segunda-feira, 31 de maio de 2010

Hugo Chávez, Marx e o 'Bolivarismo' do século XXI - Jair Antunes

Retirado do sítio: http://www.wsws.org/pt/2007/feb2007/po5-f17.shtml

O começo do século XXI testemunhou um ressurgimento do nacionalismo populista burguês em grande parte da América Latina. De certa forma, este desenvolvimento do nacionalismo compartilha de características comuns com o que foi visto no século anterior em figuras como Juan Domingo Perón na Argentina, Getúlio Vargas no Brasil ou de Lazaro Cardenas no México.

As eleições do presidente Hugo Chávez na Venezuela—o qual está caminhando para um mandato vitalício—e Evo Morales na Bolívia, o retorno do ex-líder sandinista Daniel Ortega para a presidência da Nicarágua, bem como a eleição de Rafael Correa no Equador, foram todas acompanhadas da retórica nacionalista para reverter o brutal e sangrento período de desagregação das economias latino-americanas das últimas décadas. Alguns dizem que a América Latina está realmente se movendo para a esquerda, para um novo tipo de socialismo, no entanto, em cada um destes países o domínio do capital permanece intacto.

Hugo Chávez, em particular, apresentou este movimento como uma continuação da velha cruzada de Simon Bolívar, El Libertador, quem há dois séculos dizia tentar libertar a América Latina das garras da dominação imperialista, mas que na realidade lançou as bases para a dominação imperialista durante séculos. Chávez chegou a ponto de entregar réplicas da espada de Bolívar para Morales, Correa e Ortega durante suas respectivas posses.

Certos setores da esquerda latino-americana que se especializaram em semear ilusões a partir de tais lideranças, acompanham a Chávez, envolvendo-se também no manto de Bolívar e na perspectiva do presidente venezuelano de um retorno continental da "revolução Bolivariana".

Mas, quem foi Bolívar, e qual foi realmente sua herança?


Marx e a biografia pouco heróica de Simon Bolívar

Em artigo escrito em 1858, intitulado Bolívar y Ponte, Marx relata as falsas façanhas de El Libertador durante as guerras antiespanholas. Marx apresenta Bolívar como um falsário, desertor, conspirador, mentiroso, covarde, saqueador, etc.

Marx tinha clareza do papel de classe desempenhado por Bolívar nestas lutas, mostrando-o como um típico representante de setores da tradicional burguesia criolla local: "Bolívar y Ponte, Simon, o ‘Libertador' da Colômbia nasceu... em Caracas (...) Descendia de uma das famílias mantuanas, que, na época da dominação espanhola, constituíam a nobreza criolla na Venezuela".

Para Marx, Bolívar, ao final dos conflitos anticastelhanos, com a vitória dos exércitos nacionalistas, foi transformado em um falso símbolo de toda a luta antiimperialista latino-americana, fundando, o assim chamado "bolivarismo", o qual consiste basicamente em proclamar a libertação nacional dos povos oprimidos contra o imperialismo sem, no entanto, alterar fundamentalmente as relações entre as classes sociais, quer dizer, sem alterar a estrutura sócio-econômica.

Do ponto de vista de Marx a "revolução" hispano-americana conduzida por Bolívar teria sido, no melhor dos casos, uma imitação pálida das revoluções burguesas européias, nunca indo além de um esforço para uma maior liberdade de comércio e de melhores condições para explorar os trabalhadores latino-americanos. Marx nunca glorificou Bolívar simplesmente porque nunca percebeu em sua trajetória político-militar uma só ação que pudesse indicar, para a classe trabalhadora latino-americana e mundial, qualquer progresso na luta pela liberdade humana. Ao contrário, Marx mostrava claramente a natureza e os limites de classe da assim chamada "revolução bolivariana".

A emancipação dos negros escravos realizada por Bolívar, por exemplo, não estava relacionada a uma suposta consciência humanista do "herói", mas ao medo instalado na burguesia criolla de uma possível revolução popular, após a independência, contra a própria classe dominante local. Para evitar tal suposta revolta popular, Bolívar inventou uma solução bastante original e que, por obra do destino, ficou registrada pelo punho do próprio "Libertador" numa carta endereçada a seu principal general, Santander, em 20 de abril de 1820.

Nesta carta, Bolívar esclarece que a liberdade concedida aos negros que se alistassem no exército nacional não estaria ligada à necessidade de aumento do efetivo do exército, mas estaria sim diretamente ligada à necessidade de diminuição de seu perigoso número, ou, em outras palavras, do perigo de uma possível "Haitiização" revolucionária de todo o continente. O recrutamento dos negros às fileiras do seu exército servia assim para eliminá-los em combate.

Como proclamou Bolívar: "De acordo com o artigo 3o da Constituição: ‘todos os escravos úteis para os serviços das armas serão destinados ao exército.'"

"Salvo engano - continua ele - isto não é declarar a liberdade dos escravos e sim usar a faculdade que me dá a lei (...) Não será útil que estes adquiram seus diretos no campo de batalha e que diminua seu perigoso número por um meio poderoso e legítimo?" (In: Bolívar. Bellotto & Correa. SP: Ática, 1983, p.50).

Uma das partes mais interessantes do artigo de Marx sobre o "Libertador" é quando destaca o quanto o exército rebelde estava dependente do apoio externo, em especial do imperialismo industrial britânico e das milícias mercenárias oriundas da Europa, as quais, segundo Marx, foram decisivas nas lutas vitoriosas de libertação de Nova Granada (atuais Venezuela, Colômbia e Equador). Como escreve Marx: "[Em 1818] chegou da Inglaterra uma forte ajuda sob a forma de homens, navios e munições, e oficiais ingleses, franceses, alemães e poloneses afluíram de toda parte para Angostura... as tropas estrangeiras, compostas fundamentalmente por ingleses, decidiram o destino de Nova Granada... em 12 de agosto Bolívar entrou triunfalmente em Bogotá".

Como podemos perceber, Bolívar livrou a América Latina do já retrógrado império castelhano apenas para pô-la, então, sob o jugo do imperialismo industrial britânico e posteriormente sob aquele do imperialismo do norte-americano.

Enfim, Marx tinha tão pouca admiração por Bolívar que o acusa de ser uma paródia de Napoleão Bonaparte, um novo Bonaparte na América. Talvez até, a paródia da paródia da paródia: o compara ao ditador golpista do Haiti, Soulouque, que já era a caricatura de Luis Napoleão III da França, o Bonaparte paródia do Bonaparte I. Como escreveu, em Herr Vogt: "A força criadora de mitos, característica da fantasia popular, em todas as épocas tem provado sua eficácia inventando grandes homens. O exemplo mais notável deste tipo é sem dúvida Simon Bolívar". E Marx, em carta de 14/02/1858, comenta com Engels: "Teria sido passar dos limites querer apresentar Napoleão I como o canalha dos mais covardes, brutal e miserável. Bolívar é o verdadeiro Soulouque".


Hugo Chávez: o Bolívar do século XXI


No entanto, mesmo o caráter covarde, traidor e mentiroso, etc, com que Marx pintou a figura de Bolívar, parece não ter sido suficiente para que, no século XX, a dita esquerda "marxista" latino-americana abandonasse de vez por todas a idolatria a este pseudo-herói. Ao contrário, essa esquerda o transformou em uma referência para a classe trabalhadora latino-americana, passando a inventar o "Bolivarismo" como um símbolo de toda uma suposta luta antiimperialista latino-americana.

Como dissemos acima, neste início do século XXI, o exemplo mais claro de sobrevivência e ressurgimento do Bolivarismo Bonapartista latino-americano está representado na figura do Coronel Hugo Chávez, presidente da Venezuela. Chávez, militar de carreira, protagonizou um golpe militar fracassado na Venezuela em 1992, sendo preso e libertado dois anos depois. Em 1998 foi eleito, pelo voto direto, presidente da República. Em 1999 criou uma nova Constituição mudando o nome do país para "República Bolivariana da Venezuela"

Desde então, ano após ano, Chávez vem aumentando seu poder. Em 2005, graças ao boicote às eleições promovido pelos partidos de oposição, ganhou a maioria total na Assembléia Nacional. Agora, reeleito presidente em 2006, com 63 % dos votos, apesar de seu controle de 100% do Parlamento, aprovou no último dia 31 de janeiro a chamada "Lei Habilitante" que lhe concede poderes extraordinários, incluindo o direito de governar por decretos durante 18 meses. Várias vezes, já ameaçou a oposição com uma reforma constitucional que lhe permitiria infinitas reeleições, se perpetuando no poder de forma vitalícia.

Ao ser eleito pela primeira vez em 1998, Chávez prometeu acabar com a miséria que assola a maioria absoluta do povo venezuelano. Não obstante, de lá para cá, os pauperizados diminuíram somente de forma relativa no país: a pobreza, em geral, diminuiu de 49,9% da população em 1999 para 37,1% em 2005, e a chamada miséria absoluta passou de 21,7% para 15,9%. No entanto, esta mudança se deve à implementação de programas assistencialistas promovidos por Chavez nestes últimos anos e não a um aumento significativo da renda dos trabalhadores. De fato, os níveis de desemprego em 2005 são maiores do que quando assumiu o governo em fevereiro de 1999 (11,3% em 1999 contra 12,4% em 2005). De qualquer forma, pelo menos 53% da população total do país continua vivendo ou na pobreza ou na miséria absoluta (os dados são da CEPAL—Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe).

Além disso, o relativo sucesso dos programas assistencialistas de Chávez deve-se em grande parte às riquezas naturais do subsolo venezuelano, sobretudo, do petróleo. Por isso, o seu governo vem realizando processos de renegociação dos contratos com as corporações estrangeiras de energia, apresentando estas negociações como "nacionalizações". Desta forma, a empresa petroleira PDVSA—Petróleos de Venezuela SA— passou a ter 51% das ações da empresa sob controle do estado, ficando os outros 49% sob controle do capital privado (predominantemente estrangeiro). De acordo com presidente bolivarista, o maior inimigo do povo da Venezuela seria o imperialismo norte-americano, porém, este inimigo, ao mesmo tempo, se constitui no maior parceiro comercial do governo de Chávez, sendo o principal comprador do petróleo venezuelano.


Chávez e sua dependência do petróleo


Segundo dados da CEPAL para 2005-2006, mais da metade das exportações da Venezuela, em especial de petróleo cru, tem como destino o mercado norte-americano. O mesmo percentual é válido para a importação de produtos manufaturados: pelo menos metade do que a Venezuela importa de produtos acabados vem do inimigo/parceiro Estados Unidos.

Na verdade, o atual crescimento econômico da Venezuela está baseado na enorme demanda mundial por petróleo (o país é o quinto maior produtor mundial), do qual os EUA, como dissemos, é seu maior consumidor. Em 1999, primeiro ano do governo Chávez, o país produzia menos de 2,8 milhões de barris/dia. Já em 2005, segundo dados da própria PDVSA, a produção diária atingiu a casa dos 3 milhões e trezentos mil barris/dia.

O que fica claro é que o bonapartismo chavista repousa totalmente na altíssima demanda mundial por petróleo. O aumento em torno de 20% da produção entre 1999 e 2005 ocorreu sob as circunstâncias de um aumento substancial do preço do barril no mercado mundial. Em 1999 o barril custava 25 dólares, em 2005 atingiu a casa dos 55 dólares. Em 2006, com a especulação em torno da invasão americana do Irã (quarto maior produtor), o barril de petróleo ultrapassou a casa dos 70 dólares, preço bem próximo daquele recorde de 1979 quando da revolução iraniana. Mesmo agora, no início de 2007, passados os boatos de possíveis novas guerras americanas, o preço do barril de petróleo continua acima dos 50 dólares (CEPAL).

Chávez e sua "revolução bolivariana" estão inteiramente amparados na altíssima demanda mundial por combustíveis fósseis, impulsionada em especial pelas guerras estadunidenses no Oriente Médio. Neste sentido, George W. Bush não é na realidade o maior inimigo de Chávez, como afirma este, mas, exatamente o contrário: é graças a esta política militarista de Bush que Chávez consegue arrecadar dividendos fantásticos para a economia do país. Bush é, na verdade, se não o melhor amigo do seu governo, pelo menos seu maior parceiro nos negócios, pois, sem esta contraditória parceria, Chávez certamente não teria como implantar o enorme programa assistencialista de redução da pobreza e da miséria absoluta no país levado a cabo nos últimos anos. Este programa, no entanto, não significa nenhum desenvolvimento real da economia venezuelana como um todo, mas sim, um dos pilares fundamentais do bonapartismo de Chávez.

Para mostrarmos ainda mais claramente a dependência de Chávez do petróleo e da política belicista de Bush, basta comparar os dados da economia venezuelana desde a primeira posse de Hugo Chávez como presidente do país até os dias atuais. Nos anos de 1999, 2002 e 2003 o PIB da Venezuela teve uma queda monstruosa de cerca de 24%. Nos anos de 2004 e 2005, contudo, anos de alta produção petrolífera e de preços internacionais favoráveis, o PIB venezuelano cresceu em índices extraordinários que chegaram a 27,2%. Neste mesmo período, como já indicamos, os preços do petróleo saltaram de 25 dólares/barril para mais de 50 dólares. Porém, na média dos 7 anos de "revolução bolivariana" (1999-2005), descontando-se as altas e baixas do ciclo econômico, o PIB venezuelano cresceu a uma taxa média de medíocres 1,5% anuais. Em 1999, os rendimentos do governo com o petróleo alcançaram a cifra de 3.947.429 milhões de bolívares. Em 2005 estes rendimentos pularam para 40.703.315 milhões de bolívares, um aumento real de cerca de 1.000% (CEPAL, Estudio Económico 2005-2006).

Chávez não tem a intenção de romper com o imperialismo e com o domínio dos bancos sobre a economia do país. Para percebermos isto, basta observar a conta dos juros da dívida pública que o país paga anualmente aos banqueiros. Em 1999 Chávez pagou aos credores do país a cifra de 1.647.017 milhões de bolívares; já nos anos de 2003, 2004 e 2005 pagou a monstruosa cifra de 23.017.422 milhões de bolívares (um aumento de cerca de 1.400%).

Para termos uma idéia mais clara do compromisso de Chávez tanto com a burguesia imperialista quanto com parte de uma nova burguesia criolla nacional, basta darmos uma olhada nas cifras pagas aos credores financeiros pelos governos que o precederam e as posteriores. Entre 1990 e 1998, por exemplo, o Estado venezuelano pagou 4.863.869 milhões de bolívares em juros da dívida pública. Esta cifra paga ao longo de 9 anos é igual à cifra paga por Chávez em apenas em um único ano (CEPAL).

O "socialismo Bolivarista do século XXI" de Chávez é um socialismo que está totalmente adaptado às necessidades do capitalismo mundial. As corporações multinacionais, apesar das tão alardeadas "nacionalizações", continuam a operar livremente no país e a ter seus lucros garantidos pelo próprio governo venezuelano, como dito no próprio site da estatal petroleira PDVSA: "O Executivo Nacional deixou claro que em caso algum se questiona a presença das empresas em nosso país e que as mesmas obtenham seus respectivos lucros, produto de seus investimentos, mas o que exigimos de maneira irredutível é que esta participação se faça no marco do respeito à nossa lei e à nossa soberania".

