quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Marx e a Filosofia: elementos para a discussão ainda necessária - Ester Vaisman

Artigo integral retirado da revista on-line Nova Economia com endereço: www.face.ufmg.br/novaeconomia/


1_ Objetivo geral

O tema em pauta, ou seja, Marx e a Filosofia, mereceu e tem merecido a atenção de um sem-número de intérpretes, podendo ser considerado, assim, uma das mais polêmicas discussões travadas em torno da obra marxiana. Mas vale a pena lembrar Gramsci (1972, p. 116) de modo sucinto, com o objetivo de tornar claro o clima que orienta nossa exposição:

É preciso ser justo com os adversários, no sentido de que é necessário esforçar-se por compreender o que estes quiseram dizer realmente, e não se deter maliciosamente nos significados superficiais e imediatos de suas expressões.

Dito isso, é imperioso ressaltar que o nosso objetivo aqui não é o de esgotar tal polêmico tema, mas, antes de tudo, chamar a atenção para alguns pontos, que, talvez, até hoje, não tenham sido levados devidamente em consideração nas acirradas disputas teóricas sobre o caráter da relação entre Marx e a Filosofia. O objetivo é, portanto, indicar algumas chaves analíticas, sem a preocupação de tomar para exame crítico esse ou aquele intérprete como objeto de contenda teórica. Considera-se que antes dessa tarefa, sem dúvida imprescindível, é necessário indicar o perfil geral da questão.

2_ A relação crítica de Marx com a tradição clássica alemã

Talvez a fonte de tantos dilemas tenha sido a controvertida relação crítica de Marx com a tradição clássica alemã, que resultou para alguns em uma extensão não percebida de parâmetros idealistas em sua propalada "fase juvenil". Contudo, detendo-se com rigor nas obras de seu período inicial, constataremos que a fase rigorosamente idealista não passa de meados de 1843. Ou seja, o acerto de contas, a rejeição da "substância mística" hegeliana, do seu "misticismo lógico, panteísta" se realiza nas afamadas Glosas de Kreuznach. Já nesse período é possível identificar em seus contornos mais decisivos a opção gnosiológica de Marx, que rejeita qualquer tipo de construtivismo especulativo, seja este resultante de alguma tentativa de correção sofisticada – mas, sempre formalizante – dos limites das ciências do entendimento, seja ele – o que vem a ser tão unilateral e equivocado – qualquer tipo de edificação, por mais elevada ou tortuosa que seja, de algum cogito transcendental. Esses dois caminhos equivocados não elidem, por mais diferentes que sejam entre si, a distância essencial que os separa da formulação marxiana, visto que ambos não ultrapassam a dação de sentido pela razão, com a única distinção cabível de um a priori para um a posteriori.

Resumidamente, o construto muda simplesmente de lugar: antecede ou sucede o golpe de vista que se dirige ao mundo; dá sentido à entificação antes ou depois de tocá-la. Mas é sempre a razão a doadora de significação a um mundo, imanentemente carente de sentido. Condição mesma de existência de sentido, no primeiro caso; aproximação genérica, emulsão significativa em meio a um campo homogeneizado, no segundo, ambos tomam a operação mental como constituinte de sentido, divergindo entre si na forma e na extensão com que tudo se realiza. Diferença importante, mas radicalmente diversa daquela que opõe ambas à posição marxiana: a razão descobre, reproduz – "na forma única pela qual a cabeça é capaz de fazê-lo" pelo conceito o sentido das coisas.

3_ A posição de Marx a respeito do estatuto da razão: seu caráter operativo

Ao revés, para os dois caminhos anteriormente apontados, em primeiro lugar, as coisas são desprovidas de sentido e, em segundo, a razão é, digamos, a oficina ou a linha de montagem do significado.

