terça-feira, 9 de março de 2010

Do Amoralismo Universal ao Privado - Hector Benoit

Texto retirado do acervo on-line da revista Crítica Marxista. Disponível em: http://www.unicamp.br/cemarx/criticamarxista/D_Benoit..pdf (grifo meu)

Os versos para mim não deram rublos,
nem mobílias de madeiras caras.
Uma camisa lavada e clara, e basta,
- para mim é tudo -.
(Maiakovsky, 1929/30)


Respondendo às três perguntas propostas pelo comitê de redação de CM a respeito de Marxismo e Ética, começaremos pela última, pois esta é a mais abrangente e dela deduziremos as respostas às outras duas questões.

I - O marxismo é portador de concepção própria e original sobre a ética e a moral?

Marx não escreveu nenhum tratado sobre ética ou sobre moral, como não escreveu um tratado sobre estética, sobre ontologia, sobre o Estado, nem mesmo, propriamente, uma economia política marxista, assim como não escreveu sobre muitos outros objetos que possuem saberes autônomos nas universidades e no saber acadêmico. Seria necessário, como fizeram alguns em outras partes da “doutrina marxista”, complementar ou aperfeiçoar a obra de Marx escrevendo uma ética ou uma moral marxista? Pensamos que esta complementação, como, em geral, as outras complementações que são propostas, na verdade, manifestam apenas leituras superficiais dos textos originais do autor de O capital e, sobretudo, mostram a incompreensão da especificidade do objetivo último de sua obra: realizar a revolução socialista mundial e não elaborar um sistema ou uma concepção de mundo. Mas, este caso particular, o de procurar uma ética marxista ou de tentar escrever uma ética ou uma ciência da moral marxista, talvez expresse bem uma incompreensão mais específica e precisa, aquela de não perceber que o próprio O capital, como e enquanto a “crítica da economia política burguesa”, é também, em certo sentido, uma crítica da ética e da moral burguesas presentes, implicitamente, na teoria econômica, desde, pelo menos, Adam Smith. Tal incompreensão, de fato, é lamentável para a teoria marxista, pois é reconduzi-la a idealismos burgueses ou pequeno-burgueses de características até pré-smithianas.

No entanto, se isto é lamentável, não é nada surpreendente. Pois, ao contrário de Marx, podemos dizer que a maioria dos grandes teóricos burgueses (como Hobbes, Locke, Rousseau, Kant, Comte e mesmo Weber), socialistas utópicos, como Proudhon, e mesmo diversos pretensos marxistas do século XX, são todos, em algum sentido, pré-smithianos e pré-ricardianos(1). Em diversas direções e de múltiplas maneiras, procuraram todos, com fórmulas e receitas filosóficas, fundar um saber para regulamentar a razão prática dos homens, e pensaram descobrir, pelo menos alguns deles, regras abstratas universais para a realização do Bem ou dos bens humanos. Ora, na verdade, todas essas tentativas expressavam, em última instância, manifestações hipostasiadas, deformadas e fetichistas de um certo contrato social, aquele que se assina, dia a dia, no mercado capitalista, comprando e vendendo os bens humanos ou, o que é o mesmo, as mercadorias. Os bens humanos, na sociedade burguesa, se reduzem às múltiplas mercadorias livremente trocadas pelos seus possuidores, o Bem ou Justiça Humana se reduz a trocar estas mercadorias exatamente pelo seu valor – ou seja, pelo tempo socialmente necessário para a produção destas – e todos os participantes do mercado aparecem assim como indivíduos fraternos, felizes, iguais, livres e proprietários privados.

Já para Adam Smith, como para os liberais clássicos, este era o conteúdo ético, mais geral, imanente à pratica econômica capitalista. Tanto é assim que o próprio Smith, antes de descobrir a potência auto-reguladora do mercado, escrevera um tratado sobre os sentimentos morais do homem(2). Quase duas décadas depois, tendo chegado à descoberta do mercado como o regulador da vida prática dos homens, Smith passa a considerá-lo como o elemento que supera naturalmente os tratados e as discussões sobre o dever-ser dos homens, coincidindo assim com a realização da felicidade e liberdade humanas. Ora, Marx, para fazer a crítica teórica da Economia Política burguesa, precisava fazer e fez, ao mesmo tempo, a crítica a esta ética suposta como imanente ao mercado capitalista. Por outro lado, se a crítica à Economia Política burguesa se desdobra, no pensamento de Marx, na supressão revolucionária do modo de produção capitalista, esta supressão, ao mesmo tempo, carrega em si também a supressão revolucionária da sua ética correpondente, e a conseqüente negação da irracionalidade desta pseudo-razão prática que aliena, reifica e fetichiza os fins últimos da vida humana.

