cujo objetivo era a acumulação capitalista. Tudo era sacrificado pelo futuro, principalmente o presente. Os homens se casavam já maduros porque haviam sacrificado sua juventude para a acumulação da fortuna que lhes permitiria constituir um lar burguês, com a marcha acumulativa assegurada. Primeiro a fortuna, depois o casamento, era a regra moral. As meninas, para assegurar seu futuro, eram obrigadas a casar com velhos que poderiam ser seus pais ou avós, se lhes frustrava, por toda vida, suas possibilidades instintivas, para lhes assegurar um futuro econômico.
Entre essa moral oficial e as necessidades biológicas, produzia-se uma dicotomia, uma grave contradição, insolúvel dentro dos marcos estritos daquela. Dai que essa moral entrasse em contradição com o costume, era hipócrita, já que solucionava ou tentava solucionar suas contradições por meios ocultos e hipócritas. Para os homens: os prostíbulos; para os jovens, especialmente os da burguesia, as vedetes ou "malas gruas" como com ironia as definiam os franceses do fim do século, porque levantavam seus candidatos desde o palco, ou diretamente a amante cara. Para as pobres mulheres, condenadas a uma moral oficial masculina, a "traição" de seu velho esposo ou, se as circunstâncias o impedissem, o anamoramento romântico, "impossível", cheio de versos "cursi" que escondiam aparências mais realistas. Mas, em geral, a mulher burguesa esteve condenada sob esta moral a não satisfazer suas necessidades biológicas ou culturais, já que os cartões postais ou os versinhos do apaixonado do momento não podiam satisfazer essas necessidades prementes. No século passado, e em grande parte no presente, segundo os sexólogos, a maior parte das matronas da burguesia morriam sem haver conhecido o ato sexual integralmente e as que conseguiam eram uma exceção, que quase sempre se dava em uma idade relativamente madura, depois dos 30 anos.
Paralelamente a estes problemas morais e de costume, foi-se produzindo outros, à medida que a burguesia acumulava: a necessidade de gozar do conquistado. A conseqüência disto, foi que, das duas caras da moral burguesa, a pública e a restrita, a hipócrita e a oculta (o adultério, as amantes, os prostíbulos), o desenvolvimento capitalista foi dando proeminência a esta última. Isto significava que a necessidade de acumulação primitiva deixava lugar ao andamento normal, não opressivo dessa mesma acumulação. Poderíamos falar de duas morais burguesas, uma a de acumulação primitiva, outra, a da burguesia em seu apogeu. Na primeira domina o futuro, tudo ou quase tudo era sacrificado por ele. O presente se esconde e é solucionado de forma clandestina. Em seu apogeu, produz-se um bastardo equilíbrio entre o futuro e o presente, a hipocrisia se torna pública, e a burguesia aceita gozar o presente, sem renegar o futuro. Mas as graves contradições continuaram existindo.
Os grandes descobrimentos de Freud não podem ser explicados sem os enfocar como conseqüência da observação destas graves contradições da moral predominante de sua época, em Viena.
Freud utilizou a ciência para descobrir a hipocrisia dessa moral e o lado oculto dela, o biológico. Este século o da decadência da burguesia, com ela cai em pedaços sua moral, esta entra em uma crise tão brutal como o regime que a fundou. A família patriarcal burguesa da etapa de ascenso, desaparece, se rompe, para dar lugar a relações entre os sexos e os membros da família anárquica, crítica, onde o elemento fundamental é a transformação de cada indivíduo em desfrutador do mundo e do outro sexo. Esta moral reflete a passagem da acumulação capitalista desesperada à tentativa da burguesia de gozar o presente. É a putrefação do indivíduo burguês levado aos seus últimos extremos, o das relações pessoais e sexuais. Os setores mais cultos, rebeldes ou desclassificados da própria burguesia, apelam impudicamente a um giro ao biológico, o imediato, quer dizer, o abandono de toda moral, de toda perspectiva para o futuro. A psicanálise fica na moda nos anos 20, principalmente nos Estados Unidos. Todo o espontâneo e as necessidades biológicas encontram justificação e explicação na psicanálise. Tudo esta bem e permitido, o passado e o biológico, tudo é explicado e justificado. Uma classe sem futuro, logicamente teria que cair, como todas as classes que na história perderam toda sua perspectiva, em um amoralismo.
Mas a putrefação moral da burguesia teria que avançar ainda mais. Com o neocapitalismo, com o controle dos mercados pelos grandes monopólios que o caracterizam, pela manipulação dos consumidores através da propaganda, a perda da moral já é total, nem sequer é um amoralismo, já que se transforma em um consumo, em hábitos, reflexos condicionados e solucionados pelos grandes monopólios. Já a moral, ou falta de moral, nada tem a ver com pessoas de carne e osso, mas com objetos ou pessoas-objetos. Até as necessidades biológicas mais primárias são manejadas, manipuladas, pelos que controlam o mercado, que rebaixam assim a moral a um ramo a mais do mercado monopolista. A vida se torna aborrecida, a moral desapareceu, já não são deveres que os homens impõem a si mesmos, para defender uma estrutura social, mas reflexos condicionados, costumes, satisfação por esses reflexos, de necessidades biológicas ou sociais. Entramos em uma época de falta de moral ou de uma ética congelada.
A esta moral da burguesia em decadência, se combina, com seus aspectos característicos, a outra moral, que é sua sombra rebelde, em certo sentido seu rosto verdadeiro, a moral dos setores deslocados das grandes cidades.
A Moral Lumpen
Nas favelas desta etapa neocapitalista estão congregadas multidões que estão relativamente à margem do mercado capitalista, sua ligação com ele, com seus fetiches, é muito menor que a dos outros consumidores. Seu regime de vida é instável. São grandes concentrações de desclassificados, lumpens. Muitos deles se transformam em operários, outros não; mas o elemento determinante está dado por essa caracterização. Os companheiros que trabalharam sobre a greve portuária, conhecem na própria carne a verdade do que estamos dizendo. Que moral têm esses conglomerados?
Não necessitamos investigar muito, existe um livro magnífico que não só estudou uma família desse conglomerado, mas que retirou algumas conclusões significativas. Refiro-me a "Os Filhos de Sánchez" de Oscar Lewis; o autor, depois de assinalar que as conclusões podem ser aplicadas às grandes cidades, diz o seguinte: "outros aspectos incluem uma forte orientação para o tempo presente, com relativamente pouca capacidade de retardar seus desejos e de planejar para o futuro, um sentimento de resignação e de fatalismo baseado nas realidades de difícil situação de sua vida". Os membros da classe média, e isto inclui logicamente a maioria dos investigadores das ciências sociais, tendem a se concentrar nos aspectos da cultura da pobreza e tendem a associar valores negativos e características tais como a orientação centrada no momento presente, a orientação concreta versus a abstrata. Não pretendo idealizar nem romantizar a cultura da pobreza. Como disse alguém: "É mais fácil louvar a pobreza do que vive-la". No entanto, não devemos passar por cima de alguns dos aspectos positivos que podem surgir daí. Viver o presente pode desenvolver uma capacidade de espontaneidade, de desfrutamento do sensual, a aceitação dos impulsos, que freqüentemente esta tolhida em nosso homem da classe média, orientado para o futuro. O uso freqüente da violência significa uma saída fácil para a hostilidade, de modo que os que vivem na cultura da pobreza sofrem menos a repressão da classe média. Lewis deu um nome próprio da sociologia norte-americana a este fenômeno: cultura da pobreza, aparentemente não tem nada que ver com as categorias marxistas, é uma definição por lugar de moradia. Mas Lewis é um extraordinário observador além de estudioso. Isto o leva a fazer marxismo, e do bom; a "cultura da pobreza" - nos diz - "só teria aplicação nas pessoas que estejam no fundo da escala sócio-econômica, os trabalhadores mais pobres, os camponeses mais pobres, os cultivadores de plantações e essa grande massa heterogênea de pequenos artesãos e comerciantes, os quais em geral se classificam como "lumpen proletariado". E para que não nos restem dúvidas de que se trata da moral e cultura dos lumpens, nos esclarece, "gostaria de distinguir claramente entre o empobrecimento e a cultura da pobreza. Nem todos os pobres vivem nem desenvolvem necessariamente uma cultura da pobreza". E, rematando suas conclusões, nos diz: "Quando os pobres adquirem consciência de classe, se tornam membros de organizações sindicais ou quando adotam uma visão internacionalista do mundo, já não fazem parte da cultura da pobreza, ainda que continuem sendo desesperadamente pobres". Lewis não sabe que afiliados ao nosso partido, nossa internacional, existem "canalhas", chamando-os assim, já que não são imberbes militantes que estão na cultura da pobreza, na acepção de Lewis, que não têm nenhuma "capacidade de retardar seus desejos". Mas essa exceção não anula a correta definição do autor, que não tem porque conhecer os processos excepcionais e degenerativos.