Para Marx, contudo, as coisas do mundo humano têm elas mesmas um sentido imanente; portanto, o método aqui tem a função de buscar e captar esse sentido. A razão, em contrapartida, entendida como uma figura histórica e socialmente constituída, reproduz esse mesmo sentido. É, por isso, reprodutora de sentido, e nunca sua usina originária, como ocorre, na atualidade, em que se vive no interior de um verdadeiro imperialismo da subjetividade. O objeto que é passado, conquanto concreto, a uma forma de pensamento, ou seja, não é o pensamento que dá forma ao objeto, recortando-o na pletora caótica do mundo fenomênico. Já, em artigo de finais de 1843, Marx se posiciona a respeito, ao demonstrar os limites da crítica à religião operada por Feuerbach. Marx (1972, p. 2) afirma que a "missão da filosofia a serviço da história/.../ consiste em desmascarar a auto-alienação em suas formas profanas".

Em Teorias da mais-valia, por exemplo, tem-se a presença dessa mesma posição num momento mais adiantado do itinerário intelectual de Marx. Criticando James Mill, que pretende conferir a Ricardo coerência lógica, formal, é afirmado o que se segue: "A contradição entre a lei geral e os desenvolvimentos concretos têm de ser feita por meio da descoberta dos elos intermediários". Ademais, prossegue, Mill erra ao pretender a "subsunção direta e o ajustamento do concreto ao abstrato" (Marx, 1985, p. 1142).

Vale dizer, é um erro afirmar, de acordo com Marx, o movimento autônomo dos conceitos, regidos simplesmente por sua lógica interna. O procedimento correto é o movimento que vai do abstrato ao concreto pela descoberta das determinações intermediárias do próprio movimento concreto. Tais elos intermediários devem ser considerados como elos de especificação, produzidos pela própria realidade e ainda não conhecidos, mas passíveis de cognição.

Reconhecendo o caráter operativo da razão, em Marx, no entanto, a razão não comparece como critério de si mesma, pois, deixada a si – especula – o que é também por seu turno uma determinação histórica – acabando por acolher, quando busca dar a encarnação do finito – as mazelas deste último.1

Em suma, uma razão doadora de sentido oscila entre a aproximação genérica, vaga, unilateral e a imputação arbitrária de significados. Oscila, portanto, entre um quase nada formal e um quase tudo suposto. Como pontos de partida de uma prática, podem ir num gradiente do nada ao tudo se pode. Depende, conquanto epistemologia de direita, de que ética será colada a elas; e a arbitrariedade principia desde logo – a ética de qualquer cor poderá vesti-las.

São variantes epistemológicas que, pela segunda vez, voltam as costas às proposituras marxianas: aqui em relação a um saber que se prova quando capaz de intenção transformadora. E isso não é nenhum pragmatismo.

4_ O reconhecimento da objetividade

Trata-se, em verdade, de uma nova concepção de objetividade, que não guarda nenhum parentesco nem com a solução kantiana nem com a hegeliana. Em palavras bem simples e diretas – como convém em determinados momentos –, não se trata de organizar o mundo pela cabeça, mas organizar a cabeça pelo mundo.

A organização do mundo pela cabeça, pela razão, pelo entendimento, ou coisa que o valha, seja em que variante for – de Kant a Husserl –, pode ser feita de vários modos; em todas, no entanto, restará algo de fora do mundo – seja o noumenon, seja uma opacidade intransponível, e a cabeça organiza o mundo apenas em parte, restando ela própria limitada.

Marx reivindica a organização da cabeça regida pelo mundo, mas não o mundo das notas ou manchas empíricas, mas como todo existente e significado por si porque é (Não é o caso nesse momento discutir a importante questão da gênese.). O pensamento deixa de falar sobre si mesmo para falar sobre as coisas, ou seja, deixa que as coisas "falem" e "façam" o pensamento, já que este, em Marx, é histórica e socialmente constituído, como aludimos acima. Nesse sentido, a razão é transcendida pelo mundo, condiciona a visão sobre ele, porque é condicionada antes pelo próprio mundo. Ou melhor, nesse processo, ora transcende, ora é transcendida – condiciona por ter sido condicionada, isto é, quando o faz, já o faz como resultado. Atente-se que, para Marx, qualquer disjunção aqui é uma forma de renúncia da razão histórica e a forma pela qual ela pode ser edificada.

