quinta-feira, 28 de agosto de 2008

As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade do Homem - Lukács

Texto de Georg Lukács retirado do sítio: http://antivalor.atspace.com/outros/lukacsindex.htm



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Quem quiser expor numa conferência, ainda que dentro de certos limites, ao menos os princípios mais gerais desse complexo de problemas, vai se encontrar diante de uma dupla dificuldade. Por um lado, seria necessário fornecer um panorama crítico do estágio atual da discussão sobre esse problema, e, por outro, caberia iluminar o edifício conceptual de uma nova ontologia, pelo menos em sua estrutura fundamental. Para tratarmos de modo mais ou menos satisfatório da segunda questão, teremos de renunciar a abordar - mesmo que sumariamente - a primeira. Todos sabem que nas últimas décadas, radicalizando as velhas tendências gnosiológicas, o neopositivismo dominou de modo incontrastado, com sua recusa de princípio em face de toda e qualquer colocação ontológica, considerada como não científica. E esse domínio se deu não apenas na vida filosófica propriamente dita, mas também no mundo da praxis. Se analisássemos bem as constantes teóricas dos grupos dirigentes políticos, militares e econômicos de nosso tempo, descobriríamos que elas - consciente ou inconscientemente - são determinadas por métodos de pensamento neopositivistas. Deriva disso a onipotência quase ilimitada desses métodos; e, quando o confronto com a realidade tiver conduzido à crise aberta, essa situação produzirá grandes abalos a partir da vida políticoeconômica até a filosofia no sentido mais amplo do termo. Mas, já que estamos apenas no início de tal processo, é suficiente aqui a sua simples menção.

Tampouco nos ocuparemos, neste local, das tentativas ontológicas das últimas décadas. Limitar-nos-emos a declarar simplesmente que as consideramos como extremamente problemáticas, bastando-nos recordar os últimos desenvolvimentos de um conhecidíssimo iniciador dessa corrente, como Sartre, para que fiquem registradas, quando menos, tal problemática e tal orientação.

Reveladora é, nesse caso, a relação com o marxismo. Na história da filosofia, como se sabe, raramente o marxismo foi entendido como uma ontologia. Em troca, o que aqui nos propomos fazer é mostrar como o elemento filosoficamente resolutivo na ação de Marx consistiu em ter esboçado os lineamentos de uma ontologia histórico-materialista, superando teórica e praticamente o idealismo lógico-ontológico de Hegel. Hegel foi um preparador nesse domínio, na medida em que concebeu a seu modo a ontologia como uma história; em contraste com a ontologia religiosa, a de Hegel partia de "baixo", do aspecto mais simples, e traçava uma história evolutiva necessária que chegava ao "alto", às objetivações mais complexas da cultura humana. Naturalmente, o acento caía sobre o ser social e seus produtos, assim como era característico de Hegel o fato de que o homem aparecesse como criador de si mesmo.

A ontologia marxiana afasta daquela de Hegel todo elemento lógico dedutivo e, no plano da evolução histórica, todo elemento teleológico. Com esse ato materialista de "repor sobre os próprios pés", não podia deixar de desaparecer igualmente - da série das momentos motores do processo - a síntese do elemento simples: Em Marx, o ponto de partida não é dado nem pelo átomo (como nos velhos materialistas), nem pelo simples ser abstrato (como em Hegel). Aqui, no plano ontológico, não existe nada análogo. Todo existente deve ser sempre objetivo, ou seja, deve ser sempre parte (movente e movida) de um complexo concreto: Isso conduz a duas conseqüências fundamentais. Em primeiro lugar, o ser em seu conjunto é visto como um processo histórico; em segundo, as categorias não são tidas como enunciados sobre algo que é ou que se torna, mas sim como formas moventes e movidas da própria matéria: "formas do existir, determinações da existência". Essa posição radical também na medida em que é radicalmente diversa do velho materialismo - foi interpretada, de diferentes modos, segundo o velho espírito; quando isso ocorreu, teve-se a falsa idéia de que Marx subestimava a importância da consciência com relação ao ser material. Demonstraremos mais tarde, concretamente, que esse modo de ver é equivocado. Aqui nos interessa apenas estabelecer que Marx entendia a consciência como um produto tardio do desenvolvimento do ser material. Aquela impressão equivocada só pode surgir quando tal fato é interpretado à luz da criação divina afirmada pelas religiões ou de um idealismo de tipo platônico. Para uma filosofia evolutiva materialista, ao contrário, o produto tardio não é jamais necessariamente um produto de menor valor ontológico. Quando se diz que a consciência reflete a realidade e, sabre essa base, torna possível intervir nessa realidade para modificá-la, quer-se dizer que a consciência tem um real poder no plano do ser e não - como se supõe a partir das supracitadas visões irrealistas - que ela é carente de força.


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Podemos aqui nos ocupar somente da ontologia da ser social. Contudo, não seremos capazes de captar sua especificidade se não compreendermos que um ser social só pode surgir e se desenvolver sobre a base de um ser orgânico e que esse último pode fazer o mesmo apenas sabre a base do ser inorgânico. A ciência já está descobrindo as formas preparatórias de passagem de um tipo de ser á outro; e também já foram esclarecidas as mais importantes categorias fundamentais das formas de ser mais complexas, enquanto contrapostas àquelas mais simples: a reprodução da vida em contraposição ao simples tornar-se outra coisa; a adaptação ativa, com a modificação consciente do ambiente, em contraposição à adaptação meramente passiva etc. Ademais, tornou-se claro que, entre uma forma mais simples de ser (por mais numerosas que sejam as categorias de transição que essa forma produz) e o nascimento real de uma forma ,mais complexa, verifica-se sempre um salto; essa forma mais complexa é algo qualitativamente novo, cuja gênese não pode jamais ser simplesmente "deduzida" da forma mais simples.

Depois.desse salto, tem sempre lugar o aperfeiçoamento da nova forma de ser. Todavia, embora surja sempre algo qualitativamente novo, em muitos casos tem-se a impressão de estar em face de uma simples variação dos modos reativos do ser fundante em novas categorias de efetividade, naquelas categorias que constituem precisamente o novo no ser da nova formação.