A Rebelião Burguesa e Pequeno-Burguesa Contra a Sua Moral o Existencialismo e Espontaneísmo
Dado o objetivo específico do livro de Lewis, este não tira todas as conclusões gerais de algumas de suas observações mais interessantes: inclusive entra em contradição aparente com algumas delas. Lewis intui que a cultura da pobreza, da desclassificação, a lumpenização, com todos seus valores morais, não é própria somente do lumpen tradicional, mas que todas as classes podem lumpenizar. Por exemplo, sublinha "a cultura ou sub-cultura da pobreza nasce de uma diversidade de contextos históricos, mais comum que se desenvolva quando um sistema social estratificado e econômico atravessa um processo de desintegração ou de substituição por outro, como no caso da estratificação de feudalismo ao capitalismo, ou no transcurso da revolução industrial". Diretamente não liga neste caso a cultura da pobreza ao baixo nível econômico-social, mas a uma etapa de transição, que provoca desclassamento, ainda que ele não o diga assim.
Isto se vê confirmado pela contradição formal em que cai ao assinalar como opostas a cultura da pobreza, em nossos termos "lumpen", e a da classe média, mas de relance dá a melhor definição que conheço do existencialismo como corrente filosófico-social: "talvez esta realidade do momento (presente) seja a que os escritores existencialistas de classe média, tratam de recuperar tão desesperadamente, mas que a cultura da pobreza experimenta como um fenômeno natural e cotidiano".
É que Lewis não sabe que a classe média, durante a primeira guerra mundial, em alguns de seus extratos, de forma cada vez maior desde a segunda guerra mundial, encontra-se como que sem futuro, que a sociedade imperialista ou neo-capitalista a condena ao presente de uma vida automatizada pelos reflexos do mercado, ao irracionalismo da vida sob o capitalismo, ou seja, o condena a não ter futuro e portanto a não ter moral. Produz-se então, uma rebeldia dentro dos marcos burgueses contra os valores da burguesia em nome de suas próprias categorias. Tanto o sub-realismo como o existencialismo refletem essa situação sem saída de estratos muito importantes da pequena-burguesia. Mas para intelectuais pequeno-burgueses, no fim das contas, sua rebeldia é levar os princípios burgueses e pequeno-burgueses até suas últimas conseqüências. A liberdade individual como opção é uma das categorias morais principais do existencialismo, ou seja, o principio de fazer o que se quiser. A satisfação das necessidades mais primarias, o imediato, o biológico é a outra reivindicação, a vida, a existência. O individualismo é a terceira categoria. É uma filosofia e moral da pequena-burguesia lumpenizante, desclassificada, sem perspectiva, que se refugia ou busca desesperadamente no biológico e no individuo uma tábua de salvação. Sua moral é o amoralismo, já que ao colocar como suprema norma o satisfazer e optar individualmente, elimina-se o elemento funda mental de toda moral, a relação de necessidade entre o grupo e o indivíduo que forma parte dele. Este último pós-guerra explica o auge e o apogeu do existencialismo, quando a Europa capitalista ainda não havia conseguido se recuperar e o stalinismo frustrava a perspectiva revolucionária. Entre os dois fogos da decadência total da sociedade capitalista européia e o oportunismo dos grandes partidos de massas, surgiu uma terceira via, a do individualismo mais extremo, a do existencialismo, a da conceitualização filosófica e moral da rebeldia dessa pequena-burguesia, junto com seu desclassamento.
Porém este um fenômeno generalizado nas épocas de crises. Setores e mais setores destas classes dominantes ou em certo sentido privilegiadas, como a classe média, vão rebelando-se desde distintos níveis e partindo de categorias ou consignas das próprias classes dominantes em sua época de ascenso.
Porém sejamos claros, essa rebeldia chega a formular o aparato conceitual dos lumpens, redescobre a moral lumpen, sem a riqueza espontânea destes, com o pecado original de ser intelectualizada. Enquanto os lumpens são individualistas ao extremo, gozadores da vida e de todos os seus impulsos, vivedores do presente, que vivem optando "livremente" negando-se a aceitar o mundo da necessidade, ainda que este termina sempre se impondo, os manda para a prisão ou incendeia a favela, diretamente, sem programa, sem linha expressa, são assim porque o são e basta; os existencialistas fazem um programa e uma filosofia desse amoralismo e individualismo. É sua miséria e seu calcanhar de Aquiles elevar a uma religião o que nos lumpens é sua vida. Por outro lado é muito profundo o processo porque reflete a lumpenização de setores da pequena-burguesia produzida pelas próprias crises da sociedade burguesa.
O Espontaneísmo
A pequena-burguesia desclassada do último pós-guerra foi assimilada pelo "milagre europeu", ou seja, pelo neocapitalismo. Encontrou um futuro na "forma de vida norte americana", os automóveis, refrigerantes, apartamentos e férias. O existencialismo desapareceu, ficou como o sub-realismo da anterior guerra, relegado ao devaneio das curiosidades filosóficas ou morais.
Porém dentro do neocapitalismo, a pequena-burguesia o estudantado como reflexo de toda sociedade, iriam sofrer tanto ou mais, ainda que de forma diferente, que durante o pós-guerra. A alienação, a proletarização, a venda não somente de sua força de trabalho mas também sua personalidade, a falta de perspectivas científicas e humanas para os estudantes dentro do neocapitalismo, provocaram uma nova rebelião com características comuns e com diferenças pronunciadas com seus pais, avós, os sub-realistas e existencialistas, o espontaneísmo das grandes rebeliões estudantis do ano 68.
Antes de mais nada esta não foi de pequenos estratos, de intelectuais e outros setores de pouca significação numérica, mas de grandes massas estudantis, acompanhadas, às vezes, de setores da juventude operária, como em maio de 68 na França. É um movimento muito mais progressivo que os anteriores, porque não é somente uma rebelião individual levada aos extremos de atacar todos os tabus e valores presentes e passados da sociedade burguesa em nome de uma moral de desclassados, mas um movimento que tende a ser de massas.
Na realidade se deu o processo intelectual que sofreu Carlos Astrada [1N], o grande filósofo argentino. Este começou como um convencido existencialista para depois superar o existencialismo em um ponto; de individual o transformou em coletivo, de massas. Aceitava todas as categorias existencialistas, opção, existência ou vida, liberdade, porém negava a do indivíduo, ele acreditava que todas as categorias se davam ligadas aos grandes grupos humanos, inclusive as classes. Havia opção e existência das classes. Seu próximo passo foi afirmar que o determinante era o mundo da necessidade para dar o salto do existencialismo ao marxismo. Salto entre parêntesis, que nosso partido o ajudou a dar. Isto foi o que ocorreu com os intelectuais, os estudantes e setores da classe média dos grandes movimentos de 68. Aplicaram os conceitos de Astrada à realidade, isso é o espontaneísmo.
Esta passagem do existencialismo ao espontaneísmo só pode ser compreendida pela existência do neocapitalismo. Este, com seus grandes monopólios que controlam não só o mercado mas toda a vida contemporânea, com suas ganâncias políticas e sindicais, os grandes partidos e sindicatos que controlam o movimento de massas a serviço dos estados e dos grandes monopólios, ainda que se chamem comunistas, cuja função é castrar todo movimento ou ação das massas, provocou uma reação compreensível na juventude, o repúdio a todo intermediário ou organizador do movimento de massas, que estas façam espontaneamente o que queiram, a ação pela ação mesma. Que ainda não se tenham elevado a compreensão de que o que há que questionar são as organizações e os intermediários do movimento de massas, que se trata e se necessita de sindicatos, partidos, sovietes, guerrilhas revolucionárias que disputem esse papel de intermediários às organizações enfeudadas nos monopólios, é lastimável, mas um fato compreensível. O espontaneísmo é o repúdio a essas organizações traidoras sem haver ainda encontrado o caminho. Como tal é muito progressivo. Questiona as organizações oportunistas e reivindica as ações do movimento de massas.