4_ Ciência "versus" Filosofia ou saber especulativo "versus" saber da transformação?

É necessário ressaltar, ainda, passando para outro item, mas que guarda relação direta com o anterior, que a contraposição que se pode encontrar em Marx, bem entendido, não é entre Ciência e Filosofia, como querem alguns, mas a contraposição entre "saber" especulativo e saber da transformação. Ou seja, um saber que saiba das coisas, para que estas possam ser alteradas; portanto, não é uma ciência anormativa, digamos, que ele reivindica por várias vezes e em vários momentos de sua obra. Poderíamos dizer que Marx, assim, se move, no campo originário de significação da filosofia conquanto amor (carência) de saber. Logo, em lugar do saber, da filosofia especulativa, tem-se o saber, a filosofia transformadora.

Assim, a eliminação pura e simples da filosofia do pensamento marxiano, e a definição também pura e simples por uma ciência, a aproximação de alguma versão kantiana do conhecimento, ou seja, a substituição – de novo – pura e simples da complexa questão da causalidade, substituindo-a, de algum modo, pela mera interligação empírico/analítica da convergência ou não da empiria, acaba por desobrigar da revolução; esta passa a ser um mero apelo desiderativo, e não uma necessidade real.

Num mundo inamovível e onde graça a inamovibilidade, essa desobrigação conforta, um reconforto utópico subjetivo. Em outras palavras, quando o mundo aparece incapaz de se mexer, e, em grande medida não se mexe, a única coisa que se agita é o espírito. Aqui o espírito volta a ser a revolução do mundo, tal como os neohegelianos de quem Marx nos fala criticamente não apenas em A ideologia alemã, mas também, como é sabido, em outras obras do mesmo período.

Quando a solução materialista não é capaz de dar conta do lado ativo, o idealismo assume a cena e se expande para entusiasmo da maioria. Não é sobre questões dessa ordem que Marx se pronuncia na primeira tese Ad Feuerbach?

Mas, retornando ao tema central do presente artigo, depois desse necessário volteio, é preciso que fique claro que metodologia marxiana é objeto de uma antiga preocupação, cifrada, grosso modo, na dupla convicção de que se trata de um assunto decisivo, e de que é imperioso saldar um antigo débito: atingir a elevação de seu tratamento global e sistemático.

Não será ainda, é óbvio, desta vez. E não se trata de mera e simples limitação de fôlego ou de tempo dos intelectuais que se voltaram sobre a questão. Para além disso, é fato que deve ser assumido em sua inteireza: versa sobre a reconhecida complexidade do problema que, ao longo do tempo, só fez complicar-se.

5_ O materialismo marxiano: as teses Ad Feuerbach

Da promessa não cumprida de Marx, de um dia "escrever um breve estudo sobre a lógica de Hegel", aos nossos dias, medeia mais de um século de interpretações, imputações, polêmicas, ataques, contrapropostas, simbioses e tenebrosas simplificações, que acabaram por tomar conta desse espaço de investigação, a tal ponto que se tornou quase assustador nele adentrar, implicando, acima de tudo, uma postura irredutivelmente ambígua, feita de cautela e ousadia. Assim, estas notas constituem esforço de circunstância(s), mas de uma circunstância, em especial, da vontade, até aqui muitas vezes contrariada, de voltar-se longa e sistematicamente sobre o método de Marx. Sobre o tempo – inelástico – recai a responsabilidade, uma vez que o trabalho acadêmico e intelectual tem sua própria lógica e urgências; em especial, se o intelectual não pode fazer de seu próprio paladar e preferências a urgência maior. Daí porque, nessas notas, as questões apareçam, como disse Sartre em Questão de método, "abordadas de viés". Mas esse viés não é desvio – com base em outro assunto tomado como centro – nem aproximação fortuita, imprópria ou casual – como um tropeço acidental sob o empuxo do objeto tratado –, mas, ao contrário, é proposta de elevação imprescindível ao essencial, sem o que o que está sendo feito não se faz. O viés é, pois, remissão ao decisivo, é o recolher-se, por um momento que seja, à pedra de toque que motiva, em suma, toda iniciativa intelectual de alguma seriedade, pois, valendo-me novamente das palavras de Sartre:

Toda filosofia é prática, mesmo aquela que parece, de início, a mais contemplativa; o método é uma arma social e política (Sartre, 1960, p. 10).

