sexta-feira, 26 de junho de 2009

Burgueses e Proletários - Karl Marx e Friederich Engels

Primeiro capítulo do manifesto comunista extraído de: http://www.marxists.org/portugues/marx/1848/ManifestoDoPartidoComunista/cap1.htm (grifo meu)


A história de todas as sociedades que existiram até aos nossos dias3 é a história da luta de classes.

Homens livres e escravos, patrícios e plebeus, senhores e servos, mestres4 e oficiais, numa palavra: opressores e oprimidos, em oposição constante, travaram uma guerra ininterrupta, ora aberta, ora dissimulada, uma guerra que acaba sempre pela transformação revolucionária de toda a sociedade, ou pela destruição das duas classes beligerantes.

Nas primeiras épocas históricas, constatamos, quase por toda a parte, uma organização completa da sociedade em classes distintas, uma escala gradual de condições sociais: na Roma antiga, encontramos patrícios, cavaleiros plebeus e escravos; na Idade Média, senhores feudais, vassalos, mestres, oficiais e servos, e, além disso, em quase todas estas classes encontramos graduações especiais.

A sociedade burguesa moderna, que saiu das ruínas da sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Apenas substituiu as velhas classes, as velhas condições de opressão, as velhas formas de luta por outras novas.

Entretanto, o caráter distintivo da nossa época, da época da burguesia, é o de ter simplificado os antagonismos de classes. A sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos inimigos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado.

Dos servos da Idade Média nasceram os vilãos livres das primeiras cidades; deste estrato urbano saíram os primeiros elementos da burguesia.

A descoberta da América e a circum-navegação da África ofereceram à burguesia em ascensão um novo campo de atividade. Os mercados das Índias Orientais e da China, a colonização da América, o comércio colonial, a multiplicação dos meios de troca e das mercadorias em geral imprimiram ao comércio, à navegação e à indústria um impulso até então desconhecido e aceleraram com isso o desenvolvimento do elemento revolucionário da sociedade em decomposição.

O antigo modo de exploração feudal ou cooperativo da indústria já não podia satisfazer a procura, que crescia com a abertura de novos mercados. A manufatura tomou o seu lugar. A média burguesia industrial suplantou os mestres das corporações; a divisão do trabalho entre as diferentes corporações deu lugar à divisão do trabalho no seio da mesma oficina.

Mas os mercados cresciam sem cessar: a procura crescia sempre. A própria manufatura torna-se insuficiente. O vapor e a máquina revolucionaram então a produção industrial. A grande indústria moderna suplantou a manufatura: a média burguesia deu lugar aos milionários da indústria, aos chefes de verdadeiros exércitos industriais, aos burgueses modernos.

A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial acelerou prodigiosamente o desenvolvimento da navegação e de todos os meios de transporte terrestre. Este desenvolvimento influiu por sua vez na extensão da indústria; e à medida que a indústria, o comércio, a navegação e os caminhos de ferro se desenvolviam, a burguesia crescia, decuplicando os seus capitais e reelegendo para segundo plano todas as classes ligadas pela Idade Média.

A burguesia moderna, como vimos, é ela mesma o produto de um longo desenvolvimento, de uma série de revoluções no modo de produção e troca.

Cada etapa da evolução percorrida pela burguesia era acompanhada pelo correspondente progresso político5. Estrato oprimido pelo despotismo feudal; associação armada e autônoma na comuna, uns sítios, republica urbana independente, noutros, terceiro estado tributário da monarquia;6 depois, durante o período da manufatura, contrapeso da nobreza nas monarquias feudais ou absolutas e, em geral, pedra angular das grandes monarquias, a burguesia, depois do estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, conquistou finalmente a hegemonia exclusiva do poder político no estado representativo moderno. O governo do estado moderno não é mais do que uma junta que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa.

A burguesia desempenhou na história um papel eminentemente revolucionário.

Onde quer que conquistou o poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patrimoniais e idílicas. Todos os laços complexos e variados que unem o homem feudal aos seus "superiores naturais", esmagou-os sem piedade para não deixar subsistir outro vínculo entre os homens que o frio interesse, as duras exigências do "a contado". Afagou o sagrado êxtase do fervor religioso, o entusiasmo cavalheiresco e o sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do calculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as liberdades tão afetuosamente conquistadas por uma liberdade única e impiedosa: a liberdade do comércio. Numa palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, estabeleceu uma exploração, descarada, direta e brutal.

A burguesia despojou da sua auréola todas as atividades que até ai passavam por veneráveis e dignas de piedoso respeito. Converteu o médico, o jurista, o padre, o poeta, o sábio em assalariados ao seu serviço.

A burguesia rasgou o véu de emocionante sentimentalismo que cobria as relações familiares e reduziu-as a simples relações de dinheiro.

A burguesia revelou como a brutal manifestação de forças na Idade Média, tão admirada pela reação, tinha o seu complemento natural na preguiça mais sórdida. Foi ela que, pela primeira vez, demonstrou o que pode realizar a atividade humana; criou maravilhas que ultrapassam de longe as pirâmides do Egito, os aquedutos romanos, as catedrais góticas, realizou expedições que deixaram na sombra as invasões e as cruzadas.

A burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os instrumentos de produção, e, por conseguinte, as relações de produção, isto é, o conjunto das relações sociais. A conservação do antigo modo de produção era, pelo contrário, a primeira condição de existência de todas as classes industriais anteriores. Um revolução continua na produção, uma incessante comoção de todo o sistema social, uma agitação e uma insegurança constantes distinguem a época burguesa de todas as anteriores.7 Todas as relações sociais estancadas e ferrugentas, com o seu cortejo de concepções e de idéias antigas e veneradas, dissolvem-se; as que as substituem envelhecem antes de se terem podido ossificar. Tudo o que tinha solidez e permanência esfumam-se; tudo o que era sagrado é profano, e os homens, finalmente, vêem-se forçados a encarar as suas condições de existência e as suas relações recíprocas com olhos desiludidos.

Impelida pela necessidade de dar cada vez maior saída aos seus produtos, a burguesia invade o mundo inteiro. Necessita implantar-se por toda a parte, explorar por toda a parte, estabelecer relações por toda a parte.

Pela exploração do mercado mundial, a burguesia deu um caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países. Para grande desespero dos reacionários, retirou à industria a sua base nacional. As velhas industrias nacionais foram e estão continuamente a ser destruídas. São suplantadas por novas indústrias, cuja adoção se torna uma questão de vida ou de morte para todas as nações civilizadas, indústrias que já não empregam matérias-primas indígenas, mas matérias-primas vinda das mais longínquas regiões do mundo, e cujos produtos se consomem não só no próprio país, mas em todas as partes do globo. Em vez das antigas necessidades, satisfeitas com produtos nacionais, surgem necessidades novas, que reclamam para sua satisfação produtos das regiões e climas mais longínquos. Em vez do antigo isolamento das regiões e nações que se bastavam a si mesmas, estabelece-se um intercâmbio universal, uma interdependência universal das nações. E isto refere-se tanto à produção material, como à produção intelectual. A produção intelectual de uma nação converte-se em propriedade comum de todas. A estreiteza e o exclusivismo nacionais tornam-se de dia para dia mais impossíveis; e da multiplicidade das literaturas nacionais e locais nasce uma literatura universal.

Em virtude do rápido aperfeiçoamento dos instrumentos de produção e do constante progresso dos meios de comunicação, a burguesia arrasta na corrente da civilização todas as nações, até as mais bárbaras. Os baixos preços das suas mercadorias constituem a artilharia pesada que derruba todas as muralhas da China e faz capitular os bárbaros mais fanaticamente hostis aos estrangeiros. Sob pena de corte, força todas as nações a adotar o modo burguês de produção; força-as a introduzir a chamada civilização, quer dizer, a tornar-se burguesas. Numa palavra: forja um mundo à sua imagem e semelhança.

A burguesia submeteu o campo ao domínio da cidade. Criou cidades enormes; aumentou prodigiosamente a população das cidades em comparação com a do campo, subtraindo uma grande parte da população ao embrutecimento da vida rural. Do mesmo modo que submeteu o campo à cidade, os países bárbaros e semi-bárbaros aos países civilizados, submeteu os povos de camponeses aos povos de burgueses, o Oriente ao Ocidente.

A burguesia suprime cada vez mais o fracionamento dos meios de produção, da propriedade e da população. Aglomerou a população, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade num pequeno número de mãos. Províncias independentes, ligadas entre si quase unicamente por laços federais, com interesses, leis, governos e tarifas aduaneiras diferentes, foram reunidas numa só nação, com um só governo, uma só lei, um só interesse nacional de classe e uma só linha alfandegária.