Tomemos o exemplo da luz: enquanto sobre as plantas ela ainda atua de modo puramente físico-químico (embora, na verdade, dando lugar já aqui a efeitos vitais específicos), na vista dos animais superiores a luz desenvolve formas de reação ao ambiente que já são especificamente biológicas. Do mesmo modo, o processo de reprodução assume na natureza orgânica formas cada vez mais correspondentes à sua própria essência, torna-se cada vez mais nitidamente um ser sui generis, ainda que jamais possa ser eliminado o seu enraizamento nas bases ontológicas originárias. Mesmo sem ter aqui a possibilidade sequer de mencionar um tal complexo de problemas, gostaríamos porém de recordar como o desenvolvimento do processo de reprodução orgânica no sentido de formas superiores, o seu tornar-se cada vez mais pura e expressamente biológico no sentido próprio do termo, forma - com a ajuda das percepções sensíveis - também uma espécie de consciência, importante epifenômeno, enquanto órgão superior do funcionamento eficaz dessa reprodução.

Para que possa nascer o trabalho, enquanto base dinâmico-estruturante de um novo tipo de ser, é indispensável um determinado grau de desenvolvimento do processo de reprodução orgânica. Também aqui teremos de deixar de lado os numerosos casos de capacidade de trabalhar que se mantêm como pura capacidade; tampouco podemos nos deter nas situações de beco sem saída, nas quais surge não apenas um certo tipo de trabalho, mas inclusive a conseqüência necessária do seu desenvolvimento, a divisão do trabalho (abelha etc.), situações porém em que essa divisão do trabalho - enquanto se fixa como diferenciação biológica dos exemplares da espécie - não consegue se tornar princípio de desenvolvimento posterior no sentido de um ser de novo tipo, mantendo-se ao contrário como estágio estabilizado, ou seja, como um beco sem saída no desenvolvimento.

A essência do trabalho consiste precisamente em ir além dessa fixação dos seres vivos na competição biológica com seu mundo ambiente. O momento essencialmente separatório é constituído não pela fabricação de produtos, mas pelo papel da consciência, a qual, precisamente aqui, deixa de ser mero epifenômeno da reprodução biológica: o produto, diz Marx, é um resultado que no início do processo existia "já na representação do trabalhador", isto é, de modo ideal.

Talvez surpreenda o fato de que, exatamente na delimitação materialista entre o ser da natureza orgânica e o ser social, seja atribuído à consciência um papel tão decisivo. Porém, não se deve esquecer que os complexos problemáticos aqui emergentes (cujo tipo mais alto é o da liberdade e da necessidade) só conseguem adquirir um verdadeiro sentido quando se atribui - e precisamente no plano ontológico - um papel ativo à consciência. Nos casos em que a consciência não se tornou um poder ontológico efetivo, essa oposição jamais pôde ter lugar. Em troca, quando a consciência possui objetivamente esse papel, ela não pode deixar de ter um peso na solução de tais oposições.

Com justa razão se pode designar o homem que trabalha, ou seja, o animal tornado homem através do trabalho, como um ser que dá respostas. Com efeito, é inegável que toda atividade laborativa surge como solução de resposta ao carecimento que a provoca. Todavia, o núcleo da questão se perderia caso se tomasse aqui como pressuposto uma relação imediata. Ao contrário, o homem torna-se um ser que dá respostas precisamente na medida em que - paralelamente ao desenvolvimento social e em proporção crescente - ele generaliza, transformando em perguntas seus próprios carecimentos e suas possibilidades de satisfazê-los; e quando, em sua resposta ao carecimento que a provoca, funda e enriquece a própria atividade com tais mediações, freqüentemente bastante articuladas. De modo que não apenas a resposta, mas também a pergunta é um produto imediato da consciência que guia a atividade; todavia, isso não anula o fato de que o ato de responder é o elemento ontologicamente primário nesse complexo dinâmico. Tão-somente o carecimento material, enquanto motor do processo de reprodução individual ou social, põe efetivamente em movimento o complexo do trabalho; e todas as mediações existem ontologicamente apenas em função da sua satisfação. O que não desmente o fato de que tal satisfação só possa ter lugar com a ajuda de uma cadeia de mediações, as quais transformam ininterruptamente tanto a natureza que circunda a sociedade, quanto os homens que nela atuam, as suas relações recíprocas etc.; e isso porque elas tornam praticamente eficientes forças, relações, qualidades etc., da natureza que, de outro modo, não poderiam exercer essa ação, ao mesmo tempo em que o homem liberando e dominando essas forças - põe em ser um processo de desenvolvimento das próprias capacidades no sentido de níveis mais altos.

Com o trabalho, portanto, dá-se ao mesmo tempo - ontologicamente - a possibilidade do seu desenvolvimento superior, do desenvolvimento dos homens que trabalham. Já por esse motivo, mas antes de mais nada porque se altera a adaptação passiva, meramente reativa, do processo de reprodução ao mundo circundante, porque esse mundo circundante é transformado de maneira consciente e ativa, o trabalho torna-se não simplesmente um fato no qual se expressa a nova peculiaridade do ser social, mas, ao contrário - precisamente no plano ontológico -, converte-se no modelo da nova forma do ser em seu conjunto.

Quanto maior for a precisão com que observarmos o seu funcionamento, tanto mais resultará evidente esse seu caráter. O trabalho é formado por posições teleológicas que, em cada oportunidade, põem em funcionamento séries causais. Basta essa simples constatação para eliminar preconceitos ontológicos milenares. Ao contrário da causalidade, que representa a lei espontânea na qual todos os movimentos de todas as formas de ser encontram a sua expressão geral, a teleologia é um modo de pôr - posição sempre realizada por uma consciência - que, embora guiando-as em determinada direção, pode movimentar apenas séries causais. As filosofias anteriores, não reconhecendo a posição teleológica como particularidade do ser social, eram obrigadas a inventar, por um lado, um sujeito transcendente, e, por outro, uma natureza especial onde as correlações atuavam de modo teleológico, com a finalidade de atribuir à natureza e à sociedade tendências de desenvolvimento de tipo teleológico. Decisivo aqui é compreender que se está em face de uma duplicidade: numa sociedade tornada realmente social, a maior parte das atividades cujo conjunto põe a totalidade em movimento e certamente de origem teleológica, mas a sua existência real - e não importa se permaneceu isolada ou se foi inserida num contexto - é feita de conexões causais que jamais s em nenhum sentido podem ser de caráter teleológico.