No terreno moral, o espontaneísmo não é tão progressivo, ao contrário, é uma recaída no existencialismo, por uma razão simples: ao contrario da política que coordena e dá objetivo às ações do movimento de massas, a moral regulamenta as relações do individuo com seu grupo, sempre são normas para serem aplicadas por indivíduos. Dai que o espontaneísmo, a ação por ela mesma, no terreno moral, nos leva ao amoralismo, à moral de individualismo, das opções de "fazer o que tenhamos vontade", de não ter normas. Este "não ter normas" em política, neste momento de sufocante predomínio dos grandes aparatos burocráticos, é positivo; não o é tanto no terreno moral, ou pelo menos não é superior aos aspectos progressivos, de reivindicação da imediatez contra os tabus e normas da burguesia, que já tinham as morais anteriores surrealista e existencialistas. É uma reação a elas. Portanto, não supera os marcos de rebeldia dentro das próprias estruturas burguesas.
Uma prova conclusiva de tudo isso, de como a burguesia cai em predações e como o espontaneísmo moral, em última instância, é como definia Lenine o anarquismo, liberalismo burguês com 40 graus de febre, dado por um fato sintomático, o programa moral da ala esquerda da juventude conservadora britânica.
Li casualmente um artigo no "The Daily Telegraph" de 25 de setembro de 1969. O tema me pareceu em principio pouco interessante: "Como são os jovens conservadores?" por um tal de T.E. Utley. Depois de assinalar que é um "sério movimento de massas que cresce com imensa velocidade", continua em outra parte dizendo qual seu programa: "Há, por outro lado, minorias ruidosas, tal como a representada pela capacitada e estridente jovem parceria Erie e Lynda Chalker da juventude conservadora da Grande Londres"... Este jovens conservadores prepararam uma pauta de reivindicações (Bill of Right) com 15 liberdades que incluem "a liberdade de expressão sexual" e "liberdade de tomar drogas...". "Estes jovens conservadores exigem uma legislação liberal, de cujos aspectos muitos são a aplicação na esfera moral dos princípios econômicos". A prova conclusiva do que vimos dizendo: os jovens conservadores, levando ao absurdo as liberdades burguesas, chegam a ter um programa moral igual ao dos espontaneístas. Lamentavelmente, também igual ao programa moral pessoal de alguns companheiros relevantes do partido. Esta moral é irmã siamesa da cultura da pobreza. Nada disso quer dizer que de maneira absoluta este programa moral, inclusive a dos jovens conservadores, não possa ser útil à revolução em um momento determinado, como já veremos em outro capitulo deste trabalho. Mas, o que sim podemos afirmar já, é que se algum velho camarada ou algum dirigente tem esta mesma moral, nele é um processo claramente degenerativo, de uma moral bolche e prole para lumpen, onde se encontra com os setores desclassificados de todas as classes, portanto é ele, o desclassificado do movimento marxista, não por isso ou talvez por isso, seja o único repugnante e canalhesco.
A Moral Guerrilheira
Contra todas essas morais e políticas da decomposição de troca, da transformação, do vazio, da falta de política e de moral, levantou-se neste pós-guerra a moral guerrilheira, uma ética e consciência dos deveres que nos deve fazer meditar muitíssimo, porque é tão objetiva, ou seja, existente, como todas as que relatamos, que se pode contar e até tocar.
Apesar de que os espontaneístas reivindicam e defendem os movimentos guerrilheiros, estão há anos luz, no extremo oposto do programa e da moral guerrilheira, ainda que profundas razões de classe façam com que tenham pontos comuns, seu caráter não proletário.
A guerrilha não é uma luta esporádica, mas ao contrário, é uma guerra longa que exige uma disciplina e organização férreas. É a negação do espontaneísmo, justamente a máxima expressão do organizado, do anti-espontâneo. É uma guerra com milhares de combatentes, como tal tem uma moral adequada a essas necessidades. Sua moral é tão severa como sua organização e tão sacrificada como sua luta. Todo o imediato, o sexual, a alimentação, como todas as necessidades culturais imediatas ou mediatas, são sacrificadas às necessidades da luta armada, o fator decisivo que restringe ou medeia tudo, inclusive a moral.
O canalha que andasse fazendo espontaneísmo moral, que dissesse ou fizesse as monstruosidades que me escreveram, na guerrilha certamente seria fuzilado. Todos os desejos, necessidades, são subordinadas e inclusive adiadas pelas necessidades da luta guerrilheira. Podem se passar anos sem ter relações sexuais, acossados na montanha pelas forças inimigas e quando encontram as camponesas são proibidos de ter relações com elas. Podem estar mortos de fome, mas terão que agüentar essas necessidades fisiológicas de primeira ordem, em vez de roubar, saquear algo do camponês. Seu companheiro cairá ferido na emboscada inimiga, deverá ficar ao lado do companheiro para arrastá-lo enquanto esta vivo, para fora da emboscada com o risco da própria vida. A vida do companheiro vale muito mais que a dele, porque ele está são e pode se salvar e o companheiro ferido, mas a moral guerrilheira exige que nenhum guerrilheiro caia vivo em mãos do inimigo para evitar as torturas.
Esta moral guerrilheira levou até os últimos extremos a liquidação ou castração do imediato e do cultural, em beneficio do futuro, da luta, da guerrilha. Graças a este sentido do dever, como um de seus principais elemento, pode triunfar. Negou todas as necessidades humanas para impor a máxima necessidade, a da revolução e a guerra civil contra os exploradores.
Há elementos, ou às vezes uma linha sectária nesta moral guerrilheira, há reminiscências do puritanismo. Não é casual já que a moral guerrilheira sintetiza muitos elementos, superando-os, das morais anteriores progressivas, revolucionárias desde o cristianismo antigo, até o puritanismo, a negação do imediato e as outras necessidades humanas, em função da necessidade principal.
Desta moral podemos dizer o mesmo que dissemos de seu máximo expoente, Che Guevara, pode ter erros, tem erros, não é a solução equilibrada, total, mediada do problema, mas, essencialmente a máxima expressão objetiva, neste pós-guerra, de moral revolucionária. A única coexistente com a nossa, que ainda não tem maior peso objetivo.
Por fim, depois das canalhices habituais em um setor do partido, da falta de moral de todas as correntes burguesas, pequeno-burguesas e lumpens que estudamos, chegamos a um porto seguro, a uma "moral revolucionária", como a havia definido Trotsky: todas as ações estão super ditadas ao triunfo da revolução. Nossa moral é a negação de todas as outras, ainda que possam ter pontos comuns com algumas delas em determinados momentos, mas é a prima irmã da moral guerrilheira. Já pisamos no chão, entramos no caminho da revolução, de sua política, mística, teoria e moral. Já saímos das Catacumbas e isso é importante - Que bem fez o ar fresco!
Notas:
[1*] Refere-se uma fração do partido argentino naquela época que veio dar origem posterior ao PRT (Partido Revolucionario de los Trabajadores) e ao ERP.
[1N] Carlos Astrada nasceu em 26 de fevereiro de 1894 em Córdoba, Argentina, e morreu em Buenos Aires, em 23 de dezembro de 1970. Foi professor de Gnoseologia e Metafísica e Diretor do Instituto de Filosofia da Universidade de Buenos Aires.
Moral Bolche ou Moral Espontaneísta?
Meu contato com o partido, devido minha situação, tem sido durante estes meses através da correspondência. Não posso me queixar porque tem sido bastante intenso. Sem querer, levado pelo intercâmbio de cartas, fui me metendo no problema moral, desviando-me um tanto de meu projeto de escrever um trabalho sobre a situação peruana. É que vários dos companheiros e companheiras que me escreviam esboçavam ou defendiam posições sobre a moral que eu considerava alheias as nossas tradições e concepções.