A burguesia, com a sua dominação de classe, que conta apenas com um século existência, criou forças produtivas mais abundantes e mais grandiosas que todas as gerações passadas tomadas em conjunto. A domesticação das forças da natureza, as máquinas, a aplicação da química à indústria e à agricultura, a navegação a vapor, os caminhos de ferro, os telégrafos elétricos, o arroteamento de continentes inteiros, a regularização dos rios, populações inteiras brotando da terra - qual dos séculos passados pôde sequer suspeitar que semelhantes forças produtivas dormitassem no seio do trabalho social?

Vimos, pois, que os meios de produção e de troca, sobre cuja base se formou a burguesia, foram criados no interior da sociedade feudal. Ao alcançar um certo grau de desenvolvimento, estes meios de produção e de troca, as condições em que a sociedade feudal produzia e trocava, toda a organização feudal da agricultura e da indústria manufaturaria, numa palavra, as relações feudais de propriedade, deixaram de corresponder às forças produtivas em pleno desenvolvimento. Travavam a produção em vez de a fazer progredir,8 transformaram-se em outras tantas cadeias. Era preciso quebrar essas cadeias e elas foram quebradas.

Em seu lugar estabeleceu-se a livre concorrência, com uma constituição social e política apropriada, com a supremacia econômica e política da burguesia.

Hoje, produz-se diante dos nossos olhos um movimento análogo. As relações burguesas de produção e de troca, as relações burguesas de propriedade, toda esta sociedade burguesa moderna, que fez surgir tão poderosos meios de produção e de troca, assemelha-se ao mago que já não é capaz de dominar as potências infernais que desencadeou. Desde há dezenas de anos, a história da indústria e do comércio não é mais do que a história das forças produtivas modernas contra as atuais relações de produção, contra as relações de produção que condicionam a existência da burguesia e a sua dominação. Basta mencionar as crises comerciais que, com o seu retorno periódico ameaçam, cada vez mais, a existência de toda a sociedade burguesa. Cada crise destrói regularmente não só uma parte considerável dos produtos já criados, mas ainda uma grande parte das próprias forças produtivas já existentes. Durante as crises, abate-se sobre a sociedade uma epidemia que, em qualquer época anterior pareceria absurda - a epidemia da superprodução. A sociedade encontra-se subitamente retrotraída a um estado de barbárie momentânea: dir-se-ia que a fome, que uma guerra devastadora mundial a privaram de todos os meios de subsistência; a indústria e o comércio parecem aniquilados. E tudo isto porquê? Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados meios de vida, demasiada industria, demasiado comércio. As forças produtivas de que dispõe não servem já o desenvolvimento da civilização burguesa e9 das relações de produção burguesas; pelo contrário, tornaram-se demasiado poderosas para estas relações, que constituem um obstáculo ao seu desenvolvimento; e todas as vezes que as forças produtivas sociais vencem este obstáculo, precipitam na desordem toda a sociedade burguesa e ameaçam a existência da propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se demasiado estreitas para conter as riquezas criadas no seu seio. Como é que a burguesia vence estas crises? Por um lado, destruindo pela violência uma grande quantidade de forças produtivas, por outro lado, pela conquista de novos mercados e pela exploração mais intensa dos antigos. A que conduz isto? A preparar crises mais gerais e mais violentas e a diminuir os meios de preveni-las.

As armas de que a burguesia se serviu para derrubar o feudalismo voltaram-se agora contra a própria burguesia.

Mas a burguesia não forjou apenas as armas que a levarão à morte; produziu também os homens que empunharão essas armas: Os operários modernos, os proletários.

À medida que cresce a burguesia, quer dizer, o Capital, desenvolve-se também o proletariado, a classe dos operários modernos, que não vivem senão na condição de encontrarem trabalho e que só o encontram se o seu trabalho aumentar o capital. Estes operários, obrigados a vender-se dia a dia, são uma mercadoria, um artigo de comércio como qualquer outro, sujeito, portanto, a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as flutuações do mercado.

O emprego crescente das máquinas e a divisão do trabalho, fazendo perder ao trabalho do proletário todo o caráter de autonomia, fizeram, consequentemente, que ele perdesse todo o atrativo para o operário. Este converte-se num simples apêndice da máquina e só se lhe exige as remunerações mais simples, mais monótonas e de mais fácil aprendizagem. Portanto, o que custa o operário reduz-se pouco mais ou menos ao custo dos meios de subsistência indispensáveis para viver e perpetuar a sua descendência. Mas o preço do trabalho,10 como o de toda a mercadoria, é igual ao seu custo de produção. Por conseguinte quanto mais fastidioso é o trabalho, mais baixos são os salários. Mais ainda, quanto mais se desenvolvem a maquinaria e a divisão do trabalho, mais aumenta a quantidade de trabalho,11 quer mediante o prolongamento da jornada de trabalho, quer pelo aumento do trabalho exigido num tempo determinado, pela aceleração das cadências das máquinas, etc.

A indústria moderna transformou a pequena oficina do mestre-artesão patriarcal na grande fábrica do capitalista industrial. Massas de operários, comprimidos na fábrica, estão organizados de forma militar. Soldados rasos da industria, estão colocados sob a vigilância de uma hierarquia completa de oficiais e sargentos. Eles não são apenas os escravos da classe burguesa, do Estado burguês, como ainda diariamente, a todas as horas, os escravos da máquina, do contramestre, e sobretudo do próprio burguês fabricante. E este despotismo é tanto mais mesquinho, odioso e exasperante, quanto maior é a fraqueza com que proclama que tem como único fim o lucro.

Quanto menos habilidade e força requer o trabalho manual, quer dizer, quanto maior é o desenvolvimento da industria moderna, maior é a produção em que o trabalho dos homens é suplantado pelo das mulheres e crianças. No que respeita à classe operária, as diferenças de idade e sexo perdem toda a significação social. Não há senão instrumentos de trabalho, cujo custo varia segundo a idade e o sexo.

Uma vez que o operário sofreu a exploração do fabricante e que lhe foi pago o seu salário, converte-se em vitima doutros membros da burguesia: o proprietário, o retalhista, o prestamista, etc.

Pequenos industriais, pequenos comerciantes e rendeiros, artesãos e camponeses, todo o escalão inferior das classes médias de outrora, caem nas fileiras do proletariado; uns porque os seus pequenos capitais não lhes permitem empregar os processos da grande industria e sucumbem na sua concorrência com os grandes capitalistas; outros; porque a sua habilidade técnica se vê depreciada pelos novos métodos de produção. De modo que o proletariado se recruta entre todas as camadas da população.

O proletariado passa por diferentes etapas de desenvolvimento. A sua luta contra a burguesia começa com a sua própria existência.

A princípio, a luta é entabulada por operários isolados, depois, por operários de uma mesma fábrica, mais tarde, pelos operários do mesmo ramo da indústria, numa mesma localidade, contra o burguês que os explora diretamente. Não se contentam com dirigir os seus ataques contra as relações burguesas de produção, e dirigem-se contra os próprios instrumentos de produção:12 destroem as mercadorias estrangeiras que lhes fazem concorrência, quebram as máquinas, incendeiam as fábricas, tentam reconquistar pela força a posição perdida do artesão da Idade Média.

Nesta etapa, os operários formam uma camada disseminada por todo o país e desagregada pela concorrência. Se acontece que os operários se apoiam pela ação da massa, esta ação não é ainda conseqüência da sua própria unidade, mas da unidade da burguesia que, para alcançar os seus próprios fins políticos, tem de pôr em movimento todo o proletariado - e ainda possui, provisoriamente, o poder de o fazer. Durante esta fase, os proletários não combatem, portanto, contra os seus próprios inimigos, mas contra os inimigos dos seu inimigos, quer dizer, contra os vestígios da monarquia absoluta, os proprietários de terra, os burgueses não-industriais e os pequenos burgueses. Todo o movimento histórico se concentra, deste modo, nas mãos da burguesia; toda a vitória alcançada nestas condições é uma vitória da burguesia.