Toda praxis social, se considerarmos o trabalho como seu modelo, contém em si esse caráter contraditório. Por um lado, a praxis é uma decisão entre alternativas, já que todo indivíduo singular, sempre que faz algo, deve decidir se o faz ou não. Todo ato social, portanto, surge de uma decisão entre alternativas acerca de posições teleológicas futuras. A necessidade social só se pode afirmar por meio da pressão que exerce sobre os indivíduos (freqüentemente de maneira anônima), a fim de que as decisões deles tenham uma determinada orientação. Marx delineia corretamente essa condição, dizendo que os homens são impelidos pelas circunstâncias a agir de determinado modo "sob pena de se arruinarem". Eles devem, em última análise, realizar .por si as próprias ações, ainda que freqüentemente atuem contra sua própria convicção.

Dessa ineliminável condição do homem que vive em sociedade, podemos fazer derivar todos os problemas reais - naturalmente levando em conta que esses são mais complicados em situações mais complicadas - daquele complexo que costumamos chamar de liberdade. Sem ir além da região do trabalho em sentido estrito, podemos nos deter sobre as categorias de valor e de dever-ser. A natureza não conhece nenhuma das duas categorias. Na natureza inorgânica, as mudanças de um modo de ser para outro não têm, é claro, nada a ver com os valores. Na natureza orgânica, onde o processo de reprodução significa ontologicamente adaptação ao ambiente, pode-se já falar de êxito ou de fracasso; mas também essa oposição não ultrapassa - precisamente do ponto de vista ontológico - os limites de um mero ser-de-outro-modo. Completamente diversa é a situação quando nos deparamos com o trabalho. O conhecimento em geral distingue bastante nitidamente entre o ser-em-si, objetivamente existente, dos objetos, por um lado, e, por outro, o ser-para-nós, meramente pensado, que tais objetos adquirem no processo cognoscitivo. No trabalho, ao contrário, o ser-para-nós do produto torna-se uma sua propriedade objetiva realmente existente: e tratase precisamente daquela propriedade em virtude da qual o produto, se posto e realizado corretamente, pode desempenhar suas funções sociais. Assim, portanto, o produto do trabalho tem um valor (no caso de fracasso, é carente de valor, é um desvalor). Apenas a objetivação real do ser-para-nós faz com que possam realmente nascer valores. E o fato de que os valores, nos níveis mais altos da sociedade, assumam formas mais espirituais, esse fato não elimina o significado básico dessa gênese ontológica.

Um processo similar ocorre com o dever-ser. O conteúdo do dever-ser é um comportamento do homem determinado por finalidades sociais (e não por inclinações simplesmente naturais ou espontaneamente humanas). Ora, essencial ao trabalho é que nele não apenas todos os movimentas, mas também os homens que o realizam, devem ser dirigidos por finalidades determinadas previamente. Portanto, todo movimento é submetido a um deverser.

Também aqui não surge nada de novo, no que se refere aos elementos ontologicamente importantes, quando essa estrutura dinâmica se transfere para campos de ação puramente espirituais. Ao contrário, os anéis da cadeia ontológica, que do comportamento inicial levam até os subseqüentes comportamentos mais espirituais, aparecem em toda a sua clareza, diferentemente do ~que ocorre no caso dos métodos gnosiológico-lógicos, onde o caminho que leva das formas mais elevadas àquelas iniciais resulta invisível, ou, melhor dizendo, onde as segundas aparecem - do ponto de vista das primeiras - inclusive como oposições.

Se agora, partindo do sujeito que põe, lançamos um olhar sobre o processo global do trabalho, notamos imediatamente que esse sujeito realiza certamente a posição teleológica de modo consciente, mas sem jamais estar em condições de ver todos os condicionamentos da própria atividade, para não falarmos de todas as suas conseqüências. É óbvio que isso não impede que os homens atuem. De fato, existem inúmeras situações nas quais, sob pena de se arruinar, é absolutamente necessário que o homem aja embora tenha clara consciência de não poder conhecer senão uma parte mínima das circunstâncias. E, no próprio trabalho, o homem muitas vezes .sabe que pode dominar apenas uma pequena faixa de elementos circunstantes; mas sabe também - já que o carecimento urge e, mesmo nessas condições, o trabalho promete satisfazê-lo - que ele, de qualquer modo, é capaz de realizá-lo.

Essa ineliminável situação tem duas importantes conseqüências. Em primeiro lugar, a dialética interna do constante aperfeiçoamento do trabalho; isso se expressa no fato de que, enquanto o trabalho é realizado, seus resultados são observados etc., cresce continuamente a faixa de determinações que se tornam cognoscíveis e, por conseguinte, o trabalho se torna cada vez mais variado, abarca campos cada vez maiores, sobe de nível tanto em extensão quanto em intensidade. Na medida, porém, em que esse processo de aperfeiçoamento não pode eliminar o fato de fundo, ou seja, a incognoscibilidade do conjunto das circunstâncias, esse modo de ser do trabalho - paralelamente ao seu crescimento - desperta também a sensação íntima de uma realidade transcendente, cujos poderes desconhecidos o homem tenta de algum modo utilizar em seu próprio proveito. Não é aqui o local para uma análise detalhada das diversas formas de prática mágica, de fé religiosa etc., ~que se desenvolvem a partir dessa situação. Todavia, embora essa seja apenas, como é óbvio, uma das fontes de tais formas ideológicas, não podíamos deixar de mencioná-la. Em especial porque o trabalho é não apenas o modelo objetivamente ontológico de toda praxis humana, mas também - nos casos aqui mencionados - o modelo direto que serve de exemplo à criação divina da realidade, onde todas as coisas aparecem como produzidas teleologicamente por um criador onisciente.

O trabalho é um ato de pôr consciente e, portanto, pressupõe um conhecimento concreto, ainda que jamais perfeito, de determinadas finalidades e de determinados meios. Vimos que o desenvolvimento, o aperfeiçoamento do trabalho é uma de suas características ontológicas; disso resulta que, ao se constituir, o trabalho chama à vida. produtos sociais de ordem mais elevada.