Marx começa a deixar isto claro, ainda que ironicamente, já ao final do capítulo IV do livro I de O capital. Após mostrar, até o capítulo IV, como é impossível desvelar o segredo da fabricação da mais-valia na esfera da circulação simples ou da troca pessoal de mercadorias, Marx prepara-se então, ao final deste capítulo, para desvelar o processo do consumo da mercadoria força de trabalho, consumo este que ocorre fora do mercado, ou seja, no processo produtivo, no interior obscuro da fábrica. Nesse momento transitório entre a instância do mercado e a da produção, escreve ele: “A esfera da circulação ou do intercâmbio de mercadorias, dentro de cujos limites se movimentam compra e venda de força de trabalho, era de fato um verdadeiro éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham” (p.145, ed. Abril Cultural). E interpreta Marx, em seguida, a expressão mercantil-liberal de cada um desses tão sagrados direitos universais do Homem: “Liberdade! Pois comprador e vendedor de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são determinados apenas por sua livre-vontade. Contratam como pessoas livres, juridicamente iguais. O contrato é o resultado final, no qual suas vontades se dão uma expressão jurídica em comum”. Explica em seguida como, na esfera da circulação, se dá a participação no direito universal à Igualdade: os indivíduos se relacionam “um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente”. Quanto ao direito universal à Propriedade, a sua expressão na instância do mercado é que “cada um dispõe apenas sobre o seu”. Por último, junto aos direitos universais da democracia burguesa, junto à Liberdade, Igualdade e Propriedade, reina também Bentham, ou seja, o teórico por excelência da moral burguesa, utilitarista, que reduz os homens à satisfação animal e pré-social dos seus interesses e desejos, pois cada um dos possuidores, como uma espécie de Robinson Crusoé, “só cuida de si mesmo”, diz Marx, e “o único poder que os junta e leva a um relacionamento é o proveito próprio, a vantagem particular, os seus interesses privados. E justamente porque cada um só cuida de si e nenhum de outro, realizam todos, em decorrência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma previdência toda esperta, tão-somente a obra de sua vantagem mútua, do benefício comum (Gemeinnutzens), do interesse geral (Gesamtinteresses)”(p.145; MEW, p.190).

Até aqui, Marx apenas descrevia a “robinsonada” burguesa, a forma aparente tanto da economia burguesa como de sua ética correspondente, terminando o capítulo IV, porém, anuncia bem o que virá: “Ao sair dessa esfera da circulação simples ou da troca de mercadorias, da qual o livre-cambista vulgaris extrai concepções, conceitos e critérios para o seu juízo (Urteil) sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado, já se transforma, assim parece, em algo a fisionomia dos personagens do nosso drama”. Saindo da esfera aparente na qual se refugia a ideologia burguesa, tombará com a legalidade do mercado a sua ética correspondente, e desvelar-se-á a própria troca de equivalentes como farsa e roubo, a acumulação originária como violência, e o capital como jorrando sangue por todos os lados. Na medida em que Marx começa a abandonar o mercado, inicia-se a dissolução, portanto, de toda Liberdade, Igualdade e Fraternidade, o antigo possuidor de dinheiro “marcha adiante como capitalista, segue-o o possuidor da força de trabalho, como o seu trabalhador; um cheio de importância, sorriso satisfeito e ávido por negócios; o outro, tímido, contrafeito, como alguém que levou a sua própria pele para o mercado e agora não tem mais nada a esperar, exceto que ela seja curtida” (p.145; MEW, p.191).