Bem, dito isso, tomemos para exame algumas referências diretas da obra de Marx em momentos diversos de seu itinerário intelectual: na X Tese Ad Feuerbach, tem-se explicitamente que:

O ponto de vista [perspectiva, ponto de observação] do velho materialismo é a sociedade civil (bürgerliche Gessellschaft); o ponto de vista do novo é a sociedade humana (menschliche Geesellschaft) ou a humanidade social (gesellschaftliche Menschheit) (Marx e Engels, 1976, p. 526).

Examine-se agora a IX Tese, já que nela é caracterizado o teor e os limites do ponto de vista da sociedade civil:

O máximo (Das Höchste) a que chega o materialismo intuitivo (anschauende) [contemplativo, empírico], isto é, o materialismo que não apreende o sensível como atividade prática (praktische Tätigkeit), é a intuição (Anschauung) dos indivíduos isolados [singulares] (einzelnen Individuen) e da sociedade civil (bürgerliche Gesellschaft) (Marx e Engels, 1976, p. 527).

Os aspectos que devem ser sinteticamente ressaltados da citação acima são os seguintes:

  1. o ponto de vista, a perspectiva, o ponto de observação, ou seja, a posição, a base ou plataforma é referida pelo termo Standpunkt, no qual se tem o pretérito de stehen, isto é, estar de pé;
  2. donde a posição do velho materialismo é a apreensão ou tem por base os indivíduos isolados – as singularidades tomadas uma a uma – e enquanto tais presentes na sociedade civil, lugar onde se defrontam. Isto é, sem apreender a gênese histórica das individualidades e da sociedade civil, não se apreende a individualidade humana pela interatividade dos singulares, não se alcança a individualidade social. Por isso, em Feuerbach, indivíduo e essência humana são naturais, "pressupondo um indivíduo humano abstrato, isolado" e "a essência só pode ser compreendida como 'gênero', como generalidade interna, muda, que liga de modo natural os múltiplos indivíduos" (Teses VI e ÍI) (Marx e Engels, 1976, p. 526-527).

Ter por base indivíduos isolados que se defrontam – é partir da sociedade civil, ou seja, acriticamente, da ordem humano-societária do capital, sem compreender que esses indivíduos isolados são produto da história, e "não sujeitos independentes por natureza", que são tomados "como um ideal, que teria existido no passado", ou seja, como expressão do "naturalismo que é a aparência das robinsonadas /.../ uma antecipação da sociedade burguesa" (Marx, 1974, p. 109).

Ao passo que o materialismo marxiano, o materialismo genético, processual ou histórico, o materialismo histórico imanente parte do sujeito e objeto conquanto atividade sensível, parte da interatividade sensível dos indivíduos, parte do trabalho, por isso da "sociedade humana" ou "humanidade social", isto é, da humanidade como sociabilidade, para a qual essas duas dimensões são indissociáveis.

Em suma, o ponto de vista do velho materialismo é a visão dos indivíduos isolados se contrapondo na arena de contradições da sociedade civil, ou seja, a sociabilidade é universalizada como o lugar dos confrontos e choque de interesses particulares dos indivíduos, isto é, a sociedade é um conjunto contraposto à individualidade, a sociabilidade é exterior à individualidade; numa palavra, no velho materialismo, indivíduo e sociedade são extrínsecos e contrapostos.

Ao passo que, no novo materialismo reivindicado por Marx, humano e social constituem uma relação fundante, só há homens em sociedade, e são as formas desta que constituem a essência dos homens: "A essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais" (Tese VI).