"Há que ser honesto consigo mesmo", me escrevem, repetindo uma velha frase minha aprendida dos mestres; "tenho ânsias de viver e quero satisfaze-las"; "a primavera, o cheiro das flores, a conversa com as companheiras ou amigas fazem com que se possa passar qualquer coisa e tudo o que ocorrer está bem"; "não tenho que ter esquemas ou dogmas no problema sexual ou moral"; "nossa moral é fazer o que gostamos em qualquer momento".
Destas formulações teóricas passaram a dar-me todo um programa concreto de ação moral, "que louco é o companheiro tal que vive pensando em sua companheira presa, diz que cada vez a quer mais, quando a separação física por razões objetivas provoca inevitavelmente desamor, afastamento", "com minha companheira presa atuo de forma diferente, saio ou trato de sair com outras companheiras, assim consigo uma espera "ativa" e não "estática" etc., etc... Todas estas são citações textuais ou quase textuais, com ligeiras modificações para evitar sua identificação.
Antes da divisão "os combatentes" [1*] atacaram os companheiros da Zonal Norte por terem, segundo eles, essa moral. Naquele momento nos levantamos indignados contra tal infâmia e falsidade, que provinha justamente de dirigentes cuja moral pessoal era verdadeiramente repugnante, da pior que tenho visto em minha longa militância. Acreditava que essa polêmica com os combatentes havia aclarado o panorama. Parece que não é assim.
Na última escola de quadros tive a intenção de tocar neste tema, já que o considerava parte importante da educação militante. Por razões de tempo, me foi impossível fazê-lo. Creio que a grande quantidade de novos companheiros, a debilidade de sua formação, a falta de tradição marxista revolucionária, como o grave perigo de que companheiros de prestigio por serem ou haverem sido parte da direção nacional, tenham essas falsas posições e possam influir nos novos quadros partidários, exige que de uma vez por todas abordemos o problema. Sem dar muitas voltas direi que considero que existe todo um setor do partido que por um grave processo degenerativo, social, político, sua lumpenização, tem adotado posições sobre o problema moral que atentam contra a marcha e o fortalecimento de nossa organização. O tema toca, por outro lado, de forma muito mais profunda na realidade contemporânea. Vivemos a época mais revolucionaria da história, o salto da sociedade de classes, da pré-história humana para a sua história. Isso significa que estamos passando de formas de vida, costumes, relações econômicas, entre os sexos, das distintas esferas da atividade social arcaicas às novas. Porém estas últimas estão muito longe de se terem cristalizado, justamente porque estamos numa época de transição. Nestes períodos históricos nenhuma norma se fixa, se cristaliza; se derrubam umas, aparecem outras. A moral não uma exceção, pelo contrario, é um dos aspectos da vida que sofre uma maior comoção. Os velhos valores entram em crise antes que triunfem os novos e que os mesmos tenham se estruturado. Todas as épocas de mudanças revolucionária, nos tem mostrado uma situação similar de confusão moral, de amoralismo oficial, de choques entre distintas morais. O renascimento italiano com seus Papas, os Borgia, ou seus artistas, como Benvenutto Cellini, nos mostra um amoralismo que nos deixa estupefatos. A decadência do Império Romano, com suas orgias, seus imperadores "marido de todas mulheres e mulher de todos os maridos da corte" outra prova do que vínhamos dizendo. Que destas épocas tenham surgido as tremendas morais de Savonarola, Calvino, a primeira; o catolicismo dos primeiros séculos, a segunda, não faz mais que confirmar que na luta contra o amoralismo oficial, decadente, se foram estruturando uma nova moral, que refletia uma nova época e classe.
Os companheiros que captamos, são, principalmente, estudantes, vêem de uma sociedade em falência, repugnante, com pais separados ou que traem um ao outro; com amigos ou conhecidos que relatam orgias sexuais reais ou imaginarias; com filmes que se divertem em descrever todas as variantes de perversão sexual, com a leitura diária sobre a quantidade de maconha ou ácido lisérgico que consome a juventude norte-americana ou européia; com filmes pornográficos japoneses ou suecos que superam tudo o produzido na pré-guerra pelos franceses ou alemães; com pederastas ou lésbicas; com crimes ou assaltos vários; com delinqüentes públicos transformados em grandes personagens que gozam de todos os favores e prestígio social; com uma escala aristocrática onde as artistas de cinema e televisão, rodeadas de playboys, são supra sumo da moda, dos costumes, da moral; com uma frieza entre os sexos nos países avançados, onde se esta produzindo a liberação da mulher, que preocupa aos sociólogos; com a pílula como elemento fundamental na liberação da mulher. Estes companheiros chegam ao partido vindos de uma sociedade totalmente corrompida, sem valores de nenhuma espécie, onde a família, a amizade e as relações entre os sexos estão totalmente em crise. Isto não pode menos que refletir-se nas próprias filas partidárias, já que não vivemos enlatados a vácuo, mas sim dentro dessa sociedade.
Frente a esta situação se impõe a necessidade de precisarmos então que classe de moral temos, e inclusive se temos alguma.
Como Encaram Teórica e Praticamente Nossos Mestres o Problema Moral
O "Velho", em seu conhecido folheto "A Moral Deles e a Nossa" (ou Moral e Revolução) deu as linhas gerais da moral revolucionaria. Combatendo a concepção da pequena-burguesia, principalmente a intelectual, que sustentava e sustenta que há uma moral acima das classes que obriga a todos os homens a respeitar certos princípios, deveres morais, reivindicou a relatividade e o caráter de classe de nossa moral, como da moral em geral.
Nada de princípios absolutos, gerais, para a moral; a base da nossa é a revolução proletária. Tudo que a favoreça em nossa conduta é moral, entra dentro de nossos valores: tudo que a debilite ou vá diretamente contra a revolução, é imoral. Estes princípios nos obrigam a colocar o eterno problema dos meios e dos fins. Como sabemos que tal meio ou atitude moral serve à revolução? "Os fins justificam os meios" dizia a velha moral dos jesuítas. Trotsky respondia; "sim, sempre que os meios levem aos fins". Ou seja, entre fins e meios há uma dialética, já que nem todos os meios são viáveis, úteis. Mentir ao movimento de massas não serve para nada ainda que quem o faça tenha as melhores intenções, já que rebaixa o nível de compreensão dos fenômenos políticos e sociais pelos trabalhadores. É, portanto, não só um erro político, senão uma grave falta moral. Porém, um companheiro que tem uma missão dentro de um ambiente inimigo tem que mentir sistematicamente, porque sua mentira vai a favor do desenvolvimento do partido e da revolução. Se por exemplo, um companheiro despedido da Kaiser de Córdoba vem a Buenos Aires para buscar trabalho, por ter sido incluído nas listas negras da patronal cordobesa, logicamente não dirá a verdade aos novos patrões: "fui demitido da Kaiser porque era ativista sindical". Sua mentira é valida, estritamente moral.
Os intelectuais pequeno-burgueses assustados pelos que dizem que existe um principio moral sagrado, "não mentir", dizem: "portanto esse companheiro cordobés de vocês é um imoral de marca maior, vive mentindo a todos os patrões de Buenos Aires a quem pede trabalho".
Este principio moral situado por Trotsky: servir à revolução como critério básico deixa muito campo livre para a independência e desenvolvimento pessoal no campo das relações entre os sexos, a família e os outros companheiros. As diferenças apreciáveis na vida de nossos grandes mestres o demonstra. Não é segredo que Marx teve relações pessoais que alguns críticos modernos consideram de "moral vitoriana": fidelidade absoluta no matrimônio, relações exageradamente sérias com suas filhas, que noivaram e se casaram com todas as convenções da lei (inclusive a que se uniu livremente a seu companheiro inglês, que depois se suicidou, também o fez de forma bastante séria), aparentemente certa atitude depreciativa frente as relações de Engels com suas companheiras irlandesas, as duas irmãs, que nunca visitaram a família Marx (ainda que não me conste, me dizem que Bernstein, em um de seus livros, comenta que na casa de Marx eram muito mal vistas as relações deste com a irlandesa). Engels era o oposto de Marx. Em lugar de uma só noiva como este, que depois foi sua esposa, ainda com um bom lote (quando da revolução alemã de 48, chegou vários dias depois de combinado porque havia passado por Alsácia e Lorena a pé, onde "havia muitas mulheres lindas e bons vinhos" foi sua desculpa). Marx vivia assustado com as manias de Engels pela equitação e as " relações sociais". Os mexeriqueiros europeus, que também existem em grande quantidade, estão muito preocupados averiguando se andava com as duas irmãs ao mesmo tempo. O "Velho" comentava a correspondência dos dois amigos diz que surgem como maravilhas humanas, principalmente Engels. Eu compartilho desta opinião.