Talvez a mais importante dessas diferenciações seja a crescente autonomização das atividades preparatórias, ou seja, a separação - sempre relativa - que, no próprio trabalho concreto, tem lugar entre o conhecimento, por um lado, e, por outro, as finalidades e os meios. A matemática, a geometria, a física, a química etc., eram originariamente partes, momentos desse processo preparatório do trabalho. Pouco a pouco, elas cresceram até se tornarem campos autônomos de conhecimento, sem porém perderem inteiramente essa respectiva função originária. Quanto mais universais e autônomas se tornam essas ciências, tanto mais universal e perfeito torna-se por sua vez o trabalho; quanto mais elas crescem, se intensificam etc., tanto maior se torna a influência dos conhecimentos assim obtidos sobre as finalidades e os meios de efetivação do trabalho. Uma tal diferenciação é já uma forma relativamente aperfeiçoada de divisão do trabalho. Essa divisão, todavia, é a conseqüência mais elementar do desenvolvimento do próprio trabalho. Mesmo antes que o trabalho houvesse atingido sua explicitação plena e intensivas - digamos, mesmo no período da apropriação dos produtos naturais -, esse fenômeno da divisão do trabalho já se manifesta na caça. Digna de nota, para nós, é aqui a manifestação de uma nova forma de posição teleológica; ou seja, aqui não se trata de elaborar um fragmento da natureza de acordo com finalidades humanas, mas ao contrário um homem (ou vários homens) é induzido a realizar algumas posições teleológicas segundo um modo pré-determinado. Já que um determinado trabalho (por mais que ,possa ser diferenciada a divisão do trabalho que o caracteriza) pode ter apenas uma única finalidade principal unitária, torna-se necessário encontrar meios que garantam essa unitariedade finalística na preparação e na execução do trabalho. Por isso, essas novas posições teleológicas devem entrar em ação no mesmo momento em que surge a divisão do trabalho; e continuam a ser, mesmo posteriormente, um meio indispensável em todo trabalho que se funda sobre a divisão do trabalho. Com a diferenciação social de nível superior, com o nascimento das classes sociais com interesses antagônicos, esse tipo de posição teleológica torna-se a base espiritual-estruturante do que o marxismo chama de ideologia. Ou seja: nos conflitos suscitados pelas contradições das modalidades de produção mais desenvolvidas, a ideologia produz as formas através das quais os homens tornam-se conscientes desses conflitos e neles se inserem mediante a luta.

Esses conflitos envolvem de modo cada vez mais profundo a totalidade da vida social. Partindo dos contrastes privados e resolvidos de modo diretamente .privado no trabalho individual e na vida cotidiana, eles chegam até aqueles graves complexos problemáticos que a humanidade vem se esforçando até hoje para resolver, através da luta, em suas grandes reviravoltas sociais. O tipo estrutura de fundo, porém, revela sempre traços essenciais comuns: assim como, no próprio trabalho, o saber real sobre os processos naturais que em cada oportunidade se põem em questão, foi inevitável para poder desenvolver com êxito o intercâmbio orgânico da sociedade com a natureza, do mesmo modo um certo saber sobre o modo pelo qual os homens são feitos, sobre as suas recíprocas relações sociais e pessoais, é aqui indispensável para induzi-los a efetuar as posições teleológicas desejadas. Todo o processo através do qual, a partir dessas concepções surgidas por necessidade vital, que no início assumiram as formas do costume, da tradição, dos hábitos e também do mito, desenvolveram-se subseqüentemente procedimentos racionalizantes, aliás até mesmo algumas ciências, esse processo é - nas palavras de Fontane - um campo imenso.

Portanto, não é possível abordá-lo numa conferência. Podemos apenas afirmar que os conhecimentos que influenciam o intercâmbio orgânico com a natureza são muito mais facilmente desvinculáveis das posições teleológicas que condicionaram o seu aparecimento do que os conhecimentos dirigidos no sentido de influenciar os homens e os grupos humanos. Nesse último caso, a relação entre finalidade e fundamentação cognoscitiva é muito mais íntima. Essa afirmação, contudo, não nos deve induzir ao exagero gnosiológico, a identificar ou diferenciar de modo absoluto os dois processos. Trata-se de elementos ontológicos comuns ou diversos, que estão simultaneamente presentes e que podem encontrar solução tão-somente numa concreta dialética histórico-social.

Foi-nos possível, nesse local, mencionar apenas a base sócioontológica. Todo evento social decorre de posições teleológicas individuais;mas, em si, é de caráter puramente causal. A gênese teleológica, todavia, tem naturalmente importantes conseqüências para todos os processos sociais. Por um lado, podem chegar à condição de ser determinados objetos, com tudo o que disso decorre, que não poderiam ser produzidos pela natureza; basta pensar, para continuar ainda no campo dos primitivos, no exemplo da roda. Por outro lado, toda sociedade se desenvolve até níveis onde a necessidade deixa de operar de maneira mecânico-espontânea; o modo de manifestação típico da necessidade passa a ser, cada vez mais nitidamente e a depender do caso concreto, aquele de induzir, impelir, coagir etc., os homens a tomarem determinadas decisões teleológicas, ou então de impedir que eles o façam. O processo global da sociedade é um processo causal, que possui suas próprias normatividades, mas não é jamais objetivamente dirigido para a realização de finalidades. Mesmo quando alguns homens ou grupos de homens conseguem realizar suas finalidades, os resultados produzem, via de regra, algo que é inteiramente diverso daquilo que se havia pretendido. (Basta pensar no modo pelo qual o desenvolvimento das forças produtivas, na Antiguidade, destruiu as bases da sociedade; ou no modo pelo qual, num determinado estágio do capitalismo, esse mesmo desenvolvimento provocou crises econômicas periódicas etc.) Essa discrepância interior entre as posições teleológicas e os seus efeitos causais aumenta com o crescimento das sociedades, com a intensificação da participação sócio-humana em tais sociedades. Naturalmente, também isso deve ser entendido em sua contraditoriedade concreta. Certos grandes eventos econômicos (como, por exemplo, a crise de 1929) podem se apresentar sob a aparência de irresistíveis catástrofes naturais. A história mostra, porém, que precisamente nas reviravoltas mais significativas - basta pensar nas grandes revoluções - foi bastante importante o que Lênin costumava chamar de fator subjetivo. É verdade que a diferença entre a finalidade e seus efeitos se expressa como preponderância de fato dos elementos e tendências materiais no processo de reprodução da sociedade. Isso não significa, todavia, que esse processo consiga afirmar-se sempre de modo necessário, sem ser abalado por nenhuma resistência. O fator subjetivo, resultante da reação humana a tais tendências de movimento, conserva-se sempre, em muitos campos, como um fator por vezes modificador e, por vezes, até mesmo decisivo.