Esta dissolução do caráter paradisíaco da economia burguesa, da sua ética e dos direitos universais do Homem, começa a tornar-se clara nas seções terceira e quarta (Produção da mais-valia absoluta e Produção da mais-valia relativa ), mas, sobretudo, será na seção sétima (O processo de acumulação de capital ) que Marx desvenda, definitivamente, o conteúdo real de toda a legalidade burguesa. Assim é que no capítulo XXII, quando Marx estuda como ocorre a reconversão da mais-valia em capital, será contestada, finalmente, a própria lei fundamental da legalidade burguesa, a lei da troca de equivalentes realizada entre os possuidores do dinheiro e da força de trabalho. Com isto, Marx começa a refutar a própria ética, a moral e a legalidade da propriedade capitalista sobre o seu próprio capital. O item primeiro do capítulo XXII é bastante significativo: “Processo de produção em escala ampliada. Transmutação (Umschlag) das leis de propriedade da produção de mercadorias em leis de apropriação capitalista”. Ora, segundo Marx, todo o processo da troca de equivalentes, característico das leis eternas da produção capitalista, da sua ética e da sua moral, se altera justamente quando saímos da forma abstrata, que isola no tempo os diversos momentos do processo capitalista. Quando tomamos o processo de produção capitalista na totalidade das suas diversas fases, e no decorrer de um certo número de anos, fica claro que a classe capitalista, a partir de um certo momento, passa a pagar a classe trabalhadora com o próprio trabalho desta, ou seja, a troca justa de equivalentes se transmuta em fraude. Quando tomamos assim a totalidade do processo, a troca de equivalentes mostra o seu verdadeiro conteúdo, como explica Marx: “O conteúdo é que o capitalista sempre troca parte do trabalho alheio já objetivado, do qual se apropria incessantemente sem equivalente, por uma quantidade maior de trabalho vivo alheio” (p.166; MEW, p.609). A troca de equivalentes entre os proprietários do dinheiro e aqueles da força de trabalho, lei em que se embasa o direito de propriedade do modo de produção capitalista e, em certo sentido, toda a legalidade e a ética contratual burguesa, ao ser observada como processo, mostra-se assim como troca de não-equivalentes, manifesta-se como roubo e fraude.


Existiria ainda alguma outra justificativa ética para que uns vendam a força de trabalho e para que outros a comprem trocando não-equivalentes? Se desmontada como processo, tal lei da troca de equivalentes possuiria ainda uma certa legitimidade somente em termos de uma remota acumulação originária. Trata-se de uma acumulação prévia que antecederia todo o processo e que justificaria a desigualdade de condições entre os personagens que comparecem ao mercado. Somente uma acumulação originária justificaria que uns sejam hoje proprietários dos meios de produção e do dinheiro enquanto outros sejam proprietários somente da força de trabalho. Mas, isto será tratado e também contestado, amplamente, no capítulo XXIV do livro I.

Marx explica então, neste capítulo, que a acumulação originária não é a idílica história de homens que trabalharam muito e que, com o suor do seu rosto, teriam se transformado legitimamente e com justiça em capitalistas. Na verdade, ao invés de fundamentar a troca de não-equivalentes, a acumulação originária apenas aprofunda a ilegitimidade já manifesta. Marx mostra que esta acumulação é, essencialmente, a expropriação violenta dos produtores diretos, isto é, a separação violenta dos produtores em relação aos seus meios de vida e de produção (sobretudo, expulsão das terras cultiváveis e migração forçada para as cidades). A acumulação originária é assim a destruição, pela violência, da propriedade privada baseada no próprio trabalho. Os possuidores de mercadorias, graças à violência originária, chegam assim ao mercado capitalista, essencialmente, como desiguais: uns, os expropriados, chegam ao mercado apenas com a propriedade da força de trabalho e outros, os expropriadores, chegam com o dinheiro e com a propriedade dos meios de produção, aptos assim a comprar a força de trabalho. É essa igualdade fundada na violência e na profunda desigualdade de uma expropriação originária que funda o paraíso do mercado capitalista, reino democrático dos direitos universais do Homem.

