Artigo retirado da revista "nova economia" diponível em: http://www.face.ufmg.br/novaeconomia/sumarios/v14n3/140305.pdf (grifo meu)
Resumo
O artigo procura mostrar que a lei do valor pode ser entendida a partir de três versões sucessivas, em que ela se torna progressivamentemais complexa. A versão mais simples é a de lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho. A segunda versão é a de lei da distribuição do trabalho social (o que também pode ser interpretado como lei do equilíbrio na distribuição do trabalho social ). O exame do impacto da concorrência intra-setorial entre os capitais na economia capitalista conduz à terceira versão da lei do valor, como lei da minimização do tempo de trabalho abstrato. Desta forma, a lei do valor é uma lei dinâmica, base das leis gerais de desenvolvimento da economia capitalista. Finalmente, no plano internacional, a lei do valor se apresenta como lei da geração de superlucros e do aprofundamento das desigualdades.
Abstract
This article intends to demonstrate that the law of value can be understood based on three successive versions, through which it becomes progressively more complex. The least complex law is the law of value determined by years worked. The second version is the law of social work distribution (which may also be interpreted as the law of equilibrium in the distribution of social work). Examination of the impact of intrasectorial competition among capitals in the capitalist economy leads to the third version of the law of value, the law of minimization of abstract work time. In this manner, the law of value is a dynamic law which forms the basis for general laws of capitalist economy development. Finally, in the international scene, the law of value is presented as the law of high-profit generation and of the widening of inequality.
1 Introdução
Marx, como é sabido, herdou da Economia Política Clássica sua teoria do valor e a retrabalhou profundamente. Herdou também a idéia da existência de uma lei do valor – o termo lei aqui significa que a formação do valor das mercadorias traz certas implicações, certa lógica, para o funcionamento da economia capitalista. A existência da lei do valor assim entendida é uma das idéias centrais da economia marxista.
Não há, contudo, clareza sobre qual é o significado dessa lei; existem interpretações distintas a respeito. É útil, portanto, procurar tratar de modo sistemático os diversos significados atribuídos a ela.
Este artigo discute, em primeiro lugar, a lei do valor no plano nacional, procurando mostrar que ela pode ser entendida com base em três versões sucessivas que não se excluem; ela se torna progressivamente mais complexa. No plano internacional, procuramos mostrar que a lei do valor se apresenta como lei da geração de superlucros e do aprofundamento das desigualdades.
A segunda seção expõe a versão mais simples da lei do valor: a de lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho. Mostra também por que o sentido dessa lei, mesmo nessa primeira formulação, já é mais complexo do que costuma ser entendido. A terceira seção apresenta o entendimento da lei do valor como lei da distribuição do trabalho social, e questiona se isso pode significar, como pretendem vários autores, lei do equilíbrio na distribuição do trabalho social. A quarta seção comenta a existência de dois tipos de concorrência entre os capitais na economia capitalista – a intersetorial e a intra-setorial.
A partir da análise da concorrência intra-setorial, a quinta seção expõe o entendimento da lei do valor como lei da minimização do tempo de trabalho abstrato, e argumenta que, assim entendida, ela é uma lei dinâmica, vinculada às leis gerais de desenvolvimento da economia capitalista (de fato, constitui a sua base). A sexta seção discute alguns aspectos da formação do valor no plano internacional; a partir daí, a sétima seção pode retomar a discussão da lei do valor nesse plano.
2 Lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho
Quando se trata da lei do valor na economia marxista, o primeiro entendimento é o de que essa lei diz que os valores das mercadorias são proporcionais ao tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção ou, o que é equivalente, que os seus preços são, na média, proporcionais a esse tempo de trabalho. As mercadorias se trocam, portanto, com base no trabalho despendido na sua produção. O próprio Marx (1982b) referiu-se à lei do valor nesses termos.
Podemos, então, estabelecer como lei geral o seguinte:
A seqüência do texto fala das oscilações dos preços de mercado em torno do valor, identificado inclusive com o preço natural de Adam Smith; Marx afirma que:
A lei do valor formulada dessa maneira tem sido um dos principais alvos de ataque dos críticos de Marx desde pelo menos o fim do século XIX, com a publicação das críticas de Böhm-Bawerk (1974). De fato, quando consideramos uma economia capitalista com muitos capitais que concorrem entre si, com composições orgânicas e tempos de rotação distintos, os preços não podem ser, na média, proporcionais aos valores. Os preços médios devem corresponder ao que Marx chamou de preços de produção – sua versão para os preços naturais de Adam Smith –, e não aos valores. A formulação de Salário, Preço e Lucro citada deve ser considerada, portanto, como uma simplificação, ou como uma aproximação pouco rigorosa da realidade, justificável pelo caráter popular da exposição.
Ao tratar dessas questões em O Capital, Marx é bastante mais cuidadoso. Assim, depois de chegar ao valor como objetivação do trabalho abstrato em mercadorias, medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário, diz que o valor se expressa em dinheiro como preço. Mas, já no Capítulo III do Livro I, ele afirma a possibilidade de uma “incongruência quantitativa” entre o preço e a grandeza de valor, e não restringe esta possibilidade à ocorrência de oscilações do preço em torno do valor (Marx, 1988, p. 91). Logo adiante, aliás, ele menciona também a possibilidade de uma “contradição qualitativa”:
Ou seja, fica registrado desde o início de O Capital que a relação entre valor e preço é mais complexa do que a sugerida pela fórmula: o preço é a expressão do valor em dinheiro; é afirmado que os preços podem desviar-se do valor, e a natureza precisa desses desvios não é estudada. Quando essa questão é retomada no Livro III, a partir do Capítulo VIII, com a teoria da transformação dos valores em preços de produção e com a discussão da relação dos preços de produção com os preços de mercado, fica claro que os preços médios não podem, em geral, ser iguais aos valores.
O sentido, então, da lei do valor nesse primeiro aspecto é, afinal, o seguinte: o valor, como objetivação de tempo de trabalho abstrato, só pode ser criado na produção; na circulação, ele se expressa como preço; mas os preços podem divergir dos valores.(1)
3 Lei da regulação da distribuição do trabalho social
A lei do valor tem também um segundo sentido, claro desde o Capítulo I do Livro I de O Capital: o de realizar a distribuição do trabalho social, numa forma de organização econômica em que os produtores não se relacionam diretamente, mas apenas indiretamente, através do intercâmbio dos seus produtos, no mercado. Esse segundo sentido, aliás, é um desenvolvimento do anterior, já que se associa estreitamente aos desvios dos preços em relação aos valores.
Este tema foi trabalhado por diversos economistas, entre os quais se destaca Isaak Rubin. Um dos seus argumentos centrais (Rubin, 1980) é que o sentido principal da teoria do valor de Marx não vai do valor ao trabalho (isto é, seu objetivo principal não é o de descobrir que por trás do valor das mercadorias está o trabalho humano), mas, sim, do trabalho ao valor. Trata-se de explicar por que, na economia mercantil-capitalista, o trabalho assume a forma de valor dos produtos do trabalho (das mercadorias). Nessa linha de raciocínio, a razão fundamental para que o trabalho assuma a forma de valor das mercadorias é que esta é a única possibilidade de regulação da distribuição social do trabalho em uma economia de produtores privados, que não articulam previamente seus gastos de trabalho. A variação dos preços das mercadorias em torno dos valores é, portanto, indispensável diante da necessidade de corrigir o excesso ou a escassez de determinadas mercadorias: as escassas verão seus preços subirem; as excedentes seus preços baixarem; esse movimento de preços leva à correção tendencial dos desequilíbrios. A lei do valor é vista assim como uma lei que regula a distribuição do trabalho social.
Tal interpretação da lei do valor tem muitos méritos. É com base nela, por exemplo, que Rubin desenvolve um tratamento da questão da transformação dos valores em preços de produção rico e coerente. Ao mencionar que na economia capitalista a distribuição do trabalho social depende da distribuição dos capitais, passa de forma natural da idéia de preços que flutuam em torno do valor para a idéia de preços cuja média é dada pelos preços de produção.
Contudo, interpretar a lei do valor sobretudo como uma lei da distribuição traz um risco, o de reforçar excessivamente seu caráter de lei de equilíbrio. O próprio Rubin sofre desse problema, ao dizer que “[a] lei do valor é a lei de equilíbrio da economia mercantil ” (Rubin, 1980, p. 82). Mas ele aparece ainda mais claramente em outros autores que defendem uma concepção semelhante.
Assim, Paul Sweezy diz que:
Será correto tratar a lei do valor como sendo “essencialmente uma teoria do equilíbrio geral”? Certamente não; uma teoria do equilíbrio geral não poderia estar de acordo com a visão de Marx do capitalismo – a de um sistema que não tende ao equilíbrio, qualquer que seja o sentido que se queira dar a isso.