Mas a industria, no seu desenvolvimento, não só aumenta o número de proletários, como os concentra em massas consideráveis; a força dos proletários aumenta e eles adquirem uma maior consciência dessa força. Os interesses e as condições de existência dos proletários igualam-se cada vez mais à medida que a máquina apaga as diferenças e reduz o salário, quase em toda a parte, a um nível igualmente baixo. Como resultado da crescente concorrência dos burgueses entre si e das crises comerciais que daí resultam, os salários tornam-se cada vez mais instáveis; o constante e acelerado aperfeiçoamento da máquina coloca o operário numa situação cada vez mais precária; as colisões individuais entre o operário e o burguês tomam cada vez mais o caráter de colisões entre duas classes. Os operários começam por formar coalizões13 contra os burgueses para a defesa dos seus salários. Chegam a formar associações permanentes para assegurar os meios necessários, na perspectiva de eventuais rebeliões. Aqui e além, a luta rebenta, sob a forma de sublevações.

Por vezes, os operários triunfam; mas é um triunfo efêmero. O verdadeiro resultado das suas lutas é menos o sucesso imediato do que a união crescente dos trabalhadores. Esta união é favorecida pelo crescimento dos meios de comunicação que são criados pela grande indústria e que permitem aos operários de localidades diferentes contatarem entre si. Ora, basta esse contato para que as numerosas lutas locais, que por toda a parte revestem o mesmo caráter, se centralizem numa luta nacional, numa luta de classes. Mas toda a luta de classes é uma luta política, e a união que os burgueses da Idade Média demoraram séculos a estabelecer através dos seus caminhos vicinais, os proletários modernos realizam-na em poucos anos graças aos caminhos de ferro.

Esta organização do proletariado em classe, e portanto em partido político, é sem cessar socavada pela concorrência entre os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mais firme, mais potente. Aproveita as divisões intestinas da burguesia para obrigar a reconhecer por lei alguns interesses da classe operária: por exemplo o bill da jornada de dez horas na Inglaterra.
Em geral, as colisões que se produzem na velha sociedade favorecem de diversas maneiras o desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive num estado de guerra permanente: primeiro, contra a aristocracia, depois, contra aquelas frações da mesma burguesia cujos interesses entram em contradição com o progresso da indústria, e sempre, finalmente, contra a burguesia de todos os países estrangeiros. Em todas estas lutas, vê-se forçada a apelar para o proletariado, a reclamar a sua ajuda e a arrastá-lo assim para o movimento político. Deste modo, a burguesia proporciona aos proletários os elementos da sua própria educação,14 isto é, armas contra ela própria.

Além disso, como acabamos de ver, o progresso da indústria precipita nas fileiras do proletariado camadas inteiras da classe dominante, ou, pelo menos, ameaça-as nas suas condições de existência. Também elas trazem ao proletariado numerosos elementos de educação.15

Finalmente, nos períodos em que a luta de classes se aproxima da hora decisiva, o processo de desintegração da classe dominante, de toda a velha sociedade, adquire um caráter tão violento e tão patente que uma pequena fração da classe dominante renega esta e adere à classe revolucionária, à classe que tem nas mãos o provir. E assim como, outrora, uma parte da nobreza passou para a burguesia, nos nossos dias, um setor da burguesia passa para o proletariado, particularmente esse setor dos ideólogos burgueses que atingiram a compreensão teórica do conjunto do movimento histórico.

De todas as classes que, na hora atual, se opõem à burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária. As outras classes periclitam e perecem com o desenvolvimento da grande indústria; o proletariado, pelo contrário, é o seu produto mais autêntico.

As classes médias - o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês - todas combatem a burguesia porque ela é uma ameaça para a sua existência como classes médias. Não são pois, revolucionárias mas conservadoras. Mais ainda, são reacionárias, já que pretendem fazer andar para trás a roda da história. São revolucionárias unicamente quando têm diante de si a perspectiva da sua passagem iminente ao proletariado: então, elas defendem os seus interesses futuros e não os seus interesses atuais; abandonam o seu próprio ponto de vista para adotar o do proletariado.

O lumpen-proletariado, esse produto passivo da putrefação das camadas mais baixas da velha sociedade, pode por vezes ser arrastado para o movimento por uma revolução proletária; no entanto, as condições de vida dispô-lo-ão antes a vender-se à reação para servir as suas manobras.

As condições de existência da velha sociedade estão já abolidas nas condições de existência do proletariado. O proletariado não tem propriedade; as suas relações com a mulher e com os filhos não têm nada de comum com as da família burguesa; o trabalho industrial moderno, a sujeição do operário ao capital, tanto na Inglaterra como na França, na América do Norte como na Alemanha, despoja o proletariado de todo o caráter nacional. As leis, a moral, a religião são para os seus olhos outros tantos preconceitos burgueses, por detrás dos quais se escondem outros tantos interesses burgueses.

Todas as classes que, no passado, se apoderaram do poder tentavam consolidar a sua situação adquirida submetendo a sociedade às condições do seu modo de apropriação. Os proletários não podem conquistar as forças produtivas sociais, senão abolindo o seu próprio modo de apropriação em vigor, e, por conseguinte, todo o modo de apropriação existente até aos nossos dias. Os proletários não têm nada a salvaguardar; têm que destruir tudo o que até agora vem garantindo e assegurando a propriedade privada existente.

Todos os movimentos históricos foram até agora realizados por minorias ou em proveito de minorias. O movimento proletário é o movimento independente16 da imensa maioria em proveito da imensa maioria. O proletariado, camada inferior da sociedade atual, não pode levantar-se, não pode revoltar-se sem fazer saltar toda a superestrutura das camadas que constituem a sociedade oficial.

A luta do proletariado contra a burguesia, ainda que não seja, pelo seu conteúdo, uma luta nacional, reveste no entanto, inicialmente essa forma. É evidente que o proletariado de cada país tem de acabar, antes de mais, com a sua própria burguesia.

Ao esboçar em traços gerais as fases do desenvolvimento do proletariado, descrevemos a história da guerra civil, mais ou menos oculta, que se desenvolve no seio da sociedade existente, até ao momento em que esta guerra se transforma numa revolução aberta e o proletariado, derrubando pela violência a burguesia, implanta a sua dominação.

Como vimos, todas as sociedades anteriores assentavam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas para oprimir uma classe, é preciso poder garantir-lhe condições de existência que lhe permitam, pelo menos, viver na servidão. O servo, em pleno regime de servidão, conseguiu tornar-se membro da comuna, do mesmo modo que o pequeno burguês conseguiu elevar-se à categoria de burguês, sob o jugo do absolutismo feudal. O operário moderno, pelo contrário, longe de se elevar com o progresso da indústria, desce sempre mais e mais, abaixo mesmo das condições de vida da sua própria classe. O trabalhador cai na miséria, e o pauperismo cresce ainda mais rapidamente do que a produção e a riqueza. É portanto manifesto que a burguesia é incapaz de continuar a desempenhar por mais tempo o papel de classe dominante na sociedade e de impor a esta, como lei reguladora, as condições de existência da sua classe. Já não é capaz de reinar, porque não pode assegurar ao escravo a existência, nem sequer dentro dos limites da escravidão, porque é obrigada a deixa-lo decair até ao ponto de ter que o manter, em vez de ter que ser mantida por ele. A sociedade já não pode viver sob a sua dominação, o que equivale a dizer que a existência da burguesia já não é compatível com a sociedade.

A condição essencial da existência e da dominação da classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares,17 a formação e o crescimento do Capital. A condição de existência do Capital é o trabalho assalariado. O trabalho assalariado assenta exclusivamente na concorrência dos operários entre si. O progresso da indústria, de que a burguesia, incapaz de se lhe opor, é agente involuntário, substitui o isolamento dos operários, resultante da concorrência, pela sua união revolucionária mediante a associação. Assim, o desenvolvimento da grande indústria mina sob os pés da burguesia as bases sobre as quais ela estabeleceu o sistema de produção e de apropriação. A burguesia produz, antes de mais, os seus próprios coveiros. A sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis.

Notas

1. O Manifesto do Partido Comunista é um dos mais importantes documentos-programa do comunismo científico. "Este breve folheto tem o valor de um volume completo: o seu espírito inspira e guia, até aos nossos dias, todo o proletariado organizado e combatente do mundo civilizado" (Lênin). O Manifesto, como programa redigido entre Dezembro de 1847 e Janeiro de 1848 por Karl Marx e Friedrich Engels para a Liga do Comunistas, apareceu pela primeira vez em Londres, em Fevereiro de 1848, pelo Deutsche Londoner Zeitung, órgão democrático dos emigrantes alemães, e depois reeditado em Londres, no mesmo ano, sob a forma de uma brochura de 30 páginas. Nesta ocasião, suprimiram-se certos erros de impressão da primeira edição e reviu-se a pontuação. Esta edição serviu de base às edições seguintes autorizadas por Marx e Engels. O Manifesto foi traduzido em 1848 em várias línguas européias (francês, polaco, italiano, dinamarquês, flamengo, e sueco). Os nomes dos autores foram mencionados pela primeira vez no prefácio do editor escrito por Georg J. Harney para a primeira tradução inglesa do Manifesto, que surgiu em 1850 no jornal dos Cartistas The Red Republican.