Simon Bolívar, amparado na força do exército e numa suposta libertação das classes oprimidas, foi uma das grandes caricaturas latino-americanas do Bonaparte III do século XIX. Hoje, Chávez—que baseia seu poder econômico e político sobre a classe trabalhadora não em um programa socialista para a transformação da sociedade, mas em uma sustentação assegurada pelo exército e em uma política assistencialista tornada possível graças aos altos preços do petróleo—aparece como o simulacro moderno de Bolívar, ou melhor ainda, como o simulacro do simulacro, o Bonaparte Latino-Americano do século XXI.

Revolução Sandinista - A Brigada Simón Bolívar - Fernando Graco

Integrante do PARTIDO SOCIALISTA DOS TRABALHADORES (PST) - COLÔMBIA Públicado na revista Marxismo Vivo número 21. Tradução de João Henrique Galvão. Texto disponível em: http://www.archivoleontrotsky.org/phl/www/arquivo/MV21pt/mv21pt-10d.pdf


Em 1979, a Fração Bolchevique (FB) da Quarta Internacional impulsionou, a partir da Colômbia e tendo à frente o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST), a constituição de uma brigada de combatentes para apoiar o povo nicaraguense em sua batalha para derrotar a ditadura de Anastasio Somoza. O PST, que desde sua fundação em 1977 combatia a estratégia guerrilheira da insurgência colombiana, nessa ocasião colocou-se abertamente ao lado dos combatentes nicaraguenses em uma aplicação concreta da concepção marxista sobre as formas de luta.


A caracterização da revolução nicaraguense

A Fração Bolchevique da Quarta Internacional havia elaborado, desde 1978, uma caracterização sobre o processo revolucionário nicaraguense e sobre o papel que a guerrilha da Frente Sandinista de Liberação Nacional (FSLN) poderia cumprir nessa revolução posta em marcha para derrubar o “Tacho” Somoza do poder. A caracterização da FB avaliava, resumidamente, que greves e insurreições parciais estariam combinadas com as ações guerrilheiras da FSLN, e que essa combinação colocaria a Frente Sandinista como vanguarda da luta contra a ditadura. O sandinismo contava ainda com a particular circunstância de que a burguesia, que se encontrava dividida, havia esgotado as possibilidades de fazer uma mudança controlada do regime político e de que o imperialismo, vendo a insurreição avançar, não encontrava melhor saída que a de buscar apoio nos governos latino-americanos para que interviessem, desviando o processo para o terreno da democracia burguesa.

De fato, a combinação das greves e insurreições parciais com as ações guerrilheiras da FSLN deu-se de forma bastante próxima das previsões da FB, entre 1978 e o primeiro semestre de 1979. Em fevereiro de 1978 explodiu uma insurreição na cidade de Masaya, ao sul do país; em setembro do mesmo ano se repetiram em vários estados do país: León, Matagalpa, Chinandega, Managualos, Estelí e, novamente, Masaya. A onda revolucionária, que já abraçava a metade da população nicaraguense, desembocou num novo levantamento da população de Estelí em abril de 1979, ao norte, no qual as massas insubordinadas incorporaram o método da insurreição armada.

Depois das insurreições de setembro, a Fração Bolchevique concluía que:

Todo o processo de greves e mobilizações está criando as condições objetivas para a greve geral e para uma derrota definitiva da ditadura… Estas experiências e o imenso prestígio da FSLN tornam cada vez mais provável a generalização das ações insurgentes do povo... A FSLN é a única força que nesse momento pode realizar esta tarefa [a de organizar as massas para a insurreição], e dar sustentação a uma alternativa de poder... Como consequência de nossa política, devemos continuar o apoio à luta da FSLN e levantar a bandeira “Por um governo da FSLN e das organizações dos trabalhadores”.1



A organização da Brigada Simón Bolívar

Em maio de 1979, Daniel Samper Pizano, reconhecido jornalista colombiano, intitulava sua coluna do jornal El Tiempo: “Necessita-se de pessoas”. O texto iniciava com a seguinte informação:

Na Rua 17 nº 4-49, sala 201, em Bogotá, estão necessitando de pessoas. Não dão trabalho nem prometem enriquecer candidatos da noite para o dia com a venda de enciclopédias. A única coisa que oferecem é a possibilidade de perder a vida, submetendo-se aos riscos e incômodos de levar durante um tempo incerto uma vida cheia de perigos. Em troca, só oferecem a oportunidade de lutar pela libertação de um povo. Neste lugar funciona o escritório de recrutamento de combatentes colombianos que queiram alistar-se voluntariamente na luta armada contra a ditadura de Anastasio Somoza na Nicarágua.


Um relato escrito alguns meses depois do triunfo sandinista resumia assim os resultados da campanha:

A Brigada Simón Bolívar recebeu solicitações de incorporação de mais de 1200 colombianos. Apresentaram-se voluntários de todo o país… Deles, cerca de 320 foram selecionados, mas só 53 conseguiriam viajar, dos quais sete eram nicaraguenses. No momento em que Somoza caiu, havia mais 200 brigadistas preparados para partir para a Nicarágua. Da América Latina saíram outros militantes da Brigada Simón Bolívar, que contou com voluntários da Argentina, Bolívia e Brasil. Houve inclusive três norte-americanos que se somaram à Brigada. No grupo houve três mortos; os três pertenciam ao escritório da Colômbia.2



Um chamado à organização de brigadas de combatentes

Num informe interno dos organizadores da Brigada pode-se ler:

Na coletiva de imprensa convocada pelo Partido Socialista dos Trabalhadores da Colômbia, em 13 de junho de 1979, instou-se através dos meios de difusão a conformar a Brigada Simón Bolívar, a ser integrada por homens, mulheres, trabalhadores e estudantes colombianos de qualquer partido ou ideologia, que quisessem participar militarmente na luta do povo irmão da Nicarágua e da Frente Sandinista, nos momentos cruciais de seu enfrentamento contra a ditadura.
Desta maneira, jornalistas de todos os meios de comunicação nacionais e representantes de várias agências internacionais fizeram chegar o chamado solidário do PST a milhares de colombianos, convertendo esta notícia na mais importante do dia. O chamado ficou também conhecido em todo o mundo, com importantes repercussões no sentido de encorajar grupos e indivíduos a formar brigadas ou incorporar-se diretamente à luta contra Somoza. Exemplo desta repercussão foram as brigadas haitianas que se constituíram em Nova Iorque ou a Sandinistas al Socialismo, integrada por nicaraguenses e salvadorenhos na cidade de Los Angeles (EUA). Ambas fizeram acordos com a Brigada Simón Bolívar posteriormente, fornecendo 150 voluntários. A LCR colombiana também aderiu à Brigada Simón Bolívar e enviou 3 dirigentes ao combate.
Algumas organizações da Quarta Internacional rapidamente deram resposta à convocação em seus próprios países. Duas colunas de voluntários foram formadas na Costa Rica: a Brigada Simón Bolívar e a Juan Santamaría, que somaram 190 companheiros. No Panamá, o PST forneceu dois militantes trotskistas à Brigada Victoriano Lorenzo e chamou a conformação da Brigada Simón Bolívar, recrutando 70 pessoas. O mesmo ocorreu no Equador com um total de 30 pessoas. Na Argentina e no Brasil não se pôde fazer convocações públicas por razões de clandestinidade, mas igualmente se alistaram militantes do trotskismo. No Chile foi formada a Coluna Salvador Allende integrada por companheiros do Partido Socialista (CNR) que fez acordos com a Brigada Simón Bolívar em dois pontos substanciais: 1. Disciplinar-se militarmente às fileiras da FSLN; 2. Impulsionar uma política classista independente na Nicarágua. Em outros países, como a Bolívia, que se encontrava em plena campanha eleitoral, conseguiu-se recrutar companheiros. Três companheiros trotskistas alistaram-se no México.



A Brigada na Nicarágua

Na Nicarágua, os membros da Brigada foram alistados na Frente Sul.

A Frente Sul era tradicionalmente dirigida pela tendência insurrecional ou terceirista. Sua máxima figura militar era Edén Pastora e seus dirigentes políticos os irmãos Humberto e Daniel Ortega...
Com voluntários de vários países da América Latina chegaram 110 combatentes à Nicarágua, e lá se somaram outros mais, contabilizando um total de 250 membros efetivos na Brigada Simón Bolívar. Depois de um intenso treinamento, foram incorporados à Frente Sul da FSLN. A ditadura resistiu até o último dia nesta frente quando, em debandada, a Guarda Nacional - acompanhada de mercenários norte-americanos, vietnamitas e gusanos cubanos - empreendeu a fuga.
Na linha de fogo ao sul [o avanço do sandinismo] estava estancado devido à situação desfavorável: as melhores tropas da Guarda controlavam o corredor paralelo ao Lago da Nicarágua desde a Colina da Virgem e a escassa população da região privava a FSLN do apoio de massas que tinha no norte.
Foi uma guerra de posições, onde cada palmo de terreno foi conseguido à custa de um grande número de companheiros mortos e feridos. A FSLN sofreu ali o maior número de baixas - aproximadamente 25% de seus efetivos entre mortos e feridos - e os integrantes da Brigada Simón Bolívar também fizeram frente ao perigo.
Da coragem de nossos companheiros em combate há mais de um testemunho e, sobretudo, uma dolorosa prova: três mortos na linha de fogo, Mario Cruz Morales e Pedro J. Ochoa, colombianos, e Max Leoncio Senqui, nicaraguense…3



A expulsão da Brigada

Quando a Brigada Simón Bolívar foi organizada, definiu-se que apoiaria militarmente a Frente Sandinista de Libertação Nacional, combatendo sob sua disciplina para derrotar a ditadura de Somoza, mas ao mesmo tempo ficou claro que isso não implicava em apoio político ao programa de reconstrução do Estado burguês que os sandinistas levantavam.

Em contraposição, a Brigada Simón Bolívar proclamou e defendeu que:

A crise pela qual a Nicarágua atravessa não terá uma saída favorável para as massas trabalhadoras, camponesas e populares nos limites em que o imperialismo, a Igreja e a burguesia opositora querem mantê-la. A única saída para esta crise é a derrubada de Somoza e a instauração de um governo que cumpra o seguinte programa:
- Armamento das massas operárias, camponesas e populares e liquidação da Guarda Nacional.
- Expropriação de todas as empresas de Somoza, de seus familiares e de todos os colaboradores da ditadura, e que sejam colocadas sob o controle dos trabalhadores. Expropriação, sob controle dos trabalhadores, de todos os monopólios imperialistas.
- Reforma agrária, expropriando os latifundiários e entregando as terras aos camponeses.
- Ruptura de todos os pactos políticos e militares com o imperialismo.
- Liberdade a todos os presos políticos e retorno dos exilados. Plenas liberdades de imprensa, organização política e sindical, reunião, manifestação e greve.
- Dissolução do parlamento e de todas as instituições do Estado somozista.
- Eleições livres para uma Assembleia Constituinte que reorganize o país a serviço dos trabalhadores, dos camponeses e do povo.4


Enquanto se combatia para derrubar Somoza, não ocorreram diferenças importantes, dado que os membros da Brigada Simón Bolívar estavam sob a disciplina militar da Frente Sandinista mas, uma vez derrotada a ditadura, surgiram, inevitavelmente, disputas políticas e programáticas. Os brigadistas, consequentemente, impulsionaram o programa que haviam proposto, levando em conta a dinâmica do processo revolucionário e a iniciativa das massas.

Em relação ao armamento geral das massas, defenderam o fortalecimento dos Comitês de Defesa Sandinista (CDS), comitês armados que no transcurso do enfrentamento com a Guarda Nacional haviam sido formados como organismos de autodefesa, denominados então Comitês de Defesa Civil (CDC). Por outro lado, a política do Governo de Reconstrução Nacional foi desmantelá-los e substituí-los por um exército regular e uma polícia como em qualquer outro Estado burguês.

Igualmente importante foi o papel que a Brigada cumpriu na organização das massas nos bairros, na distribuição de víveres, medicamentos, armas e construção de refúgios antiaéreos e barricadas. Os brigadistas também impulsionaram a construção de sindicatos; em poucos dias ajudaram a fundar 80 sindicatos e incentivaram a constituição dos Comitês de Fábrica, que se converteram em espécies de organismos de poder que exerciam controle político, militar e administrativo nas fábricas. Com esses organismos, os trabalhadores destituíam os gerentes e altos executivos das empresas, pediam ao governo nacional a expropriação sem indenização das empresas e sua estatização sob o controle dos trabalhadores.

No campo, a Brigada estimulou organismos parecidos para expropriar a terra e distribuí-la gratuitamente aos camponeses, desenvolvendo a tarefa democrática da reforma agrária. A Brigada impulsionou esse programa chamando os sandinistas a governar com as organizações dos trabalhadores e das massas, sem burgueses. Mas a pressão do imperialismo e da burguesia latino-americana para evitar que a Nicarágua se convertesse em uma nova Cuba, onde os meios de produção foram coletivizados, levou o Governo de Reconstrução Nacional a expulsar a Brigada Simón Bolívar “por ser extremista”.

Para tentar evitar a expulsão, importantes setores de trabalhadores realizaram uma mobilização pelas ruas de Manágua, da qual participaram cerca de 5000 pessoas, para manifestar sua simpatia pela Brigada e exigir que se outorgasse a cidadania nicaraguense aos seus integrantes.

Os brigadistas foram convocados a uma reunião na qual foram desarmados e posteriormente enviados ao Panamá num avião especialmente fretado.Ali foram entregues ao exército, que os torturou e os enviou de regresso à Colômbia, onde os brigadistas e o PST tiveram de suportar a perseguição do regime reacionário encabeçado por Julio César Turbay que, equivocadaente, suspeitava de suas intenções de organizar uma nova guerrilha no país.


Notas
1 Jornal O Socialista, nº 128 de 4 de setembro 1978.
2 Nicaragua: reforma o revolución. Tomo I. Recopilação de artigos, Bogotá: 1980
3 El Socialista, nº 165, agosto de 1979
4 Revista de América, ano 1, nº 8/9 (Terceira época). Bogotá: janeiro/fevereiro de 1979

O sandinismo, ontem e hoje - Guilhermo Huembes e Manuel Sandoval

Membros do PARTIDO REVOLUCIONÁRIO DOS TRABALHADORES (PRT) - COSTA RICA. Públicado na revista Marxismo Vivo número 21. Tradução de Irinéia vieira. Texto disponível em: http://www.archivoleontrotsky.org/phl/www/arquivo/MV21pt/mv21pt-12hs.pdf

Quem que não conhecesse nada da história da América Central dos últimos 30 anos e viajasse a Manágua hoje, dificilmente conseguiria perceber que no final dos anos 70 ocorreu um processo revolucionário de tal profundidade que ameaçou de morte o sistema capitalista. A Nicarágua atual, ainda que os Ortega estejam novamente no poder, exibe os mesmos males de qualquer outro país capitalista atrasado e explorado pelas multinacionais. Como veremos neste artigo, a direção sandinista empenhou-se em reconstituir o Estado burguês, ferido de morte com a destruição da Guarda Nacional de Somoza depois da insurreição popular que culminou em 19 de julho de 1979. E acabou transformando-se em ala da burguesia nicaraguense, mediante o roubo das propriedades expropriadas de Somoza e sua camarilha e de todo tipo de negociações sob o amparo do aparato do Estado. Hoje se deve extrair as lições dessa experiência histórica para que o sacrifício e o heroísmo revolucionário dos povos centro-americanos daquele momento não tenham sido em vão. Em meio à crise econômica internacional, confiamos em que os povos centro-americanos voltarão a lutar pelo poder. Mas agora trata-se de construir uma direção operária, socialista e internacionalista, que não vacile em expropriar a burguesia e em unificar a luta revolucionária na América Central.