Essa expropriação originária, no entanto, não se encerra lá no passado remoto, ao contrário, se estende de maneira contínua no capitalismo e mostra-se como fundamento permanente: os meios de produção individuais e parcelados, pouco a pouco, são concentrados socialmente, e ao invés da propriedade minúscula de muitos, surge, cada vez mais, a propriedade gigantesca de poucos, portanto, ocorre constantemente a expropriação da massa da população. Ora, no entanto, depois de um certo estágio, dialeticamente, o processo se inverte. O expropriado não será mais o trabalhador economicamente autônomo, mas o próprio capitalista que explora muitos trabalhadores. Essa expropriação se faz pelas leis imanentes do próprio modo de produção capitalista, ou seja, pela centralização dos capitais. Como escreve Marx, “cada capitalista mata muitos outros capitalistas”. Porém, paralelamente, além ou aquém de qualquer ética ou moral de justiça social, desenvolve-se a forma de cooperação no processo de trabalho, em escala sempre crescente. Aprofunda-se a aplicação técnica consciente da ciência, a exploração planejada da terra, a transformação dos meios de trabalho em meios de trabalho utilizáveis coletivamente, ocorre também, cada vez mais, o entrelaçamento de todos os povos na rede do mercado mundial. No entanto, paralelamente a este processo, Marx descreve, a seguir, a polarização crescente e o aprofundamento das contradições sociais entre os dois pólos fundamentais. De um lado, o número cada vez menor de grandes capitalistas que usurpam e monopolizam todas as vantagens do processo de transformação. De outro lado, a extensão da miséria, da opressão, da degeneração, da exploração. Mas, com isso, diz Marx, também aumenta “a revolta da classe trabalhadora (Arbeiterklasse), sempre mais numerosa, educada, unida e organizada, pelo próprio mecanismo de produção capitalista”(p.294; MEW, 791). O capítulo se encerra anunciando que soou a hora final da propriedade privada capitalista e os expropriadores serão expropriados: “Lá tratou-se da expropriação da massa do povo por poucos usurpadores, aqui trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do povo”(ibidem).

A crítica da economia política burguesa, realizada por Marx, desemboca assim na crítica da legalidade do mercado capitalista e de sua ética, transmutando a Liberdade em opressão, a Igualdade em desigualdade, a Propriedade em expropriação, a troca de equivalentes em roubo, as relações idílicas de indivíduos em violência da luta de classes, a democracia burguesa em ditadura da classe dominante. A partir dessa transmutação dos direitos universais da ética burguesa, Marx demonstra a legalidade da violência revolucionária que rasga as leis e que rompe o contrato social, sustenta a legitimidade da ‘negação da negação”, coloca como racional a expropriação dos expropriadores, afirma a universalidade ética da revolução dirigida pela classe trabalhadora.

A contribuição própria de Marx em ética e moral é assim uma contribuição, sobretudo, negativa. Ao fazer a crítica da economia política burguesa faz ao mesmo tempo a crítica da moral e da ética do mercado, fundando o amoralismo revolucionário como uma ética negativa que expressa a universalidade concreta da revolução proletária. Se este amoralismo revolucionário se manifesta, aparentemente, como um anti-humanismo, pois justifica abertamente a violência, carrega em si como pressuposto o verdadeiro humanismo, o humanismo concreto, pois a realização da meta econômica e fim ético-político da classe trabalhadora – a revolução comunista – significa a abolição das classes sociais e a possibilidade do desenvolvimento das necessidades e potencialidades humanas (alimentação, moradia, saúde, educação, cultura, liberdade de escolha no caminho e na finalidade da vida) para todo o gênero humano, verdadeiramente, sem distinções de classe, sexo, raça ou nacionalidade.


II- Do ponto de vista do marxismo como a ética se relaciona com a política revolucionária?

A partir do que acima desenvolvemos, fica claro que, para Marx, a realização da revolução socialista coincide com os fins racionais e éticos do gênero humano e, sendo assim, tudo isto que efetivamente aumente a coesão e organização do proletariado como classe, tudo isto que permita avançar na realização efetiva da revolução proletária, numa perspectiva não meramente localizada e nem mesmo, meramente nacional, mas numa estratégia internacionalista, tudo isto que se insere efetivamente na perspectiva teórica da revolução socialista mundial pode ser considerado como participando de uma amoralidade e de um anti-humanismo que possui embasamento e justificativa na universalidade concreta de uma ética revolucionária marxista. Nesse sentido, a violência e os meios amorais utilizados pelo partido bolchevique, nos anos da Revolução Russa, as posições éticas de Lênin e Trotsky(3), são plenamente justificadas teoricamente no interior da universalidade concreta revolucionária, pois, coincidiam, efetivamente, com os intereses e os fins estratégicos da classe operária a nível mundial: permitiram realizar e consolidar a primeira revolução socialista vitoriosa, assim como construir o Exército Vermelho e a III Internacional. Nada de arbitrário, porém, se cometia. Cada ato amoral, era julgado e pesado, cuidadosamente, no interior dessa estratégia mundial do proletariado e inserido nessa racionalidade universal e concreta. Por isso mesmo, violências indiscriminadas contra civis e atos terroristas jamais fizeram parte das táticas bolcheviques ou marxistas, não propriamente por motivos éticos ou humanistas, mas sim, porque, em geral, não contribuem em nada para a realização daquela estratégia(4).