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Tentamos mostrar como as categorias fundamentais e suas conexões no ser social já estão dadas no trabalho. Os limites dessa conferência não nos permitem seguir, ainda que só de modo indicativo, a ascenção gradual do trabalho até a totalidade da sociedade. (Por exemplo: não ,podemos nos deter sobre transições importantes como a do valor-de-uso ao valor-de-troca, desse último ao dinheiro, etc.) Por isso, os ouvintes - a fim de que eu possa quando menos me referir à importância que os elementos até aqui esboçados têm para o conjunto da sociedade, para seu desenvolvimento, para suas perspectivas - devem permitir que eu passe por alto de zonas de intermediação concretamente bastante importantes, com o objetivo de esclarecer assim um pouco mais amplamente, pelo menos, o vínculo mais geral desse início genético da sociedade e da história com o seu próprio desenvolvimento.

Antes de mais nada, trata-se de ver em que consiste aquela necessidade econômica que amigos e inimigos de Marx, analisando com escassa compreensão o conjunto da sua obra, costumam exaltar ou denegrir. Cabe sublinhar, de imediato, uma coisa óbvia: não se trata de um processo de necessidade natural, embora o próprio Marx em polêmica contra o idealismo - tenha algumas vezes usado essa expressão. À razão ontológico fundamental - causalidade posta em movimento por decisões teleológicas alternativas -, já fizemos referência. Desse fato decorre o seguinte: que nossos conhecimentos positivos a respeito devem, quanto aos aspectos concretamente essenciais, ter um caráter post festum. Decerto, algumas tendências gerais são visíveis; mas, concretameute, elas se traduzem na prática de modo bastante desigual, razão por que tão-só num segundo momento é que conseguimos saber qual é o seu caráter concreto. Na maioria dos casos, apenas os modos de realização dos produtos sociais mais diferenciados, mais complexos, é que mostram claramente qual foi na realidade a orientação evolutiva de um período de transformação. Portanto, tais tendências só podem ser apreendidas de modo preciso num segundo momento; da mesma maneira, os julgamentos, aspirações, previsões etc., sociais ~que se formaram no entretempo - e que não são de modo algum indiferentes em face da explicitação das próprias tendências - só são confirmados ou refutados numa etapa posterior.

No desenvolvimento econômico ocorrido até hoje, podemos notar a presença de três orientações evolutivas desse tipo, as quais se realizaram de modo evidente, ainda que freqüentemente desigual, mas de qualquer modo independentemente da vontade e do saber que serviram de fundamento às posições teleológicas.

Em primeiro lugar, há uma tendência constante no sentido de diminuir o tempo de trabalho socialmente necessário à reprodução dos homens. Trata-se de uma tendência geral, que hoje já ninguém contesta.

Em segundo lugar, esse processo de reprodução tornou-se cada vez mais nitidamente social. Quando Marx se refere a um constante "recuo dos limites naturais", pretende indicar, por um lado, que a vida humana (e portanto social) jamais pode desvincular-se inteiramente da sua base em processos naturais; e, .por outro, que - tanto no plano quantitativo quanto no qualitativo - diminui constantemente o papel do elemento puramente natural, quer na produção quer nos produtos; ou, em outras palavras, todos os momentos decisivos da reprodução humana (basta pensar em aspectos naturais como a nutrição ou a sexualidade) acolhem em si, com intensidade cada vez maior, momentos sociais, pelos quais são constante e essencialmente transformados.

Em terceiro lugar, o desenvolvimento econômico cria ligações quantitativas e qualitativas cada vez mais intensas entre as sociedades singulares originariamente pequenas e autônomas, as quais no início - de modo objetivo e real - compunham o gênero humano. O predomínio econômico do mercado mundial, que hoje se afirma cada vez mais fortemente, mostra que a humanidade já se unificou, pelo menos no sentido econômico geral. É verdade que tal unificação existe apenas como ser e ativação de princípios econômicos reais de unidade. Ela se realiza concretamente num mundo onde essa integração abre para a vida dos homens e dos povos os mais graves E ásperos conflitos (por exemplo: a questão dos negros nos Estados Unidos).

Em todos esses casos, estamos diante de tendências importantes, decisivas, da transformação tanto externa quanto interna do ser social, através das quais esse último chega à forma que lhe é própria; ou seja, o homem deixa a condição de ser natural para tornar-se pessoa humana, transforma-se de espécie animal que alcançou um certo grau de desenvolvimento relativamente elevado em gênero humano, em humanidade. Tudo isso é o produto das séries causais que surgem no conjunto da sociedade. O processo em si não tem uma finalidade. Seu desenvolvimento no sentido de níveis superiores, por isso, contém a ativação de contradições de tipo cada vez mais elevado, cada vez mais fundamental. O progresso é decerto uma síntese das atividades humanas, mas não o aperfeiçoamento no sentido de uma teleologia qualquer: por isso, esse desenvolvimento destrói continuamente os resultados primitivos que, embora belos, são economicamente limitados; por isso, o progresso econômico objetivo aparece sempre sob a forma de novos conflitos sociais. É assim que surgem, a partir da comunidade primitiva dos homens, antinomias aparentemente insolúveis, isto é, as oposições de classe; de modo que até mesmo as piores formas de inumanidade são o resultado desse progresso. Nos inícios, o escravagismo constitui um progresso em relação ao canibalismo; hoje, a generalização da alienação dos homens é um sintoma do fato de que o desenvolvimento econômico está para revolucionar a relação do homem com otrabalho.

A individualidade já aparece como uma categoria do ser natural, assim como o gênero. Esses dos pólos do ser orgânico podem se elevar a pessoa humana e o ,gênero humano no ser social tão-somente de modo simultâneo, tão-somente no processo que torna a sociedade cada vez mais social. O materialismo anterior a Marx não chegou sequer a colocar o problema. Para Feuerbach, segundo a objeção crítica de Marx, há apenas o indivíduo humano isolado, por um lado, e, por outro, um gênero mudo, que relaciona os múltiplos indivíduos somente no plano natural. Tarefa de uma ontologia materialista tornada histórica é, ao contrário, descobrir a gênese, o crescimento, as contradições no interior do desenvolvimento unitário; é mostrar que o homem, como simultaneamente produtor e produto da sociedade, realiza em seu serhomem

algo mais elevado que ser simplesmente exemplar de um gênero abstrato, que~ o gênero - nesse nível ontológico, no nível do ser social desenvolvido - não é mais uma mera generalização à qual os vários exemplares se lìguem "mudamente"; é mostrar que esses, ao contrário, elevam-se até o ponto de adquirirem uma voz cada vez mais claramente articulada, até alcançarem a síntese ontológico-social de sua singularidade, convertida em individualidade, com o gênero humano, convertido neles, por sua vez, em algo consciente de si.