A revolução que derrubou Somoza

Durante décadas, a ditadura dos Somoza controlou ferreamente a Nicarágua. No entanto, em janeiro de 1978, com o assassinato do burguês de oposição Pedro Joaquim Chamorro, é iniciada uma poderosa mobilização de massas em protesto, com incêndios de empresas ligadas ao somozismo em Manágua, e produz-se um salto na situação política. Este assassinato situa-se numa crise já vivida pela ditadura somozista, quando enfrenta um crescente repúdio da burguesia e o início da intensificação da ação militar da Frente Sandinista.

A população indígena de Monimbó, em Masaya, a segunda cidade do país, rebela-se em fevereiro, dando uma lição ao conjunto das massas populares da Nicarágua sobre os métodos para realizar uma insurreição urbana de massas. Com a tomada do Palácio Nacional em agosto, numa operação dirigida pelo Comandante Zero, Edén Pastora, da tendência Terceirista, a crise da ditadura começa a se tornar palpável. A burguesia opositora convoca uma greve nacional em setembro, coincidindo com uma ofensiva combinada das diferentes tendências sandinistas.

Neste momento, a burguesia opositora, a Igreja católica, a social-democracia europeia e vários governos latino-americanos tentam convencer o sandinismo a compartilhar o poder com a burguesia frente a uma eventual queda da ditadura. A ajuda em armas, em recursos financeiros e logística fica assim vinculada ao surgimento de um governo de unidade nacional, que se concretizará finalmente com a incorporação de Violeta Barrios de Chamorro (viúva de Pedro Joaquim Chamorro) e Alfonso Robelo (presidentedo Conselho Superior de Empresas Privadas - COSEP) à futura Junta de Reconstrução Nacional.

A queda da ditadura somozista, em meio a um processo insurrecional, que provoca a debandada da Guarda Nacional, destrói as bases do Estado burguês na Nicarágua. Na fase final da luta, em junho-julho de 1979, quando as colunas guerrilheiras avançam aos centros populosos no Norte, Manágua e a franja do Pacífico, produz-se uma incorporação massiva dos setores populares, que se armam e formam milícias, executam membros dos aparatos repressivos que não conseguem fugir e começam a ocupar fábricas e fazendas dos Somoza e de sua camarilha. Surge assim uma situação de duplo poder, onde o poder das massas se expressa embrionariamente nas milícias, nas organizações de bairros e nos sindicatos que começam a surgir a partir de 19 de julho.


A FSLN no poder: frear a revolução para reconstruir o Estado burguês

Da mesma forma que em fevereiro de 1917 na Rússia, quando a burguesia é obrigada a recorrer à ficção de um governo de unidade nacional com social revolucionários e mencheviques, as direções colaboracionistas de classes à frente dos sovietes, o poder real reside nos órgãos de poder que as massas mobilizadas estão criando. Na Nicarágua daquele momento, a única possibilidade da débil burguesia opositora é refugiar-se atrás da Junta de Reconstrução Nacional (organismo que só ganha vida pela autoridade da FSLN) e tentar aglutinar-se por meio do COSEP para pressionar o sandinismo a cumprir o programa do GRN, que limita a revolução ao estabelecimento de um regime democrático-burguês.

A direção sandinista que, como vemos, não tinha uma experiência histórica em frear o movimento de massas como a dos aparatos stalinistas, encontra-se pressionada desde o primeiro momento pela política de colaboração de classes, que a obriga a conter a revolução para que não vá além da conquista democrática representada pela queda de Somoza e não entre em um curso anticapitalista, como o que se anuncia, com o armamento das massas e o processo aberto de ocupação de fábricas e terras. A fuga da camarilha dos Somoza significa de fato a expropriação da fração burguesa mais poderosa do país, gerando uma dinâmica anticapitalista em meio à mobilização de massas. Por esta razão, o sandinismo começa a anunciar que as expropriações são contra os burgueses vende-pátria, e não contra os “patrióticos”.

A situação pegou o sandinismo, que não contava com a possibilidade de ocorrer um processo de organização independente das massas, de surpresa. Contudo, rapidamente, consegue definir um projeto de controle político e militar do movimento de massas para reconstituir o Estado burguês, transformando a guerrilha em um aparato militar profissional.

Esta escalada repressiva era parte de uma operação contrarrevolucionária bem calculada para controlar o movimento de massas. Como se evidenciará com a chegada de Fidel Castro a Manágua para celebrar o primeiro aniversário do triunfo da revolução, ao aconselhar o sandinismo a manter-se preso a uma política de colaboração de classes com a burguesia, com a expectativa de que o imperialismo norte-americano, em troca desta colaboração, abrisse um processo de negociação com Cuba e terminasse com as sanções e o isolamento. O aparato repressivo estabelecido pelo sandinismo será criado com a assessoria do G-2 cubano.

Sem partidos fortes da burguesia, com todas as instituições chaves do Estado burguês profundamente debilitadas (há um expurgo dos somozistas do aparato judicial e de todos os ministérios), e com um grande setor da economia de propriedade anterior de Somoza e seus adeptos controlado agora pelos “administradores” sandinistas, o regime político que o sandinismo começa a conformar para controlar o movimento de massas é, desde o primeiro momento, profundamente autoritário e bonapartista.

Ainda que contraditoriamente, pois o sandinismo estabelece este regime para sustentar o sistema capitalista na Nicarágua, os confiscos da propriedade somozista e a articulação da institucionalidade burguesa em torno ao mando militar guerrilheiro provocam as primeiras fricções com a burguesia opositora, causando a saída de Robelo e de Violeta Chamorro da Junta de Reconstrução Nacional em meados dos anos 80 e a morte de Jorge Salazar Argüello, dirigente do COSEP, que mantinha contato com setores do somozismo, num enfrentamento com a segurança do Estado.


O imperialismo dá “ar” à economia mista do sandinismo

A derrota militar no Vietnam em 1975, como resultado da combinação da resistência vietnamita, da solidariedade internacional a nível mundial e da mobilização contra a guerra nos próprios Estados Unidos, provocará uma profunda crise de direção do imperialismo norte-americano para enfrentar os processos revolucionários além de suas fronteiras. O ano de 1979 é crucial, porque caem dois peões em regiões chaves para o imperialismo: Somoza na América Central e o Xáno Irã. Estamos assim às portas de um salto, de um aprofundamento do ascenso revolucionário no plano mundial, que começou a dar-se desde finsdos anos sessenta.

Neste marco Washington enfrenta a “síndrome do Vietnam”, a oposição do povo norte-americano às guerras contrarrevolucionárias com intervenção direta de seu exército.

O fracasso da tentativa de libertação dos reféns na Embaixada norte-americana em Teerã pela força pôs o imperialismo norte-americano em xeque e o deixa paralisado frente a um processo revolucionário de massas, ante o qual se comprometeu até o último momento ao apoiar a odiada ditadura do Xá. O Irã converte-se em uma ameaça muito séria, porque a direção burguesa à frente do processo (o clero xiita encabeçado pelo aiatolá Khomeini) pretende assumir um desenvolvimento capitalista autônomo, com base nos recursos petrolíferos do país. Possivelmente este desconcerto inicial contribui para converter o problema iraniano em um verdadeiro trauma até o dia de hoje na definição da estratégia de dominação global do imperialismo ianque.

No caso da Nicarágua e do ascenso de massas aberto em toda América Central em fins dos anos setenta, a administração Carter começa a ensaiar outra estratégia contrarrevolucionária, ao tomar consciência da impossibilidade de uma intervenção militar direta para impedir a queda de Somoza, pactuando com o sandinismo o congelamento do processo revolucionário nos limites do capitalismo após a queda da ditadura. No Irã não existia um intermediário internacional para promover uma negociação com o clero xiita, a fim de assegurar os interesses de Washington e garantir um compromisso de que a revolução não se estendesse às massas xiitas do Oriente Médio. Já em relação ao sandinismo, houve um trabalho prévio por parte da burguesia opositora, da social-democracia internacional e de alguns governos burgueses da América Latina para “moderá-lo”.

Washington joga-se a fundo para “permitir” que a FSLN tome o poder… e vai mais além: outorga um crédito de mais de 2 bilhões de dólares, que permite ao sandinismo fazer importantes concessões ao movimento de massas nos dois primeiros anos de governo. O projeto de economia mista do sandinismo: articular a propriedade estatal com o setor privado da economia recebe um oxigênio vital.

O bondoso rosto que o ex-presidente Carter tentou projetar nos anos recentes, denunciando as violações aos direitos humanos em vários países da periferia e clamando por ajuda ao “terceiro mundo”, não nos deve fazer esquecer, no entanto, que a ofensiva contrarrevolucionária do imperialismo, tanto nos próprios Estados Unidos como a nível internacional, inicia-se no último ano de seu governo. Em casa, nomeou o agora octogenário Volcker (um dos principais assessores econômicos de Obama) para a Reserva Federal (FED). Este aumentou as taxas de juros e fez a economia entrar em recessão, resultando no aumento do desemprego e na queda dos salários. Na América Central, a política “amável” para o sandinismo deu passagem ao que em nossa corrente internacional denominamos desde então de política de reação democrática da “cenoura e o garrote”, ou seja, pressão política e militar (com a imposição da contrarrevolução armada) para obrigar o sandinismo a outorgar cada vez mais concessões à burguesia local e ao imperialismo.

Com bandos dispersos de guardas somozistas que não fugiram para Honduras e se refugiaram nas montanhas da Nicarágua, a CIA e o Pentágono iniciam a montagem da guerrilha “contra”, com uma estratégia de “guerra de baixa intensidade”.

A subida de Reagan à Casa Branca em 1981 dá impulso a esta política, gerando um curso de confrontação muito forte, destinado a arrancar concessões substanciais do sandinismo. A mudança na estratégia do imperialismo é produzida como resultado de dois processos: à diferença do sandinismo, que não aborda a revolução nicaraguense como parte de um processo revolucionário de toda a América Central, o imperialismo toma consciência rapidamente de que, para derrotar o ascenso no resto da América Central, estimulado pelo triunfo revolucionário na Nicarágua, tem que desgastar o movimento de massas neste país e arrancar o sandinismo do poder. O triunfo revolucionário sobre a ditadura somozista foi um exemplo muito perigoso para sua dominação, numa região que tende historicamente à sua integração e mantém por isso profundos vasos comunicantes na luta de classes.

Enquanto impulsiona a ação dos “contras” para desgastar o sandinismo e reforça os exércitos da Guatemala, Honduras e El Salvador, realiza uma operação de maquiagem “democrática” das velhas ditaduras militares destes países e mantém economicamente a “democracia” costarriquense para que se converta no ideal ao qual possam aspirar, pacificamente, as massas centro-americanas.

A segunda razão é que, embora o sandinismo esteja fortemente comprometido a defender o sistema capitalista, trata-se de uma direção independente, com fortes vínculos com Cuba, na qual o imperialismo não pode confiar plenamente. O deslocamento da burguesia opositora do aparato do Estado, porque não tem maior incumbência num regime bonapartista estruturado em torno à oficialidade sandinista, provoca finalmente a ruptura de Arturo Cruz e Rafael Córdoba Rivas, que haviam substituído Robelo e Chamorro no Governo de Reconstrução Nacional.

A sagacidade contrarrevolucionária do imperialismo contrasta ao mesmo tempo com a cegueira nacionalista da cúpula da FSLN. Fiel a um pacto implícito de não permitir a ida de guerrilheiros sandinistas para lutar em El Salvador ou Honduras, persegue, desarma e encarcera os militantes que tentam fazê-lo por sua conta. Junto com a direção cubana, refreia, além disso, a guerrilha salvadorenha organizada na FMLN para que não se lance a um assalto insurrecional, em meio ao forte ascenso operário e de massas que sacode El Salvador em 80-81, e inicie um “diálogo” com os “militares patrióticos e honestos” da Junta Militar que substituiu a velha ditadura, para constituir “um governo de ampla participação”. Esta política deixa passar o momento mais favorável para a insurreição em El Salvador, e quando o movimento de massas começa a ser golpeado pelos esquadrões da morte e a repressão do exército (o clímax do terror contrarrevolucionário vem com o assassinato do Monsenhor Romero), a guerrilha salvadorenha retrocede e se entrincheira em algumas zonas montanhosas, para manter uma guerra de posições com o exército, sob a óptica de negociar uma democratização do regime político.

O retrocesso revolucionário em El Salvador intensifica a ofensiva militar do imperialismo por meio das guerrilhas “contras”, situação que obrigará cada vez mais o sandinismo a golpear as conquistas que o movimento de massas conquistou após a queda da ditadura, para poder manter a orientação utópica da economia mista.


Economia mista e concessões ao movimento de massas

O comandante Jaime Weelock Román, outrora da Tendência Proletária, transforma-se no teórico do projeto econômico sandinista. É interessante, por isso, recordar como o define. Em uma entrevista a Martha Harnecker, em dezembro de 83, nos diz:

Deve-se perguntar se existe a possibilidade teórica de que a burguesia produza, sem poder, que possa limitar-se como classe a um poder produtivo, ou seja, que se limite a explorar seus meios de produção e que utilize estes meios para viver, e não como instrumentos de poder, de imposição. Eu creio que isso é possível na Nicarágua (…) Não se trata, portanto de substituí-los, mas de buscar fórmulas de vinculação, de integração.

A ideologia de colaboração de classes que se expressa nestas linhas não é muito diferente da ideologia do “socialismo do século XXI” defendido por Chávez. É o mesmo programa dos mencheviques durante a revolução russa, retomado pelo stalinismo para justificar sua política de aliança com algumas burguesias dos países capitalistas atrasados para resistir a pressão imperialista e tentar manter o status quo internacional. Trata-se da possibilidade de suprimir os antagonismos sociais para promover, a partir do Estado, um desenvolvimento capitalista nacional que permitisse o fortalecimento da classe operária e pudesse, em uma segunda etapa, instaurar a luta pelo socialismo.

Para suprimir os antagonismos sociais, o sandinismo “disciplinou” fortemente o movimento de massas mediante a repressão e tentou ao mesmo tempo fazer algumas concessões importantes: a criação de um sistema único de saúde, onde tanto os contribuintes da previdência social como os não contribuintes teriam acesso a todos os serviços médicos; a recuperação salarial e restaurantes com alimentação subsidiada em todos os centros de trabalho; centros de atenção infantil nos bairros populares; uma gigantesca campanha nacional de alfabetização e a extensão da cobertura do sistema educacional; terras para bairros populares; legislação progressista em matéria de proteção social; preços agrários subsidiados para controlar a inflação e a nacionalização do comércio exterior.

Para ganhar o favor da burguesia, pagou generosamente pela nacionalização de bancos quebrados, tentou uma boa relação com o imperialismo assumindo o pagamento dos juros da dívida externa e manteve a ofensiva para convencer o movimento de massas a não afetar a propriedade da burguesia patriótica. Já vimos anteriormente que não convenceu ninguém. Ameaçada sempre pelo ascenso do movimento de massas e por um regime que a marginaliza do poder político em todas as esferas do Estado, a burguesia opositora recebe as dádivas do sandinismo enquanto se dedica a descapitalizar as empresas e até a financiar os “contras”, alentada pelo incentivo à confrontação dado pelo imperialismo. Se a economia começa a recuperar-se em relação à queda de 78-79 (de um terço do PIB) e ainda em 1984, em meio ao clímax da ofensiva militar dos “contras”, consegue crescer 4,4%, é graças ao sacrifício do movimento de massas, que aplica a bandeira do sandinismo: “aumentar a produção”, e porque ainda está fluindo dinheiro de empréstimos internacionais.