No entanto, que dizer do amoralismo e do anti-humanismo empreendido por Stalin? Desde meados da década de 20, sob o comando de Stalin, o amoralismo revolucionário bolchevique foi perdendo, gradualmente, a coincidência dos seus fins com aqueles da classe operária soviética e, sobretudo, internacional. Basta lembrar que esse amoralismo dizimou com processos fraudulentos boa parte do próprio comitê central do partido bolchevique, passou a falsificar a própria história da revolução de 1917, falseou documentos e até fotos e, depois, sob o pretexto da defesa nacional da União Soviética, destruiu a III Internacional. Os stalinistas, com os procedimentos mais bestiais, dignos dos seus grosseiros manuais de teoria, sem apoio qualquer no verdadeiro pensamento de Marx, foram dividindo a classe operária, a nível nacional e internacional, levando-a a sucessivas derrotas catastróficas – sendo a mais trágica e decisiva aquela que conduziu Hitler ao poder. Cada vez mais, esse amoralismo foi realizando, assim, os interesses e fins, não da classe operária, mas sim, de uma casta burocrática que, em última instância, na verdade, era a correia de transmissão da burguesia e do capital internacional, no interior da própria União Soviética.

Mas, este amoralismo stalinista, se serviu para manchar o amoralismo revolucionário bolchevique, muito pouco tinha a ver com a “ética” marxista ou com os fins universais propostos por Marx para o proletariado. Como mostrou a história recente, o amoralismo da burocracia, pouco a pouco, manifestou-se com sendo o sólido caminho para a reposição dos fins éticos burgueses, fins particulares e privados, fins de mercado no interior da própria URSS.. Não por acaso, Leonid Breschnev, que durante tantos anos comandou a máquina soviética, ainda no poder, já colecionava automóveis de luxo presenteados pelos países ocidentais. O mesmo amoralismo privado manifestaram, pouco a pouco, os mandatários dos PCs de diversas partes do mundo. Berlinguer, como bom italiano, além de defensor da democracia como valor universal, junto com sua família, aos domingos, freqüentava a missa católica. Já Gorbachov tornou-se tão democrata e defensor dos Direitos Universais do Homem que terminou, idilicamente (com a sua netinha), fazendo comerc ais de produtos americanos na TV russa. Entre nós, vários ex-quadros do PCB, visando o enriquecimento lícito (e ilícito), tornaram-se secretários, ministros, ou agentes sindicais e intelectuais da burguesia. Esse amoralismo stalinista, finalmente, terminou na venda, sem escrúpulos, de todos os princípios e também de todas as conquistas da Revolução Russa e do marxismo. Coincidiu então, abertamente, com o que fora há muito secretamente: o amoralismo da moral burguesa do mercado e, como este, uma defesa intransigente dos direitos universais do Homem (privado).


III- Fórmulas como “ética na política” esclarecem ou confundem na luta pelo socialismo?

Fórmulas como “ética na política”, numa sociedade capitalista, sem dúvida, confundem a classe trabalhadora e a juventude, pois, contra Marx, sustentam que uma sociedade produtora de mercadorias pode ser ética, moral e humana. Essas freqüentes campanhas pela moralidade e pela ética na política são análogas às campanhas assistencialistas e àquelas pelos direitos humanos – vimos o recente humanismo de crocodilo promovido pelas potências imperialistas, a emoção pelas vítimas do World Trade Center e as choradeiras pela paz mundial. Essas campanhas repõem a ilusão de que uma sociedade embasada na produção de mercadorias e na extração de mais-valia não seja estruturalmente imoral, antiética, violenta e anti-humanista.