Entre Lenine e Trotsky há diferenças parecidas às existentes entre Engels e Marx respectivamente. Trotsky se casa duas vezes e tem relações sérias, quase "vitorianas", segundo os seus críticos europeus. Lenine, segundo insinua Deutsher e asseguram os fofoqueiros de turno, parece que teve algumas relações com suas ajudantes. Segundo os comentários que corriam em Moscou em fins da década de 20, o segredo da capitulação de sua magnífica companheira, Krupskaia, à Stalin, era a chantagem de que havia sido objeto por parte desse chacal: se não capitulasse a denunciaria como não tendo sido a companheira de Lenine e tiraria de sua manga alguns dos casos deste para ser reivindicada como tal. Por outro lado, Pola Negri, em suas memórias que li, não me contaram, relata que na Suíça, onde ela trabalhava em um cabaré ou algo parecido, havia estado com um homem de pequena estatura que foi a pessoa mais extraordinária que havia conhecido em toda sua vida. Essa pessoa era Lenine. Se isto for certo e não uma manobra publicitária de Pola Negri, duvido muito que a amizade entre ambos tenha sido justamente para jogar cartas.
Por um problema que Trotsky teve ao final de sua vida com sua companheira nos inteiramos do tipo de relação que tinham. Parece que o "Velho" e a senhora de Diego Rivera haviam se simpatizado em demasia, até provocar a indignação da Velha.
Isto provocou uma emocionante troca de cartas entre os dois Velhos: Don Leon lhe dizia em sua carta que ele jamais lhe havia pedido satisfação sobre as relações dela com seu secretário durante a guerra civil, apesar das presunções ou comentários de que tinham relações. Isto revela que Trotsky tinha a concepção de que cada um dos cônjuges era livre para fazer o que quisesse, sem ter que prestar contas ao outro: a independência pessoal mais absoluta. Deixando de lado que a Velha esclareceu o equivoco e a falsa versão ou presunção e que o Velho não recebeu mais a senhora de Diego Rivera, a posição que surge pela correspondência é contraditória, porque embora nela Trotsky afirma que nunca pediu prestação de contas, de fato nas duas cartas trocadas há, uma indireta e sutil intenção de prestação de contas, de estabelecer relações francas, verdadeiras, entre ambos e não da liberdade total absoluta e secreta.
Deste breve resumo, podemos tirar uma conclusão: que nossos mestres, dentro da moral geral que todos eles observaram no desenvolver da revolução, tiveram pronunciados matizes diferenciadas, inclusive contraditórios, na moral cotidiana com o outro sexo, a família e os companheiros, provocados por razões da época ou formação individual. A constatação deste fato pode nos levar a uma conclusão apressada e perigosa: que não há nenhuma relação entre a moral geral revolucionária e a que temos que empregar todos os dias em nossa vida de relação mais íntima. Dito de outra maneira, que não há normas ou linhas concretas em nossa moral, mas apenas generalidades.
Creio que pelo contrário, este é um terreno, como tantos outros, que não aprofundamos e que essa é a razão pela qual podemos tirar essa falsa conclusão. Não é casual que nesta etapa da revolução, como de nosso partido, comecemos a estudar o problema, tratando de solucionar, de descobrir, as leis que nos permitam retirar da lei geral de nossa moral, de que tudo o que ajuda à revolução e ao partido revolucionário é lícito, as normas justas de atuação cotidiana, principalmente em relação aos companheiros, nossas famílias e especialmente com o outro sexo.
O Que é a Moral?
Para avançar neste terreno, devemos começar por nos colocarmos de acordo em o que é a moral, o que significam os valores e deveres morais.
O homem vive em sociedade, formando parte de agrupamentos humanos, classes, grupos, famílias, nações, bairros. Essas estruturas sociais, para se manterem e se desenvolverem necessitam impor aos indivíduos que a formam, uma série de normas, obrigações, que garantam a conquista de objetivos como a solidez dessas estruturas. Essas normas que toda estrutura social impõe a seus indivíduos, são justamente as Morais. A ciência moderna, tende a dividir essas normas entre as mais abstratas, que estuda a ética, e as mais concretas, os deveres, que analisa uma nova ciência, a deontologia ou ciência dos deveres. Não quero me perder nos detalhes, que para o nosso caso são secundários. O importante é compreender o papel social fundamental que cumprem as normas sociais: o meio de garantir que o indivíduo, pressionado pelos valores e deveres de sua organização social, responda às necessidades desta.
Um exemplo: um sindicato é uma organização social, tem portanto, normas e deveres morais para com seus integrantes. Estas, entre outras, são as seguintes: acatar sempre o que os operários resolvam por maioria, ser solidário com todo pessoal em greve, não "furar greves" nunca. Estas normas garantem a solidez, desenvolvimento e conquista dos objetivos da organização sindical. Se não existissem ou se não se cumprissem, essa organização desapareceria em curto prazo. Estas normas morais se impõem por convencimentos dos indivíduos e por pressão moral e até física da organização social sobre eles. O que caracteriza é a pressão moral, ou seja, de opinião coletiva da organização.
Em torno deste último aspecto, surgem os pontos de contato e as diferenças entre o direito e a moral. Em um sentido, o direito é a moral mais um garrote, o do Estado ou qualquer outra superestrutura. Mas o direito é muito mais que isso, já que regulamenta muito mais relações que a moral. Enquanto esta apenas dá normas para a atuação individual dentro da organização, o jurídico dá leis ou resoluções que tratam de regulamentar todas as relações existentes na sociedade, entre as classes, os grupos, os indivíduos, de todos eles entre si, mas em benefício de uma classe e aplicado por um estado a serviço da mesma classe. Dai que o direito utiliza os meios diretamente compulsivos, a cadeia, as penalidades, próprios da força do estado, enquanto a moral utiliza a persuasão ou o repúdio moral, isto é, de opinião de grupo.
Algo semelhante ocorre com os costumes. Todo agrupamento tem seus hábitos de vida; se cumprimentam de tal forma, nós por exemplo, nos dizemos "como vai companheiro", outras organizações de esquerda "como vão camaradas". Fazem-se bailes ou almoços, ou ambas atividades de uma vez. Cada agrupamento social tem seus hábitos cotidianos de viver, são os costumes. Têm há ver com a pratica diária de existência desse agrupamento. Estes hábitos ou costumes cotidianos são fundamentais para a subsistência do agrupamento, mas não fazem à essência das relações, os costumes ou alguns deles, podem mudar sem afetar em nada o agrupamento. Também alguns indivíduos podem ser diferentes, não cumprimentam dizendo "como vai companheiro", mas sim, "como vão amigos e amigas", é contra o costume, mas não afeta em nada a estrutura do agrupamento, neste caso nosso partido. Os costumes são elemento espontâneo do agrupamento, tomado em sua média estatística. A moral funde suas raízes nos costumes, mas bem diferente, não é toda a vida cotidiana como esta última, mas um aspecto privilegiado desta, aquele aspecto que faz à sobrevivência da estrutura social de que se trata e, portanto, são normas estritas, severas, essenciais para serem aplicadas por indivíduos.
Aclaram-se assim as três escalas deste aspecto da vida social. - Os costumes é o espontâneo, o geral e o cotidiano da vida e práxis de todo agrupamento social. A moral são as regras, normas, deveres que garantem a sobrevivência, desenvolvimento e fins do agrupamento social, através dos indivíduos que o formam. O direito é uma superestrutura que tende a regulamentar todas as relações, não só as excepcionais e essenciais, como as morais, mas todas, desde as horas de reunião de um partido, até as relações entre as classes no direito público do estado burguês. Toda classe, organização social, tem então, seus costumes, moral e direito. Nosso partido, o partido bolchevique argentino, o PRT, não é uma exceção. Todos nós sabemos que temos nossos costumes, alguns parecem ter se esquecido que também temos uma moral e temos nosso direito (o estatuto).