2. Entende-se por burguesia a classe dos capitalistas modernos, proprietários dos meios de produção social, que empregam o trabalho assalariado. Entende-se por proletário a classe dos operários assalariados modernos que, privados dos meios de produção próprios, se vêm obrigados a vender a sua força de trabalho para poderem subsistir. (Nota de Engels para a edição inglesa de 1888).

3. Ou mais exatamente a história escrita. Em 1847, a história da organização social que precedeu toda a história escrita, a pré-história, era quase desconhecida. Posteriormente, Haxthausen descobriu na Rússia a propriedade comum da terra. Maurer demonstrou que esta foi a base social da qual partiram historicamente todas as tribos alemãs, e foi-se descobrindo pouco a pouco que a comunidade rural, com posse coletiva da terra, foi a forma primitiva da sociedade, desde as Índias até à Irlanda. Finalmente, a estrutura desta sociedade comunista primitiva foi posta a claro, no que tem de típico, com a descoberta de Morgan que fez conhecer a verdadeira natureza da gens e o seu lugar na tribo. Com a dissolução destas comunidades primitivas começa a divisão da sociedade em classes distintas, e finalmente antagônicas. Eu tentei analisar este processo de dissolução na obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, 2ª edição, Stuttgart, 1886. (Nota de Engels para a edição inglesa de 1888. A última frase desta nota foi omitida na edição alemã de 1890)

4. Zunftburger, isto é, membro de pleno direito de uma corporação, mestre da mesma, e não seu dirigente. (Nota de Engels para a edição inglesa de 1888)

5. Na edição de 1888, revista por Engels, às palavras "êxito político" foi acrescentado "desta classe".

6. Na edição de 1888, às palavras "república urbana independente" foi acrescentado "(como na Itália e na Alemanha)", e às palavras "terceiro estado tributário da monarquia" as palavras "como na França".

7. Na edição alemã de 1890, em vez de "anteriores" diz-se "outras".

8. Na edição inglesa de 1888, esta frase foi omitida.

9. Na edição alemã de 1872 e nas edições alemãs posteriores de 1883 e de 1890 as palavras "da civilização burguesa e" foram omitidas.

10. Nos seus escritos posteriores, Marx e Engels, em vez de "valor de trabalho" e "preço de trabalho" empregaram termos mais precisos, aplicados por Marx: "valor da força de trabalho", "preço da força de trabalho".

11. Na edição inglesa de 1888, em vez de "quantidade de trabalho" diz-se "dureza do trabalho".

12. Na edição inglesa de 1888, em vez desta frase diz-se "Eles dirigem os seus ataques não contra as relações burguesas de produção, mas contra os próprios instrumentos de produção."

13. Na edição inglesa de 1888, depois da palavra "coalizações", foi acrescentado "(trade-unions)".

14. Na edição inglesa de 1888, em vez de "elementos da sua própria" diz-se "elementos da sua própria educação política e geral".

15. Na edição inglesa de 1888, em vez de "elementos de educação" diz-se "elementos de ilustração e progresso".

16. Na edição inglesa de 1888, às palavras "o movimento independente" foi acrescentado "e consciente".

17. Não se trata aqui da Restauração inglesa de 1660-1689, mas da Restauração francesa de 1814-1830. (Nota de Engels para a edição inglesa de 1888).


quarta-feira, 17 de junho de 2009

A Comuna de Paris e a teoria da revolução em Marx - Valério Arcary


A Comuna de Paris e a teoria da revolução em Marx:Do balanço na "Guerra civil em França" às conclusões de Engels no "Testamento" de 1895

VALÉRIO ARCARY

Em 1895, pouco antes de sua morte, Engels reuniu sob o título de "As lutas de classe em França" os artigos que Marx tinha redigido sobre a revolução francesa de 1848, e escreveu a famosa Introdução que ficou conhecida como o seu testamento político: um texto que associa um balanço de 1848 ao balanço da derrota da Comuna de Paris e se encerra com uma reflexão sobre as possibilidades e perigos da experiência de cinco anos de trabalho e atividade legal do SPD alemão. Nele, Engels retoma as apreciações críticas que Marx tinha formulado no calor dos acontecimentos da Comuna sobre os problemas da estratégia de luta pelo poder e apresenta algumas hipóteses novas.

A comemoração dos 130 anos da Comuna nos convida a refletir sobre o seu significado histórico e sobre as lições que a primeira revolução operária que conquistou o poder, ainda que de forma efêmera, nos legou, recuperando as conclusões que Marx e Engels nos deixaram, mas recolocando, também, na perspectiva da História, o tema da atualidade ou vigência do programa da revolução social anti-capitalista na aurora do século XXI. A derrota dramática da Comuna teve, a seu tempo, incontornáveis conseqüências para o movimento operário francês e para a vida da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) - a I Internacional – porque, como sempre, as derrotas históricas não passam impunemente: geram desânimo, desesperança e muita dispersão e confusão. Mas das cinzas do massacre aos Comunnards, ao longo de um intervalo de menos de duas décadas, nasceu e se reorganizou um novo movimento e a corrente internacionalista, animada pela influência das idéias de Marx, viu a sua força política se multiplicar por dezenas de países e o programa da revolução socialista veio a ser assumido pela II Internacional e pelo mais influente partido no seu interior, o SPD alemão.

A restauração capitalista já completada no Leste e na URSS, e o processo essencialmente da mesma natureza que está em curso na China e em Cuba foram, na última década, também, embora em uma outra proporção, uma derrota histórica. Diante da derrota, no entanto, antes do que chorar, é preciso compreender. Neste ensaio retomaremos o caminho que os fundadores do moderno movimento operário percorreram diante da derrota histórica de sua época procurando inspiração para o grande desafio do nosso tempo que ainda está por ser feito: diante da crise, reatualizar o programa que o marxismo precisa apresentar diante das lutas e do novo movimento anti-capitalista que nascerá da reorganização em curso.

Ocorre que um dos maiores perigos da investigação histórica é o anacronismo, sempre anunciado, tantas vezes desprezado. Não é um erro incomum, porque é muito difícil o pesquisador ou o militante se desembaraçarem das idéias do seu tempo: elas penetram o universo de nossa reflexão, às vezes imperceptivelmente, e somos por elas conduzidos, como crianças que brincando no mar, são arrastadas pela força das marés, e se descobrem depois, surpreendidas, muito longe do local que na areia deveria ser o seu ponto de referência. São uma parte inelutável do que nos define. Por isso, a perda do sentido das proporções - que, em investigações históricas, se busca evitar recorrendo às contextualizações e, inseparavelmente, ao método da comparação - é sempre um perigo. A discussão sobre a teoria da revolução em Marx foi sempre, também por essa razão, a força de pressão das ideologias do tempo presente, controversa.

Marx e a defesa da revolução permanente

Há que dizer, em primeiro lugar, que encontramos na teoria da revolução de Marx uma reflexão histórica sobre o modelo da grande revolução francesa que teria revelado que existem tendências internas à dinâmica dos processos revolucionários, que se desenvolvem em permanência, conclusão que se traduzirá no Adresse de 1850 à Liga dos comunistas, na defesa da necessária radicalização ininterrupta da revolução democrática em revolução proletária, isto é, a perspectiva da revolução permanente:

"Mas essas reivindicações não podem satisfazer de nenhum modo ao partido do proletariado. Enquanto os pequenos burgueses democratas querem concluir a revolução o mais rapidamente possível,(...) os nossos interesses e as nossas tarefas consistem em tornar a revolução permanente até que seja eliminada a dominação das classes mais ou menos possuidoras, até que o proletariado conquiste o Poder do Estado, até que a associação dos proletários se desenvolva, não só em um país, mas em todos os países predominantes do mundo, em proporções tais que cesse a competição entre os proletários desses países, e até que pelo menos as forças produtivas decisivas estejam concentradas nas mãos do proletariado. Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova."(grifo nosso)