Os riscos dessa interpretação são explicitados ainda mais claramente por Maurice Dobb. Segundo esse autor, a lei do valor mostra que:
Moishe Postone comenta de modo apropriado:
Ernest Mandel, por outro lado, formula a lei do valor como uma lei da distribuição, mas não incorre no erro de tratá-la como uma lei do equilíbrio. No “Glossário” de seu O Capitalismo Tardio, diz o seguinte:
Apesar dessa formulação da lei do valor como lei da distribuição,(2) não há na obra de Mandel nenhuma idéia de que essa lei seria uma “lei do equilíbrio” (e menos ainda de “equilíbrio geral”) ou de que seria equivalente à “mão invisível” de Adam Smith. Pelo contrário, ele enfatiza sempre os desequilíbrios da economia capitalista e a tendência a que se ampliem. Voltaremos a mencionar a interpretação de Mandel da lei do valor na sétima seção.
4 Os dois tipos de concorrência
Antes de introduzir o terceiro sentido da lei do valor, convém fazer pequena digressão e mencionar a existência de dois tipos distintos de concorrência entre os capitais na economia capitalista.
A concorrência intersetorial – o deslocamento dos capitais entre os diversos setores, buscando as taxas de lucro mais elevadas – leva tendencialmente os preços de mercado para uma média constituída pelos preços de produção e promove a tendência à igualação das taxas de lucro. Numa situação em que essa tendência se realizasse plenamente, e em que dessa forma todos os capitais receberiam a taxa de lucro média, não haveria incentivos a deslocamentos; essa forma de concorrência tem, portanto, caráter equilibrador.
Existe, contudo, um segundo tipo de concorrência, a concorrência intra-setorial, isto é, interna a cada setor. Para analisá-la, Marx introduz os conceitos de valor individual, valor social (ou valor de mercado), mais-valia extra e superlucro (O Capital III, Capítulo X). Cada capitalista procura reduzir os valores individuais das mercadorias que produz (por aumento de produtividade, por superexploração, ou por outros métodos), de modo a obter uma mais-valia extra. A produtividade superior à média de um momento, contudo, transforma-se na produtividade média do momento seguinte. A redução contínua dos valores individuais, perseguida por cada capitalista, leva à redução contínua também dos valores sociais; a mais-valia extra conseguida hoje desaparece amanhã. Os capitalistas, então, procurarão introduzir novos aumentos de produtividade. É claro que esse processo não tem fim.
O efeito da concorrência intrasetorial é portanto desequilibrador. Ela questiona permanentemente a igualação entre as taxas de lucro, desigualando-as dentro de um mesmo setor. A ênfase nesse aspecto desigualador da concorrência é característica fundamental da abordagem marxista.
O funcionamento da concorrência intra-setorial é um dos desdobramentos centrais da interação contraditória entre trabalho concreto e trabalho abstrato, destacado por Marx desde o início de O Capital. A concorrência intra-setorial explica por que as empresas são levadas a uma busca permanente de progresso técnico, ou seja, só podem obter ganhos extraordinários quando têm uma vantagem relativa em relação às concorrentes. Aprodução de mais valores de uso não interessa em si mesma, mas apenas na medida em que permite produzir mais valor no mesmo espaço de tempo. Em um quadro concorrencial, os ganhos extraordinários obtidos valendo-se de inovações técnicas serão sempre provisórios: tão logo as novas tecnologias se generalizem, o valor social das mercadorias produzidas cairá, e a taxa de lucro voltará ao nível anterior.(3) Por outro lado, qualquer empresa que não introduza novas tecnologias redutoras do custo de produção(4) não manterá sua posição, mas retrocederá.
Podemos representar a busca de mais-valia extra a partir de progresso técnico pelas empresas como uma corrida dos representantes dessas empresas sobre uma esteira rolante que rola em sentido contrário, e com uma velocidade cujo módulo é dado pela “média social” da velocidade da introdução de progresso técnico. Se os corredores forem mais rápidos, a esteira também rolará mais depressa no sentido contrário, e eles não terão portanto qualquer vantagem. Como a esteira não pode ser parada, não haverá nunca um ganhador final, e nenhum competidor poderá parar, sob pena de ficar irremediavelmente para trás.
Moishe Postone compreendeu bem o sentido dessa dinâmica de redefinição do tempo de trabalho socialmente necessário:
Como veremos na seção seguinte, Postone prefere uma imagem diferente da de esteira rolante, a do “moinho de pisar”.
5 Lei da minimização do tempo de trabalho abstrato
A análise da concorrência intra-setorial nos leva a um terceiro sentido para a lei do valor que integra os dois anteriores como momentos, e que dá um sentido geral a essa lei que é muito diferente do de uma “lei do equilíbrio geral” ou da “mão invisível” de Adam Smith.
Como vimos, a busca permanente de reduções de custos (de tempo de trabalho abstrato), e em particular de progresso técnico, cria uma dialética entre valores individuais e valores sociais. Este é o novo aspecto da lei do valor – ela se transforma, na feliz expressão de John Weeks, na “lei da minimização do tempo de trabalho abstrato” (Weeks, 1981, p. 33).
Esse autor explica esse aspecto da lei do valor da seguinte maneira:
Moishe Postone é quem mais enfatiza tal aspecto da lei do valor. Para ele, o elemento central dessa lei é a seguinte dialética: aumento de produtividade para um capital – redução do valor individual e obtenção de mais-valia extra – generalização do novo nível de produtividade e perda da mais-valia extra – recomeço do processo. A partir daí, conclui:
Por efeito “moinho de pisar”(7) e por “um padrão de transformação e reconstituição sociais contínuas”, Postone refere-se à dialética resumida acima.
Nesse sentido, portanto, a lei do valor refere-se à constituição e reconstituição permanentes de uma norma produtiva. É ela que dá à sociedade capitalista seu grande dinamismo, e que torna fraca e secundarizada qualquer idéia de tendência para um equilíbrio, ou seja, qualquer equilíbrio tendencial é desfeito muito antes de poder realizar-se. A “mão invisível” só pode funcionar muito parcialmente.
É interessante observar que já na Miséria da Filosofia, de Marx (1965b), há uma passagem muito sugestiva sobre a lei do valor que aponta na direção de defini-la como lei da redução do tempo de trabalho e, associadamente, como lei de depreciação do tempo de trabalho:
No chamado Capítulo VI Inédito de O Capital, essa dinâmica é relacionada com outra lei fundamental da economia capitalista:
A lei do valor transforma-se, então, em lei da produção pela produção, e em lei da subordinação crescente do trabalhador ao capital. Neste último aspecto, como observa John Weeks, a lei do valor é também a lei da alienação do trabalhador:
Fica claro, portanto, que a lei do valor não pode apenas ser entendida como lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho, tampouco como lei da regulação da distribuição do trabalho social. Esses momentos existem, mas ela vai além deles. Seu sentido mais profundo é o de uma lei que define e redefine continuamente uma norma produtiva, que cria a partir daí uma lógica de produção pela produção e que dá à economia capitalista um grande dinamismo, juntamente com um caráter profundamente contraditório.
A lei do valor, naturalmente, é uma lei da concorrência. A fixação nos seus dois primeiros aspectos implica mirar apenas a questão da relação entre valores e preços, e portanto a concorrência intersetorial entre os capitais. No entanto, a dialética valor individual – valor de mercado, e a concorrência intra-setorial, são aspectos não menos fundamentais da economia capitalista; são captados pela terceira dimensão da lei do valor, o de lei da minimização do tempo de trabalho abstrato. Ela determina (e redetermina), portanto, uma norma produtiva, que tem implicações sobre a própria organização da produção, sobre os métodos empregados, etc., e esse é seu sentido mais profundo. Muito mais do que uma lei da distribuição (dos capitais e do trabalho social), a lei do valor é uma lei da produção.
6 Aspectos da formação do valor no plano internacional
Nas seções anteriores, mencionamos a existência de um processo de interação entre o tempo de trabalho concreto e o tempo de trabalho abstrato e a conseqüente presença permanente do progresso técnico. Há um aspecto desse processo que é preciso enfatizar: o impacto do progresso técnico realizado em alguns setores é generalizado.