Numa palavra, "[...] o ser dos homens é o seu processo de vida real" (Marx e Engels, 1974, p. 25).

6_ A resolução metodológica de Marx em "O capital" e em "A ideologia alemã"

A partir deste item, serão tomados para análise alguns fragmentos de O capital, bastante conhecidos, mas, na maioria das vezes, apresentam alguns problemas de tradução que podem vedar o acesso ao espírito da letra marxiana. Além disso, é imprescindível observar que as características principais das afirmações que se seguem guardam estreita relação com a crítica dirigida à filosofia especulativa já em meados de 1843, como foi ressaltado no início do artigo:

Por seu fundamento (Grundlage) meu método dialético não só se diferencia do hegeliano, mas também é seu oposto direto (direktes Gegenteil). Para Hegel, o processo de pensamento, que ele, sob o nome de idéia, transforma num sujeito autônomo, é o demiurgo do real, real que constitui apenas a sua manifestação externa. Para mim, pelo contrário, o ideal não é nada mais que o material, transposto e traduzido na cabeça do homem (Marx, 1983, p. 20; 1971, p. 27).

Note-se que "método dialético" não diz respeito a qualquer observação de caráter simplesmente gnosiológico, mas a modos de conceber o real e o pensamento: quem é o demiurgo de quem? "Método dialético" pode ou deve ser compreendido não pela letra da expressão, mas por seu conteúdo, como posição dialética, e, como tal, como duas posições opostas: a de Hegel e a de Marx.

A seguir, confirma a Crítica de Kreuznach e desenvolve a argumentação:

[...] Há quase trinta anos (janeiro de 73/meados de 43), numa época em que ela ainda estava na moda, critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana.

Essa afirmação de Marx endossa a crítica à especulação contida naquele texto primígeno. Especulação para Marx significa, antes de qualquer coisa, converter o pensamento em "demiurgo do real", modo pelo qual esse é reduzido a ser apenas a "manifestação externa" do pensamento", isto é, aqui está em jogo uma questão ontológica fundamental – o que é o verdadeiramente real, as coisas ou o pensamento? e não um dilema metodológico. E a resposta marxiana, como é evidente, não deixa margens para dúvidas. E a frase prossegue, narrando:

Quando elaborava o primeiro volume de O Capital, epígonos aborrecidos, arrogantes e medíocres que agora pontificam na Alemanha culta, se permitiam tratar Hegel /.../ como um cachorro morto. Por isso, confessei-me abertamente discípulo daquele grande pensador e, no capítulo sobre o valor, até andei namorando (kokettierte) aqui e acolá os seus modos peculiares de expressão.

A mistificação que a dialética sofre nas mãos de Hegel não impede, de modo algum, que ele tenha sido o primeiro a expor as suas formas gerais de movimento, de maneira ampla e consciente. Em Hegel a dialética está assentada (repousa, está posta) sobre a cabeça (Sie steht bei ihm auf dem Kopf).

É importante notar que, na edição da Abril Cultural, a última frase foi eliminada, e, na edição da DIFEL/Civilização Brasileira, comparece na tradicional e distorcida versão pela qual temos que "em Hegel, a dialética está de cabeça para baixo". Esta última versão simplesmente toma a frase como metáfora, apontando abstrata e simplesmente para uma inversão, sem dizer do que consiste e qual é sua natureza, o que é feito pela eliminação do conteúdo preciso da frase, qual seja – a de que a dialética hegeliana é uma dialética da cabeça, ou baseada na cabeça, do ou baseado no pensamento, razão, faculdade de pensar, entendimento, etc. Vale dizer, Marx não refere de imediato uma inversão, mas aponta ou denuncia antes, criticamente, o caráter, ou melhor, o elemento do qual é extraída, melhor ainda, diz que a dialética hegeliana, repousando sobre a cabeça, seria uma exposição das "formas gerais do movimento do pensamento", e conquanto tal se apresenta sob invólucro mistificado. Na seqüência de seu raciocínio é que aparece uma proposta de inversão, não propriamente uma constatação de inversão: "É necessário virá-la, para descobrir o caroço racional dentro do envoltório místico" (Man muß sie umstülpen, um den rationellen Kern in der mystischen Hülle zu entdecken) (Marx, 1983, p. 21).