Existe, entretanto, uma polêmica de interpretação histórica sobre as expectativas que Marx mantinha, quando da redação do Adresse, em relação ao papel que a burguesia poderia ou não cumprir no processo revolucionário então em curso, a última vaga da revolução democrática no velho continente, mas já unida à primeira onda de mobilização proletária independente. A leitura que parece ser mais amplamente documentada e rigorosa nesta, como aliás, em outras controvérsias marxológicas é a de Draper:

"The bourgeoisie refuses "to do its duty". We have seen with what assurance Marx and Engels had predicted that the bourgeoisie had no alternative to carrying through a political revolution that would put it in power and introduce a constitutional-liberal regime. We have seen that they were quite aware of how fainthearted this bourgeoisie was and how much it feared the threat of the proletariat behind it; but this did not yet lead them to conclude that the bourgeoisie might refuse to carry out its historical task. It did suggest to them that the initial task of the proletariat (or ''the people") might be to push the bourgeoisie from behind. But one way or the other, the outcome was going to be "not what the bourgeoisie merely want but rather what they must do. ''It was only in the course of the revolution itself that they found out that the bourgeoisie did not recognize the "must." (grifo nosso)

Ou seja, pelo menos durante os anos da revolução em 1848, alimentavam duas perspectivas que estavam articuladas entre si: (a) a compreensão de que a luta contra o absolutismo e pela democracia só poderia triunfar com métodos revolucionários, isto é, a necessidade de uma revolução pela democracia que é analisada no Adresse, como a ante-sala da revolução proletária, do que se deve concluir um programa de luta por duas revoluções, ainda que com um intervalo abreviado entre ambas; (b) a compreensão de que existia um desafio histórico a ser vencido: a construção da independência política de classe, condição sine qua non, para que a engrenagem de radicalização que, grosso modo, poderia ser qualificada como a "fórmula jacobina", não resulte em um estrangulamento da revolução proletária, ou seja, em um novo thermidor, e ao contrário, garanta a mobilização contínua dos trabalhadores pelas suas reivindicações e antecipe e abrevie o intervalo entre as duas revoluções.

Em 1848-51, Marx ainda tinha expectativas no possível desenlace de uma revolução democrática na Alemanha e, se a burguesia não ocupasse o lugar de força motriz, trabalhava com a hipótese de que a pequena-burguesia a substituísse historicamente. Nesse marco, a hipótese estratégica preferencial ainda era um projeto de revolução por etapas: intuía, no calor do processo, que os tempos históricos da época das revoluções burguesas se esgotavam e que, apesar do que hoje podemos considerar uma superestimação da capacidade do proletariado alemão, haveria que manter prudentes reservas sobre as possibilidades de triunfo prematuro de uma revolução proletária, que não fosse preparada e precedida por uma revolução democrática:

"Desde que uma classe que concentre os interesses revolucionários da sociedade se levante, encontra imediatamente em sua própria situação o conteúdo e o material para a sua atuação revolucionaria: abater os inimigos, tomar as medidas impostas pelas necessidades da luta. As conseqüências dos seus próprios atos a empurram para a frente. Não se entrega a nenhuma investigação teórica sobre sua própria missão. A classe operaria francesa não havia chegado ainda a este ponto; ainda era incapaz de levar a cabo sua própria revolução."(grifo nosso)

Na segunda metade do XIX o marxismo nasce em um intervalo histórico em que a burguesia européia teme o recurso aos métodos revolucionários porque está consciente de que quem semeia ventos colhe tempestades. Mas, por outro lado, a sua ascensão econômico-social lhe permite encontrar outras vias para consolidar o seu domínio sobre o Estado e a sociedade. Nesse sentido, quando as circunstâncias lhe permitiram evitar, como na Alemanha, mergulhar no turbilhão de uma mobilização de massas, não hesitou.

A fórmula semi-etapista de Marx não era, no entanto, uma leitura determinista simples por duas razões fundamentais: (a) porque considerava a possibilidade de que a pequena burguesia viesse a substituir no calor do processo a demissão burguesa; (b) porque sugeria que o intervalo entre as duas revoluções poderia ser abreviado. Foi, todavia, prisioneiro do seu tempo, e sendo conscientes desta armadilha histórica viveu as angústias do presente, como um inexorável dilema:

"Nada peor puede ocurrirle al jefe de un partido extremo que encontrarse obligado a tomar el poder en una época en que el movimiento no está todavía maduro para la clase que representa y para la ejecución de las medidas que exige la dominación de esa clase(...)Lo que puede hacer está en contradicción con toda su actitud anterior, los principios y el interés inmediato de su partido; lo que debe hacer no podría ponerse en práctica. En una palabra, está obligado a representar no a su partido y a su clase, sino a la clase para cuya dominación el movimiento se encuentra precisamente maduro"(grifo nosso)

Uma explicação última para as derrotas de 1848 e da Comuna

Enunciemos a nossa questão: as derrotas de 1848 e da Comuna colocaram ou não em cheque, para Marx e Engels, a definição que reconhecia, pelo menos desde o Manifesto, que uma época de revolução social estava aberta? Porque a concepção de história de Marx o tinha levado à conclusão que seria indispensável, para que um processo de transição pós-capitalista se pudesse conceber como um projeto político plausível para a ação, que tivesse iniciado um período histórico de longa duração de confronto entre revolução proletária e contra-revolução burguesa. Definia esse período, para resumir "brutalmente", como uma época de crise do Capital, em que as forças produtivas encontravam na forma jurídica da propriedade privada a expressão condensada de relações sociais que, de fator de impulso, se tinham tornado em obstáculo para a produção da riqueza social. Nesse sentido, as condições objetivas, no sentido de condições materiais, econômico-sociais, estariam reunidas e maduras nos países mais avançados, já em 1848, para que o proletariado se constituísse em classe politicamente independente na luta pela sua revolução anti-capitalista? Ou, em outras palavras, teriam sido os atrasos subjetivos e não a imaturidade das condições econômico-sociais, as causas sobre as quais repousam a explicação última da derrota das revoluções proletárias do século XIX, ou o inverso?

A resposta a essa questão não é simples: imaturidade subjetiva do sujeito social (hesitações da direção política majoritária da Comuna, por exemplo), ou imaturidade objetiva da agudização das contradições do próprio capitalismo? Nunca é demais lembrar que grandes acontecimentos históricos como a derrota da vaga de revoluções democráticas que se disseminou pela Europa em 1848, ou a fugaz conquista do poder pelo proletariado parisiense em 1871 só podem ser compreendidas e analisadas através da articulação de complexas cadeias de causalidades em que os elementos objetivos e subjetivos se emaranham de forma freqüentemente indivisível. E, no entanto, ainda assim o problema teórico permanece irredutível.

Se quisermos ser dignos do método de investigação histórica de Marx a conclusão inescapável é que o primeiro prognóstico histórico do Manifesto, a defesa de que uma época revolucionária anti-capitalista já se teria precipitado, não se confirmou. A Segunda metade do XIX demonstrou que, se estava esgotada a época histórica das revoluções burguesas, (com a possível exceção da guerra civil nos EUA que poderia, com razão, não só pelo programa, mas sobretudo pelas forças sociais liberadas e pelos métodos, ser interpretada como a segunda revolução democrática americana), a revolução não era o primeiro, e estava muito longe de ser o único caminho para burguesia.

As transições "tardias" encontraram uma alternativa histórica, pelo alto, para abrir um caminho de deslocamento das relações pré-capitalistas e dos privilégios políticos arcaicos, que só pode ser explicado, em última análise, pela vitalidade do crescimento das forças produtivas em expansão, o que, em termos marxistas, caracteriza uma época não revolucionária. Esse foi, por exemplo, o caso da Alemanha, entre outros: as circunstâncias excepcionais da unificação nacional pelas mãos de Bismarck, na seqüência da vitória sobre a aventura bonapartista do II Império, e sobre as ruínas da Comuna de Paris, processo de transição burguesa que Lênin denominou a "via prussiana".

As transições não revolucionárias foram a forma política de um pacto anti-operário e anti-popular das classes proprietárias burguesas e aristocráticas, unidas, apesar dos seus conflitos, pelo temor à revolução. O desenvolvimento proporcionado pela, denominada por alguns, "segunda revolução industrial" (barateamento da produção do aço em altos fornos, eletricidade, motor de combustão interna, indústria química a partir dos derivados do petróleo, etc...) ofereceu as bases materiais para uma aceleração da urbanização que, associada à elevação de salários que a migração de dezenas de milhões de europeus para as Américas, Austrália, etc... também produziu, veio a se traduzir em novas conquistas econômico-sociais para o proletariado como: escola primária pública e gratuita (e laica, na França); direito crescente de voto, de associação sindical e de organização de partidos na legalidade, etc.