A Crise da Moral Burguesa
A burguesia, em sua época de ascenso e plenitude, impôs uma sólida moral. A base dessa moral era dada pelas necessidades da acumulação primitiva capitalista. A célula fundamental dela era a família patriarcal burguesa, com muitos filhos e o domínio absoluto do pai, os máximos valores eram os familiares. O futuro, com seu afã de engrandecimento, condicionava todos os valores morais. A poupança, a economia, a obediência servil dos filhos e da mulher ao chefe da família, a acumulação de um capital antes de se casar, o que levava a que se casassem já maduros, o casamento acertado entre famílias para que as filhas se casassem o mais rápido possível, quase meninas, para que não fossem uma carga para o processo de acumulação, caracterizava esta moral. Como vemos, predominava a organização familiar e uma moral adequada a essa organização, cujo objetivo era a acumulação capitalista. Tudo era sacrificado pelo futuro, principalmente o presente. Os homens se casavam já maduros porque haviam sacrificado sua juventude para a acumulação da fortuna que lhes permitiria constituir um lar burguês, com a marcha acumulativa assegurada. Primeiro a fortuna, depois o casamento, era a regra moral. As meninas, para assegurar seu futuro, eram obrigadas a casar com velhos que poderiam ser seus pais ou avós, se lhes frustrava, por toda vida, suas possibilidades instintivas, para lhes assegurar um futuro econômico.
Entre essa moral oficial e as necessidades biológicas, produzia-se uma dicotomia, uma grave contradição, insolúvel dentro dos marcos estritos daquela. Dai que essa moral entrasse em contradição com o costume, era hipócrita, já que solucionava ou tentava solucionar suas contradições por meios ocultos e hipócritas. Para os homens: os prostíbulos; para os jovens, especialmente os da burguesia, as vedetes ou "malas gruas" como com ironia as definiam os franceses do fim do século, porque levantavam seus candidatos desde o palco, ou diretamente a amante cara. Para as pobres mulheres, condenadas a uma moral oficial masculina, a "traição" de seu velho esposo ou, se as circunstâncias o impedissem, o anamoramento romântico, "impossível", cheio de versos "cursi" que escondiam aparências mais realistas. Mas, em geral, a mulher burguesa esteve condenada sob esta moral a não satisfazer suas necessidades biológicas ou culturais, já que os cartões postais ou os versinhos do apaixonado do momento não podiam satisfazer essas necessidades prementes. No século passado, e em grande parte no presente, segundo os sexólogos, a maior parte das matronas da burguesia morriam sem haver conhecido o ato sexual integralmente e as que conseguiam eram uma exceção, que quase sempre se dava em uma idade relativamente madura, depois dos 30 anos.
Paralelamente a estes problemas morais e de costume, foi-se produzindo outros, à medida que a burguesia acumulava: a necessidade de gozar do conquistado. A conseqüência disto, foi que, das duas caras da moral burguesa, a pública e a restrita, a hipócrita e a oculta (o adultério, as amantes, os prostíbulos), o desenvolvimento capitalista foi dando proeminência a esta última. Isto significava que a necessidade de acumulação primitiva deixava lugar ao andamento normal, não opressivo dessa mesma acumulação. Poderíamos falar de duas morais burguesas, uma a de acumulação primitiva, outra, a da burguesia em seu apogeu. Na primeira domina o futuro, tudo ou quase tudo era sacrificado por ele. O presente se esconde e é solucionado de forma clandestina. Em seu apogeu, produz-se um bastardo equilíbrio entre o futuro e o presente, a hipocrisia se torna pública, e a burguesia aceita gozar o presente, sem renegar o futuro. Mas as graves contradições continuaram existindo.
Os grandes descobrimentos de Freud não podem ser explicados sem os enfocar como conseqüência da observação destas graves contradições da moral predominante de sua época, em Viena.
Freud utilizou a ciência para descobrir a hipocrisia dessa moral e o lado oculto dela, o biológico. Este século o da decadência da burguesia, com ela cai em pedaços sua moral, esta entra em uma crise tão brutal como o regime que a fundou. A família patriarcal burguesa da etapa de ascenso, desaparece, se rompe, para dar lugar a relações entre os sexos e os membros da família anárquica, crítica, onde o elemento fundamental é a transformação de cada indivíduo em desfrutador do mundo e do outro sexo. Esta moral reflete a passagem da acumulação capitalista desesperada à tentativa da burguesia de gozar o presente. É a putrefação do indivíduo burguês levado aos seus últimos extremos, o das relações pessoais e sexuais. Os setores mais cultos, rebeldes ou desclassificados da própria burguesia, apelam impudicamente a um giro ao biológico, o imediato, quer dizer, o abandono de toda moral, de toda perspectiva para o futuro. A psicanálise fica na moda nos anos 20, principalmente nos Estados Unidos. Todo o espontâneo e as necessidades biológicas encontram justificação e explicação na psicanálise. Tudo esta bem e permitido, o passado e o biológico, tudo é explicado e justificado. Uma classe sem futuro, logicamente teria que cair, como todas as classes que na história perderam toda sua perspectiva, em um amoralismo.
Mas a putrefação moral da burguesia teria que avançar ainda mais. Com o neocapitalismo, com o controle dos mercados pelos grandes monopólios que o caracterizam, pela manipulação dos consumidores através da propaganda, a perda da moral já é total, nem sequer é um amoralismo, já que se transforma em um consumo, em hábitos, reflexos condicionados e solucionados pelos grandes monopólios. Já a moral, ou falta de moral, nada tem a ver com pessoas de carne e osso, mas com objetos ou pessoas-objetos. Até as necessidades biológicas mais primárias são manejadas, manipuladas, pelos que controlam o mercado, que rebaixam assim a moral a um ramo a mais do mercado monopolista. A vida se torna aborrecida, a moral desapareceu, já não são deveres que os homens impõem a si mesmos, para defender uma estrutura social, mas reflexos condicionados, costumes, satisfação por esses reflexos, de necessidades biológicas ou sociais. Entramos em uma época de falta de moral ou de uma ética congelada.
A esta moral da burguesia em decadência, se combina, com seus aspectos característicos, a outra moral, que é sua sombra rebelde, em certo sentido seu rosto verdadeiro, a moral dos setores deslocados das grandes cidades.
A Moral Lumpen
Nas favelas desta etapa neocapitalista estão congregadas multidões que estão relativamente à margem do mercado capitalista, sua ligação com ele, com seus fetiches, é muito menor que a dos outros consumidores. Seu regime de vida é instável. São grandes concentrações de desclassificados, lumpens. Muitos deles se transformam em operários, outros não; mas o elemento determinante está dado por essa caracterização. Os companheiros que trabalharam sobre a greve portuária, conhecem na própria carne a verdade do que estamos dizendo. Que moral têm esses conglomerados?
Não necessitamos investigar muito, existe um livro magnífico que não só estudou uma família desse conglomerado, mas que retirou algumas conclusões significativas. Refiro-me a "Os Filhos de Sánchez" de Oscar Lewis; o autor, depois de assinalar que as conclusões podem ser aplicadas às grandes cidades, diz o seguinte: "outros aspectos incluem uma forte orientação para o tempo presente, com relativamente pouca capacidade de retardar seus desejos e de planejar para o futuro, um sentimento de resignação e de fatalismo baseado nas realidades de difícil situação de sua vida". Os membros da classe média, e isto inclui logicamente a maioria dos investigadores das ciências sociais, tendem a se concentrar nos aspectos da cultura da pobreza e tendem a associar valores negativos e características tais como a orientação centrada no momento presente, a orientação concreta versus a abstrata. Não pretendo idealizar nem romantizar a cultura da pobreza. Como disse alguém: "É mais fácil louvar a pobreza do que vive-la". No entanto, não devemos passar por cima de alguns dos aspectos positivos que podem surgir daí. Viver o presente pode desenvolver uma capacidade de espontaneidade, de desfrutamento do sensual, a aceitação dos impulsos, que freqüentemente esta tolhida em nosso homem da classe média, orientado para o futuro. O uso freqüente da violência significa uma saída fácil para a hostilidade, de modo que os que vivem na cultura da pobreza sofrem menos a repressão da classe média. Lewis deu um nome próprio da sociologia norte-americana a este fenômeno: cultura da pobreza, aparentemente não tem nada que ver com as categorias marxistas, é uma definição por lugar de moradia. Mas Lewis é um extraordinário observador além de estudioso. Isto o leva a fazer marxismo, e do bom; a "cultura da pobreza" - nos diz - "só teria aplicação nas pessoas que estejam no fundo da escala sócio-econômica, os trabalhadores mais pobres, os camponeses mais pobres, os cultivadores de plantações e essa grande massa heterogênea de pequenos artesãos e comerciantes, os quais em geral se classificam como "lumpen proletariado". E para que não nos restem dúvidas de que se trata da moral e cultura dos lumpens, nos esclarece, "gostaria de distinguir claramente entre o empobrecimento e a cultura da pobreza. Nem todos os pobres vivem nem desenvolvem necessariamente uma cultura da pobreza". E, rematando suas conclusões, nos diz: "Quando os pobres adquirem consciência de classe, se tornam membros de organizações sindicais ou quando adotam uma visão internacionalista do mundo, já não fazem parte da cultura da pobreza, ainda que continuem sendo desesperadamente pobres". Lewis não sabe que afiliados ao nosso partido, nossa internacional, existem "canalhas", chamando-os assim, já que não são imberbes militantes que estão na cultura da pobreza, na acepção de Lewis, que não têm nenhuma "capacidade de retardar seus desejos". Mas essa exceção não anula a correta definição do autor, que não tem porque conhecer os processos excepcionais e degenerativos.