Passar da cabeça às coisas, eis a proposta de inversão; não se trata de fazer inversões [...] na dialética hegeliana, mas passar da plataforma do pensamento à plataforma das coisas para descobrir o caroço racional na dialética de Hegel; não é uma proposta de correção da dialética hegeliana para a passagem do ideal para o material e real, mas, a partir deste, pode-se atinar com o caroço racional daquela: pelo estudo das coisas se encontra o coágulo racional da lógica hegeliana, ou seja, "as formas gerais do movimento", porque "no entendimento positivo do existente /.../ [se] apreende cada forma existente no fluxo do movimento" – ou seja, quando se apreende o movimento das coisas pode-se expor "as formas gerais do movimento". De modo que o que Hegel supõe sejam os movimentos da idéia nada mais são do que os movimentos gerais das coisas, que ele expõe de modo mistificado, lógico, especulativo. Essa mistificação, logicismo ou especulatividade está em supor que seja do pensamento aquilo que é das coisas, dos seres. A inversão exigida por Marx é, portanto, de ordem ontológica. E o verdadeiro território ôntico se deixa ver pelos apontamentos da seqüência da exposição marxiana:

Em sua forma mistificada, a dialética foi moda alemã, porque ela parecia glorificar o existente. Em sua configuração racional é um incômodo e um horror para a burguesia e para os seus porta-vozes doutrinários, porque, no entendimento positivo do existente (positiven Verständnis des Bestehenden), ela inclui ao mesmo tempo o entendimento da sua negação, da sua desaparição inevitável; porque apreende cada forma existente no fluxo do movimento, portanto também com seu lado transitório; porque não se deixa impressionar por nada e é, em sua essência, crítica e revolucionária (Marx, 1983, p. 21).

Note-se aqui a emergência a concepção de ser em sua dinâmica processual, origem, desenvolvimento que desemboca em sua "desaparição inevitável", ou seja, em sua morte. Desaparição por conta da própria lógica ou dinâmica das coisas, não por um pretendido movimento dissolutivo da consciência como dialética negativa.2

Podem-se encontrar antecedentes textuais ao acima referido de crítica à especulatividade mistificadora de Hegel, por exemplo, em A ideologia alemã, nos seguintes termos:

Toda essa aparência, a aparência de que a dominação de uma classe determinada é somente a dominação de certas idéias, desaparece natural, por si mesma, tão logo a dominação de classe deixe de ser a forma da ordem social, tão logo não seja mais necessário apresentar um interesse particular como geral ou 'o geral' como dominante.3 Uma vez que as idéias dominantes tenham sido separadas dos indivíduos dominantes e, principalmente, das relações que nascem de uma dada fase do modo de produção, e que com isso se chegue ao resultado de que na história as idéias sempre dominam, é muito fácil abstrair dessas idéias 'a idéia' etc. como o dominante na história e nesta medida conceber todos estes conceitos e idéias particulares como 'autodeterminação' de o conceito que se desenvolve na história. É então também natural que todas as relações dos homens possam ser deduzidas do conceito de homem, do homem representado, da essência do homem, de o homem. Assim procedeu a filosofia especulativa. O próprio Hegel confessa no final da Filosofia da História (1830) que 'só considera o progresso do conceito' e que expõe na história a 'verdadeira teodicéia' (Marx e Engels, 1996, p. 76).