Este ano, no entanto, a situação começa a tornar-se insustentável, com a metade do orçamento nacional sendo devorado pelo gasto da guerra aos “contras”. A direção sandinista começa a descarregar a crise sobre os trabalhadores e o povo: eliminam-se os subsídios aos grãos básicos, desaparecemos mercadinhos ou vendas populares, para garantir o abastecimento de produtos básicos a preços acessíveis aos setores populares, permite-se que a inflação dispare, os acordos coletivos são congelados e se impõe o Sistema Nacional de Organização do Trabalho e do Salário (SNOTS) para asfixiar as reivindicações salariais numa camisa de força. O sandinismo começa a eliminar as conquistas que o movimento de massas conseguira para poder desenvolver uma política de concessões para a burguesia opositora.


Os “contras” conseguiram penetrar no campesinato

Nestes primeiros anos, é no campo, onde o projeto de economia mista do sandinismo será mais desastroso. Para impulsionar o setor agroexportador e a grande produção, o sandinismo tentará manter a maior parte das grandes fazendas confiscadas na Área de Propriedade do Povo (administrada pelos sandinistas) enquanto congela o processo em relação às grandes propriedades da burguesia opositora.

Em algumas zonas fronteiriças onde os bandos contrarrevolucionários começaram a operar (Chontales, Matagalpa, Nueva Guinea, Madriz) não houve nenhuma reforma agrária. Foi assim como o descontentamento camponês começou a nutrir as filas da contrarrevolução, dando-lhes uma base social de apoio.

O pequeno produtor camponês viu-se afetado porque os preços dos produtos agropecuários eram tabelados caprichosamente abaixo do custo de produção e era obrigado a vendê-los ao ENABAS para abastecer as vendas dos bairros. Os produtos de quem tentava vendê-los por sua conta eram confiscados pelos Comitês de Defesa Sandinista.

Esta política, contraditoriamente, não garantiu um abastecimento adequado das cidades, porque deixava os capitalistas com as mãos livres para que especulassem, fazendo com que a população enfrentasse grandes dificuldades. Os salários começaram a deteriorar-se rapidamente, ao disparar o custo de vida.


A burguesia descapitaliza suas empresas

Enquanto isso, a política econômica em relação à burguesia agroexportadora estava cheia de estímulos para quem conseguisse uma alta produtividade. Os produtores cafeeiros e algodoeiros recebiam transporte gratuito para escoar sua produção ou mobilizar a mão de obra, com a convocação da juventude para participar de brigadas para a safra de cana-de-açúcar ou a colheita de algodão nos latifúndios da burguesia. “E agora o quê? Cortar café. E com um pouco de manha, cortaremos também a cana”, cantavam os brigadistas em muitas fazendas dos burgueses patrióticos, embora estes se dedicassem a descapitalizar e retirar os lucros do país. O engenho San Antonio, em Chinandega, propriedade dos Pellas, é uma prova disso. Quando o sandinismo finalmente o expropriou, era quase sucata.


A guerra aos “contras”: uma guerra perdida, sem expropriar a burguesia

Os “contras” terminaram sendo nutridos pelo descontentamento de todos estes setores camponeses e das comunidades indígenas do Atlântico: os miskitos, sumos e ramas, que se chocaram com o sandinismo ao reivindicar sua autonomia. Os comandos contrarrevolucionários conseguiram assim um salto qualitativo em sua estrutura organizativa, passando a constituir forças-tarefas que obrigaram o Exército Popular Sandinista (EPS) a mobilizar contingentes cada vez maiores para freá-las.

O clímax do enfrentamento militar ocorre em 1984, que abre caminho à ruína econômica do país. O sandinismo vê-se obrigado a responder politicamente, passando a repartir grandes extensões de terra da Área de Propriedade do Povo (APP) nas zonas onde os “contras” operam, e a negociar com os caciques miskitos, sumos e ramas.

A guerrilha “contra” é contida, mas a negação do sandinismo em expropriar a burguesia e apoiar-se nas massas centro-americanas para defender a revolução permite ao imperialismo golpear ainda mais a massas nicaraguenses.

O imperialismo está seguindo uma estratégia friamente calculada para desgastar o apoio popular ao sandinismo. Antes da administração Reagan decretar um embargo comercial e financeiro à Nicarágua em maio de 1985, a constituição do grupo de Contadora por vários governos latino-americanos (México, Venezuela, Panamá e Colômbia) já servia para iniciar um processo destinado a arrancar concessões do sandinismo, levando-o pouco a pouco a uma rendição na mesa de negociações. Os sacrifícios provocados pela guerra e a destruição do aparato produtivo do país. (calcula-se que os “contras” provocaram perdas de mais de US$ 2 bilhões, três ou quatro vezes o PIB de então) levaram as massas ao cansaço, uma situação habilmente explorada por Washington.

À medida que a guerra se prolonga e submete os setores populares a terríveis privações (em 1986, a cesta básica equivalia a oito vezes o salário mínimo de 10650 córdobas e o salário real valia 34% de seu valor em 1977), o custo em vidas humanas dos jovens assassinados pelos “contras” enquanto cumpriam com o Serviço Militar Obrigatório principia a provocar a deserção dos jovens de setores médios das cidades, que emigram massiçamente para a Costa Rica. O marasmo econômico leva quase ao aniquilamento do proletariado agrícola e fabril, que começa a cruzar em massa a fronteira da Costa Rica. (a população costarriquenha ronda os 4,8 milhões de habitantes, e provavelmente 1/5 é de imigrantes nicaraguenses). Incapaz de aprofundar a revolução, o sandinismo empreende a rota da rendição.


A rendição em Esquípulas e Sapoá

O imperialismo buscou desde o princípio uma negociação global com o sandinismo, com o desarmamento de todas as guerrilhas centro-americanas e a integração da burguesia opositora ao regime político nicaraguense. A partir do Documento de Objetivos de Contadora e das três Atas de Contadora, o sandinismo comprometia-se a não ajudar a guerrilha da FMLN, a instaurar um regime democrático-burguês com eleições periódicas, a respeitar os vizinhos e aceitar o controle e verificação do armamento na região.

Com o apoio da direção castrista, desde 1983 a cúpula do FSLN realizou uma operação para suprimir a ala mais lutadora da guerrilha salvadorenha e enquadrá-la na política da negociação. Estamos falando do assassinato de Cayetano Carpio (Marcial) em Manágua, o principal comandante das Forças Populares de Libertação (FPL) Farabundo Martí, a guerrilha mais poderosa, que defendia uma estratégia de destruição da Guarda Nacional e a tomada do poder em El Salvador. As coisas se apresentam como se Marcial houvesse assassinado a Comandante Ana Maria por diferenças políticas e, arrependido, suicidara-se. Foi uma operação no pior estilo stalinista, destinado a desprestigiar e isolar os seguidores das posições de Marcial e, se fosse o caso, como efetivamente sucedeu em algumas frentes, a exterminá-los. A FMLN passa ao mesmo tempo a constituir-se como um aparato guerrilheiro unificado, catapultando o Partido Comunista stalinista, que não tivera maior protagonismo até então, o que leva Shafik Handall, secretário geral do PC, a dominar sua direção até há dois anos, quando sofre um enfarto mortal.

A cúpula sandinista dá o passo final neste curso de capitulação em agosto de 1987, ao assinar o Acordo de Esquípulas, que estabelecia o cessamento da luta armada e a reintegração das guerrilhas aos regimes burgueses dos países-centro americanos, em troca de anistias, garantias eleitorais e liberdades democráticas. No ano seguinte, a negociação de Sapoá concretiza passos para a reincorporação dos “contras” em Nicarágua: a liberação de uma região de 21000 km² para eles, a libertação de guardas somozistas presos e a permissão de ajuda “humanitária” do imperialismo para seus mercenários; abrindo finalmente um processo para as eleições de 90, quando se concede a lei de autonomia municipal reclamada pela guerrilha “contra”.

É interessante chamar a atenção para o fato de que o apoio do imperialismo aos “contras” começa a decair desde 1987. Para dizê-lo um pouco grosseiramente, com suas concessões e a política econômica contra as massas populares, o sandinismo conseguiu convencer Reagan de suas verdadeiras intenções.


Matando o povo de fome para manter os incentivos à burguesia agroexportadora

O sandinismo aprofunda uma orientação econômica sinistra para o movimento de massas: tentar recuperar a economia sustentando o setor exportador. Libera os preços dos produtos agrícolas, aprova uma lei de investimentos estrangeiros que permite a repatriação total ou parcial dos lucros e do capital investido, desmantela o monopólio do comércio exterior. Dos dólares a preços irrisórios para os grandes importadores (que fizeram um grande negócio enquanto a inflação disparava e eram necessários 40 mil córdobas por dólar no início de 1988), passam a duas desvalorizações sucessivas, favorecendo abertamente os exportadores (ao aumentar o câmbio oficial). Estes eram premiados com incentivos em dólares enquanto o ataque aos trabalhadores era brutal: 10 mil demitidos com a redução do Estado e a indexação dos empréstimos à inflação, disparando de forma indiscriminada as taxas de juros, que passam de 12% anuais a 42% mensais. E, embora a eliminação do Sistema Nacional de Organização do Trabalho e do Salário (SNOTS) rompesse a camisa de força dos patamares salariais fixos que este sistema estabelecia, o aumento dos salários ficou subordinado à maior produtividade, ou seja, ao aumento da exploração. O empobrecimento é tão brutal que foi preciso distribuir cestas básicas, chamadas de gallo pinto azucarado1. Contudo, depois da devastação da costa atlântica provocada pelo furacão Juana em outubro de 1988, o sandinismo decide limitar esta ajuda aos afetados pela catástrofe. Enquanto se mantém, é claro, os incentivos aos exportadores (que chegarão a alcançar US$ 20 milhões, cerca de 10% do valor das exportações). O sandinismo tem uma política econômica que aponta para a coerentização do funcionamento do capitalismo na Nicarágua, eliminando os mecanismos de proteção da classe trabalhadora e de controle da anarquia do mercado que havia tentado introduzir na primeira fase da revolução. O resultado é um empobrecimento brutal das massas populares, sua base social de apoio. Um grande favor feito à oposição burguesa, por lhe facilitar a vitória nas eleições e lhe haver economizado o custo de implementar o grosso do “ajuste”.


1990: uma mudança de regime burguês pactuada com o imperialismo

A implantação dos acordos de paz de Esquípulas e Sapoá pôs na ordem do dia a abertura do processo eleitoral de 1990 para favorecer a coalizão burguesa que o imperialismo promoveu, com o objetivo de tentar arrancar o sandinismo do poder pela via eleitoral. Praticamente todos os grupos burgueses de oposição se põem de acordo para apoiar a candidatura de Violeta Chamorro, através da União Nacional Opositora (UNO)

O sandinismo pactuou com o imperialismo a garantia de que entregaria o poder se perdesse as eleições, recebendo em troca a segurança de que as propriedades e privilégios adquiridos pela cúpula sandinista não seriam tocados. Este é um aspecto chave, porque os administradores e a casta militar sandinista vinham adquirindo privilégios através de uma gestão cada vez mais corrupta no setor econômico do Estado (APP) e na administração pública. A cúpula sandinista era conivente porque vinha de um processo de simbiose com o setor burguês agroexportador, através de alguns negócios dos Ortega e outros Comandantes com latifundiários da “burguesia patriótica”.

As instâncias de direção do sandinismo começavam a construir uma ideologia nos comitês de base, afirmando que se havia chegado a uma conjuntura de equilíbrio militar com a contrarrevolução onde nenhuma das duas forças enfrentadas tinha capacidade de derrotar o adversário e determinar o controle total do poder político. Em meio à crise econômica, isso levava à abertura e à negociação com o imperialismo, e à aceitação de um governo transicional da direita, enquanto se fortaleciam de novo.

Com o triunfo eleitoral de Violeta Chamorro, o processo de rapina nos três meses anteriores à cessão do governo pôs em evidência a vontade da cú- pula sandinista de conformar-se como uma fração burguesa, apropriando-se de boa parte dos bens do Estado e da propriedade confiscada do somozismo e, de forma clientelista, repartindo entre suas bases mais fiéis algumas migalhas, desde veículos até casas. Aproveitando-se do controle do poder judiciário, os quadros sandinistas apressaram-se em legalizar mansões, fábricas e fazendas que haviam organizado para mantê-las em suas mãos.

Produz-se assim uma mudança qualitativa na natureza social da Frente Sandinista, que torna-se o principal partido burguês da Nicarágua, ao entrar com tudo num jogo de alianças e compromissos com os outros partidos burgueses (particularmente com o Partido Liberal Constitucionalista de Arnoldo Alemán) para deter importantes quotas de poder no aparato do Estado, ainda que se visse obrigado a sair do Executivo em 90.

Desde as primeiras horas do triunfo de Chamorro, Ortega encarregou-se de frear os choques que se produziram, quando seus partidários começaram a sair às ruas, pedindo que não se entregasse o poder. Demagogicamente, dizia que governariam de baixo.

Esta transformação do sandinismo deu-se também em outro nível, com a separação formal entre o exército e a cúpula sandinista. Processo iniciado no próprio dia das eleições, ao aceitar que os membros do exército e da polícia não votassem, o que prejudicava eleitoralmente os sandinistas. Ao começar a desarmamento dos “contras” depois da negociação de Sapoá, o exército começou a ser desmobilizado e havia sido criada uma Academia para a profissionalização dos oficiais. O governo de Chamorro limita-se a se desfazer do setor mais plebeu da oficialidade, conservando as patentes de sobrenomes oligárquicos como o chefe do exército Joaquín Cuadra Lacayo. É muito importante ter presente que as patentes militares provenientes do sandinismo garantiram desde então, sob os governos de Chamorro, Alemán e Bolaños, a segurança da “democracia” na Nicarágua. Sem nenhuma resistência da oficialidade, o governo de Chamorro reduziu significativamente o exército, tal e como exigia o imperialismo, e finalmente será o próprio Daniel Ortega que, recentemente, se desfez dos foguetes terra-ar entregues pelos soviéticos nos anos oitenta.


A herança do sandinismo: um regime democrático-burguês instável e corrupto

O sandinismo deixou de ser uma formação nacionalista pequeno-burguesa e com isso mudou também sua relação com o movimento de massas. O enriquecimento ilícito através da rapina afastou o apoio de uma parte dos trabalhadores e do povo, que se orientará eleitoralmente rumo aos partidos burgueses, ante a falta de alternativas de esquerda. Isto explica porque teve que esperar quase duas décadas para poder retornar ao poder pela via eleitoral. A base e os quadros intermediários da Frente Sandinista, profundamente desmoralizados, não foram capazes de produzir nenhum agrupamento à esquerda.