Quando o progresso técnico se generaliza em um setor – digamos, no setor A –, reduz o valor das mercadorias produzidas aí; isto significa a ampliação do “poder de compra real” do trabalho realizado em todos os outros. Isto é, nos outros setores, supondo que não tenha havido nenhuma mudança nas suas condições de produção, a mesma quantidade de trabalho se objetiva no mesmo valor, e troca-se por mais mercadorias do setor A. Quando o progresso técnico atinge o setor de meios de consumo, e se generaliza aí, reduz o seu valor. O trabalho realizado pelos trabalhadores de setores que não se modificaram tecnicamente também tem seu poder de compra real ampliado. Isso abre a possibilidade de redução do valor da força de trabalho de todos os trabalhadores (trata-se, como é bem conhecido, da produção de mais-valia relativa), mas também de um aumento dos salários reais, inclusive dos trabalhadores que não experimentaram nenhum aumento de sua produtividade física.
Em geral, o ritmo do progresso técnico é diferenciado na economia; há setores em que ele é muito rápido, outros em que ele é muito mais lento.(9) Ora, o progresso técnico, quando generalizado em cada setor, amplia de modo igual o poder de compra da hora de trabalho de todos os setores, sejam esses caracterizados pela rapidez, sejam pela lentidão do aumento da força produtiva física do trabalho. Há uma espécie de “difusão solidária do aumento da produtividade do trabalho”, que se expressa na produção de mais-valia relativa no conjunto da economia (se esse processo levar à redução do valor da força de trabalho) ou na elevação de conjunto dos salários reais.(10)
Com relação à determinação dos salários reais, Luigi Pasinetti, em sua obra Structural Change and Economic Growth, faz uma formulação essencialmente semelhante, embora no contexto de um quadro teórico distinto do que está sendo exposto neste trabalho, e a contrasta com a concepção neoclássica. Enfatiza o caráter macroeconômico dos salários (pois “dependem da produtividade física do sistema econômico como um todo”) (Pasinetti, 1981, p. 136-138).
Compreender a existência da “difusão solidária do aumento da produtividade do trabalho” é fundamental para o entendimento das diferenças no funcionamento da lei do valor no plano nacional e no plano internacional.
Outro aspecto da interação contraditória do trabalho concreto e do trabalho abstrato deve ser mencionado neste contexto.
Uma vez que a determinação da magnitude do valor inclui um processo de sincronização do tempo de trabalho contido nas mercadorias produzidas anteriormente, toda difusão de progresso técnico implica uma reavaliação dos estoques existentes das mercadorias cuja produção é afetada, de modo direto ou indireto.
Isso é especialmente importante para os estoques de capital, isto é, de mercadorias que funcionam como meios de produção (podem sofrer o que Marx chamava de obsolescência moral). Ou seja: a difusão do progresso técnico pode provocar um empobrecimento de setores retardatários tecnicamente; tal empobrecimento é agravado por não se referir apenas à capacidade presente de produção, isto é, por incluir a perda de riqueza já acumulada. Esse problema é especialmente relevante no plano internacional.
Os valores e os preços no plano internacional têm natureza distinta da que têm no interior de um mesmo espaço econômico. A principal razão é a persistência de desigualdades duradouras entre condições nacionais de produção – tecnológicas, institucionais –, o que faz que não haja tendência à “homogeneização” do trabalho, à constituição generalizada do mesmo padrão de trabalho simples. Na verdade, já há heterogeneidade do trabalho quando consideramos desigualdades nas condições de produção e a concorrência intra-setorial no plano nacional; mas no plano internacional as diferenças tendem a ser mais duradouras, não são tão transitórias como no plano nacional; a dialética valores individuais – valor social é truncada. O valor traduzido internacionalmente não é, portanto, determinado como “puro dispêndio de força de trabalho”; as distintas intensidades e produtividades nacionais são levadas em conta, e formam-se projeções internacionais dos valores nacionais (correspondentes aos valores individuais) que se ordenam e uma escala. No entanto, uma vez que há comércio internacional, e se supomos que os preços das mercadorias transacionadas (tradables) não podem divergir excessivamente, há formação de preços internacionais.(11)
A diferença duradoura de condições de produção não diz respeito apenas aos setores que entram diretamente nas transações internacionais, isto é, que produzem tradables. Vimos que, na medida em que o progresso técnico se generaliza em cada setor e o valor social de seus produtos cai, ocorre uma “difusão solidária” do aumento da produtividade do trabalho. É portanto todo o trabalho realizado no país – no espaço econômico unificado em que o aumento da produtividade se dá – que se torna mais produtivo (no sentido de que a hora de trabalho simples se troca por mais valores de uso); isso acontece até para o trabalho que não foi beneficiado por progresso técnico e cuja produtividade física, portanto, não se modificou. O truncamento do processo de difusão do progresso técnico no plano internacional, portanto, implica a constituição de uma diferenciação da produtividade do trabalho entre as nações, não apenas entre os setores nos quais a produtividade física evoluiu de modo diferente.
Essa diferenciação nacional de produtividade implica uma diferenciação duradoura na magnitude do valor produzido pela hora de trabalho de cada país quando traduzido internacionalmente. Assim, podemos dizer que, tal como acontece com a determinação dos salários, a determinação do valor internacional adicionado pela hora de trabalho abstrato (simples) tem natureza macroeconômica.
O ordenamento da capacidade de produzir valor internacional em uma escala, com base nas distintas produtividades nacionais do trabalho, pode ser chamado de normalização internacional do tempo de trabalho (a normalização propriamente dita do trabalho – isto é, a redução do tempo de trabalho individual a tempo de trabalho socialmente necessário – dá-se no interior de um mesmo setor, da produção das mesmas mercadorias; mas podemos estender esse conceito ao plano internacional).(12)
7 A lei do valor no seu conjunto a concorrência capitalista
A diversidade da produção do valor no plano internacional dá aos países mais avançados a possibilidade de ganhos extraordinários, (13) e dá à operação da lei do valor caráter especialmente desigualador. Para resumi-lo, podemos partir da formulação de Ernest Mandel no segundo e no terceiro capítulos de O Capitalismo Tardio (1985), sobre a estrutura desigual e hierarquizada do mercado mundial, seu desenvolvimento desigual e combinado e as “três fontes de superlucros”. Sua ênfase está justamente na desigualdade e na hierarquia, bem como no desequilíbrio, gerados pela lei do valor. Sua conseqüência para os países atrasados é reforçar seu atraso:
É explorando as conseqüências da lei do valor, e não a violando, que os países e setores mais dinâmicos buscam superlucros. Conforme o período histórico, o tipo de superlucro predominante muda. Na época do capitalismo de livre concorrência, o superlucro era obtido principalmente valendo-se da produção desigual e da transferência de valor com base no nível distinto de produtividade nas regiões mais desenvolvidas e menos desenvolvidas (“colônias internas”) no interior dos mesmos países. Na época do imperialismo clássico, a origem principal dos superlucros estava na relação dos países imperialistas com os países coloniais e semicoloniais; a mesma combinação de produção desigual e transferência de valor(14) se registrava. Finalmente, na fase do capitalismo tardio, o superlucro é obtido principalmente na justaposição de desenvolvimento em setores dinâmicos e subdesenvolvimento em outros, basicamente nos próprios países imperialistas, mas também, de modo secundário, nas semicolônias. (15) Essas três fontes de superlucros predominam nos distintos períodos históricos,mas não se excluem mutuamente (Mandel, 1985, p. 51-73, Cap. 3).
É possível discutir a periodização e a caracterização das distintas etapas propostas por Mandel. Seria necessário, ademais, estendê-las ao período posterior à publicação de O Capitalismo Tardio. Para a discussão realizada aqui, entretanto, o importante é a idéia de que o funcionamento da lei do valor não conduz à homogeneização da economia mundial, mas à sua hierarquização permanente, com desigualdades que se modificam, sem deixarem de existir.
Para os lucros dos capitais, não importa apenas sua própria produtividade; importa a produtividade dos outros. No modelo de concorrência perfeita walrasiano, todos os agentes são tomadores de preços (price-takers), e fixam seu nível ótimo de produção selecionando a tecnologia disponível, dados seus custos e preços de venda, sem se preocuparem com o que fazem os concorrentes. No capitalismo realmente existente, ao contrário, as empresas não podem deixar de olhar para os lados. Não se trata apenas de ver nas outras empresas adversários na disputa por mercados; trata-se também de ver nas desigualdades – nacionais e internacionais – oportunidades de maiores ganhos.
A lei do valor emerge dessa caracterização da economia mundial como lei da geração de superlucros, da mais-valia extra e do intercâmbio desigual.(16)
Referências bibliográficas
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BORGES NETO, João. Duplo caráter do trabalho, valor e economia capitalista. 2002. Tese (Doutorado em Economia) – Faculdade de Economia e Administração, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
DOBB, Maurice. Economía política y capitalismo. México: Fondo de Cultura Económica, 1945. (Publicado originalmente em inglês, em 1937).
MANDEL, Ernest. O capitalismo tardio. 2. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1985. (Originalmente publicado em alemão em 1972).