Na mesma obra, como reforço do exposto, sob o aspecto da recusa do espírito de sistema em Filosofia, tem-se o seguinte fragmento:

Até em seus últimos esforços, a crítica alemã não abandonou o terreno da filosofia. Longe de examinar seus pressupostos filosóficos gerais, todas as suas questões brotaram de um sistema filosófico determinado, o sistema hegeliano. Não apenas em suas respostas, mas já nas próprias questões havia uma mistificação. Essa dependência de Hegel é a razão pela qual nenhum desses novos críticos tentou uma crítica de conjunto do sistema hegeliano, embora cada um deles afirme ter ultrapassado Hegel. Em suas polêmicas contra Hegel, e entre eles a isto se limitavam, cada qual isola um aspecto do sistema hegeliano e o volta, ao mesmo tempo, contra o sistema inteiro e contra os aspectos isolados pelos outros. Inicialmente, tomam-se categorias hegelianas puras, isentas de falsificação, tais como as de substância e autoconsciência; depois, as categorias são profanadas com nomes mais mundanos, tais como os de Gênero, o Único, o Homem etc. (Marx e Engels, 1996, p. 23-24).

E depois de denunciar de Strauss a Stirner por se terem limitado à crítica das representações religiosas, que passaram a englobar todas as formas de representação, de tal sorte que "toda relação dominante era uma relação religiosa /.../ e o mundo se viu canonizado", Marx conduz uma reflexão particularmente significativa:

Os velhos hegelianos haviam compreendido tudo, desde que tudo fora reduzido a uma categoria da lógica hegeliana. Os jovens hegelianos criticaram tudo, introduzindo sorrateiramente representações religiosas por baixo de tudo ou proclamando tudo como algo teológico. Jovens e velhos hegelianos concordavam na crença no domínio da religião, dos conceitos e do universal no mundo existente. A única diferença era que uns combatiam como usurpação o domínio que os outros aclamavam como legítimo.

Desde que os jovens hegelianos consideravam as representações, os pensamentos, os conceitos – em uma palavra, os produtos da consciência, por eles tornada autônoma – como os verdadeiros grilhões dos homens (exatamente da mesma maneira que os velhos hegelianos neles viam os autênticos laços da sociedade humana), é evidente que os jovens hegelianos têm que lutar apenas contra essas ilusões da consciência. Uma vez que, segundo suas fantasias, as relações humanas, toda a sua atividade, seus grilhões e seus limites são produtos de sua consciência, os jovens hegelianos, conseqüentemente, propõem aos homens este postulado moral: trocar sua consciência atual pela consciência humana, crítica ou egoísta, removendo com isso seus limites. Assim, exigir a transformação da consciência vem a ser o mesmo que interpretar diferentemente o existente, isto é, reconhecê-lo mediante outra interpretação. /.../ Os mais jovens dentre eles descobriram a expressão exata para qualificar sua atividade quando afirmam que lutam unicamente contra 'fraseologias'. Esquecem apenas que opõem a estas fraseologias nada mais do que fraseologias e que, ao combaterem as fraseologias deste mundo, não combatem de forma alguma o mundo real existente. /.../ A nenhum destes filósofos ocorreu perguntar qual era a conexão entre a filosofia alemã e a realidade alemã, a conexão entre a sua crítica e o seu próprio meio material (Marx e Engels, 1996, p. 25-26).

Esse longo extrato faz lembrar da herança iluminista: contra o espírito de sistema em Filosofia, contra a especulatividade e o propósito prático do saber, marcando uma posição teórica ativa e operativa, que parte do reconhecimento do mundo e para este se volta.

No que diz respeito às relações entre conceito e categoria no universo do pensamento de Marx, é necessário aduzir algumas palavras a respeito, baseadas, principalmente – mas não só –, em importantes passagens da chamada Introdução de 57, quando Marx, ao examinar criticamente o método da Economia Política, fala-nos da necessidade do "caminho de volta", inexistente, é claro, no procedimento dos economistas ingleses. Ademais, é bom lembrar que, nesse mesmo escrito, Marx volta a falar também criticamente da posição especulativa hegeliana, ao salientar que:

No primeiro método [o dos economistas E.V.], a representação plena volatiza-se em determinações abstratas, no segundo [o caminho de volta E.V.], as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso é que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto que o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo em concreto pensado. Mas este não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto (Marx, 1974, p. 122-123).