Para retomar o poder nas últimas eleições, o sandinismo teve que retroceder ainda mais, destruindo as últimas conquistas remanescentes da revolução, como o direito ao aborto terapêutico, para que os religiosos chamassem o voto em Ortega. Para não ter nenhuma dúvida do caráter burguês e contrarrevolucionário de sua cúpula, não só é útil trazer a notícia, de que a Revista Forbes considera Humberto Ortega o principal milionário da América Central, com investimentos muito importantes na Costa Rica e Honduras. Mais importante é ter claro que o sandinismo regressou ao poder depois de permitir que fosse aprovado o Tratado de Livre Comércio entre a América Central e os Estados Unidos em 2005. Poderiam ter bloqueado sua aprovação na Assembléia Nacional, mas depois de alguma celeuma deixaram que se votasse. Os Ortega apostavam que a mão de obra miserável da Nicarágua lhes permitiria ganhar a concorrência com a Costa Rica na atração de investimentos estrangeiros (tal qual sucedia nos tempos de Somoza, uma das razões par que a burguesia costarriquenha desse apoio ao sandinismo naquela época).

Barganhando a proteção ao corrupto ex-presidente Alemán, o sandinismo conseguiu a conservação de uma importante quota de poder na Assembléia Nacional, no aparato judiciário e nas prefeituras. Agora que está no governo, recorrendo às piores táticas (desde a anulação de alguns partidos oposicionistas até os ataques com gangues durante as campanhas eleitorais) defende um regime que tenta descarregar a crise sobre as já empobrecidas e sofridas massas nicaraguenses.

No próximo ascenso revolucionário, as massas operárias e populares da Nicarágua terão que romper definitivamente com a direção sandinista e não vacilar na hora da expropriação dos burgueses sandinistas. Os marxistas revolucionários da Liga Internacional dos Trabalhadores (LIT-QI) trabalhamos para construir o partido revolucionário que dirija este processo.

Notas:
1 Gallo pinto: prato da culinária nicaraguense considerado um símbolo nacional, composto de arroz, feijão e pimenta. A cesta básica continha, ainda, açúcar, daí o nome de gallo pinto azucarado


A tragédia da Revolução Chinesa de 1925-1927 - John Chan

Publicado originalmente em inglês no WSWS em 5 de janeiro de 2009. [traduzido por movimentonn.org]. Extraído do site: http://www.wsws.org/pt/2009/feb2009/port-f06.shtml Palestra realizada na escola de verão do Socialist Equality Party [SEP - Partido da Igualdade Socialista] em Ann Arbor, Michigan, em agosto de 2007.


A ascensão e queda da Segunda Revolução Chinesa de 1925-1927 foi um dos mais significativos eventos politicos na história do século XX. Essa revolução fracassada terminou com a morte de milhares de trabalhadores comunistas e a destruição total do Partido Comunista Chinês (PCC) como movimento de massas organizado da classe trabalhadora. Não se pode compreender os problemas fundamentais da história moderna chinesa - e em particular o da natureza do regime maoísta estabelecido em 1949 - sem compreender as lições de 1925-27.

Em 1930, Trotsky fez o seguinte apelo: "Um estudo da revolução chinesa é assunto de enorme importância e urgência para todo comunista e trabalhador avançado. Não é possível falar seriamente sobre a luta internacinal do proletariado pelo poder sem o estudo, pela vanguarda proletária, dos eventos fundamentais, forças-motrizes e métodos estratégicos da revolução chinesa. Não é possível compreender o que é o dia sem compreender o que é a noite; não é possível compreender o que é o verão sem haver experimentado o inverno. Da mesma maneira, não é possível compreender o significado dos métodos do levante de outubro sem um estudo da catástrofe chinesa" (Leon Trotsky on China, Monad Press, Nova Iorque, 1978, p. 475).

A perspectiva da revolução chinesa estava no coração da luta de Trotsky contra a burocracia stalinista. Nesta luta, sua teoria da Revolução Permanente foi submetida a um gigantesco teste - pela segunda vez. Com o apoio do aparato burocrático soviético, Stalin prevaleceu, levando à traição de uma das mais promissoras oportunidades revolucionárias desde 1917. A derrota na China foi um golpe decisivo contra a Oposição de Esquerda. Ao final de 1927, Trotsky foi expulso do Partido Comunista da União Soviética e, em seguida, da URSS.

Esta palestra examinará e destacará o papel central da direção revolucionária, em direta oposição às análises da escola pós-soviética de falsificação. Os métodos e argumentos desenvolvidos por dois membros dessa tendência, os historiadores britânicos Ian Thatcher e Geoffrey Swain, já foram minuciosamente expostos e refutados por David North em seu trabalho recente, Leon Trotsky & the Post-Soviet School of Historical Falsification [Leon Trotsky & a Escola Pós-soviética de Falsificação Histórica] (Mehring Books, Detroit, 2007). As posições desses intelectuais quanto à revolução chinesa merecem nossa atenção.

De acordo com Thatcher - sobre os eventos de 1925-27 - Stalin e Trotsky compartilhavam a mesma posição sobre a "necessidade de uma China socialista". Trata-se da mistura de duas perspectivas diametralmente opostas. Trotsky representava a tendência internacionalista, que reconhecia que a primeira revolução socialista na Rússia atrasada não teve como principal fator condicionante as especificidades nacionais, mas sim as contradições mundiais do capitalismo. A Revolução de Outubro foi apenas o começo de uma revolução socialista mundial nos países capitalistas avançados, assim como nas colônias oprimidas. Trotsky sustentou que o proletariado chinês, assim como a classe trabalhadora russa, estava em posição de tomar o poder porque a burguesia nacional não era mais capaz, na época do imperialismo, de assumir um papel historicamente progressista.

Contrariamente, Stalin ignorou o fato de que as forças produtivas na época imperialista haviam superado os antiquados estados-nação. Ele pensava a opressão imperialista meramente como um obstáculo externo ao ascenso do capitalismo "nacional" chinês e que ainda seria possível seguir a via das revoluções burguesas clássicas da Europa Ocidental e América do Norte. Para permitir que a burguesia chinesa completasse suas tarefas nacional-democráticas, Stalin insistiu que a classe trabalhadora precisava primeiro subordinar-se ao regime burguês do Kuomintang (KMT). Assim, a perspectiva da revolução proletária era adiado por anos, ou até mesmo décadas.

Essas duas concepções opostas produziram políticas muito diferentes. Trotsky exigiu a independência política da classe trabalhadora; Stalin forçou os Comunistas Chineses a se tornarem serviçais do Kuomintang. Trotsky chamou a construção de Sovietes como organismos de poder dos trabalhadores e camponeses; Stalin considerou o próprio KMT um tipo de regime revolucionário democrático. Trotsky avisou os trabalhadores chineses sobre o perigo iminente de ambas as alas de direita e esquerda do KMT. Stalin primeiro capitulou para todo o KMT e, então, depois que Chiang Kai-shek massacrou os trabalhadores de Xangai em abril de 1927, ordenou aos Comunistas que se voltassem à liderança de "esquerda" do KMT, sob Wang Ching-wei, em Wuhan - apenas para vê-los liquidados em um banho de sangue três meses depois.

Após a revolução entrar em um periodo de declínio na segunda metade de 1927, Trotsky convocou uma retirada sistemática para proteger o partido; Stalin ordenou criminosamente que o PCC levasse adiante golpes, o que apenas levou à morte milhares de quadros e à destruição total das já despedaçadas organizações comunistas de trabalhadores nos principais centros populacionais.

Apesar dessas diferenças fundamentais, Thatcher argumenta que ela são completamente irrelevantes diante do trágico fim da Segunda Revolução Chinesa. Afirma ele que, mesmo que o Partido Comunista tivesse abandonado o Kuomintang em 1926, como defendia Trotsky, "não há evidência para sugerir que [o Partido Comunista] obteria maior sucesso em 1927" (Trotsky, Ian D. Thatcher, Routledge, 2003, p. 156).

Para Thatcher, programa revolucionário, perspectiva, direção e tática não têm qualquer influência sobre o desenrolar dos eventos decisivos na história humana.


As origens da Revolução Chinesa

Embora a primeira revolução socialista, a Revolução Russa, tenha ocorrido em outubro de 1917, sua preparação teórica dentro do movimento marxista levou décadas. Na China não houve um desenvolvimento prolongado como o ocorrido na Rússia. Assim como o surgimento da classe trabalhadora chinesa foi produto da direta importação de capital estrangeiro e equipamento industrial para um país semi-colonial atrasado, o desenvolvimento do movimento marxista chinês foi extensão direta da Revolução Russa, pulando por cima de séculos de pensamento social ocidental e de tradição social-democrata. A experiência da Revolução de Outubro foi fundamental para a China, por possuir características muito similares de desenvolvimento histórico e social. Ambos os países lutavam para subjugar o campo e possuíam questões democráticas não resolvidas, com um pequeno, mas rápido, desenvolvimento da classe trabalhadora.

A grande tragédia da revolução chinesa se deu porque a autoridade monumental da Revolução Russa foi utilizada, sob a liderança de Stalin, para defender uma política oportunista, baseada na teoria menchevique dos "dois estágios".

Para um estudo mais detalhado das três concepções da Revolução Russa - a teoria dos "dois estágios", a fórmula de Lenin da "ditadura democrática do proletariado e campesinato" e a teoria da Revolução Permanente de Trotsky - ver a palestra de David North ministrada em 2001, "Towards a reconsideration of Trotsky's legacy and his place in the history of the 20th century" [Para uma reconsideração do legado de Trotsky e seu lugar na história do Séc. XX].

A teoria da Revolução Permanente, afirmada num sentido positivo pela Revolução Russa, também foi afirmada - embora em um sentido trágico e negativo - pelas derrotas sofridas na revolucão chinesa.

A principal questão sobre a revolução chinesa é muito similar à que havia emergido na Rússia. Diante das divisões criadas pelos senhores-guerreiros e potências imperialistas; das reformas agrárias para centenas de milhões de camponeses pobres, famintos por terra e por um fim às barbaridades da exploração semi-feudal, a China enfrentava a tarefa urgente da unificação nacional e da independência. Mas, a burguesia chinesa se provou ainda mais venal que sua contraparte russa - era dependente do imperialismo, incapaz de integrar a nação, organicamente amarrada aos latifundiários e usurários rurais e, assim, impossibilitada de levar adiante a reforma agrária. Acima de tudo, a burguesia chinesa temia profundamente a jovem e combativa classe trabalhadora do país.

Como na Rússia, a ascensão da indústria chinesa dependeu do capital internacional. Entre 1902 e 1914, o investimento estrangeiro na China dobrou. Nos 15 anos seguintes, o capital estrangeiro dobrou novamente, totalizando 3,3 bilhões de dólares e predominando nas principais indústrias chinesas, particularmente a têxtil, a ferroviária e a portuária. Em 1916, havia 1 milhão de trabalhadores industriais na China; em 1922, o número era duas vezes maior. Esses trabalhadores estavam concentrados em uns poucos centros industriais como Xangai e Wuhan. Dezenas de milhões de semi-proletários - artesãos, lojistas, escriturários e os pobres urbanos - compartilhavam aspirações sociais com a classe trabalhadora.

Apesar de fisicamente pequeno - alguns milhões em uma população de 400 milhões - o proletariado chinês era impulsionado pelas contradições mundiais do capitalismo a assumir um papel de vanguarda nas lutas revolucionárias do começo do século XX. O fracasso da primeira revolução chinesa em 1911, sob a liderança de Sun Yat-sen, demonstrou que a burguesia chinesa era absolutamente incapaz de completar suas próprias tarefas históricas.

Sun Yat-sen começou a ganhar apoio na década de 1890, depois que a dinastia Manchu rejeitou os apelos pelo estabelecimento de uma monarquia constitucional. Inspirado pelas revoluções burguesas clássicas da França e América, Sun advogou os "Três Princípios do Povo" - a derrubada do sistema imperial, a instituição de uma república democrática e a nacionalização da terra. Não fez, porém, qualquer tentativa de construir um movimento político de massas e de um modo geral se limitou a atividades conspiratórias: pequenos golpes armados ou ações terroristas contra oficiais dos Manchu.

A assim chamada "revolução" de 1911 significou um simplês peteleco, que derrubou uma estrutura amplamente apodrecida. Financeiramente, o governo imperial estava à beira da falência após décadas de pilhagem pelas potências estrangeiras. Politicamente, a corte dos Manchu estava completamente desacreditada após a anexação pelas potências imperialistas de territórios chineses na forma de colônias, como Hong Kong e Taiwan, ou na forma de "concessões" em cidades portuárias, onde tropas estrangeiras, polícia e sistema legal dominavam o poder político. Em 1900, a dinastia Manchu, moribunda, precisou confiar em tropas estrangeiras para pôr abaixo a Rebelião Boxer - um amplo levante anti-colonial pelos camponeses e pobres urbanos.

Quando a dinastia Manchu finalmente prometeu a reforma constitucional, já era tarde demais. Seções significativas da burguesia, burocracia e exército chineses haviam se voltado na direção de Sun Yat-sen. Em 10 de outubro de 1911, milhares de soldados em Wuchang, na província de Hubei, ensaiaram uma rebelião e proclamaram a república. A revolta rapidamente se espalhou por todas as províncias chinesas, mas a falta de qualquer movimento de massas genuíno deixou intactos os interesses velados. O resultado foi uma "República da China" levemente federada, com Sun ocupando o cargo de presidente provisório.

Essa nova república, porém, estava de fato nas mãos do velho aparato burocrático-militar, que se opunha a qualquer tentativa de dar terras ao campesinato. Sun rapidamente se comprometeu com essas forças reacionárias, querendo apenas reconhecimento internacional para a república chinesa. Mas as potências imperialistas exigiram que Sun entregasse a presidência ao último primeiro ministro da dinastia Manchu, Yuan Shikai, considerado pelas grandes potências um governante mais confiável - alguém com quem se podia contar para manter a China no estado de país semi-colonial. Depois que Yuan se tornou presidente, deu as costas a Sun e seu KMT, ou partido Nacionalista, jogou fora a constituição e dissolveu o parlamento. Em 1915, com o apoio do Japão, Yuan se autoproclamou imperador. Sua curta tentativa de restaurar o sistema imperial apenas terminou com revoltas dirigidas por generais do sul da China que apoiavam a república. Yuan foi forçado a renunciar e morreu pouco tempo depois.

Embora a república chinesa ainda existisse nominalmente, foi fragmentada por senhores-guerreiros rivais, cada um apoiado por diferentes potências imperialistas. O KMT sobreviveu no sul da China, em Guangzhou (Cantão), com o suporte de generais locais. Sun apelou aos senhores guerreiros menores, pedindo que desafiassem os maiores e unificassem o país, mas ninguém respondeu a seu chamado.


O Movimento de 4 de Março e a Revolução Russa

O fracasso de 1911 impactou profundamente certas camadas da intelectualidade chinesa. Chen Duxiu, fundador do Partido Comunista e do movimento trotskista chinês, foi pioneiro na busca por novos horizontes intelectuais. Essa foi uma era extraordinária, que viu a rápida politização de muitos jovens, que começaram a participar ativamente em lutas ideológicas, culturais e políticas de enorme amplitude, impulsionadas pela ambição de mudar o curso da história. A revista de Chen, a Nova Juventude, mais tarde se tornou o órgão oficial do Partido Comunista. Chen atraiu um grande número de estudantes, que o viam como um guerreiro incorruptível contra a influência reacionária do confucianismo. Assumiu a iniciativa radical de introduzir a literatura e a filosofia ocidentais a esses jovens chineses.