A Rebelião Burguesa e Pequeno-Burguesa Contra a Sua Moral o Existencialismo e Espontaneísmo
Dado o objetivo específico do livro de Lewis, este não tira todas as conclusões gerais de algumas de suas observações mais interessantes: inclusive entra em contradição aparente com algumas delas. Lewis intui que a cultura da pobreza, da desclassificação, a lumpenização, com todos seus valores morais, não é própria somente do lumpen tradicional, mas que todas as classes podem lumpenizar. Por exemplo, sublinha "a cultura ou sub-cultura da pobreza nasce de uma diversidade de contextos históricos, mais comum que se desenvolva quando um sistema social estratificado e econômico atravessa um processo de desintegração ou de substituição por outro, como no caso da estratificação de feudalismo ao capitalismo, ou no transcurso da revolução industrial". Diretamente não liga neste caso a cultura da pobreza ao baixo nível econômico-social, mas a uma etapa de transição, que provoca desclassamento, ainda que ele não o diga assim.
Isto se vê confirmado pela contradição formal em que cai ao assinalar como opostas a cultura da pobreza, em nossos termos "lumpen", e a da classe média, mas de relance dá a melhor definição que conheço do existencialismo como corrente filosófico-social: "talvez esta realidade do momento (presente) seja a que os escritores existencialistas de classe média, tratam de recuperar tão desesperadamente, mas que a cultura da pobreza experimenta como um fenômeno natural e cotidiano".
É que Lewis não sabe que a classe média, durante a primeira guerra mundial, em alguns de seus extratos, de forma cada vez maior desde a segunda guerra mundial, encontra-se como que sem futuro, que a sociedade imperialista ou neo-capitalista a condena ao presente de uma vida automatizada pelos reflexos do mercado, ao irracionalismo da vida sob o capitalismo, ou seja, o condena a não ter futuro e portanto a não ter moral. Produz-se então, uma rebeldia dentro dos marcos burgueses contra os valores da burguesia em nome de suas próprias categorias. Tanto o sub-realismo como o existencialismo refletem essa situação sem saída de estratos muito importantes da pequena-burguesia. Mas para intelectuais pequeno-burgueses, no fim das contas, sua rebeldia é levar os princípios burgueses e pequeno-burgueses até suas últimas conseqüências. A liberdade individual como opção é uma das categorias morais principais do existencialismo, ou seja, o principio de fazer o que se quiser. A satisfação das necessidades mais primarias, o imediato, o biológico é a outra reivindicação, a vida, a existência. O individualismo é a terceira categoria. É uma filosofia e moral da pequena-burguesia lumpenizante, desclassificada, sem perspectiva, que se refugia ou busca desesperadamente no biológico e no individuo uma tábua de salvação. Sua moral é o amoralismo, já que ao colocar como suprema norma o satisfazer e optar individualmente, elimina-se o elemento funda mental de toda moral, a relação de necessidade entre o grupo e o indivíduo que forma parte dele. Este último pós-guerra explica o auge e o apogeu do existencialismo, quando a Europa capitalista ainda não havia conseguido se recuperar e o stalinismo frustrava a perspectiva revolucionária. Entre os dois fogos da decadência total da sociedade capitalista européia e o oportunismo dos grandes partidos de massas, surgiu uma terceira via, a do individualismo mais extremo, a do existencialismo, a da conceitualização filosófica e moral da rebeldia dessa pequena-burguesia, junto com seu desclassamento.
Porém este um fenômeno generalizado nas épocas de crises. Setores e mais setores destas classes dominantes ou em certo sentido privilegiadas, como a classe média, vão rebelando-se desde distintos níveis e partindo de categorias ou consignas das próprias classes dominantes em sua época de ascenso.
Porém sejamos claros, essa rebeldia chega a formular o aparato conceitual dos lumpens, redescobre a moral lumpen, sem a riqueza espontânea destes, com o pecado original de ser intelectualizada. Enquanto os lumpens são individualistas ao extremo, gozadores da vida e de todos os seus impulsos, vivedores do presente, que vivem optando "livremente" negando-se a aceitar o mundo da necessidade, ainda que este termina sempre se impondo, os manda para a prisão ou incendeia a favela, diretamente, sem programa, sem linha expressa, são assim porque o são e basta; os existencialistas fazem um programa e uma filosofia desse amoralismo e individualismo. É sua miséria e seu calcanhar de Aquiles elevar a uma religião o que nos lumpens é sua vida. Por outro lado é muito profundo o processo porque reflete a lumpenização de setores da pequena-burguesia produzida pelas próprias crises da sociedade burguesa.
O Espontaneísmo
A pequena-burguesia desclassada do último pós-guerra foi assimilada pelo "milagre europeu", ou seja, pelo neocapitalismo. Encontrou um futuro na "forma de vida norte americana", os automóveis, refrigerantes, apartamentos e férias. O existencialismo desapareceu, ficou como o sub-realismo da anterior guerra, relegado ao devaneio das curiosidades filosóficas ou morais.
Porém dentro do neocapitalismo, a pequena-burguesia o estudantado como reflexo de toda sociedade, iriam sofrer tanto ou mais, ainda que de forma diferente, que durante o pós-guerra. A alienação, a proletarização, a venda não somente de sua força de trabalho mas também sua personalidade, a falta de perspectivas científicas e humanas para os estudantes dentro do neocapitalismo, provocaram uma nova rebelião com características comuns e com diferenças pronunciadas com seus pais, avós, os sub-realistas e existencialistas, o espontaneísmo das grandes rebeliões estudantis do ano 68.
Antes de mais nada esta não foi de pequenos estratos, de intelectuais e outros setores de pouca significação numérica, mas de grandes massas estudantis, acompanhadas, às vezes, de setores da juventude operária, como em maio de 68 na França. É um movimento muito mais progressivo que os anteriores, porque não é somente uma rebelião individual levada aos extremos de atacar todos os tabus e valores presentes e passados da sociedade burguesa em nome de uma moral de desclassados, mas um movimento que tende a ser de massas.
Na realidade se deu o processo intelectual que sofreu Carlos Astrada [1N], o grande filósofo argentino. Este começou como um convencido existencialista para depois superar o existencialismo em um ponto; de individual o transformou em coletivo, de massas. Aceitava todas as categorias existencialistas, opção, existência ou vida, liberdade, porém negava a do indivíduo, ele acreditava que todas as categorias se davam ligadas aos grandes grupos humanos, inclusive as classes. Havia opção e existência das classes. Seu próximo passo foi afirmar que o determinante era o mundo da necessidade para dar o salto do existencialismo ao marxismo. Salto entre parêntesis, que nosso partido o ajudou a dar. Isto foi o que ocorreu com os intelectuais, os estudantes e setores da classe média dos grandes movimentos de 68. Aplicaram os conceitos de Astrada à realidade, isso é o espontaneísmo.