Claro que podem existir políticos que talvez respeitem todas as leis, que talvez sejam intocáveis do ponto de vista da legislação existente, que não utilizem de maneira desigual o poder da máquina de que dispõem, que não concedam certos privilégios a uns, que não bloqueiem os interesses de outros, mesmo que por essa retidão ética acabem não atingindo fins que considerem desejáveis. Caso possam talvez existir estes políticos no capitalismo, duvidamos muito que sejam os mais competentes, tanto do ponto de vista do capitalismo como do ponto de vista da luta pelo socialismo. Estes políticos ditos, abstratamente, “honestos”, pouco vão realizar tanto para o capital como para o trabalho, pois nem sequer compreendem que a própria legalidade e honestidade burguesas são apenas a universalidade abstrata que encobre, como um véu, a exploração inerente ao modo de produção capitalista.

Nesse sentido, poderíamos aprovar o amoralismo defendido, recentemente, pelo filósofo A. Giannotti quanto a certas atitudes “amorais” tomadas por Fernando Henrique Cardoso? Segundo Giannotti, em certas circunstâncias seria legítimo trocar favores para aprovar certas medidas no Congresso Nacional. Seria este amoralismo justificável, sustentou Giannotti em artigos na Folha, se os fins a serem alcançados implicassem na obtenção de uma maior racionalidade e eficiência na máquina do Estado. Este amoralismo seria similar àquele defendido por Marx e pelos bolcheviques? Podemos fazer esta indagação, pois, afinal, sabemos bem que ambos, tanto o filósofo como o sociólogo-presidente, não desconhecem nem os textos de Marx nem aqueles dos bolcheviques(5).

Ora, pensamos que se a inspiração marxista desse amoralismo possa ser bem provável, tanto no filósofo como no presidente, a diferença abismal é que enquanto no marxismo o amoralismo é fundado na universalidade concreta da classe operária mundial, o amoralismo de Giannotti defendendo FHC, como o deste trocando favores por votos, se apóia na universalidade abstrata de uma suposta maior racionalidade deste ou daquele grupo político que atua no pântano dos interesses privados que dominam o Estado capitalista brasileiro. Quem seria mais racional, o grupo de Jáder Barbalho ou aquele de ACM? Se é fácil chamar ACM de “irracional”, Delfim Neto e Roberto Campos sempre foram bem racionais nos seus fins, ainda que não propriamente universais. Pode haver dúvida a respeito da arbitrariedade desta suposta universalidade desses grupos políticos ou burocráticos que imperam no Brasil? Pode haver dúvida que, com esta pseudo-universalidade, o amoralismo do grupo “mais racional” no Estado brasileiro possa ser aplicado, eventualmente, também para fins particulares e privados, similares àqueles do Breschnev, colecionador de automóveis?(6)

Ora, sabemos que se Lênin e Trotsky, em nome da universalidade concreta da classe operária mundial, rasgaram o contrato social, desrespeitaram todas as leis e chegaram até a ordenar o fuzilamento mesmo de ex-camaradas, jamais estenderam este amoralismo para qualquer domínio ou fim privado, por mais insignificante que fosse o benefício e o resultado. Originalmente, os bolcheviques foram conseqüentes com a universalidade concreta que fundava o seu amoralismo revolucionário e, assim, no âmbito da vida privada, jamais aplicaram esse amoralismo em benefício próprio, para aquisição de bens ou mercadorias. Nesse sentido, a maioria deles, certamente, poderia dizer, parafraseando Maiakovsky: “o nosso amoralismo não nos deu rublos, nem mobílias de madeiras caras, uma camisa lavada e clara, e basta - para nós é tudo”. Quem ainda veste esta camisa?


(1) Ainda que a maioria deles tenha lido pelo menos a A Riqueza das Nações.
(2) The theory of moral sentiments, publicado em 1759.
(3) Leon Trotsky, Moral e Revolução, Paz e Terra, 1978.
(4) Exemplo do caráter negativo desses atos foi dado pelos recentes acontecimentos nos EUA. Podem existir dúvidas que aqueles atentados permitiram desencadear uma grande ofensiva militar e ideológica da burguesia em instância internacional? E assim uma grande ofensiva contra a classe operária mundial?
(5) Curiosamente, na edição brasileira feita, em 1978, pela Paz e Terra do livro de Trotsky acima citado, Moral e Revolução, aparece o seguinte Conselho Editorial: Antonio Cândido, Celso Furtado, Fernando Gasparian e o atual presidente Fernando Henrique Cardoso. Devemos esquecer também as suas recomendações editoriais?
(6) Vide como membros do PFL, PMDB, PSDB e mesmo PT se degustaram, todos juntos, na recente festa gigantesca promovida pelos Safra.

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