Os motores políticos decisivos vieram dos acontecimentos internacionais. A deflagração da Primeira Guerra Mundial em 1914, apesar de ter se dado principalmente na Europa, teve um grande impacto sobre a China, assim como a vitória da Revolução Russa em 1917, com suas implicações monumentais. Li Dazhao, co-fundador do PCC, foi o primeiro a introduzir o marxismo na China. Um dos primeiros ensaios marxistas da China foi seu "The Victory of Bolshevism" [A Vitória do Bolchevismo], escrito em 1918 e largamente inspirado na obra de Trotsky, A Guerra e a Internacional.

Li argumentou que a Primeira Guerra Mundial marcou o início da "luta de classes... Entre as massas proletárias do mundo e os capitalistas do mundo".A revolução bolchevique era apenas o primeiro passo na "destruição das fronteiras nacionais atualmente existentes, que são barreiras ao socialismo, e da destruição do sistema de produção capitalista de monopólio e lucro". Li saudou a revolução de outubro como "a nova maré do século XX", o que logo foi confirmado pelos eventos na China. (Li Ta-chao and the Origins of Chinese Marxism, Maurice Meisner, Harvard University Press, 1967, p. 68)

Sob pressão das potências aliadas, a China declarou guerra contra a Alemanha e, formalmente, foi parte do campo vitorioso. Mas, na barganha da Conferência de Versalhes em maio de 1919, as potências imperialistas novamente pisaram na soberania chinesa, entregando ao Japão as concessões coloniais alemãs em Shandong.

As ilusões populares na "democracia" anglo-americana foram absolutamente despedaçadas. Houve um reconhecimento geral entre estudantes e trabalhadores de que os campos rivais na Primeira Guerra lutaram pela dominação global e pelos interesses de suas próprias classes capitalistas. Independentemente de quem ganhasse, a exploração imperialista da China e outros países coloniais não cessaria. A vitória da classe trabalhadora russa, por outro lado, abria uma nova perspectiva para as massas chinesas.

A fundação do PCC em julho de 1921, sob a liderança de Chen Duxiu e Li Dazhao, foi baseada no socialismo internacionalista. Apesar de seus números pequenos, o PCC obteve forças de seu programa e do prestígio da Revolução de Outubro, crescendo rapidamente. O PCC prontamente abraçou as táticas elaboradas pelo Segundo e Terceiro congressos da nova Internacional Comunista, ou Comintern, no sentido de lutar pela direção dos movimentos de liberação nacional que emergiam.

No Segundo Congresso, Lenin conclamou os jovens partidos comunistas dos países coloniais à participação ativa nos movimentos nacionais de liberação que surgiam, mas levantou especificamente a "necessidade da luta determinada contra a tentativa de pintar as modas democrático-burguesas de liberação em cores comunistas; a Internacional Comunista precisa apoiar os movimentos democrático-burgueses nacionais em países coloniais e atrasados somente com a condição de que, em todos os países atrasados, os elementos dos futuros partidos proletários, partidos comunistas não apenas em nome, sejam agrupados entre si e educados na apreciação de suas tarefas especiais, ou seja, lutar contra os movimentos democrático-burgueses dentro de suas próprias nações; a Internacional Comunista precisa entrar em uma aliança temporária com a democracia burguesa em países coloniais e atrasados, mas não pode se fundir com ela e precisa sob todas as circunstâncias assegurar a independência do movimento proletário mesmo em sua forma mais rudimentar... (Lenin On the National and Colonial Questions: Three Articles, Foreign Language Press, Pequim, 1975, p. 27).

Com a derrocada da revolução alemã em 1923 e a morte de Lenin em 1924, o eixo político essencial delimitado por Lenin foi abandonado. Em nome da oposição ao "trotskismo", uma seção conservadora da liderança bolchevique encabeçada por Stalin rejeitou as lições básicas de 1917. Em vez de encorajar uma ruptura revolucionária na China, essa direção procurou estabelecer relações com a chamada facção "democrática" da burguesia chinesa, para reverter a pressão do imperialismo britânico e japonês no extremo leste.


Juntando-se ao Kuomintang (KMT)

De início, a política do PCC de formação de uma aliança temporária com o Kuomintang foi baseada na manutenção da independência dos dois partidos, cada um com sua própria organização. Mas, em agosto de 1922, a liderança do Comintern ordenou que os membros do PCC se juntassem, individualmente, ao KMT.

O PCC foi contra tal decisão, mas suas objeções foram suprimidas pela liderança do Comintern sob Zinoviev. Zinoviev justificou a decisão na base de que o liberal-democrático KMT era o "único grupo nacional-revolucionário sério" da China. O movimento independente da classe trabalhadora ainda era fraco, logo, o pequeno PCC deveria entrar no KMT para expandir sua influência.

Muitos anos depois, em novembro de 1937, Trotsky escreveu a Harold Isaacs: "A entrada em si em 1922 não foi um crime, e possivelmente nem mesmo um erro, especialmente no sul, assumindo que o Kuomintang nessa época possuía um número de trabalhadores e o jovem partido Comunista era fraco e composto quase totalmente de intelectuais... Nesse caso, a entrada teria sido um passo episódico na direção de um partido independente, passo análogo à sua entrada no Partido Socialista. A questão é: qual era a finalidade deles ao entrar e qual foi a política subseqüente?" (The Bolsheviks and the Chinese Revolution 1919-1927, Alexander Pantrov, Curzon Press 2000, p. 106).

Enquanto Stalin assumia o controle do Comintern, defendia a entrada do PCC no KMT cada vez mais não como um passo na construção de um partido de massas independente, mas como uma política de longo-prazo, com o objetivo de assegurar uma revolução democrático-burguesa na China. Aos olhos de Stalin, a significância do KMT superava largamente aquela da seção chinesa do Comintern. Em 1917, tal ponto de vista teria sido denunciado pelos bolcheviques como uma capitulação política em favor da burguesia. Mas, agora, Stalin estava impondo sua política sobre a China, afirmando que representava a continuidade do leninismo e a herança da Revolução de Outubro.

Após o Terceiro Congresso do Comintern, o PCC formalmente convocou todos os membros do partido a juntarem-se ao KMT e praticamente abandonou sua própria atividade independente. Quando o Comintern despachou Mikhail Borodin como seu novo delegado para a China, este agiu como um conselheiro para o KMT, que foi reestruturado de cima à baixo segundo linhas organizacionais "bolcheviques". Dez membros líderes do PCC foram colocados no Comitê Executivo Central do KMT, cerca de um quarto do total. Os quadros comunistas frequentemente assumiam aspectos do trabalho do KMT.

O aparato militar do KMT foi produto direto da política do Comintern. Até estabelecer seu "Exército Revolucionário Nacional" em 1924, Sun Yat-sen possuía apenas 150-200 guardas leais - em comparação aos 200.000-300.000 soldados controlados por cada um dos senhores guerreiros no norte. A dependência de Sun quanto aos generais do sul se tornou óbvia em 1922, quando foi forçado a fugir para Xangai após uma tentativa de golpe local. Só então, Sun pediu ajuda à Moscou.

A Academia Militar de Whampoa, em Guangzhou - a base sobre a qual Chiang Kai-shek mais tarde subiu ao poder - foi estabelecida com a assistência de conselheiros soviéticos. Sem a ajuda militar soviética e a habilidade do PCC para mobilizar trabalhadores e camponeses, a construção de um exército do KMT, capaz de derrotar os poderosos senhores guerreiros, seria completamente impensável.


A explosão revolucionária

Um jovem membro do PCC [Partido Comunista Chinês], Peng Shuzi, que havia voltado de Moscou em 1924 e mais tarde se tornaria um líder no movimento trotskista chinês, demandava fortemente, junto a outros membros da ala esquerda do partido, uma política mais crítica em relação ao KMT. Ele se opôs diretamente à linha oficial de apoio à burguesia nacional que, unida por curtos laços aos senhores-guerreiros e potências imperialistas, era hostil à classe trabalhadora e incapaz de liderar a revolução nacional-democrática. Peng argumentava que o proletariado deveria tomar a liderança das lutas anti-coloniais.

Tal disputa polêmica teve um impacto significativo. O PCC reconduziu seu trabalho ao foco de liderar o crescente movimento de massas da classe trabalhadora, colocando em segundo plano suas atividades no KMT. Quando o PCC realizou seu Segundo Congresso Nacional do Trabalho no Primeiro de Maio de 1925, suas organizações representavam 570.000 trabalhadores. Sua influência crescente agitou uma onda de lutas da classe trabalhadora.

Durante a greve das fábricas de tecido controladas pelo Japão em Xangai, um trabalhador comunista foi assassinado a tiros, provocando manifestações anti-imperialistas pela cidade. Em 30 de maio, milhares de estudantes e trabalhadores protestaram em frente a uma delegacia de polícia em Xangai para exigir a liberação dos manifestantes que haviam sido presos. A polícia britânica abriu fogo, matando 12 pessoas e ferindo dezenas.

Aquele evento, que que ficou conhecido como o "Incidente de 30 de Maio", desencadeou um levante sem precedentes da classe trabalhadora, marcando o início da Segunda Revolução Chinesa. Ocorreram cerca de 125 greves envolvendo 400.000 trabalhadores, além de protestos em massa e rebeliões por todo o país. Três semanas depois, em 23 de junho de 1925, quando trabalhadores e estudantes protestavam em Guangzhou (Cantão), a polícia anglo-francesa matou 52 pessoas a tiros. Quando souberam do massacre, trabalhadores de Hong Kong responderam com uma greve geral. Cem mil trabalhadores deixaram Hong Kong e foi declarado um boicote — sob a direção do Comitê de Greve Cantão-Hong Kong — às mercadorias britânicas.

Inicialmente, a luta anti-imperialista envolvia "todo o povo"; não apenas estudantes e trabalhadores, mas também capitalistas chineses. A burguesia chinesa, porém, logo chocou-se com o espírito de luta e o radicalismo da classe trabalhadora. Os empresários chineses em Xangai se retiraram rapidamente, passando à cooperação com as potências imperialistas, contra o movimento de greve.

Depois da morte de Sun Yat-sen, em março de 1925, a hostilidade da burguesia chinesa contra a classe trabalhadora se expressou claramente na ascensão política de Chiang Kai-shek. Filho de um comerciante rico, Chiang tinha ligações com banqueiros e comerciantes de Xangai. Diferente de Sun, Chiang Kai-shek não era um intelectual. Havia passado seus anos de juventude entre os gangsters, assassinos e ladrões de Xangai, que mais tarde se tornariam sua tropa de choque contra a classe trabalhadora da cidade.

A radicalização da classe trabalhadora forçou a direção do PCC a repensar suas relações com o KMT. Em outubro de 1925, Chen Duxiu novamente sugeriu que o PCC saísse do KMT e cooperasse apenas externamente, mas o Comintern rejeitou a proposta. A clique stalinista queria usar a morte de Sun para colocar líderes de "esquerda" ou pró-Moscou, como Wang Ching-wei , assim como Chiang Kai-shek na direção central do KMT.


A política menchevique de Stalin

Ninguém questionava que as tarefas imediatas da revolução chinesa eram "nacional-democráticas" ou burguesas em caráter. O problema era: que classe lideraria a revolução — a burguesia ou o proletariado — e em que direção — rumo a uma república democrática da burguesia ou a um Estado dos trabalhadores?

Depois do levante da classe trabalhadora em 1925, Stalin voltou-se à esquerda, mas baseou-se sistematicamente numa política claramente menchevique. Em oposição às lições de 1917 na Rússia, ele sustentou a ilusão de que o partido burguês KMT era um "partido dos trabalhadores e camponeses", capaz de dirigir a luta revolucionária. E ainda foi adiante, argumentando que, em países como a China, a opressão imperialista unia todas as forças "progressistas" — a burguesia nacional, a intelligentsia pequeno-burguesa, o campesinato e a classe trabalhadora — num "bloco de quatro classes".

Como os mencheviques russos, Stalin afirmava que a direção da "revolução anti-imperialista" pertencia naturalmente à burguesia nacional chinesa. A China era atrasada demais para construir o socialismo, defendia ele, de modo que a revolução proletária deveria ser adiada para o futuro indefinido — como um segundo estágio da revolução. No primeiro estágio, a tarefa dos comunistas chineses era empurrar o KMT para a esquerda, transformando-o numa "ditadura democrática do proletariado e campesinato". Na prática, a perspectiva de Stalin implicava que os comunistas chineses eram responsáveis por ajudar o KMT a chegar ao poder e a suprimir a luta da classe trabalhadora pelo poder.

O próprio fato de que o KMT era compelido a aliar-se ao PCC refletia a fraqueza orgânica da burguesia. O oportunismo de Stalin permitiu que os líderes do KMT aparecessem às massas como "revolucionários" e "socialistas" — oportunidade que agarraram com as duas mãos. O Kuomintang foi formalmente incluído na Sexta Plenária do Comitê Executivo da Internacional Comunista de fevereiro-março de 1926. Stalin considerou-o seção "simpatizante" do Comintern, e pôs Chiang Kai-shek no presidium do Comintern, com o cargo de presidente "honorário".

Os líderes do KMT apareciam como revolucionários precisamente por causa da força do apelo do PCC. Em 1920, o PCC consistia principalmente de um pequeno círculo de intelectuais; em 1927, o partido dirigiu um movimento de quase 3 milhões de trabalhadores da indústria, mineração e ferrovias — a vasta maioria do pequeno mas concentrado proletariado chinês. Em 1922, o PCC possuía apenas 130 membros. Cinco anos depois, o partido, incluindo seu movimento de juventude, a Liga da Juventude Comunista, contabilizava 100.000 membros. Em 1923, quando o PCC começou a construir associações camponesas, reunia somente 100.000 camponeses de Cantão; em junho de 1927, o número alcançava 13 milhões nas províncias de Hunan e Hubei. Além disso, dezenas de milhares de soldados eram simpáticos ao movimento revolucionário. Mas o partido manteve uma política conservadora que tinha como objetivo conter essas massas radicalizadas, para manter a aliança com a burguesia liberal.

A vinculação total do PCC ao KMT efetivada por Stalin deixou o partido totalmente vulnerável à inevitável virada do KMT contra o movimento revolucionário. Em 20 de março de 1926, Chiang repentinamente iniciou um golpe para aumentar seu domínio sobre o KMT. Não só passou por cima da chamada liderança de "esquerda" do KMT, como também prendeu 50 comunistas proeminentes e colocou todos os conselheiros soviéticos em prisão domiciliar. Desarmou o Comitê de Greve Cantão-Hong Kong e se estabeleceu, efetivamente, como ditador militar em Cantão.

Após uma reação inicial de choque e confusão, Stalin rapidamente decidiu manter a mesma política. Novamente se opôs a uma iniciativa do PCC de deixar o KMT. Nos jornais dos Soviets e do Comintern, todas as notícias sobre o golpe de Chiang foram encobertas ou desconsideradas como propaganda imperialista. Stalin aceitou as medidas hostis de Chiang, restringindo o número de membros do PCC em qualquer comitê do KMT a não mais que um terço da composição total.

Mesmo quando Chiang já demonstrava abertamente suas intenções contra-revolucionárias, Stalin apoiou com entusiasmo seu plano militar de lançamento da Expedição do Norte contra os senhores-guerreiros. Em nome da assistência aos esforços de guerra do KMT, a greve de 16 meses de Cantão-Hong Kong, que fez tremer o imperialismo britânico, foi encerrada. Qualquer luta independente por trabalhadores e camponeses foi banida.