MARX, Karl. Resultados do processo de produção imediata. São Paulo: Editora Moraes, [s. d.]. (Capítulo VI inédito de O capital).
MARX, Karl. Oeuvres economie I. Bibliothèque de la Pléiade. Paris: Gallimard, 1965a.
MARX, Karl. Misère de la Philosophie. In: MARX, Karl. Oeuvres economie. Paris: Gallimard, 1965b. p. 1-136.
MARX, Karl. Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982a. (Os Economistas). MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In: MARX, Karl. Oeuvres economie. Paris: Gallimard, 1982b. p. 133-185.
MARX, Karl. O capital. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Cinco volumes: Livro I, Volumes I e II; Livro II, Volume III; Livro III, Volumes IV e V).
PASINETTI, Luigi. Structural change and economic growth. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.
POSTONE, Moishe. Time, labor and social domination. New York: Cambridge University Press, 1993.
RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense, 1980. (Traduzido da 3. ed. russa de 1928).
SWEEZY, Paul. Teoria do desenvolvimento capitalista. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. (Originalmente publicado em inglês em 1942).
SWEEZY, Paul. (Org.). Economia burguesa y economia socialista. Buenos Aires: Pasado y Presente, Siglo XXI. Argentina Editores, 1974. (Originalmente publicado em inglês em 1949).
WEEKS, John. Capital and exploitation. Princeton: Princeton University Press, 1981.
(1) O que significa fazer na circulação uma transferência do valor já determinado na produção.
(2) Falar da distribuição incluindo as decisões de investimento implica falar da produção – da expansão ou da contração dos setores produtivos –, mas não do modo de produção.
(3) Na verdade, se levarmos em conta a elevação da composição orgânica do capital e a lei da tendência decrescente da taxa de lucro, a taxa de lucro poderá cair abaixo do nível anterior. Essa questão, no entanto, ultrapassa os limites deste artigo.
(4) Ou dos custos de distribuição. A taxa de lucro geral é definida, de fato, como a razão entre a massa de mais-valia (de que se subtraem os custos improdutivos) e a massa dos capitais industriais e comerciais. Os custos de distribuição, naturalmente, são custos improdutivos.
(5) Essa minimização do trabalho concreto é feita perseguindo-se a minimização do trabalho abstrato.
(6) Weeks menciona igualmente o aspecto da lei do valor como lei da distribuição dos capitais: “A concorrência força todos os produtores a produzir com o mínimo insumo de tempo de trabalho concreto, e força uma tendência para uma taxa de lucro normal em todas as indústrias. Estes dois aspectos da lei do valor podem ser chamados de ‘lei do tempo de trabalho socialmente necessário’ e de ‘lei da tendência da igualação da taxa de lucro’” (Weeks, 1981, p. 40). Além disso, como veremos abaixo, chama a atenção ainda para um terceiro aspecto dessa lei, relacionado com o de redução do tempo de trabalho.
(7) O “moinho de pisar” é um moinho movimentado pelos passos do trabalhador, de tal maneira que quem o movimenta permanece sempre na mesma posição, por mais que acelere seu passo.
(8) Marx, aqui, supõe implicitamente: que o pequeno capitalista não teria os ganhos de escala que o grande capitalista teria; que o socialmente necessário seria determinado pelos grandes capitalistas, ou seja, pelo trabalho mais produtivo, ou então por uma produtividade intermediária, que seria de qualquer maneira maior do que a disponível para o pequeno capitalista. Adota portanto a suposição básica da existência de rendimentos crescentes de escala. Além disso, seu raciocínio se baseia também em que o “quantum de trabalho maior do que o socialmente necessário” não geraria mais valor, ou seja, seria desperdiçado. Assim, a hora de trabalho do trabalhador que trabalha para o pequeno capitalista geraria menos valor do que a hora de trabalho média.
(9) Como exemplo deste último caso, temos muitos dos setores chamados de “serviços”. Muitos deles não são produtivos, mas essa questão não tem importância neste contexto: o progresso técnico que reduz custos improdutivos é tão importante quanto o que amplia a capacidade de produzir valores de uso.
(10) Como se vê, trata-se de uma “solidariedade intersetorial”, e não obrigatoriamente da solidariedade entre os trabalhadores.
(11) Mesmo que avaliemos que não se formam verdadeiros preços de produção, ou preços comerciais, internacionais. A formação desses preços supõe a formação de uma taxa geral de lucro internacional, o que é bastante discutível.
(12) Nesse plano, não se trata, naturalmente, da produção da mesma mercadoria, mas da produção de determinado conjunto de bens, isto é, da totalidade dos bens produzidos em cada país.
(13) Em particular em razão da fixação da taxa de câmbio em nível favorável para eles. Ver, a esse respeito, Borges Neto (2002), Seção 5.5.
(14) Mandel, baseando-se na sua concepção sobre a origem da mais-valia extra (subseção 5.2.3), não fala nunca em produção desigual de valor, mas apenas em transferência de valor. Como vimos na seção 5.5, as duas coisas acontecem. Para o tema desta seção, essa diferença com a abordagem de Mandel não é importante.
(15) Em O Capitalismo Tardio o termo semicolônia é usado para os países dependentes em geral.
(16) Por essa razão, os países retardatários (“em desenvolvimento”) só podem se recuperar de seu atraso a partir de uma intervenção do Estado contra a lógica da lei do valor, isto é, contra a pura lógica do mercado. Esse tema, contudo, ultrapassa os limites deste artigo.
Resumo
O artigo procura mostrar que a lei do valor pode ser entendida a partir de três versões sucessivas, em que ela se torna progressivamentemais complexa. A versão mais simples é a de lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho. A segunda versão é a de lei da distribuição do trabalho social (o que também pode ser interpretado como lei do equilíbrio na distribuição do trabalho social ). O exame do impacto da concorrência intra-setorial entre os capitais na economia capitalista conduz à terceira versão da lei do valor, como lei da minimização do tempo de trabalho abstrato. Desta forma, a lei do valor é uma lei dinâmica, base das leis gerais de desenvolvimento da economia capitalista. Finalmente, no plano internacional, a lei do valor se apresenta como lei da geração de superlucros e do aprofundamento das desigualdades.
Abstract
This article intends to demonstrate that the law of value can be understood based on three successive versions, through which it becomes progressively more complex. The least complex law is the law of value determined by years worked. The second version is the law of social work distribution (which may also be interpreted as the law of equilibrium in the distribution of social work). Examination of the impact of intrasectorial competition among capitals in the capitalist economy leads to the third version of the law of value, the law of minimization of abstract work time. In this manner, the law of value is a dynamic law which forms the basis for general laws of capitalist economy development. Finally, in the international scene, the law of value is presented as the law of high-profit generation and of the widening of inequality.
1 Introdução
Marx, como é sabido, herdou da Economia Política Clássica sua teoria do valor e a retrabalhou profundamente. Herdou também a idéia da existência de uma lei do valor – o termo lei aqui significa que a formação do valor das mercadorias traz certas implicações, certa lógica, para o funcionamento da economia capitalista. A existência da lei do valor assim entendida é uma das idéias centrais da economia marxista.
Não há, contudo, clareza sobre qual é o significado dessa lei; existem interpretações distintas a respeito. É útil, portanto, procurar tratar de modo sistemático os diversos significados atribuídos a ela.
Este artigo discute, em primeiro lugar, a lei do valor no plano nacional, procurando mostrar que ela pode ser entendida com base em três versões sucessivas que não se excluem; ela se torna progressivamente mais complexa. No plano internacional, procuramos mostrar que a lei do valor se apresenta como lei da geração de superlucros e do aprofundamento das desigualdades.
A segunda seção expõe a versão mais simples da lei do valor: a de lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho. Mostra também por que o sentido dessa lei, mesmo nessa primeira formulação, já é mais complexo do que costuma ser entendido. A terceira seção apresenta o entendimento da lei do valor como lei da distribuição do trabalho social, e questiona se isso pode significar, como pretendem vários autores, lei do equilíbrio na distribuição do trabalho social. A quarta seção comenta a existência de dois tipos de concorrência entre os capitais na economia capitalista – a intersetorial e a intra-setorial.
A partir da análise da concorrência intra-setorial, a quinta seção expõe o entendimento da lei do valor como lei da minimização do tempo de trabalho abstrato, e argumenta que, assim entendida, ela é uma lei dinâmica, vinculada às leis gerais de desenvolvimento da economia capitalista (de fato, constitui a sua base). A sexta seção discute alguns aspectos da formação do valor no plano internacional; a partir daí, a sétima seção pode retomar a discussão da lei do valor nesse plano.