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Como teórico desse ser e desse devir, Marx extrai todas as conseqüências do desenvolvimento histórico. Descobre que os homens se autocriaram como homens através do trabalho, mas que a sua história até hoje foi apenas a pré-história da humanidade. A história autêntica poderá começar apenas com o comunismo, com o estágio superior do socialismo. Portanto, o comunismo não é para Marx uma antecipação utópico-ideal de um estado de perfeição imaginada à qual se deve chegar; ao contrário, é o início real da explicitação das energias autenticamente humanas que o desenvolvimento ocorrido até hoje suscitou, reproduziu, elevou contraditoriamente a níveis superiores, enquanto importantes realizações da humanização. Tudo isso é resultado dos próprios homens, resultado da atividade deles. "Os homens fazem sua história", diz Marx, "mas não em circunstâncias por eles escolhidas". Isso quer dizer o mesmo que antes formulamos do seguinte modo: o homem .é um ser que dá respostas. Expressa-se aqui a unidade - contida de modo contraditoriamente indissolúvel no ser social - entre liberdade e necessidade; ela já opera no trabalho como unidade indissoluvelmente contraditória das decisões teleológicas entre alternativas com as premissas e conseqüências ineliminavelmente vinculadas por uma relação causal necessária. Uma unidade que se reproduz continuamente sob formas sempre novas, cada vez mais complexas e mediatizadas, em todos os níveis sócio-pessoais da atividade humana.

Por isso, Marx fala do período inicial da autêntica história da humanidade como de um "reino da liberdade", o qual porém "só pode florescer sobre a base do reino da necessidade" (isto é, da reprodução econômico-social da humanidade, das tendências objetivas de desenvolvimento à qual nos referimos anteriormente).

Precisamente essa ligação do reino da liberdade com sua base sóciomaterial, com o reino econômico da necessidade, mostra como a liberdade do gênero humano seja o resultado de sua própria atividade. A liberdade, bem como sua possibilidade, não é algo dado por natureza, não é um dom do "alto" e nem sequer uma parte integrante - de origem misteriosa - do ser humano. É o produto da própria atividade humana, que decerto sempre atinge concretamente alguma coisa diferente daquilo que se propusera, mas que nas suas conseqüências dilata - objetivamente e de modo contínuo - o espaço no qual a liberdade se torna possível; e tal dilatação ocorre, precisamente, de modo direto, no processo de desenvolvimento econômico, no qual, por um lado, acresce-se o número, o alcance etc., das decisões humanas entre alternativas, e, por outro, eleva-se ao mesmo tempo a capacidade dos homens, na medida em que se elevam as tarefas a eles colocadas por sua própria atividade. Tudo isso, naturalmente, permanece ainda no "reino da necessidade".

O desenvolvimento do processo de trabalho, do campo de atividade, tem porém outras conseqüências, dessa feita indiretas: antes de mais nada, o surgimento e a explicitação da personalidade humana. Essa tem, como base inevitável, a elevação das capacidades, mas não é sua simples e linear consecução. Aliás, é possível constatar que - no desenvolvimento até agora verificado - manifesta,se inclusive, entre os dois processos, uma freqüente relação de oposição. Uma oposição que se apresenta diversamente nas diferentes etapas do desenvolvimento, mas que se aprofunda à medida que esse se torna mais elevado. Hoje, o desenvolvimento das capacidades, que vão se diferenciando cada vez mais nitidamente, aparece inclusive como um obstáculo para o devir da personalidade, como um veículo para a alienação da personalidade humana.

Já com o trabalho mais primitivo, ,á adequação dos homens ao gênero deixa de ser muda. Todavia, no ,princípio e em sua imediaticidade, ela se torna apenas um ser-em-si: a consciência ativa do respectivo contexto social, economicamente fundado. Por maiores que sejam os progressos da
socialidade, por mais que seu horizonte se alargue, a consciência geral do gênero humano não supera ainda essa particularidade da condição do indivíduo e do gênero dada em cada oportunidade concreta.

Todavia, a elevação da adequação ao gênero jamais desaparece completamente da ordem-do-dia da história. Marx define o reino da liberdade como "um desenvolvimento de energia humana que é fim em si mesmo", como algo, portanto, que tanto para o homem individual quanto para a sociedade tem um conteúdo suficiente para transformá-lo em fím autônomo. Antes de mais nada, é claro que uma tal adequação ao gênero pressupõe um nível do reino da necessidade do qual, no presente momento, ainda estamos muito longe. Só quando o trabalho for efetiva e completamente dominado pela humanidade e, portanto, só quando ele tiver em si a possibilidade de ser "não apenas meio de vida", mas "o primeiro carecimento da vida", só quando a humanidade tiver superado qualquer caráter coercitivo em sua própria autoprodução, só então terá sido aberto 0 caminho social da atividade humana como fim autônomo. Abrir o caminho significa: . criar as condições materiais necessárias e um campo de possibilidades para o livre emprego de si. Ambas as coisas são produtos da atividade humana. A primeira, porém, é fruto de um desenvolvimento necessário, enquanto a segunda resulta de uma utilização correta, humana, do que foi produzido necessariamente. A própria liberdade não pode ser simplesmente um produto necessário de um desenvolvimento inelutável, ainda que todas as premissas de sua explicitação encontrem nesse desenvolvimento - e somente nele - suas possibilidades de existência.

É por isso que não estamos aqui diante de uma utopia. Com efeito, em primeiro lugar, todas as suas possibilidades efetivas de realização são produzidas por um processo necessário. Não é casual que já no trabalho, em seu primeiríssimo estágio, tenhamos dado tanto peso ao momento da liberdade na decisão entre alternativas. O homem deve adquirir sua própria liberdade através de sua própria atuação. Mas ele só pode fazê-lo porque toda sua atividade já contém, enquanto parte constitutiva necessária, também um momento de liberdade.

Aqui, porém, há muito mais. Se tal momento não se manifestasse ininterruptamente no curso de toda a história humana, se não conservasse nela uma perene continuidade, não poderia naturalmente desempenhar o papel de fator subjetivo nem sequer durante a grande virada. Mas a contraditória desigualdade do desenvolvimento sempre provocou tais conseqüências. Já o caráter causal das conseqüências das posições teleológicas faz que todo progresso surja ao ser como unidade na contradição de progresso e regressão.