Marx e Engels, portanto, em nossa opinião, se equivocaram na apreciação das condições objetivas que determinavam, nos subterrâneos da vida política-social, os rumos dos dois principais processos revolucionários do seu tempo. Mas só a espantosa capacidade de antecipação histórica, o rigor de método que permite prognósticos visionários, unidos a uma audácia teórica que está sempre alerta aos novos desenvolvimentos da realidade, podem explicar que, em meados do XIX, tenham prefigurado alguns dos elementos que serão chaves para compreender a dinâmica interna das revoluções do século XX.

Engels e a polêmica sobre a "via inglesa" no Testamento de 1895: democracia e revolução e a hipótese das "duas ondas"

A mesma questão ressurge (a angústia do revolucionário que vive na contracorrente da época histórica), por um outro ângulo, na famosa e injustiçada Introdução de 1895, em que Engels retoma o balanço de época e a discussão sobre a permanência da mobilização no processo revolucionário. Às vezes interpretado como um texto com cores reformistas, trata-se de um ensaio brilhante de reflexão sobre os tempos históricos, sobre o atraso ou a antecipação das situações no interior das épocas, enfim sobre a complexa dialética da alternância das etapas, as flutuações das relações de força entre as classes, os fluxos e refluxos das conjunturas. Assim, nessa Introdução vale a pena destacar duas reflexões profundamente agudas sobre épocas e situações:

  1. Um balanço de época, recolocando com uma educativa honestidade intelectual, os erros de apreciação sobre as possibilidades que ele e Marx tinham alimentado em relação aos processos revolucionários de 48 e, também situando a Comuna, como uma situação revolucionária no marco de uma época não revolucionária, e estabelecendo, assim, uma referência metodológica para a reflexão sobre a simultaneidade dos tempos históricos descontínuos, desiguais e até de sentidos simétricos:
  2. "A história nos desmentiu, bem como a todos que pensavam de maneira análoga. Ela demonstrou claramente que o estado de desenvolvimento econômico no continente ainda estava muito longe do amadurecimento necessário para a supressão da produção capitalista; demonstrou-o pela revolução econômica que, a partir de 1848, apoderou-se de todo o continente (...)tornando a Alemanha um país industrial de primeira ordem, tudo isso em bases capitalistas, o que significa que essas bases tinham ainda, em 1848, grande capacidade de expansão.(...)."(grifo nosso)

  3. Um balanço da engrenagem da permanência no interior do processo revolucionário ainda inspirada no modelo francês, mas agora com a interrogação, vital, sobre as diferenças que poderiam existir (como uma especulação para o futuro) entre uma dinâmica diferenciada em revoluções de minorias (a burguesa) e revoluções de maioria (proletária):

"Era derrubada uma minoria dominante e outra minoria tomava em suas mãos o timão do Estado e transformava as instituições públicas de acordo com seus interesses(...)Todavia, se abstrairmos o conteúdo concreto de cada caso, a forma comum de todas essas revoluções era serem revoluções de minorias. Mesmo quando a maioria prestava sua colaboração o fazia – consciente ou inconscientemente – a serviço de uma minoria; mas esta, seja pôr isso, seja pela atitude passiva e não resistente da maioria, aparentava representar todo o povo."(grifo nosso)

A concepção de revolução nos anos de 48/50 tinha portanto no seu centro, um pensamento que, pelo menos em relação ao continente, desenhava a perspectiva de um processo de duas revoluções políticas encadeadas em duas ondas, seqüenciadas, ininterruptas, a revolução permanente, que se inspirava no padrão dominante nos círculos extremistas de meados do século passado que, por sua vez, derivava da experiência histórica do modelo francês de 1789/93.

Pelo menos em relação ao continente, porque existem em alguns trechos, formulações ambíguas e pouco conclusivas que alimentaram no passado, sob a pressão histórica da estabilização da democracia no pós-guerra nos países centrais no pós-1945, e na última década novamente, sob a pressão do desmoronamento de boa parte dos antigos partidos comunistas na Europa ocidental, a idéia de que Marx não teria descartado a possibilidade, mesmo que excepcional, de uma passagem pacífica, eleitoral e democrática ao socialismo.

Essas passagens inconclusas, raciocínios especulativos em um pensamento em construção, indicariam, segundo alguns comentaristas, uma hipótese estratégica distinta em relação à Inglaterra e os EUA, uma estratégia não revolucionária, a chamada "via inglesa": uma possibilidade de transição histórica, apoiada na extensão das liberdades democráticas, ampliação irrestrita do direito ao sufrágio universal, e conquista do poder político, sustentada no peso social do proletariado. Enfim, uma releitura dos termos da relação entre democracia e revolução, na qual a segunda estaria subsumida na primeira.

A questão em Marx parece, no entanto, estar restrita à possibilidade de conquistar a democracia, sem recorrer aos métodos da revolução, o que é evidentemente muito diferente, de pensar a transição ao socialismo sem ruptura. O que certamente se poderia afirmar com uma pequena margem de erro, é que: (a) ao contrário do continente, em países, como a Inglaterra, os EUA e a Holanda, onde as resistências históricas das forças sociais aristocráticas e das forças políticas absolutistas eram menores ou residuais, Marx considerava razoável pensar, a partir da experiência do cartismo, na conquista da democracia sem que uma revolução política fosse necessariamente indispensável, hipótese esta, aliás, a da excepcionalidade, confirmada pela história, embora curiosamente por um caminho inesperado. Inesperado porque nos EUA, uma revolução foi finalmente indispensável para derrotar as forças defensoras do escravismo e, excepcional, porque na Alemanha, foi finalmente imprescindível uma revolução para derrubar o regime bonapartista-prussiano do Kaiser em novembro de 1918; (b) a hipótese de que o partido operário poderia chegar a vencer as eleições e se constituir em força política majoritária, nos países mais desenvolvidos, se o sufrágio eleitoral fosse alargado sem restrições censitárias, o que não deixaria de colocar o desafio da revolução, no sentido de que os terremotos revolucionários continuariam se precipitando em função das comoções econômicas trazidas pelas crises de super-produção, mas o redefiniria necessariamente no terreno da tática.

De qualquer forma, alguns comentaristas de Marx têm retomado recentemente o tema das relações do marxismo com a democracia, seja pelo ângulo mais filosófico da concepção determinista da História, seja pelo ângulo de uma releitura do que seriam as insuficiências de uma teoria política do marxismo.No que se refere ao Continente, entretanto, não há muitas dúvidas: Marx pensava os deslocamentos colocados à escala internacional, ainda depois da derrota da Comuna, a partir de duas premissas políticas estratégicas:

(a) a identificação de um núcleo duro da contra-revolução na Europa, identificado no absolutismo da Rússia dos Czares, que seria o centro da reação européia, inimiga irreconciliável de uma revolução na Alemanha, país decisivo pelo peso social do proletariado, e que se colocaria irremediavelmente, mais cedo ou mais tarde, a tarefa da unificação nacional, irradiando como um rastilho de pólvora a revolução democrática por toda a Europa central, sob as ruínas do Império austro-húngaro;

(b) um núcleo histórico da revolução social proletária, com três componentes fundamentais, as três classes operárias com maior desenvolvimento, experiência e peso social, a francesa, a alemã e a inglesa. Mas sempre articulava a reflexão sobre a dialética da permanência da revolução em duas dimensões: como uma revolução européia e como duas revoluções políticas ininterruptas, portanto duas etapas num mesmo processo que unia a luta pela derrubada das monarquias com a luta pela emancipação social do proletariado. A revolução democrática seria assim a ante-sala de uma nova revolução política, que agora vai além dos limites republicano-democrático-burgueses e desloca o poder de classe do Capital. E vai além da mudança de regime político, porque a conquista do poder pelos trabalhadores é, por sua vez, a abertura de um processo de revolução social.