7_ Conclusão

Levando em conta as considerações acima, poder-se-ia afirmar, a título de uma breve aproximação, que:

  1. O conceito, de um lado, afirma, estabelece, põe uma determinação; opera, pois, uma representação.
  2. Simultaneamente, o conceito se mantém como abstração, isto é, incompleto, aberto assim, para se articular com outros conceitos, formando assim, permitindo assim, ou ainda, "pedindo" assim, o concurso de outros conceitos com os quais forma então um feixe de abstrações que possui a função da determinação, da especificação. Tal abertura e articulação não são "livres", ou caóticas. O processo aqui é conjunto dos momentos aproximativos, e o ordenamento remete à matrização do ser que ele busca tornar um "concreto pensado".

Na medida em que cada categoria é, pois, ao mesmo tempo, determinação e abstração, isto é, conteúdo limitado e aberto, não é, pois, definição (no sentido de limitar e fechar), mas é determinação que limita e abre: abre para – ganhando novo conteúdo – ser novamente limitada. Conquanto relação conceitual, passam a ser indiscerníveis: concretam pelo conceito o concreto real. Sem esse tipo, por assim dizer, de mútua flexibilidade, não pode haver concreção. Estão eliminados, portanto, quaisquer tipos de conceito/categoria ou procedimento formais. É evidente que se o método de que nos fala Marx é o método da concreção, suas categorias ou conceitos deverão mostrar-se capazes de promover esse processo determinativo e especificador, impensável como combinatória de noções abstratas. De sorte que o dado empírico é dado para a superação pelo processo determinativo e especificador (a concreção), e não para ser enquadrado pela noção formal. A abstração aqui compreendida é o primeiro momento da concreção, não é um contorno fixo, mas um nódulo elementar pronto a se transfigurar no roteiro especificador, singularizador, o da concreção, como já referido. Não acolhe, por via de conseqüência, nem é posta para acolher os dados empíricos, mas é posta como ponto de partida significativo, fundindo-se com novas determinações que vão sendo extraídas e estabelecidas a partir do próprio real. Vale dizer, não se trata de um procedimento regido por regras formais ou por uma normatividade arbitrária.

Portanto, método é meio, razão porque, diante de cada objeto, tem de ser edificado (Giannotti, 1972, p. 118).

Em suma, o pensamento de Marx não é um modelo, uma vez que seu itinerário filosófico-científico é a apreensão da lógica objetiva dos seres e dos processos, é a concreção conceitual da regência imanente das existências, e não a logificação da pletora fenomênica pela adjudicação a ela de um nexo exterior a ela adredemente construído, não importante aqui se este construto seja uma inferência a partir de uma saturação empírica, em face da qual, na seqüência, se independentiza.

Referências bibliográficas

GIANNOTTI, J. A. O ardil do trabalho. Seleções Cebrap 2, São Paulo, 1972. (Exercícios de Filosofia).

GRAMSCI, A. Notas críticas sobre una tentativa de 'Ensayo Popular de Sociologia'. In: Vv.Aa. Gramsci y las Ciências Sociales. Córdoba: Pasado y Presente, 1972.

MARX, K. Das Kapital (Erster Band). Berlim: Dietz Verlag, 1971.

MARX, K. Crítica da Filosofia do Direito: Introdução. Temas de Ciências Humanas. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1972

MARX, K. Introdução de 1857. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os Pensadores).

MARX, K. Posfácio à segunda edição. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

MARX, K. Teorias da mais-valia. (Tomo III). São Paulo: DIFEL, 1985.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. Lisboa: Presença/Martins Fontes, 1974.

MARX, K.; ENGELS, F. Ausgewälte Schriften. vol. II. Berlim: Dietz Verlag, 1976.

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SARTRE, J. P. Critique de la raison dialetique (Precedé de Question de Méthode). Paris: Librairie Gallimard, 1960.

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