Esta passagem do existencialismo ao espontaneísmo só pode ser compreendida pela existência do neocapitalismo. Este, com seus grandes monopólios que controlam não só o mercado mas toda a vida contemporânea, com suas ganâncias políticas e sindicais, os grandes partidos e sindicatos que controlam o movimento de massas a serviço dos estados e dos grandes monopólios, ainda que se chamem comunistas, cuja função é castrar todo movimento ou ação das massas, provocou uma reação compreensível na juventude, o repúdio a todo intermediário ou organizador do movimento de massas, que estas façam espontaneamente o que queiram, a ação pela ação mesma. Que ainda não se tenham elevado a compreensão de que o que há que questionar são as organizações e os intermediários do movimento de massas, que se trata e se necessita de sindicatos, partidos, sovietes, guerrilhas revolucionárias que disputem esse papel de intermediários às organizações enfeudadas nos monopólios, é lastimável, mas um fato compreensível. O espontaneísmo é o repúdio a essas organizações traidoras sem haver ainda encontrado o caminho. Como tal é muito progressivo. Questiona as organizações oportunistas e reivindica as ações do movimento de massas.
No terreno moral, o espontaneísmo não é tão progressivo, ao contrário, é uma recaída no existencialismo, por uma razão simples: ao contrario da política que coordena e dá objetivo às ações do movimento de massas, a moral regulamenta as relações do individuo com seu grupo, sempre são normas para serem aplicadas por indivíduos. Dai que o espontaneísmo, a ação por ela mesma, no terreno moral, nos leva ao amoralismo, à moral de individualismo, das opções de "fazer o que tenhamos vontade", de não ter normas. Este "não ter normas" em política, neste momento de sufocante predomínio dos grandes aparatos burocráticos, é positivo; não o é tanto no terreno moral, ou pelo menos não é superior aos aspectos progressivos, de reivindicação da imediatez contra os tabus e normas da burguesia, que já tinham as morais anteriores surrealista e existencialistas. É uma reação a elas. Portanto, não supera os marcos de rebeldia dentro das próprias estruturas burguesas.
Uma prova conclusiva de tudo isso, de como a burguesia cai em predações e como o espontaneísmo moral, em última instância, é como definia Lenine o anarquismo, liberalismo burguês com 40 graus de febre, dado por um fato sintomático, o programa moral da ala esquerda da juventude conservadora britânica.
Li casualmente um artigo no "The Daily Telegraph" de 25 de setembro de 1969. O tema me pareceu em principio pouco interessante: "Como são os jovens conservadores?" por um tal de T.E. Utley. Depois de assinalar que é um "sério movimento de massas que cresce com imensa velocidade", continua em outra parte dizendo qual seu programa: "Há, por outro lado, minorias ruidosas, tal como a representada pela capacitada e estridente jovem parceria Erie e Lynda Chalker da juventude conservadora da Grande Londres"... Este jovens conservadores prepararam uma pauta de reivindicações (Bill of Right) com 15 liberdades que incluem "a liberdade de expressão sexual" e "liberdade de tomar drogas...". "Estes jovens conservadores exigem uma legislação liberal, de cujos aspectos muitos são a aplicação na esfera moral dos princípios econômicos". A prova conclusiva do que vimos dizendo: os jovens conservadores, levando ao absurdo as liberdades burguesas, chegam a ter um programa moral igual ao dos espontaneístas. Lamentavelmente, também igual ao programa moral pessoal de alguns companheiros relevantes do partido. Esta moral é irmã siamesa da cultura da pobreza. Nada disso quer dizer que de maneira absoluta este programa moral, inclusive a dos jovens conservadores, não possa ser útil à revolução em um momento determinado, como já veremos em outro capitulo deste trabalho. Mas, o que sim podemos afirmar já, é que se algum velho camarada ou algum dirigente tem esta mesma moral, nele é um processo claramente degenerativo, de uma moral bolche e prole para lumpen, onde se encontra com os setores desclassificados de todas as classes, portanto é ele, o desclassificado do movimento marxista, não por isso ou talvez por isso, seja o único repugnante e canalhesco.
A Moral Guerrilheira
Contra todas essas morais e políticas da decomposição de troca, da transformação, do vazio, da falta de política e de moral, levantou-se neste pós-guerra a moral guerrilheira, uma ética e consciência dos deveres que nos deve fazer meditar muitíssimo, porque é tão objetiva, ou seja, existente, como todas as que relatamos, que se pode contar e até tocar.
Apesar de que os espontaneístas reivindicam e defendem os movimentos guerrilheiros, estão há anos luz, no extremo oposto do programa e da moral guerrilheira, ainda que profundas razões de classe façam com que tenham pontos comuns, seu caráter não proletário.
A guerrilha não é uma luta esporádica, mas ao contrário, é uma guerra longa que exige uma disciplina e organização férreas. É a negação do espontaneísmo, justamente a máxima expressão do organizado, do anti-espontâneo. É uma guerra com milhares de combatentes, como tal tem uma moral adequada a essas necessidades. Sua moral é tão severa como sua organização e tão sacrificada como sua luta. Todo o imediato, o sexual, a alimentação, como todas as necessidades culturais imediatas ou mediatas, são sacrificadas às necessidades da luta armada, o fator decisivo que restringe ou medeia tudo, inclusive a moral.
O canalha que andasse fazendo espontaneísmo moral, que dissesse ou fizesse as monstruosidades que me escreveram, na guerrilha certamente seria fuzilado. Todos os desejos, necessidades, são subordinadas e inclusive adiadas pelas necessidades da luta guerrilheira. Podem se passar anos sem ter relações sexuais, acossados na montanha pelas forças inimigas e quando encontram as camponesas são proibidos de ter relações com elas. Podem estar mortos de fome, mas terão que agüentar essas necessidades fisiológicas de primeira ordem, em vez de roubar, saquear algo do camponês. Seu companheiro cairá ferido na emboscada inimiga, deverá ficar ao lado do companheiro para arrastá-lo enquanto esta vivo, para fora da emboscada com o risco da própria vida. A vida do companheiro vale muito mais que a dele, porque ele está são e pode se salvar e o companheiro ferido, mas a moral guerrilheira exige que nenhum guerrilheiro caia vivo em mãos do inimigo para evitar as torturas.
Esta moral guerrilheira levou até os últimos extremos a liquidação ou castração do imediato e do cultural, em beneficio do futuro, da luta, da guerrilha. Graças a este sentido do dever, como um de seus principais elemento, pode triunfar. Negou todas as necessidades humanas para impor a máxima necessidade, a da revolução e a guerra civil contra os exploradores.
Há elementos, ou às vezes uma linha sectária nesta moral guerrilheira, há reminiscências do puritanismo. Não é casual já que a moral guerrilheira sintetiza muitos elementos, superando-os, das morais anteriores progressivas, revolucionárias desde o cristianismo antigo, até o puritanismo, a negação do imediato e as outras necessidades humanas, em função da necessidade principal.
Desta moral podemos dizer o mesmo que dissemos de seu máximo expoente, Che Guevara, pode ter erros, tem erros, não é a solução equilibrada, total, mediada do problema, mas, essencialmente a máxima expressão objetiva, neste pós-guerra, de moral revolucionária. A única coexistente com a nossa, que ainda não tem maior peso objetivo.
Por fim, depois das canalhices habituais em um setor do partido, da falta de moral de todas as correntes burguesas, pequeno-burguesas e lumpens que estudamos, chegamos a um porto seguro, a uma "moral revolucionária", como a havia definido Trotsky: todas as ações estão super ditadas ao triunfo da revolução. Nossa moral é a negação de todas as outras, ainda que possam ter pontos comuns com algumas delas em determinados momentos, mas é a prima irmã da moral guerrilheira. Já pisamos no chão, entramos no caminho da revolução, de sua política, mística, teoria e moral. Já saímos das Catacumbas e isso é importante - Que bem fez o ar fresco!
Notas:
[1*] Refere-se uma fração do partido argentino naquela época que veio dar origem posterior ao PRT (Partido Revolucionario de los Trabajadores) e ao ERP.
[1N] Carlos Astrada nasceu em 26 de fevereiro de 1894 em Córdoba, Argentina, e morreu em Buenos Aires, em 23 de dezembro de 1970. Foi professor de Gnoseologia e Metafísica e Diretor do Instituto de Filosofia da Universidade de Buenos Aires.
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