Trotsky lançou um combate sistemático contra a política de Stalin para a China. Em setembro de 1926, Trotsky concluiu que o PCC deveria imediatamente deixar o KMT. "O movimento para a esquerda das massas de trabalhadores chineses," disse ele, "é um fato tão certo quando o movimento para a direita da burguesia chinesa. À medida em que o Kuomintang baseou-se na união política e organizacional entre trabalhadores e burguesia, agora ele é despedaçado pelas tendências centrífugas da luta de classes. Não existem fórmulas políticas mágicas ou recursos táticos inteligentes para contrabalançar essas tendências, e nem poderia haver.

"A participação do PCC no Kuomintang foi perfeitamente correta no período em que era apenas uma sociedade de propaganda e se preparava para a futura atividade política independente e que, ao mesmo tempo, procurava tomar parte na luta de libertação nacional em andamento. Os últimos dois anos viram a ascensão de uma poderosa onda de greves entre os trabalhadores chineses... Este fato, por si só, confronta o PCC com a tarefa de desenvolver-se, saindo da classe preparatória em que se encontra e avançando para um patamar mais elevado. Sua tarefa política imediata precisa ser lutar pela liderança direta e independente da classe trabalhadora que despertou — não, é claro, para removê-la do quadro da luta nacional-revolucionária, mas para assegurá-la tanto o papel de combatente mais resoluta, quanto o de líder política hegemônica, no contexto da luta das massas chinesas" (Leon Trotsky on China, Monad Press, Nova Iorque, 1978, p. 114).

A análise de Trotsky foi confirmada pelos acontecimentos. Ao invés de desenvolver uma perspectiva proletária independente, o PCC devotou sua energia ao apoio da Expedição do Norte contra os senhores-guerreiros, convocando trabalhadores e camponeses a auxiliar o Exército Revolucionário Nacional. As massas forneciam informações de inteligência e estabeleciam unidades de guerrilha para cortar os fluxos de transporte e suprimento dos oponentes. Sem esse suporte popular e o excepcional heroísmo dos comandantes comunistas do exército, Chiang Kai-shek não teria alcançado o vale do Rio Yang-Tsé da maneira que o fez, em menos de quatro meses.

As tensões de classe, porém, estavam prontas para explodir, pois as vitórias militares do KMT sobre os senhores-guerreiros eram vistas pelas massas chinesas como o mero início da revolução. Quando as forças expedicionárias liberaram Hunan, por exemplo, quatro milhões de fazendeiros encheram as associações camponesas em apenas cinco meses e 500.000 trabalhadores entraram para a Associação Geral do Trabalho, liderada pelo PCC. EM Wuhan, um grande centro industrial no vale de Yang-Tsé, 300.000 trabalhadores formaram a Associação Geral de Hubei, sob a direção do PCC. Além disso, o movimento de massas se radicalizava rapidamente. Trabalhadores tomaram espontaneamente o controle das concessões britânicas em Hankou. O movimento camponês passou das exigências de aluguéis menores à luta armada com o objetivo de expulsar os latifundiários.


Abril de 1927: o golpe de Xangai

Conforme as massas se levantavam, Chiang Kai-shek caminhava rapidamente em direção ao campo da burguesia, grandes comerciantes e representantes do imperialismo no leste chinês, buscando suprimir a revolução. Moscou afirmava que o curso para a direita de Chiang podia ser contrabalançado pela reconstrução da "esquerda" em torno de Wang Ching-wei na liderança central do KMT, agora sediada em Wuhan. No entanto, as diferenças entre a esquerda e a direita do KMT eram puramente táticas. Ambas concordavam em estabelecer um governo "nacional" burguês. Sua diferenças eram, basicamente, sobre questões de estratégia militar, divisão do poder e, principalemente, a respeito de quando e como romper a aliança com o Partido Comunista.

Apesar das afirmativas vazias de Chiang a Stalin de que não estabeleceria a dominação burguesa na China, tal posição era cada vez mais inevitável, à medida em que os exércitos do KMT se aproximavam de Xangai — o centro econômico do país com uma grande e radicalizada classe trabalhadora.

O PCC procurou tomar o controle da cidade antes das tropas do KMT, mas a política de Stalin de evitar um conflito "prematuro" com Chiang Kai-shek e manter o "bloco de quatro classes" abalou e estrangulou essa iniciativa. Os trabalhadores de Xangai tomaram o poder apenas para presenteá-lo à burguesia e depois enfrentar a fúria das gangues assassinas de ladrões controladas por Chiang.

Sob a pressão das lutas de massas em ascenso, a direção do PCC lançou um chamado pela quebra da barreira entre as tarefas nacional-democráticas e a revolução socialista. O partido convocou a classe trabalhadora a alcançar a revolução socialista "imediatamente", "concentrando as ferrovias, portos, minas e grandes indústrias sob o controle do estado e fazendo a transição em direção ao socialismo" (History of Sino-Soviet Relations 1917-1991, Shen Zhihua, Xinhua Press, p. 31).

Hostil a qualquer tentativa do PCC de violar sua teoria dos "dois estágios", Stalin fez retroceder a iniciativa revolucionária na segunda metade de março de 1927, emitindo as seguintes ordens:

1. Nenhuma tomada de controle armada das concessões estrangeiras em Xangai, para evitar uma intervenção imperialista;

2. Manobrar entre as alas esquerda e direita do KMT, evitar o confronto com o exército e preservar as forças do PCC;

3. O PCC deve preparar-se para as lutas armadas, mas precisa esconder suas armas por hora, uma vez que a correlação de forças é desfavorável à classe trabalhadora.

Essas diretivas serviram para transformar o que era uma situação revolucionária excepcionalmente favorável num desastre mortal. Em 21 de março de 1927, o PCC organizou uma insurreição armada, apoiada por uma greve geral de 800.000 trabalhadores de Xangai. A classe trabalhadora esmagou as forças dos senhores-guerreiros e tomou o controle da cidade, mas não das concessões estrangeiras. O P,cc porém, foi impedido pela política de Stalin de estabelecer um governo dos trabalhadores, e formou em seu lugar um governo "provisório" que incluía representantes da burguesia. A principal tarefa dessa governo "provisório" não era levar adiante os interesses dos trabalhadores, mas dar as boas vindas a Chiang Kai-shek e suas tropas.

Chiang Kai-shek, deliberadamente, permaneceu fora de Xangai por semanas para que os trabalhadores se esgotassem nas batalhas contra os senhores guerreiros, enquanto planejava seu golpe em cooperação com a burguesia, gangsters de Xangai e as potências imperialistas. O complô de Chiang não era segredo para a direção do P,cc que concluiu que a classe trabalhadora de Xangai precisava se armar e voltar-se aos soldados simpáticos dentro dos Segundo e Sexto exércitos do KMT.

Em 31 de março, porém, o Comintern, alinhado com a prescrição de Stalin de evitar o conflito "prematuro", enviou um telegrama a Xangai ordenando que o PCC instruísse milhares de trabalhadores a esconder suas armas. Um líder do P,cc Luo Yinong, denunciou raivosamente a ordem como uma "política de suicídio". Ainda assim, o PCC foi compelido a obedecer.

Trotsky e a Oposição de Esquerda enfaticamente alertaram sobre os perigos e chamaram a construção de Soviets como os necessários órgãos independentes de poder das massas revolucionárias. Mas, em 5 de abril, num infame discurso para milhares de quadros do partido no Hall das Colunas em Moscou, Stalin insistiu que o PCC precisava manter seu bloco com Chiang.

"Chiang Kai-shek se submete à disciplina. O Kuomintang é um bloco, um tipo de parlamento revolucionário, com a Direita, a Esquerda, e os Comunistas. Por que fazer um golpe? Por que afastar a Direita quando temos a maioria e quando a Direita nos escuta? (...) No presente, precisamos da Direita. Ela tem pessoas capazes, que ainda dirigem o exército e o lideram contra os imperialistas. Chiang Kai-shek não tem talvez qualquer simpatia pela revolução mas ele está liderando o exército e não pode fazer outra coisa senão liderá-lo contra os imperialistas. Além disso, os da Direita têm relações com o General Chang Tso-lin [o senhor-guerreiro manchuriano] e compreendem muito bem como desmoralizá-los e induzi-los a passar para o lado da revolução, com mala e bagagem, sem dar um golpe. Também, eles têm conexões com os comerciantes ricos e podem levantar dinheiro a partir deles. Por isso, precisam ser utilizados até o fim, espremidos como um limão, e então jogados fora" (The Tragedy of the Chinese Revolution, Harold R. Isaacs, Stanford University Press, 1961, p. 162).

Em 12 de abril, apenas uma semana após o discurso de Stalin, Chiang deu um golpe, enviando gangues de ladrões para destruir a Associação Geral do Trabalho em Xangai. No dia seguinte, o PCC convocou uma greve de 100.000 trabalhadores, mas Chiang Kai-shek respondeu com tropas e metralhadoras, massacrando centenas. Durante o reinado do "terror branco" nos meses seguintes, milhares de trabalhadores comunistas foram assassinados não apenas em Xangai mas também em outras cidades sob o controle de Chiang.


A virada para a ala "esquerda" do KMT

Apesar das matanças brutais de Chiang, o PCC manteve consideráveis reservas em Wuhan, um grande centro industrial, assim como no movimento camponês de milhões ao longo do Yang-Tsé. Uma política correta poderia ter derrotado a contra-revolução de Chiang. Stalin, porém, não retirou qualquer conclusão das lições sangrentas de Xangai. Em seu "Questão da Revolução Chinesa", publicado em 21 de abril de 1927, proclamou que sua política havia sido, e continuava a ser, a "única linha correta". O massacre de Chiang, declarou ele, demonstrava apenas que a grande burguesia havia desertado a revolução.

A ala "de esquerda" do KMT ainda representava, segundo Stalin, a pequena-burguesia revolucionária, que lideraria a revolução agrária no "segundo estágio" da revolução. "Significa que, através de uma luta resoluta contra o militarismo e o imperialismo, o Kuomintang revolucionário em Wuhan se tornará de fato o órgão de uma ditadura revolucionária-democrática do proletariado e campesinato..." Ele insistiu então que o PCC deveria manter sua cooperação próxima com a "esquerda" do KMT, e se opôs às exigências de Trotsky e da Oposição de Esquerda pela construção de Soviets e pela independência política do PCC. (On the Opposition, J. V. Stalin, Foreign Language Press, Pequim, 1974, pp. 663-664)

Respondendo às testes de Stalin, Trotsky submeteu a teoria do "bloco de quatro classes" a uma crítica violenta. "É um erro grosseiro pensar que o imperialismo unifica mecanicamente todas as classes da China, externamente... A luta revolucionária contra o imperialismo não enfraquece, mas fortalece a diferenciação política das classes," explicou. "Tudo o que subjuga as massas oprimidas e exploradas inevitavelmente empurra a burguesia nacional num bloco aberto com os imperialistas. A luta de classes entre a burguesia e as massas de trabalhadores e camponeses não é enfraquecida, mas, ao contrário, é aprofundada pela opressão imperialista, colocando a possiblidade da guerra civil em todo conflito sério" (Problems of the Chinese Revolution, Leon Trotsky, New Park Publications, Londres, 1969, p. 5)

Trotsky insistiu que a tarefa mais urgente era estabelecer a independência política do Partido Comunista em relação à "esquerda" do KMT. "Precisamente, sua falta de independência é a fonte de todos os males e de todos os enganos. As teses, em vez de acabarem de uma vez por todas com as práticas de ontem, propõe retê-las 'mais do que nunca'. Mas isso significa que eles querem reter a dependência ideológica, política e organizacional do partido proletário em relação ao partido da pequena burguesia, que inevitavelmente é convertido em instrumento da grande burguesia" (ibid., p. 18).

Em 13 de maio de 1927, Stalin defendeu seu "bloco de quatro classes" perante os estudantes da universidade de Sun Yat-sen, baseada em Moscou, utilizando um método que só pode ser descrito como uma paródia do marxismo. "O Kuomintang não é um partido da pequena burguesia 'comum'. Existem diferentes tipos de partidos da pequena burguesia. Os mencheviques e os socialistas revolucionários na Rússia também eram partidos da pequena burguesia; mas ao mesmo tempo eles eram partidos imperialistas, porque estavam numa aliança militante com os imperialistas franceses e britânicos... pode se dizer que o Kuomintang é um partido imperialista? Obviamente não. O Kuomintang é um partido anti-imperialista, do mesmo modo que a revolução na China é anti-imperialista. A diferença é fundamental" (On the Opposition, J. V. Stalin, Foreign Language Press, Pequim, 1974, p. 671).

A idéia absurda de que Chiang Kai-shek era um "anti-imperialista" porque a revolução chinesa era anti-imperialista foi refutada não apenas por Trotsky, mas pela própria história. A oposição do KMT a uma ou outra das grandes potências não constituía uma oposição ao imperialismo como tal. Os líderes do KMT estavam apenas manobrando entre as potências imperialistas, enquanto exibiam slogans "anti-imperialistas" para confundir as massas. Confrontado com a invasão japonesa das décadas de 1930 e 40, por exemplo, Chiang não hesitou em voltar-se em direção à Grã-Bretanha e aos Estados Unidos. O líder da "esquerda" do KMT, Wang Ching-wei, foi um passo além e se tornou o cabeça do regime-marionete do Japão. Deveria ser gravado na memória de todos que Chiang, que viveu seus últimos dias como o dirigente de uma desprezada ditadura anti-comunista em Taiwan, brindou certa vez à revolução socialista em Moscou, ao lado da direção stalinista.


A derrota em Wuhan

Enquanto Stalin saudava o "centro revolucionário" em Wuhan na Oitava Plenária do Comitê Executivo da Internacional Comunista, um número de comandantes da "esquerda" do KMT, violando a política oficial do partido, já estava em greve contra os comunistas, os sindicatos e as associações de camponeses. Em 17 de maio de 1927, logo antes da plenária, um dos mais sangrentos atos de repressão ocorreu em Changsha, mas nenhuma menção a isso foi feita no encontro. No lugar, Stalin denunciou as exigências da Oposição de Esquerda pela construção de Soviets como entraves à aliança continuada do PCC com a "esquerda" do KMT. "Será que a Oposição compreende que a criação de Soviets de delegados operários e camponeses agora é equivalente à criação de um governo duplo, compartilhado entre os Soviets e o governo de Hankow, e leva necessária e inevitavelmente à luta pela derrubada do governo de Hankow?", defendeu Stálin (A Tragédia da Revolução Chinesa, Harold R. Isaacs, Universidade de Stanford, 1961, p. 241)

A resposta de Trotsky permaneceu não publicada por um ano. Com uma séria advertência sobre o que estava por vir, ele repudiou a política de Stalin e convocou o Comintern a fazer o mesmo. "Nós dizemos aos camponeses chineses: os líderes da Esquerda do Kuomintang da laia de Wang Ching-wei e Companhia irão inevitavelmente trai-los se vocês seguirem os dirigentes em Wuhan em vez de formar seus próprios Soviets independentes... Políticos da laia de Wang Ching-wei, sob condições difíceis, se unirão dez vezes com Chiang Kai-shek contra os trabalhadores e camponeses. Sob tais condições, dois Comunistas em um governo burguês se tornam reféns impotentes, senão uma máscara para a preparação de mais um golpe contra as massas trabalhadoras... A revolução burguesa democrática na China irá adiante e será vitoriosa na forma soviética, ou não será" (Leon Trotsky on China, Monad Press, Nova Iorque, 1978, pp. 234-235, ênfase no original).