2 Lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho
Quando se trata da lei do valor na economia marxista, o primeiro entendimento é o de que essa lei diz que os valores das mercadorias são proporcionais ao tempo de trabalho socialmente necessário à sua produção ou, o que é equivalente, que os seus preços são, na média, proporcionais a esse tempo de trabalho. As mercadorias se trocam, portanto, com base no trabalho despendido na sua produção. O próprio Marx (1982b) referiu-se à lei do valor nesses termos.
Podemos, então, estabelecer como lei geral o seguinte:
Os valores das mercadorias estão na razão direta do tempo de trabalho investido em sua produção e na razão inversa das forças produtivas do trabalho empregado. […]
Os preços do mercado não fazem mais do que expressar a quantidade social média de trabalho que, nas condições médias de produção, é necessária para abastecer o mercado com determinada quantidade de um certo artigo (Marx, 1982b, p. 158).
A seqüência do texto fala das oscilações dos preços de mercado em torno do valor, identificado inclusive com o preço natural de Adam Smith; Marx afirma que:
se a oferta e a procura se equilibram, os preços das mercadorias no mercado corresponderão a seus preços naturais, isto é, a seus valores, os quais se determinam pelas respectivas quantidades de trabalho necessárias à sua produção (Marx, 1982b, p. 158).
A lei do valor formulada dessa maneira tem sido um dos principais alvos de ataque dos críticos de Marx desde pelo menos o fim do século XIX, com a publicação das críticas de Böhm-Bawerk (1974). De fato, quando consideramos uma economia capitalista com muitos capitais que concorrem entre si, com composições orgânicas e tempos de rotação distintos, os preços não podem ser, na média, proporcionais aos valores. Os preços médios devem corresponder ao que Marx chamou de preços de produção – sua versão para os preços naturais de Adam Smith –, e não aos valores. A formulação de Salário, Preço e Lucro citada deve ser considerada, portanto, como uma simplificação, ou como uma aproximação pouco rigorosa da realidade, justificável pelo caráter popular da exposição.
Ao tratar dessas questões em O Capital, Marx é bastante mais cuidadoso. Assim, depois de chegar ao valor como objetivação do trabalho abstrato em mercadorias, medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário, diz que o valor se expressa em dinheiro como preço. Mas, já no Capítulo III do Livro I, ele afirma a possibilidade de uma “incongruência quantitativa” entre o preço e a grandeza de valor, e não restringe esta possibilidade à ocorrência de oscilações do preço em torno do valor (Marx, 1988, p. 91). Logo adiante, aliás, ele menciona também a possibilidade de uma “contradição qualitativa”:
coisas que, em si e para si, não são mercadorias, como por exemplo consciência, honra etc., podem ser postas à venda por dinheiro por seus possuidores e assim receber, por meio de seu preço, a forma mercadoria (Marx, 1988, p. 91).
Ou seja, fica registrado desde o início de O Capital que a relação entre valor e preço é mais complexa do que a sugerida pela fórmula: o preço é a expressão do valor em dinheiro; é afirmado que os preços podem desviar-se do valor, e a natureza precisa desses desvios não é estudada. Quando essa questão é retomada no Livro III, a partir do Capítulo VIII, com a teoria da transformação dos valores em preços de produção e com a discussão da relação dos preços de produção com os preços de mercado, fica claro que os preços médios não podem, em geral, ser iguais aos valores.
O sentido, então, da lei do valor nesse primeiro aspecto é, afinal, o seguinte: o valor, como objetivação de tempo de trabalho abstrato, só pode ser criado na produção; na circulação, ele se expressa como preço; mas os preços podem divergir dos valores.(1)
3 Lei da regulação da distribuição do trabalho social
A lei do valor tem também um segundo sentido, claro desde o Capítulo I do Livro I de O Capital: o de realizar a distribuição do trabalho social, numa forma de organização econômica em que os produtores não se relacionam diretamente, mas apenas indiretamente, através do intercâmbio dos seus produtos, no mercado. Esse segundo sentido, aliás, é um desenvolvimento do anterior, já que se associa estreitamente aos desvios dos preços em relação aos valores.
Este tema foi trabalhado por diversos economistas, entre os quais se destaca Isaak Rubin. Um dos seus argumentos centrais (Rubin, 1980) é que o sentido principal da teoria do valor de Marx não vai do valor ao trabalho (isto é, seu objetivo principal não é o de descobrir que por trás do valor das mercadorias está o trabalho humano), mas, sim, do trabalho ao valor. Trata-se de explicar por que, na economia mercantil-capitalista, o trabalho assume a forma de valor dos produtos do trabalho (das mercadorias). Nessa linha de raciocínio, a razão fundamental para que o trabalho assuma a forma de valor das mercadorias é que esta é a única possibilidade de regulação da distribuição social do trabalho em uma economia de produtores privados, que não articulam previamente seus gastos de trabalho. A variação dos preços das mercadorias em torno dos valores é, portanto, indispensável diante da necessidade de corrigir o excesso ou a escassez de determinadas mercadorias: as escassas verão seus preços subirem; as excedentes seus preços baixarem; esse movimento de preços leva à correção tendencial dos desequilíbrios. A lei do valor é vista assim como uma lei que regula a distribuição do trabalho social.
Tal interpretação da lei do valor tem muitos méritos. É com base nela, por exemplo, que Rubin desenvolve um tratamento da questão da transformação dos valores em preços de produção rico e coerente. Ao mencionar que na economia capitalista a distribuição do trabalho social depende da distribuição dos capitais, passa de forma natural da idéia de preços que flutuam em torno do valor para a idéia de preços cuja média é dada pelos preços de produção.
Contudo, interpretar a lei do valor sobretudo como uma lei da distribuição traz um risco, o de reforçar excessivamente seu caráter de lei de equilíbrio. O próprio Rubin sofre desse problema, ao dizer que “[a] lei do valor é a lei de equilíbrio da economia mercantil ” (Rubin, 1980, p. 82). Mas ele aparece ainda mais claramente em outros autores que defendem uma concepção semelhante.
Assim, Paul Sweezy diz que:
[...] a lei por Marx chamada “lei do valor” resume as forças que atuam numa sociedade produtora de mercadorias e que regulam: a) as razões de troca entre as mercadorias, b) a quantidade de cada mercadoria produzida, c) a distribuição da força de trabalho aos vários ramos da produção. […] As forças em atividade incluem, de um lado, a produtividade do trabalho nos vários ramos de produção e as necessidades sociais modificadas pela distribuição de renda. Do outro lado, as forças equilibradoras do mercado, a concorrência da oferta e procura. Usando uma expressão moderna, a lei do valor é essencialmente uma teoria do equilíbrio geral desenvolvida em primeiro lugar com referência à produção de mercadorias simples e mais tarde adaptada ao capitalismo (Sweezy, 1967, p. 81).
Será correto tratar a lei do valor como sendo “essencialmente uma teoria do equilíbrio geral”? Certamente não; uma teoria do equilíbrio geral não poderia estar de acordo com a visão de Marx do capitalismo – a de um sistema que não tende ao equilíbrio, qualquer que seja o sentido que se queira dar a isso.
Os riscos dessa interpretação são explicitados ainda mais claramente por Maurice Dobb. Segundo esse autor, a lei do valor mostra que:
[A] utilização da força de trabalho social não é arbitrária, mas está sujeita a uma definida lei do custo graças à “mão invisível” das forças competitivas a que se referia Adam Smith (Dobb, 1945, p. 49).
Moishe Postone comenta de modo apropriado:
A formulação de Dobb torna explícito o que fica implícito em tais interpretações da lei do valor de Marx (isto é, nas interpretações que tratam a lei do valor como lei da distribuição) – isto é, que esta lei é basicamente similar à ‘mão invisível’ de Adam Smith. A questão, entretanto, é se as duas podem ser de fato igualadas (Postone, 1993, p. 50).
Ernest Mandel, por outro lado, formula a lei do valor como uma lei da distribuição, mas não incorre no erro de tratá-la como uma lei do equilíbrio. No “Glossário” de seu O Capitalismo Tardio, diz o seguinte:
Lei do Valor. Mecanismo econômico de uma sociedade de produtores privados que distribui a força de trabalho total à disposição da sociedade (e assim todos os recursos materiais necessários à produção) entre os vários ramos de produção, pela mediação da troca de todas as mercadorias por seu valor (por seus preços de produção, no modo de produção capitalista). Sob o capitalismo, esta lei determina o padrão de investimento – isto é, a entrada e saída de capital dos diversos ramos de produção, segundo desvio de sua taxa de lucro específica relativamente à taxa média de lucro (Mandel, 1985, p. 413).