As etapas surgem assim como um tempo histórico e um tempo político: um encontro de temporalidades sobrepostas, pela pressão objetiva das tarefas, expressão das necessidades históricas adiadas, e pela pressão das lutas de classes, impulso da iniciativa dos trabalhadores, que se constituem politicamente como classe independente. Duas revoluções com os seus próprios tempos, inseparáveis entre si porque, na verdade, são duas ondas da mesma revolução, mas com um intervalo imprevisível entre si, mais longo ou mais curto em função de inúmeras condições, entre elas a maturidade objetiva e subjetiva do proletariado. Duas vagas muito diferentes entre si, ou, talvez melhor, duas crises revolucionárias em seqüência da mesma situação revolucionária ininterrupta: onde a primeira começou alegre cheia de auto-confiança, a segunda se inicia nervosa e desconfiada, onde a primeira considera encerradas as suas tarefas, a segunda inicia a sua obra, onde a primeira foi unitária e poli-classista, a segunda se inicia proletária e rodeada de inimigos:

" De toutes les révolutions antérieures, ce sont les journées de Mars à Milan qui témoignent de la lutte la plus chaude. Une population presque désarmée de 170.000 âmes battit une armée de 20 à 30 000 hommes. Mais les journées de Mars de Milan sont un jeu d'enfant à côté des journées de Juin à Paris. Ce qui distingue la révolution de Juin de toutes les révolutions précédentes, c'est l'absence de toute illusion, de tout enthousiasme. Le peuple n 'est point comme en Février sur les barricades chantant Mourir pour la patrie – les ouvriers du 23 juin luttent pour leur existenoe, la patrie a perdu pour eux toute signification. La Marseillaise et tous les souvenirs de la grande Révolution ont disparu. Peuple et bourgeois pressentent que la révolution dans laquelle ils entrent est plus grande que 1789 et 1793. La révolution de Juin est la révolution du désespoir et c’est avec la colêre muette, avec le sang-froid sinistre du desespoir qu'on combat pour elle; les ouvriers savent qu'ils ménent une lutte à la vie et à la mort, et devant la gravité térrible de cette lutte le vif esprit français lui-meme se tait. La révolution de Juin est la première qui divise vraiment société tout entière en deux grands camps ennemis qui sont représentés par le Paris de l'est et le Paris de l'ouest. L’unanimité de la révolution de Février a disparu, cette unanimité poétique, pleine d'illusions éblouissantes, pleine beaux mensonges(...) Les combattants de Février luttent aujourd'hui eux-mêmes les uns contre les autres, et, ce qu'on n'a encore jamais vu, il n'y a plus différence, tout homme en état de porter les armes participe vraiment à la lutte sur la barricade ou devant barricade." (grifo nosso)

Neste artigo de Engels, sobre o balanço de junho de 48, a primeira revolução operária da História, o tema é retomado. Engels se detém em uma comparação entre as duas revoluções, fevereiro e junho, a ruptura da "unanimidade" frentista, as diferenças sociais entre as duas vagas, o aprofundamento da disposição de luta. A sugestão se revelou na verdade premonitória. A Comuna também conheceu as suas duas vagas: a primeira republicana, na seqüência da derrota de Napoleão III, e a segunda, operária e socialista, depois da resistência da Guarda Nacional a entregar os canhões de Montmartre.

Uma aposta na aceleração da História

Certamente toda a obra de Marx nos permite concluir que ele estava solidamente convencido que os intervalos das transições históricas tinham uma tendência de aceleração: a transição socialista seria mais breve do que foi a transição do feudalismo ao capitalismo. Logo, a permanência da revolução pode ser entendida em uma dupla dimensão, o abreviamento dos intervalos entre a revolução democrática e a revolução dos trabalhadores mas, também, como uma extensão européia relativamente rápida. Assim, se um processo de revolução social se iniciaria dentro de fronteiras nacionais, inaugurado por uma revolução política, a conquista do poder pelo proletariado em um país não seria senão o primeiro ato de um drama histórico, que se decidiria na arena internacional. Mais importante, esta dimensão internacional assumida pela luta de classes seria o fator chave para a análise sobre a aceleração dos tempos históricos.

Assim, se hoje é claro que os prognósticos políticos sobre as possibilidades de 1848 estavam errados, ou ainda, se as expectativas sobre a Comuna de Paris em 1871 se demonstraram infundadas, também parece certo que o critério teórico estava certo: (a) os tempos das relações entre as revoluções sociais e as revoluções políticas não seriam mais os mesmos tempos do processo da revolução burguesa, em que as primeiras (o desenvolvimento de relações econômico-sociais capitalistas nos poros do modo de produção feudal) precederam as segundas (a conquista do poder político); (b) o espaço do processo só poderia ser a arena mundial, ainda que o desenvolvimento desigual do processo estabelecesse dinâmicas nacionais diferentes.

Assim, quando da redação do Manifesto em 48 (e ainda do Adresse de 50), tanto Marx quanto Engels, tinham a expectativa da iminência de uma vaga revolucionária na Europa e, nesse sentido, o conceito de época é simultânea e indistintamente utilizado também como conceito de iminência de uma situação revolucionária. Quando, ao final de As lutas de classes em França, Marx sugere que uma nova crise revolucionária só se pode esperar de uma nova crise econômica é porque considera que a situação aberta pela revolução de fevereiro de 48 se encerrou, mas a época revolucionária continuava aberta. A questão é central, e ainda hoje provoca avaliações apaixonadas, como podemos conferir neste fragmento de Texier:

"Or ce qu'Engels nous dit en 1895, c'est que Marx et lui,(...) pensaient de façon tout à fait illusoire, lorsqu'ils s'imaginaient en 1848, et non seulement en 1848, mais plus de vingt ans plus tard, en 1871, que la transformation révolutionnaire de la société bourgeoise en société communiste était à l'ordre du jour.(...)Ce qui était alors à l'ordre du jour, c'était la révolution industrielle capitaliste. En 1895, cette révolution industrielle a déjà largement produit ses effets en Allemagne; on peut donc y parler dorénavant de «la puissante armée du prolétariat » et de la tactique qu'elle doit mettre en oeuvre. C'est l'occasion d'un jugement rétrospéctif sur la tactique appliquée en 1848.La période qui va du coup d'État de Louis Bonaparte à la victoire de Bismarck dans la guerre franco-allemande de 1870, est celle où les révolutions par en-haut succèdent aux révolutions d'en-bas.(...) Le type de jugement rétrospectif qu'on trouve dans cette « Introduction» d'Engels implique qu'on a changé d'époque et que celui qui parle a la capacité de reconnaître qu'une page est tournée.(grifo nosso)

Texier encontra, portanto, no balanço do Testamento, um ponto de apoio para concluir que Engels estendia a apreciação de época para o período posterior a 1895. Assim o velho Engels que nos é apresentado por Texier, não só rompia com as "influências blanquistas de 48" como rompia com a caracterização de época revolucionária, retroativamente ao período 48/95 (o que parece uma interpretação razoável), mas também, prospectivamente, o que de alguma forma faria de Engels, nesta questão, um bernsteiniano "avant la lettre". Acrescentemos que a sugestão não é inocente e tem imensas conseqüências políticas ainda na realidade atual: se o capitalismo não atravessa um período de crise crônica, então decorre desta conclusão que as forças produtivas estão em crescimento ininterrupto e qualquer projeto revolucionário pós-capitalista trata-se de uma veleidade utópica e sem sustentação histórica. Esta conclusão sobre época, contudo, não parece ser sustentável. Insinua como conclusão o que Engels nem sequer baralhou como premissa. A nova hipótese estratégica, apresentada para a Internacional, inspirada nos êxitos do partido alemão tem, na verdade, outros fundamentos. Vejamos, também neste caso, o que nos diz Draper, quase "hemorrágico" pela erudição:

"This is the view that the movement for proletarian revolution should not begin until there is a present possibility of victory, before which time it is "utopian" and "unrealistic"(...) In any case, there is no way of determining when the historical possibility of victory has arrived in this sense: on s'engage et puis on verra. Anyone could see that proletarian revolution was premature in 1848, if one waits a half century; and when Engels wrote this opinion down in 1895 he was not under the impression it was a great revelation. This (...)was for some- not Engels -a condemnation of the Forty-eighters for failing to possess a crystal ball."(grifo nosso)

Em poucas palavras, não é possível avaliar se uma revolução é prematura, senão depois que a sorte foi lançada. Um exercício histórico legítimo, mas um procedimento político impossível.