Com as ideologias, tal fato não ,apenas é elevado à consciência (que freqüentemente ê uma falsa consciência) e tratado segundo os respectivos interesses sociais antagônicos, mas é igualmente referido às sociedades como totalidades vivas; aos homens com personalidades que buscam o seu próprio caminho verdadeiro. Por isso, em algumas importantes manifestações individuais, volta continuamente a se expressar a imagem - até agora sempre fragmentária - de um mundo de atividades humanas que é digno de ser assumido como finalidade autônoma. Aliás, é da maior importância constatar como, enquanto os novos ordenamentos práticos, que em seu tempo marcaram época, desaparecem da memória da maior parte da humanidade sem deixar traço, essas atitudes - na prática necessariamente vãs, freqüentemente condenadas a um fim trágico - conservam-se, ao contrário, como algo ineliminável e vivo na recordação da humanidade.

É a consciência da melhor parte dos homens, daqueles que, no processo da autêntica humanização, colocam-se em condições de dar um passo à frente com relação à maioria de seus contemporâneos; e é esse consciência que, a despeito de todo problema prático, empresta às manifestações desses homens uma tal durabilidade. Expressa-se neles uma comunhão de personalidade e sociedade que mira precisamente a essa adequação plenamente explicitada do homem ao gênero. Com a sua disponibilidade a empreender um progresso interior nas crises das possibilidades às quais o gênero chegou pelos caminhos normais, tais pessoas - nos momentos em que as possibilidades de uma adequação ao gênero para si são materialmente exploráveis - contribuem para produzi-la efetivamente.

A maior parte das ideologias estiveram e estão a serviço da conservação e do desenvolvimento da adequação ao gênero em si. Por isso, orientam-se sempre para a atualidade concreta, aparelham-se sempre de modo a corresponder aos variados tipos da luta atual. Mas apenas a grande filosofia e a grande arte (assim como o comportamento exemplar' de alguns indivíduos em sua ação) operam nessa direção, conservam-se espontaneamente na memória da humanidade; acumulam-se enquanto condições de uma disponibilidade: tornam os homens interiormente disponíveis para o reino da liberdade. E, antes de mais nada, temos aqui uma recusa sócio-humana das tendências que põem em perigo esse fazer-se homem do homem. O jovem Marx, por exemplo, viu no domínio da categoria do "ter" o perigo central. Não é um acaso que, para ele, a luta de libertação da humanidade culmine na perspectiva segundo a qual os sentidos humanos deverão se transformar em elaboradores de teorias. Assim, tampouco certamente é casual o fato de que, ao lado dos grandes filósofos, Shakespeare e os trágicos gregos tenham desempenhado um papel tão importante na formação espiritual e na conduta de Marx. (Nem tampouco a admiração de Lênin pela Apassionata é um episódio casual.) Aqui podemos ver como os clássicos do marxismo, ao contrário dos seus epígonos, todos dominados pela idéia da manipulação exata, jamais tenham perdido de vista o tipo particular de realizabilidade do reino da liberdade, embora tenham sabido avaliar - de modo igualmente claro - o indispensável papel de fundamento desempenhado pelo reino da necessidade.

Hoje, na tentativa de renovar a ontologia marxiana, deve-se dar igual importância a ambos os aspectos: a prioridade do elemento material na essência, na constituição do ser social, por um lado, mas, por outro e ao mesmo tempo, a necessidade de compreender que uma concepção materialista da realidade nada tem em comum com a capitulação, habitual em nossos dias, diante dos particularismos tanto objetivos quanto subjetivos.




O texto aqui traduzido, redigido no início de 1968 como base para uma conferência que deveria ser apresentada no Congresso Filosófico Mundial realizado em Viena (mas ao qual Lukács não pôde comparecer), foi publicado em 1969, em húngaro, sendo depois editado em alemão (1970) e em italiano (1972). O texto se baseia na chamada "grande" Ontologia, cujo manuscrito estava, na época, em fase de acabamento. Sabe-se, contudo, que - após a conclusão desse primeiro manuscrito e insatisfeito com seus resultados - Lukács empreendeu a redação de uma nova versão, conhecida como "pequena" Ontologia (ou também como Prolegômenos), na qual trabalhou até sua morte, ocorrida em junho de 1971 (Cf. István Eórsi, "The story of a posthumous work (Lukács Ontology)" in The New Hungarian Quarterly, XVI, n ° 58, Summer 1975, pp. 106-108). Apesar do seu caráter necessariamente sumário e esquemático, a presente conferência tem o mérito de fornecer uma síntese do trabalho ontológico de Lukács, além de ser um dos poucos textos relativos a este trabalho que o próprio autor revisou para publicação.

Tradução de Carlos Nelson Coutinho.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O Estatuto Ontológico da Essência - Sérgio Lessa

Retirado do artigo: "Lukács e a ontologia: uma introdução" da revista Outubro nº 1 (grifo meu)

Todas as ontologias até Hegel consideram a essência como o “verdadeiro ser”, ou seja, a essência concentraria em si um quantum maior de ser que os fenômenos. Há, neste sentido, uma clara distinção do estatuto de ser entre o essencial e o fenomênico: o primeiro é autenticamente, o segundo apenas pode existir tendo na essência o seu fundamento. Portanto, a existência do fenômeno é, para sermos breves, de segunda ordem, decorrente da existência primordial da essência. Esta supremacia ontológica da essência é o fundamento último das concepções teleológicas da história, pois, novamente sendo extremamente sintético,o desenvolvimento histórico teria por direção e sentido necessários à realização desse ser essencial.

Marx opera uma reviravolta nesta concepção, segundo Lukács. Para Marx, a essência e o fenômeno são categorias que possuem o mesmo estatuto ontológico, são igualmente existentes e igualmente necessárias ao desdobramento de todo e qualquer processo. Não há absolutamente nenhuma processualidade que não desdobre, no seu desenvolvimento, uma relação entre essência e fenômeno. Em sendo assim, o que distinguiria essência e fenômeno seriam as distintas funções que exercem no interior da processualidade da qual são determinações.