Apesar dessa formulação da lei do valor como lei da distribuição,(2) não há na obra de Mandel nenhuma idéia de que essa lei seria uma “lei do equilíbrio” (e menos ainda de “equilíbrio geral”) ou de que seria equivalente à “mão invisível” de Adam Smith. Pelo contrário, ele enfatiza sempre os desequilíbrios da economia capitalista e a tendência a que se ampliem. Voltaremos a mencionar a interpretação de Mandel da lei do valor na sétima seção.
4 Os dois tipos de concorrência
Antes de introduzir o terceiro sentido da lei do valor, convém fazer pequena digressão e mencionar a existência de dois tipos distintos de concorrência entre os capitais na economia capitalista.
A concorrência intersetorial – o deslocamento dos capitais entre os diversos setores, buscando as taxas de lucro mais elevadas – leva tendencialmente os preços de mercado para uma média constituída pelos preços de produção e promove a tendência à igualação das taxas de lucro. Numa situação em que essa tendência se realizasse plenamente, e em que dessa forma todos os capitais receberiam a taxa de lucro média, não haveria incentivos a deslocamentos; essa forma de concorrência tem, portanto, caráter equilibrador.
Existe, contudo, um segundo tipo de concorrência, a concorrência intra-setorial, isto é, interna a cada setor. Para analisá-la, Marx introduz os conceitos de valor individual, valor social (ou valor de mercado), mais-valia extra e superlucro (O Capital III, Capítulo X). Cada capitalista procura reduzir os valores individuais das mercadorias que produz (por aumento de produtividade, por superexploração, ou por outros métodos), de modo a obter uma mais-valia extra. A produtividade superior à média de um momento, contudo, transforma-se na produtividade média do momento seguinte. A redução contínua dos valores individuais, perseguida por cada capitalista, leva à redução contínua também dos valores sociais; a mais-valia extra conseguida hoje desaparece amanhã. Os capitalistas, então, procurarão introduzir novos aumentos de produtividade. É claro que esse processo não tem fim.
O efeito da concorrência intrasetorial é portanto desequilibrador. Ela questiona permanentemente a igualação entre as taxas de lucro, desigualando-as dentro de um mesmo setor. A ênfase nesse aspecto desigualador da concorrência é característica fundamental da abordagem marxista.
O funcionamento da concorrência intra-setorial é um dos desdobramentos centrais da interação contraditória entre trabalho concreto e trabalho abstrato, destacado por Marx desde o início de O Capital. A concorrência intra-setorial explica por que as empresas são levadas a uma busca permanente de progresso técnico, ou seja, só podem obter ganhos extraordinários quando têm uma vantagem relativa em relação às concorrentes. Aprodução de mais valores de uso não interessa em si mesma, mas apenas na medida em que permite produzir mais valor no mesmo espaço de tempo. Em um quadro concorrencial, os ganhos extraordinários obtidos valendo-se de inovações técnicas serão sempre provisórios: tão logo as novas tecnologias se generalizem, o valor social das mercadorias produzidas cairá, e a taxa de lucro voltará ao nível anterior.(3) Por outro lado, qualquer empresa que não introduza novas tecnologias redutoras do custo de produção(4) não manterá sua posição, mas retrocederá.
Podemos representar a busca de mais-valia extra a partir de progresso técnico pelas empresas como uma corrida dos representantes dessas empresas sobre uma esteira rolante que rola em sentido contrário, e com uma velocidade cujo módulo é dado pela “média social” da velocidade da introdução de progresso técnico. Se os corredores forem mais rápidos, a esteira também rolará mais depressa no sentido contrário, e eles não terão portanto qualquer vantagem. Como a esteira não pode ser parada, não haverá nunca um ganhador final, e nenhum competidor poderá parar, sob pena de ficar irremediavelmente para trás.
Moishe Postone compreendeu bem o sentido dessa dinâmica de redefinição do tempo de trabalho socialmente necessário:
Examinando as determinações mais abstratas da dinâmica da sociedade capitalista em termos da interação destas duas dimensões, vimos como cada novo nível de produtividade tanto determina a hora de trabalho social quanto, por sua vez, é redeterminado pela estrutura temporal abstrata como nível básico de produtividade. Mudanças no tempo concreto efetuadas pelos incrementos de produtividade são mediadas pela totalidade social de uma maneira que as transforma em novas normas de tempo abstrato (tempo de trabalho socialmente necessário) que, por sua vez, redeterminam a hora de trabalho social constante (Postone, 1993, p. 299).
Como veremos na seção seguinte, Postone prefere uma imagem diferente da de esteira rolante, a do “moinho de pisar”.
5 Lei da minimização do tempo de trabalho abstrato
A análise da concorrência intra-setorial nos leva a um terceiro sentido para a lei do valor que integra os dois anteriores como momentos, e que dá um sentido geral a essa lei que é muito diferente do de uma “lei do equilíbrio geral” ou da “mão invisível” de Adam Smith.
Como vimos, a busca permanente de reduções de custos (de tempo de trabalho abstrato), e em particular de progresso técnico, cria uma dialética entre valores individuais e valores sociais. Este é o novo aspecto da lei do valor – ela se transforma, na feliz expressão de John Weeks, na “lei da minimização do tempo de trabalho abstrato” (Weeks, 1981, p. 33).
Esse autor explica esse aspecto da lei do valor da seguinte maneira:
À medida que alguns capitais consomem o capital produtivo mais eficientemente, seus produtos aumentam correspondentemente, e os capitais menos eficientes devem emular os mais eficientes ou ser eliminados da produção. É por este processo que o tempo de trabalho socialmente necessário é estabelecido em cada indústria. O trabalho concreto consumido na produção – vivo e morto – é tornado comparável na troca e normalizado através da concorrência. Desta maneira, o valor começa a dominar a produção. O tempo de trabalho socialmente necessário existe “às costas” de cada capitalista, e sem entrar na consciência dos capitalistas regula sua produção. Esta é a operação da lei da minimização do trabalho concreto5 na produção (Weeks, 1981, p. 48).(6)
Moishe Postone é quem mais enfatiza tal aspecto da lei do valor. Para ele, o elemento central dessa lei é a seguinte dialética: aumento de produtividade para um capital – redução do valor individual e obtenção de mais-valia extra – generalização do novo nível de produtividade e perda da mais-valia extra – recomeço do processo. A partir daí, conclui:
Na medida em que é possível falar de uma “lei do valor” marxiana, este efeito de moinho de pisar (treadmill effect) é sua determinação inicial; como veremos, ele descreve um padrão de transformação e reconstituição sociais contínuas como características da sociedade capitalista. A lei do valor, então, é dinâmica e não pode ser adequadamente compreendida em termos de uma teoria de equilíbrio do mercado. Uma vez considerada a dimensão temporal do valor – compreendido como uma forma específica de riqueza que difere da riqueza material – torna-se evidente que a forma do valor implica a dinâmica acima desde o início (Postone, 1993, p. 290).
Por efeito “moinho de pisar”(7) e por “um padrão de transformação e reconstituição sociais contínuas”, Postone refere-se à dialética resumida acima.
Nesse sentido, portanto, a lei do valor refere-se à constituição e reconstituição permanentes de uma norma produtiva. É ela que dá à sociedade capitalista seu grande dinamismo, e que torna fraca e secundarizada qualquer idéia de tendência para um equilíbrio, ou seja, qualquer equilíbrio tendencial é desfeito muito antes de poder realizar-se. A “mão invisível” só pode funcionar muito parcialmente.
É interessante observar que já na Miséria da Filosofia, de Marx (1965b), há uma passagem muito sugestiva sobre a lei do valor que aponta na direção de defini-la como lei da redução do tempo de trabalho e, associadamente, como lei de depreciação do tempo de trabalho:
Toda nova invenção que permite produzir em uma hora o que foi produzido até aqui em duas horas deprecia todos os produtos similares que se encontram no mercado. A concorrência força o produtor a vender o produto de duas horas tão barato quanto o produto de uma hora. A concorrência realiza a lei segundo a qual o valor relativo de um produto é determinado pelo tempo de trabalho necessário para produzi-lo. O tempo de trabalho servindo de medida do valor venal torna-se assim a lei de uma depreciação contínua do trabalho. Diremos mais. Haverá depreciação não apenas para as mercadorias levadas ao mercado, mas também para os instrumentos de produção, e para toda uma instalação (Marx, 1965b, p. 39).