Novamente, os avisos de Trotsky se provaram corretos. Após o banho de sangue em Xangai, capitalistas e latifundiários na região de Wuhan perceberam rapidamente o regime de Chiang Kai-shek, buscando apoio. Eles resistiram às greves dos trabalhadores com o fechamento de fábricas e lojas. Organizaram deliberadamente saques de bancos e enviaram sua prata para Xangai. Em áreas rurais, mercantes e agiotas se recusavam a emprestar dinheiro aos camponeses, tornando-os incapazes de comprar sementes para os meses da primavera. As potências imperialistas se juntaram ao programa de sabotagem fechando suas firmas, enquanto especuladores levavam os preços a níveis insuportáveis. Os colapsos econômicos e o crescente movimento de massas aterrorizaram Wang Ching-wei, que demandou que os dois ministros comunistas em seu governo — o da agricultura e o do trabalho — usassem sua influência para aleviar as ações "excessivas" dos camponeses e trabalhadores.

A política oficial do PCC entrava em conflito direto com o movimento de massas. Em muitas áreas rurais, associações de camponeses haviam expulsado os latifundiários e funcionavam como autoridades locais. Em duas grandes cidades, Wuhan e Changsha, a inflação e falências haviam acertado os trabalhadores em cheio, compelindo-os a levantar demandas revolucionárias pelo controle de fábricas e lojas. A reivindicação de Trotsky pela construção de Soviets era muito coerente. Os Soviets não eram, como Stalin argumentava, simplesmente um meio para a direção da insurreição armada, mas veículos democraticamente eleitos através dos quais os trabalhadores, durante o ascenso revolucionário, poderiam começar a reorganização da vida social e econômica e defender seus interesses contra a contra-revolução.

Peng Shuzi explicou mais tarde que os sindicatos e organizações campesinas em Hunan e Hubei tinham uma contagem de membros na casa dos milhões. "Essa era uma grande força de massas organizada. Se o PCC tivesse seguido o conselho de Trotsky na época e confiado nessa grande massa organizada, ao mesmo tempo convocando a organização de soviets dos trabalhadores-camponeses-soldados para se tornarem a organização revolucionária central, e, através desses soviets armados levasse adiante a revolução agrária, dando terra aos camponeses e soldados revolucionários, eles não apenas poderiam ter aglutinado todas as massas pobres de Huan e Hupeh nos soviets, mas também poderiam ter destruído imediatamente as bases dos oficiais reacionários e desestabilizado indiretamente o exército de Chiang. Desse modo, a revolução poderia ter se desenvolvido da destruição das raízes do poder contra-revolucionário e avançado pela estrada da ditadura do proletariado" (Leon Trotsky on China, Monad Press, Nova Iorque, 1978, p. 66, ênfase no original).

Apesar da glorificação estúpida que fazia da "esquerda" do KMT, Stalin também percebeu que sua política estava desmoronando. Em 1 de junho de 1927, emitiu uma ordem ao PCC para que criasse seu próprio exército com 20.000 comunistas e 50.000 trabalhadores e camponeses. Mas revoluções não são suscetíveis ao falatório burocrático. Como Trotsky apontou, as pré-condições para a construção de um exército revolucionário eram a consolidação da autoridade do partido sobre as massas e os meios concretos para cimentar a aliança entre a classe trabalhadora e o campesinato. Rejeitando a construção de Soviets, Stalin impediu que o PCC estabelecesse a base necessária para a criação de seu próprio exército.

Na medida em que se tornava mais óbia a traição iminente de Wang Ching-wei, o líder do PCC Chen Duxiu novamente exigia que o partido se retirasse do KMT. Mas, uma vez mais, o Comintern recusou sua proposição. No início de julho, Chen raivosamente renunciou ao cargo de secretário-geral do partido. Seu sucessor, Chu Quibai, imediatamente demonstrou sua lealdade a Stalin declarando, mesmo nesse momento de vida e morte, que o KMT "está naturalmente na posição de liderança da revolução nacional".

No dia 15 de julho, Wang Ching-wei emitiu uma ordem formal exigindo que todos os comunistas se retirassem do KMT ou enfrentariam punições severas. Como Chiang, foi Wang que espremeu o PCC "como um limão" e então o jogou fora, iniciando outra onda, mais brutal ainda, de repressão aos comunistas e às massas insurgentes.

Segundo relatou um artigo de jornal contemporâneo: "Nos últimos três meses, a reação se espalhou do baixo Yang-Tsé até se tornar dominante em todo o território sob o assim chamado controle nacionalista. Tang Sheng-chih se provou mais eficaz como um comandante de esquadrões de execução do que de exércitos em batalha. Em Hunan seus generais subordinados levaram adiante uma limpeza contra os 'Comunistas' que Chiang Kai-shek mal pode igualar. Os métodos usuais de matar à bala e decapitar foram substituídos por métodos de tortura e mutilação que remetem aos horrores da Idade das Trevas e da Inquisição. Os resultados são impressionantes. As associações campesinas e trabalhistas de Hunan, provavelmente as mais eficientemente organizadas de todo o país, estão completamente esmagadas. Aqueles líderes que não foram queimados em óleo, e os que não foram enterrados vivos ou vagarosamente estrangulados por corda fina, fugiram do país ou estão em esconderijos tão secretos que não podem ser facilmente encontrados..." (The Tragey of the Chinese Revolution, Harold R. Isaacs, Stanford University Press, 1961, p. 272).

Mesmo assim, Stalin insistiu mais uma vez que suas políticas haviam sido corretas e pôs a culpa das derrotas sobre a liderança do P,cc particularmente Chen. Com as críticas da Oposição de Esquerda encontrando uma audiência cada vez maior na classe trabalhadora soviética, Stalin buscou salvar sua reputação mudando de posição repentinamente, saindo do oportunismo e caminhando ao seu exato oposto — o aventureirismo. Tendo sido responsável por duas gigantescas derrotas contra o PCC e as massas chinesas, Stalin ordenou que o partido em frangalhos levasse adiante uma série de insurreições armadas, que já estavam fadada ao fracasso. Em antecipação à sua teoria ultra-esquerdista do "Terceiro Período", elaborada no início da década de 1930, Stalin atribuiu ao proletariado a tarefa imediata de tomar o poder, bem no ponto onde a revolução chinesa estava se retraindo. Como Trotsky explicou, na verdade, era necessário um reagrupamento do PCC e da classe trabalhadora, slogans democráticos defensivos e, acima de tudo, que se chegasse às lições necessárias — a tudo isso Stalin se opôs resolutamente.


A lição do "Soviet" de Cantão

O suspiro final da revolução chinesa — o levante de Cantão em dezembro de 1927 — foi nada menos que criminoso. Foi agendado para coincidir não com um movimento de massas em Cantão, mas com a abertura do XV Congresso do Partido Comunista Soviético. Seu principal propósito era melhorar a reputação da liderança stalinista e barrar as críticas da Oposição de Esquerda. Sem apoio nas massas, a tentativa de criar um governo soviético com milhares de quadros do partido não possuía qualquer possibilidade de ser vitoriosa. Cerca de 5.700 pessoas, muitas delas entre os melhores quadros revolucionários sobreviventes, foram mortas na heróica batalha para defender o "Soviet" de Cantão, que teve curta existência.

A teoria dos Soviets elaborada por Stalin foi finalmente posta à prova. Ao longo da revolução, Stalin havia argumentado que os soviets só deveriam ser criados no último momento, como os meios da organização da insurreição e, principalmente, não antes do estágio "democrático" ter sido completado. Mas, como Trotsky ainda insistia, os soviets eram, na realidade, os meios para trazer amplas camadas do povo trabalhador para a luta política. Eles não poderiam ser impostos de cima, mas emergiam da base do movimento revolucionário, incluindo os comitês de fábrica e de greve. Conforme a crise revolucionária se desenvolvia, os soviets evoluiriam em novos órgãos do poder operario.

Em Cantão, o PCC estabeleceu burocraticamente um organismo chamado "soviet", como meio de executar uma insurreição na cidade. Mas a "tremenda resposta" antecipada por Stalin não se realizou, pois os trabalhadores e camponeses comuns sequer sabiam quem eram seus "delegados" nesse assim chamado soviet. Apenas uma minúscula minoria de trabalhadores apoiava o governo "Soviet" de Cantão", que foi rapidamente despedaçado.

Stalin defendeu que as tarefas do levante de Cantão eram democrático-burguesas. Mas, como apontou Trotsky, mesmo nessa aventura falida, o proletariado foi compleido a tomar a dianteira. Durante sua vida limitada, o PCC foi forçado a tomar o poder sozinho e implementar medidas sociais radicais, incluindo a nacionalização das indústrias e bancos. Como Trotsky declarou, se essas medidas eram "burguesas", então seria difícil imaginar o que seria uma revolução proletária na China. Em outras palavras, mesmo na insurreição de Cantão, a liderança do PCC foi compelida a seguir a lógica da Revolução Permanente, e não a grosseira teoria dos "dois estágios" de Stalin.

O fracasso do levante de Cantão marcou o fim da revolução nos centros urbanos. Os líderes do PCC que não se juntaram à Oposição de Esquerda, como Mao Zedong, fugiram para o campo. Pressionada pela burocracia stalinista a implementar a linha do Comintern do "Terceiro Período" e criar "Soviets", uma nova corrente emergiu no PCC. Dirigida por Mao, essa tendência efetivamente rompeu com as raízes na classe trabalhadora e se baseou inteiramente no campesinato. Para continuar a "luta armada", o PCC criou o "Exército Vermelho", composto principalmente de camponeses, e estabeleceu "Soviets" nas zonas rurais isoladas. No início da década de 1930, o PCC havia praticamente abandonado seu trabalho dentro da classe trabalhadora urbana.

Mao, cuja perspectiva política possuía mais em comum com o populismo camponês do que com o marxismo, emergiu naturalmente como o novo líder dessa tendência. Antes de juntar-se ao Partido Comunista, havia sido profundamente influenciado por uma escola de socialismo utópico, a "Nova Vila", que se inspirou nos Narodniks russos. A Nova Vila promovia o cultivo coletivo, o consumo comunal e o auxílio mútuo entre vilas autônomas como o caminho para o "socialismo". Esse "socialismo rural" refletia, na verdade, não os interesses do proletariado revolucionário, mas a hostilidade do campesinato decadente diante da destruição do cultivo de pequena escala sob o capitalismo.

Mesmo após ter se juntado ao Partido Comunista, Mao não abandonou essa orientação em relação ao campesinato e esteve na ala direita do partido durante os levantes de 1925-1927. Mesmo no ápice do movimento de classe trabalhadora em 1927, Mao continuou a afirmar que o proletariado era um fator insignificante na revolução chinesa. "Se alocarmos dez pontos à realização da revolução democrática, então... Os que vivem nas cidades e as unidades militares representariam apenas três pontos, enquanto os sete pontos restantes seriam dos camponeses..." (Stalin's Failure in China 1924-1927, Conrad Brandt, The Norton Library, Nova Iorque, 1966, p. 109).


As consequências da derrota

Logo após a derrota da revolução chinesa, Trotsky foi expulso do Partido Comunista, submetido a um exílio interno e, depois, expulso da URSS. Os registros de 1925-1927 na China deixam claro que Trotsky e a Oposição de Esquerda estavam bem cientes do que estava em jogo na Revolução Chinesa para a classe trabalhadora internacional. Trotsky estava engajado em uma luta política titânica para transformar a política do Comintern e criar as melhores condições para uma vitória revolucionária. Mostrar-se formalmente correto era o menos importante.

Em sua autobiografia, Minha Vida, escrita durante seu exílio em 1928, Trotsky recordou o que aconteceu na União Soviética depois de Chiang Kai-shek ter afogado em sangue os trabalhadores de Xangai. "Uma onda de excitação tomou conta do partido. A oposição levantou sua cabeça... Muitos camaradas mais jovens pensaram que a patente falência da política de Stalin inevitavelmente adiantaria o triunfo da oposição. Durante os primeiros dias do golpe por Chiang Kai-shek eu fui obrigado a jogar baldes de água fria sobre as cabeças quentes dos meus jovens amigos — alguns não tão jovens. Tentei mostrar a eles que a oposição não poderia ascender com base na derrota da revolução chinesa. O fato de que nossa previsão havia sido provada correta poderia atrair mil, cinco mil, ou mesmo dez mil novos apoiadores. Mas, para os milhões, o significativo não era nossa previsão, mas o fato do esmagamento do proletariado chinês. Após a derrota da revolução alemã em 1923, após a quebra da greve geral inglesa de 1926, o novo desastre na China iria apenas intensificar o desapontamento das massas sobre a revolução internacional. E foi esse mesmo desapontamento que serviu como a principal fonte psicológica para a política nacional-reformista de Stalin" (My Life: An Attempt at an Autobiography, Leon Trotsky, Penguin Books, 1979, pp. 552-553).

Embora Stalin tenha tentado isolar Trotsky do resto do Comintern e do P,cc seus esforços foram apenas parcialmente bem-sucedidos. Um grupo de estudantes chineses na União Soviética caiu na esfera de influência da Oposição de Esquerda e participou de seu protesto em 7 de novembro de 1927, na Praça Vermelha, em meio às celebrações do décimo aniversário da Revolução de Outubro. Ao final de 1928, ao menos 145 estudantes chineses haviam formado organizações trotskistas secretas em Moscou e Leningrado.

Ao mesmo tempo, durante o Sexto Congresso do Comintern, Trotsky escreveu sua famosa crítica ao programa do Comintern. Alguns delegados do P,cc incluindo Wang Fanxi, puderam ler os textos de Trotsky e aceitaram a análise da Oposição de Esquerda. Depois que alguns desses estudantes chineses retornaram à China em 1929, uma seção da liderança do P,cc incluindo Chen Duxiu e Peng Shuzi, voltou-se ao trotskismo e formou a Oposição de Esquerda chinesa.

Na China, o KMT, que havia estendido sua influência explorando os levantes revolucionários de massas, se provou absolutamente incapaz de manter a coesão no país ou de governar "democraticamente". O "terror branco" do Kuomintang durou anos. De abril até dezembro de 1927, foram executados aproximadamente 38.000, e 32.000 foram presos como prisioneiros políticos. De janeiro até agosto de 1928, mais de 27.000 foram sentenciados à morte. Em 1930, o PCC estimou que 140.000 foram assassinados ou morreram em prisões. Em 1931, 38.000 foram executados como inimigos políticos. A Oposição de Esquerda chinesa não só foi caçada pela polícia do KMT, mas também entregue às autoridades pela liderança stalinista do PCC.

As consequências políticas da revolução fracassada se estenderam para muito além das fronteiras da China. Uma vitória teria enorme impacto em toda a Ásia e outros países coloniais. Entre outras coisas, teria dado grande ímpeto à classe trabalhadora japonesa em suas lutas contra o ascenso do militarismo japonês na década de 1930 e o mergulho rumo à guerra mundial.

Enquanto o capitalismo global mergulha mais uma vez em uma crise, enquanto se intensificam os impulsos de militarismo e da guerra, a classe trabalhadora chinesa e internacional somente podem se preparar para os levantes que começam a ser vislumbrados através da assimilação cuidadosa das lições políticas da derrota da Revolução Chinesa.