Engels e a defesa da "tática alemã": as possibilidades e os perigos da utilização da legalidade pelo SPD

A derrota da Comuna tinha levado a uma situação em que a preservação da I Internacional era insustentável. À virada histórica da relação de forças na França correspondeu também um deslocamento do eixo de organização do movimento à escala internacional para a Alemanha, onde a corrente marxista se uniu a corrente de Lassale no congresso de Gotha. Mesmo sob a repressão das leis anti-socialistas de Bismarck o partido de Bebel e Liebknecht conseguiu estender a sua influência e a partir de 1890 passou a disputar as eleições sob as suas próprias bandeiras como SPD, com resultados promissores. No Testamento Engels insiste na importância da nova "tática alemã" para todas as seções da II Internacional:

"No entanto, utilizando tão eficazmente o sufrágio universal, o proletariado praticara um método de luta inteiramente novo que se desenvolveu com rapidez. Ocorreu então que a burguesia e o governo chegaram a ter mais medo da atuação legal que da atuação ilegal do partido operário, mais temor aos êxitos das eleições que aos êxitos da rebelião. Pois também quanto a isso haviam-se modificado substancialmente as condiç5es da luta. A rebelião de antigo estilo, o combate nas barricadas que, até 1848, fora decisivo em toda parte, estava consideravelmente ultrapassado.Não nos iludamos a respeito: uma verdadeira vitória da insurreição sobre as tropas nos combates de ruas, uma vitória como em batalha entre dois exércitos, é coisa das mais raras."(grifo nosso)

O entusiasmo com o partido alemão, com sua vigorosa implantação social e sucessos eleitorais, por um lado, e talvez o balanço histórico amargo da derrota da Comuna, pareceriam indicar que o velho Engels (de quem se disse que nos anos 90 viveu uma velhice feliz) acreditava que, pelo menos na Alemanha, a questão de poder se enfrentava diante de novas e mais profundas possibilidades e dificuldades. Possibilidades abertas pelo crescente peso social do proletariado e sua capacidade de elevar a consciência de classe a novos patamares de auto-organização permanente através de sindicatos que filiavam milhões, com a utilização hábil das margens ampliadas de liberdade, a participação eleitoral, enfim a escola de aprendizagem sindical-parlamentar. Dificuldades que resultavam do esgotamento histórico das revoluções burguesas, da acomodação bastarda da burguesia com os regimes bonapartistas ou semi-bonapartistas, do deslocamento e divisão inexorável das camadas médias, ou seja, a ruptura da frente de "todo o povo pela democracia", tal como ocorreu na primeira fase de fevereiro de 48.

Por último, dificuldades que nasciam das novas necessidades políticas subjetivas que surgiam como obstáculos para o proletariado, que não podia contar com triunfos fáceis nas barricadas. Por outro lado, ocorre que Engels sequer considerava o regime bismarquista senil do Kaiser uma democracia. Ao contrário, considerava que as limitadas liberdades estavam ameaçadas justamente pelo crescente peso do SPD, e por isso, baralhava a hipótese de uma revolução em legítima defesa contra uma aventura neo-bonapartista do regime, ou seja, uma revolução democrática defensiva, tendo como sujeito social o proletariado, contra um golpe bonapartista. Assim explicava Engels as suas conclusões sobre os novos desafios da experiência da tática alemã:

"O direito à revolução é o único "direito histórico" real, o único sobre o qual repousam todos os Estados modernos sem exceção,(...) Mas, ocorra o que ocorrer nos outros países, a social-democracia alemã tem uma situação particular e, em decorrência pelo menos no momento, uma tarefa também particular. Com dois milhões de eleitores que ela envia às urnas, neles incluídos os jovens e as mulheres que estão por detrás dos sufragantes na qualidade de não eleitores, constituem a massa mais em numerosa, mais compacta, a "força de choque" decisiva do exército proletário internacional.(...)Ora, só há um meio de poder conter durante certo prazo o crescimento continuo das forças combatentes socialistas na Alemanha, e mesmo de fazê-las regredir momentaneamente: um choque de grande envergadura com as tropas, uma sangria como a de 1871, em Paris."(grifo nosso)

Engels

alertava, portanto, para uma reação burguesa contra-revolucionária impiedosa, com recursos renovados, bases sociais de apoio ampliadas, capacidade de iniciativa política e até um dispositivo militar moderno, muito superior aos que se abateu sobre a Comuna. Mas ponderava também que seria fundamental aprender as lições do período histórico anterior, sendo a principal, a necessidade de conquistar o apoio entre a maioria das camadas dominadas e oprimidas, e escolher o momento político do confronto, evitando a qualquer preço um combate prematuro, sem que as melhores condições estivessem reunidas, e conclui:

"Só poderão conter a subversão social-democrática, que no momento se dá tão bem respeitando a lei, mediante a subversão dos partidos da ordem, os quais não podem viver sem violar as leis(....) ensinaram-lhes o único caminho pelo qual talvez possam pegar pelo gasganete os operários, que simplesmente se recusam a deixar-se arrastar aos combates de rua. Violação da Constituição, ditadura, volta ao absolutismo,(...) Não vos esqueçais, porém, de que o Império Alemão, como todos os pequenos Estados e, em geral, todos os Estados modernos, é produto de um pacto; primeiramente, de um pacto de príncipes entre si e, depois, dos príncipes com o povo. Se uma das partes quebra o pacto, todo ele é nulo e a outra parte está desobrigada. Bismarck demonstrou Isso brilhantemente em 1866. Portanto, se violais a Constituição do Reich, a social-democracia ficará livre para fazer o que lhe parecer melhor a vosso respeito. Mas o que fará então não há de vos dizer hoje." (grifo nosso)

Destes fragmentos se conclui, portanto: (a) que sendo revoluções de maioria, as revoluções proletárias seriam, paradoxalmente, socialmente mais poderosas mas, ao mesmo tempo, politicamente mais difíceis que as revoluções burguesas; (b) que a conquista da democracia repousaria agora nas mãos do proletariado, superando a hipótese de 48 das duas revoluções, ainda que naquelas circunstâncias pensadas como um processo ininterrupto de revolução em permanência; (c) que a nova hipótese estratégica exigiria a capacidade dos partidos de utilizar os espaços de legalidade, por reduzidos que fossem, para acumular forças, estimular a auto-organização e elevar o nível de atividade, confiança e consciência de classe, mas também evitar, em particular na Alemanha, um confronto precipitado; (d) que a luta pelo poder deveria ser buscada no melhor momento e, se possível, em condições de legítima defesa, em resposta defensiva à iniciativa contra revolucionária do regime que seria incapaz de conviver de forma perene com um forte movimento operário na legalidade.

Destes quatro postulados somente o último não sobreviveu à prova do balanço histórico. O que não é irrelevante (sabemos como esta premissa teve razoável importância nas formulações "quietistas" de Kautsky que enfureciam Rosa Luxemburgo no SPD). Em que medida, a leitura que Kautsky posteriormente fez da herança deixada por Engels para justificar a sua defesa de uma política de adaptação do SPD aos limites da legalidade da democracia monárquica do Kaiser são outros quinhentos.

Poder-se-ia, por último, afirmar que uma teoria dos tempos da revolução em Marx e Engels, um pensamento sobre época, situação e crise revolucionária, com distintos ritmos, desigualmente desenvolvidos, mas entrelaçados em circunstâncias históricas únicas, foi-se construindo como expressão de uma dualidade tensionada de fatores.

No seu centro está uma ênfase na pulsação circular da crise econômica, como um tempo de movimento e inércia do capital, que se desenvolve à escala do mercado mundial e encontra refrações nacionais em cada país; e outro é o tempo das lutas de classes:

"A primeira prova ocorreu quando Marx, a partir da primavera de 1850, encontrou lazeres para se entregar a estudos econômicos e empreendeu, primeiramente, o da História econômica dos dez últimos anos. Desse modo, ele extraiu, com toda clareza, dos próprios fatos, o que até então não fizera senão deduzir, semi-aprioristicamente, de materiais insuficientes, isto é, que a crise do comércio mundial, ocorrida em 1847, fora a verdadeira mãe das revoluções de fevereiro e de março e que a prosperidade industrial, que voltara pouco a pouco, (...) foi a fôrça vivificante na qual a reação européia hauriu renovado vigor (...) Não é possível uma nova revolução senão em conseqüência de uma nova crise. Mas esta é tão certa quanto aquela".(grifo nosso)

Esses dois tempos são distintos, mas estão articulados, em formas que são, para o essencial, imprevisíveis, porque amadurecem em ritmos que lhes são próprios, únicos e discordantes.

E, no entanto, essas duas forças motrizes do processo histórico estão amalgamados no sentido de uma unidade substantiva do tempo. Assim como a crise econômica incide sobre as lutas de classes, porque abre e precipita a crise social, a lutas de classes, a maior insegurança ou maior determinação de cada classe social na defesa de seus interesses, também incide sobre o processo econômico aprofundando as tendências à crise ou favorecendo a recuperação.