No chamado Capítulo VI Inédito de O Capital, essa dinâmica é relacionada com outra lei fundamental da economia capitalista:
O produtor real como simples meio de produção; a riqueza material em contradição com o (e a expensas do) indivíduo humano. Produtividade do trabalho, em suma = máximo de produtos com mínimo de trabalho; daqui o maior embaretecimento possível das mercadorias. Independentemente da vontade deste ou daquele capitalista, isto converte-se na lei do modo de produção capitalista. E esta lei só se realiza implicando outra, a saber: a de que não são as necessidades existentes que determinam o nível da produção mas de que é a escala de produção – sempre crescente e imposta, por sua vez pelo próprio modo de produção – que determina a massa do produto. O seu objetivo (é) que cada produto etc. contenha o máximo possível de trabalho não pago, e isso só se alcança mediante a produção para a própria produção. Isto apresenta-se por um lado como lei, porquanto o capitalista que produz em pequena escala incorporaria no produto um quantum de trabalho maior do que o socialmente necessário.(8) Apresenta-se portanto como uma aplicaçao adequada da lei do valor que só se desenvolve plenamente com base no modo de produção capitalista. Porém, aparece por outro lado como impulso do capitalista, que para violar esta lei ou para a utilizar astutamente em seu proveito procura fazer descer o valor individual da sua mercadoria abaixo do valor socialmente determinado (Marx, [s. d.] , p. 107-108).
A lei do valor transforma-se, então, em lei da produção pela produção, e em lei da subordinação crescente do trabalhador ao capital. Neste último aspecto, como observa John Weeks, a lei do valor é também a lei da alienação do trabalhador:
A lei do valor, então, não é apenas a lei do tempo de trabalho sob o capitalismo (divisão do trabalho), a lei da mais-valia (exploração), mas também o mecanismo da alienação. Quando o capitalismo é imaturo e os trabalhadores levam para o processo de trabalho controlado pelos capitalistas qualificações e conhecimentos necessários à produção, esta alienação é primariamente a alienação do trabalhador do seu produto. Na medida em que o capitalismo se desenvolve e a divisão do trabalho se amplia no processo de produção, o trabalhador crescentemente se torna alienado do próprio processo de trabalho, reduzido a mera fonte de energia homogênea, abstrata. O trabalhador se torna na forma e na essência meramente uma extensão do capital, de tal modo que o poder cooperativo das massas aparece como poder produtivo do capital (Weeks 1981, p. 48-49).
Fica claro, portanto, que a lei do valor não pode apenas ser entendida como lei da determinação do valor pelo tempo de trabalho, tampouco como lei da regulação da distribuição do trabalho social. Esses momentos existem, mas ela vai além deles. Seu sentido mais profundo é o de uma lei que define e redefine continuamente uma norma produtiva, que cria a partir daí uma lógica de produção pela produção e que dá à economia capitalista um grande dinamismo, juntamente com um caráter profundamente contraditório.
A lei do valor, naturalmente, é uma lei da concorrência. A fixação nos seus dois primeiros aspectos implica mirar apenas a questão da relação entre valores e preços, e portanto a concorrência intersetorial entre os capitais. No entanto, a dialética valor individual – valor de mercado, e a concorrência intra-setorial, são aspectos não menos fundamentais da economia capitalista; são captados pela terceira dimensão da lei do valor, o de lei da minimização do tempo de trabalho abstrato. Ela determina (e redetermina), portanto, uma norma produtiva, que tem implicações sobre a própria organização da produção, sobre os métodos empregados, etc., e esse é seu sentido mais profundo. Muito mais do que uma lei da distribuição (dos capitais e do trabalho social), a lei do valor é uma lei da produção.
6 Aspectos da formação do valor no plano internacional
Nas seções anteriores, mencionamos a existência de um processo de interação entre o tempo de trabalho concreto e o tempo de trabalho abstrato e a conseqüente presença permanente do progresso técnico. Há um aspecto desse processo que é preciso enfatizar: o impacto do progresso técnico realizado em alguns setores é generalizado.
Quando o progresso técnico se generaliza em um setor – digamos, no setor A –, reduz o valor das mercadorias produzidas aí; isto significa a ampliação do “poder de compra real” do trabalho realizado em todos os outros. Isto é, nos outros setores, supondo que não tenha havido nenhuma mudança nas suas condições de produção, a mesma quantidade de trabalho se objetiva no mesmo valor, e troca-se por mais mercadorias do setor A. Quando o progresso técnico atinge o setor de meios de consumo, e se generaliza aí, reduz o seu valor. O trabalho realizado pelos trabalhadores de setores que não se modificaram tecnicamente também tem seu poder de compra real ampliado. Isso abre a possibilidade de redução do valor da força de trabalho de todos os trabalhadores (trata-se, como é bem conhecido, da produção de mais-valia relativa), mas também de um aumento dos salários reais, inclusive dos trabalhadores que não experimentaram nenhum aumento de sua produtividade física.
Em geral, o ritmo do progresso técnico é diferenciado na economia; há setores em que ele é muito rápido, outros em que ele é muito mais lento.(9) Ora, o progresso técnico, quando generalizado em cada setor, amplia de modo igual o poder de compra da hora de trabalho de todos os setores, sejam esses caracterizados pela rapidez, sejam pela lentidão do aumento da força produtiva física do trabalho. Há uma espécie de “difusão solidária do aumento da produtividade do trabalho”, que se expressa na produção de mais-valia relativa no conjunto da economia (se esse processo levar à redução do valor da força de trabalho) ou na elevação de conjunto dos salários reais.(10)
Com relação à determinação dos salários reais, Luigi Pasinetti, em sua obra Structural Change and Economic Growth, faz uma formulação essencialmente semelhante, embora no contexto de um quadro teórico distinto do que está sendo exposto neste trabalho, e a contrasta com a concepção neoclássica. Enfatiza o caráter macroeconômico dos salários (pois “dependem da produtividade física do sistema econômico como um todo”) (Pasinetti, 1981, p. 136-138).
Compreender a existência da “difusão solidária do aumento da produtividade do trabalho” é fundamental para o entendimento das diferenças no funcionamento da lei do valor no plano nacional e no plano internacional.
Outro aspecto da interação contraditória do trabalho concreto e do trabalho abstrato deve ser mencionado neste contexto.
Uma vez que a determinação da magnitude do valor inclui um processo de sincronização do tempo de trabalho contido nas mercadorias produzidas anteriormente, toda difusão de progresso técnico implica uma reavaliação dos estoques existentes das mercadorias cuja produção é afetada, de modo direto ou indireto.
Isso é especialmente importante para os estoques de capital, isto é, de mercadorias que funcionam como meios de produção (podem sofrer o que Marx chamava de obsolescência moral). Ou seja: a difusão do progresso técnico pode provocar um empobrecimento de setores retardatários tecnicamente; tal empobrecimento é agravado por não se referir apenas à capacidade presente de produção, isto é, por incluir a perda de riqueza já acumulada. Esse problema é especialmente relevante no plano internacional.
Os valores e os preços no plano internacional têm natureza distinta da que têm no interior de um mesmo espaço econômico. A principal razão é a persistência de desigualdades duradouras entre condições nacionais de produção – tecnológicas, institucionais –, o que faz que não haja tendência à “homogeneização” do trabalho, à constituição generalizada do mesmo padrão de trabalho simples. Na verdade, já há heterogeneidade do trabalho quando consideramos desigualdades nas condições de produção e a concorrência intra-setorial no plano nacional; mas no plano internacional as diferenças tendem a ser mais duradouras, não são tão transitórias como no plano nacional; a dialética valores individuais – valor social é truncada. O valor traduzido internacionalmente não é, portanto, determinado como “puro dispêndio de força de trabalho”; as distintas intensidades e produtividades nacionais são levadas em conta, e formam-se projeções internacionais dos valores nacionais (correspondentes aos valores individuais) que se ordenam e uma escala. No entanto, uma vez que há comércio internacional, e se supomos que os preços das mercadorias transacionadas (tradables) não podem divergir excessivamente, há formação de preços internacionais.(11)
A diferença duradoura de condições de produção não diz respeito apenas aos setores que entram diretamente nas transações internacionais, isto é, que produzem tradables. Vimos que, na medida em que o progresso técnico se generaliza em cada setor e o valor social de seus produtos cai, ocorre uma “difusão solidária” do aumento da produtividade do trabalho. É portanto todo o trabalho realizado no país – no espaço econômico unificado em que o aumento da produtividade se dá – que se torna mais produtivo (no sentido de que a hora de trabalho simples se troca por mais valores de uso); isso acontece até para o trabalho que não foi beneficiado por progresso técnico e cuja produtividade física, portanto, não se modificou. O truncamento do processo de difusão do progresso técnico no plano internacional, portanto, implica a constituição de uma diferenciação da produtividade do trabalho entre as nações, não apenas entre os setores nos quais a produtividade física evoluiu de modo diferente.
Essa diferenciação nacional de produtividade implica uma diferenciação duradoura na magnitude do valor produzido pela hora de trabalho de cada país quando traduzido internacionalmente. Assim, podemos dizer que, tal como acontece com a determinação dos salários, a determinação do valor internacional adicionado pela hora de trabalho abstrato (simples) tem natureza macroeconômica.
O ordenamento da capacidade de produzir valor internacional em uma escala, com base nas distintas produtividades nacionais do trabalho, pode ser chamado de normalização internacional do tempo de trabalho (a normalização propriamente dita do trabalho – isto é, a redução do tempo de trabalho individual a tempo de trabalho socialmente necessário – dá-se no interior de um mesmo setor, da produção das mesmas mercadorias; mas podemos estender esse conceito ao plano internacional).(12)
7 A lei do valor no seu conjunto a concorrência capitalista
A diversidade da produção do valor no plano internacional dá aos países mais avançados a possibilidade de ganhos extraordinários, (13) e dá à operação da lei do valor caráter especialmente desigualador. Para resumi-lo, podemos partir da formulação de Ernest Mandel no segundo e no terceiro capítulos de O Capitalismo Tardio (1985), sobre a estrutura desigual e hierarquizada do mercado mundial, seu desenvolvimento desigual e combinado e as “três fontes de superlucros”. Sua ênfase está justamente na desigualdade e na hierarquia, bem como no desequilíbrio, gerados pela lei do valor. Sua conseqüência para os países atrasados é reforçar seu atraso:
[…] [A] lei do valor compele inexoravelmente os países atrasados a se especializarem, no mercado mundial, de modo desvantajoso para si próprios (Mandel, 1985, p. 49).
É explorando as conseqüências da lei do valor, e não a violando, que os países e setores mais dinâmicos buscam superlucros. Conforme o período histórico, o tipo de superlucro predominante muda. Na época do capitalismo de livre concorrência, o superlucro era obtido principalmente valendo-se da produção desigual e da transferência de valor com base no nível distinto de produtividade nas regiões mais desenvolvidas e menos desenvolvidas (“colônias internas”) no interior dos mesmos países. Na época do imperialismo clássico, a origem principal dos superlucros estava na relação dos países imperialistas com os países coloniais e semicoloniais; a mesma combinação de produção desigual e transferência de valor(14) se registrava. Finalmente, na fase do capitalismo tardio, o superlucro é obtido principalmente na justaposição de desenvolvimento em setores dinâmicos e subdesenvolvimento em outros, basicamente nos próprios países imperialistas, mas também, de modo secundário, nas semicolônias. (15) Essas três fontes de superlucros predominam nos distintos períodos históricos,mas não se excluem mutuamente (Mandel, 1985, p. 51-73, Cap. 3).
É possível discutir a periodização e a caracterização das distintas etapas propostas por Mandel. Seria necessário, ademais, estendê-las ao período posterior à publicação de O Capitalismo Tardio. Para a discussão realizada aqui, entretanto, o importante é a idéia de que o funcionamento da lei do valor não conduz à homogeneização da economia mundial, mas à sua hierarquização permanente, com desigualdades que se modificam, sem deixarem de existir.
Para os lucros dos capitais, não importa apenas sua própria produtividade; importa a produtividade dos outros. No modelo de concorrência perfeita walrasiano, todos os agentes são tomadores de preços (price-takers), e fixam seu nível ótimo de produção selecionando a tecnologia disponível, dados seus custos e preços de venda, sem se preocuparem com o que fazem os concorrentes. No capitalismo realmente existente, ao contrário, as empresas não podem deixar de olhar para os lados. Não se trata apenas de ver nas outras empresas adversários na disputa por mercados; trata-se também de ver nas desigualdades – nacionais e internacionais – oportunidades de maiores ganhos.
A lei do valor emerge dessa caracterização da economia mundial como lei da geração de superlucros, da mais-valia extra e do intercâmbio desigual.(16)
Referências bibliográficas
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MARX, Karl. O capital. 3. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988. (Cinco volumes: Livro I, Volumes I e II; Livro II, Volume III; Livro III, Volumes IV e V).
PASINETTI, Luigi. Structural change and economic growth. Cambridge: Cambridge University Press, 1981.
POSTONE, Moishe. Time, labor and social domination. New York: Cambridge University Press, 1993.
RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense, 1980. (Traduzido da 3. ed. russa de 1928).
SWEEZY, Paul. Teoria do desenvolvimento capitalista. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1967. (Originalmente publicado em inglês em 1942).
SWEEZY, Paul. (Org.). Economia burguesa y economia socialista. Buenos Aires: Pasado y Presente, Siglo XXI. Argentina Editores, 1974. (Originalmente publicado em inglês em 1949).
WEEKS, John. Capital and exploitation. Princeton: Princeton University Press, 1981.
(1) O que significa fazer na circulação uma transferência do valor já determinado na produção.
(2) Falar da distribuição incluindo as decisões de investimento implica falar da produção – da expansão ou da contração dos setores produtivos –, mas não do modo de produção.
(3) Na verdade, se levarmos em conta a elevação da composição orgânica do capital e a lei da tendência decrescente da taxa de lucro, a taxa de lucro poderá cair abaixo do nível anterior. Essa questão, no entanto, ultrapassa os limites deste artigo.
(4) Ou dos custos de distribuição. A taxa de lucro geral é definida, de fato, como a razão entre a massa de mais-valia (de que se subtraem os custos improdutivos) e a massa dos capitais industriais e comerciais. Os custos de distribuição, naturalmente, são custos improdutivos.
(5) Essa minimização do trabalho concreto é feita perseguindo-se a minimização do trabalho abstrato.
(6) Weeks menciona igualmente o aspecto da lei do valor como lei da distribuição dos capitais: “A concorrência força todos os produtores a produzir com o mínimo insumo de tempo de trabalho concreto, e força uma tendência para uma taxa de lucro normal em todas as indústrias. Estes dois aspectos da lei do valor podem ser chamados de ‘lei do tempo de trabalho socialmente necessário’ e de ‘lei da tendência da igualação da taxa de lucro’” (Weeks, 1981, p. 40). Além disso, como veremos abaixo, chama a atenção ainda para um terceiro aspecto dessa lei, relacionado com o de redução do tempo de trabalho.
(7) O “moinho de pisar” é um moinho movimentado pelos passos do trabalhador, de tal maneira que quem o movimenta permanece sempre na mesma posição, por mais que acelere seu passo.
(8) Marx, aqui, supõe implicitamente: que o pequeno capitalista não teria os ganhos de escala que o grande capitalista teria; que o socialmente necessário seria determinado pelos grandes capitalistas, ou seja, pelo trabalho mais produtivo, ou então por uma produtividade intermediária, que seria de qualquer maneira maior do que a disponível para o pequeno capitalista. Adota portanto a suposição básica da existência de rendimentos crescentes de escala. Além disso, seu raciocínio se baseia também em que o “quantum de trabalho maior do que o socialmente necessário” não geraria mais valor, ou seja, seria desperdiçado. Assim, a hora de trabalho do trabalhador que trabalha para o pequeno capitalista geraria menos valor do que a hora de trabalho média.
(9) Como exemplo deste último caso, temos muitos dos setores chamados de “serviços”. Muitos deles não são produtivos, mas essa questão não tem importância neste contexto: o progresso técnico que reduz custos improdutivos é tão importante quanto o que amplia a capacidade de produzir valores de uso.
(10) Como se vê, trata-se de uma “solidariedade intersetorial”, e não obrigatoriamente da solidariedade entre os trabalhadores.
(11) Mesmo que avaliemos que não se formam verdadeiros preços de produção, ou preços comerciais, internacionais. A formação desses preços supõe a formação de uma taxa geral de lucro internacional, o que é bastante discutível.
(12) Nesse plano, não se trata, naturalmente, da produção da mesma mercadoria, mas da produção de determinado conjunto de bens, isto é, da totalidade dos bens produzidos em cada país.
(13) Em particular em razão da fixação da taxa de câmbio em nível favorável para eles. Ver, a esse respeito, Borges Neto (2002), Seção 5.5.
(14) Mandel, baseando-se na sua concepção sobre a origem da mais-valia extra (subseção 5.2.3), não fala nunca em produção desigual de valor, mas apenas em transferência de valor. Como vimos na seção 5.5, as duas coisas acontecem. Para o tema desta seção, essa diferença com a abordagem de Mandel não é importante.
(15) Em O Capitalismo Tardio o termo semicolônia é usado para os países dependentes em geral.
(16) Por essa razão, os países retardatários (“em desenvolvimento”) só podem se recuperar de seu atraso a partir de uma intervenção do Estado contra a lógica da lei do valor, isto é, contra a pura lógica do mercado. Esse tema, contudo, ultrapassa os limites deste artigo.
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