Vejamos: um processo é, necessariamente, a passagem de uma dada situação à outra (digamos, a passagem de uma semente a uma árvore, ou de uma monarquia a uma república). Esta passagem possui alguns elementos necessários:

1) os seus momentos devem ser distintos entre si, senão não teríamos um processo. Tais momentos têm que possuir, portanto, cada um deles, elementos que os diferenciam entre si e os tornam únicos. Assim, cada momento da passagem da semente à árvore, ou da monarquia à república, constitui um momento distinto e, nesse sentido, singular, no interior do processo;

2) a singularidade dos momentos do processo não significa, contudo, que não haja, também, elementos de continuidade que os permeiem a todos. Assim, a proclamação da república no Brasil, e a derrubada revolucionária da monarquia absolutista na França de Luiz XVI são, ambas, passagens da monarquia à república. Contudo, são processos absolutamente diferentes porque, para sermos breves, são partícipes da história de dois países completamente distintos. A monarquia e a república brasileiras possuem determinações históricas comuns, de tal modo que perpassaram também o processo de transição de uma a outra. O mesmo se pode dizer da realidade francesa. No exemplo da semente e da árvore, o mesmo DNA, por exemplo, é uma determinação que está presente ao longo de todo processo, e esta presença de um elemento comum a todo processo em nada diminui a singularidade irrepetível de cada um dos seus momentos enquanto tais;

3) Há, portanto, duas determinações fundamentais para que ocorra qualquer processo: os elementos de continuidade que articulam cada um dos seus momentos singulares em um único processo, e os elementos que consubstanciam a diferença dos momentos entre si e, portanto, do ponto de partida do processo do seu ponto de chegada;

4) A relação entre estas determinações fundamentais é dupla. Por um lado, os momentos singularizantes que consubstanciam cada momento particular do processo são a mediação indispensável para que o processo se desdobre enquanto tal. Assim, como em qualquer dos processos históricos citados, cada um dos eventos que articulam a transição da monarquia à república constitui a mediação sem a qual aquela transição específica não poderia ocorrer. Mas, por outro lado, também é verdade que, em cada um desses eventos, o horizonte possível de desenvolvimentos futuros é dado pelo campo de possibilidades historicamente reais inscritas no seu hic et nunc. Por isso, cada momento do processo é único, irrepetível - o que quer dizer, é novo, inédito - e, concomitantemente, é portador de todas as determinações passadas que condicionaram sua gênese. O que equivale a dizer que são eles, também, portadores das determinações históricas mais gerais do processo. O mesmo, mutatis mutandis, pode ser dito da transformação da semente em árvore.

Há, portanto, intrínsecas a toda processualidade, duas funções ontológicas articuladas e distintas: as determinações mais universais que perpassam todo o processo, e os momentos singulares que consubstanciam as mediações indispensáveis para que o processo se desenvolva de um estágio mais primitivo ao mais desenvolvido. Sem as determinações mais universais, o processo não teria continuidade, seria o mais absoluto caos. Sem os processos de singularização não haveria as mediações indispensáveis para que o processo possa passar de uma dada situação à outra. É isto que, segundo Lukács, diferenciaria essência e fenômeno para Marx: os elementos de continuidade consubstanciam a essência, e os elementos de singularização, a esfera fenomênica. Claro que, nesta determinação reflexiva, o fenômeno só pode vir a ser em sua relação com a essência, enquanto esta apenas pode se desenvolver pela mediação fenomênica: há aqui uma constante interação entre as duas categoriais, de tal modo que:
a) diferente de todas as ontologias anteriores, o desenvolvimento dos fenômenos exerce uma influência real no desdobramento da essência que, no limite, poderá ser profundamente transformada pelo fenômeno. Pensemos, por exemplo, em um processo revolucionário;
b) ao contrário de todas as ontologias que o precederam, para Marx, a essência não se identifica imediata e diretamente com o universal. Na enorme maioria das vezes a essência tende a ser a universalidade do processo, contudo, em momentos de rupturas ontológicas (como as revoluções, por exemplo), o essencial pode se manifestar em um evento singular, que traz em si o novo a ser realizado pela história;
c) superando todas as concepções ontológicas anteriores, a essência, em Marx, tal como o fenômeno, é uma determinação inerente à história, é uma categoria absolutamente processual. Não mais se distingue por ser ela, a essência, eternamente fixa, a-histórica, enquanto o fenômeno seria o locus da mudança, do efêmero, do histórico. Esta concepção permite a Marx postular que a essência humana é construto da história dos homens e que, no interior desta se distingue, enquanto categoria, por concentrar os elementos de continuidade do desenvolvimento humano-genérico e, jamais, por se constituir no limite intransponível da história humana.

Com isto, encerramos o primeiro momento da nossa exposição: teríamos em Marx uma concepção radicalmente nova da relação entre os homens e sua história. Esta seria, em todas as suas dimensões, mesmo as mais essenciais, um construto humano, e não haveria nenhuma dimensão transcendente à história a determinar os processos sociais. Os homens seriam os únicos e exclusivos demiurgos do seu destino, não haveria aqui nenhum limite imposto aos homens senão as próprias relações sociais construídas pela humanidade.

Há, contudo, como mencionamos, um segundo momento: a exploração das mediações ontológicas pelas quais os homens, de fato, construíram sua própria história. Há a necessidade, portanto, de se demonstrar como, com que mediações, de que modo, os homens fazem a sua própria história - ou, se quiserem, a sua própria essência - e, para realizar esta demonstração, Lukács investigou as quatro categorias ontológicas fundamentais do mundo dos homens: trabalho, reprodução, ideologia e estranhamento (Entfremdung).

Trabalho e reprodução

Argumenta Lukács que a gênese do ser social consubstanciou um salto ontológico para fora da natureza. Se, na natureza, o desenvolvimento da vida é o desenvolvimento das espécies biológicas, no mundo dos homens a história é o desenvolvimento das relações sociais, ou seja, um desenvolvimento social que se dá na presença da mesma base genética. O que determina o desenvolvimento do homem enquanto tal não é sua porção natural-biológica (ser um animal que necessita da reprodução biológica), mas sim, a qualidade das relações sociais que ele desdobra. Se é verdade, por um lado, que as barreiras naturais (a necessidade da reprodução biológica) jamais podem ser abolidas, não menos verdadeiro é que elas são cada vez mais “afastadas”, de modo que exercem, na história dos homens, uma influência cada vez menor, ainda que sempre presente. Basta pensarmos na transição do feudalismo ao capitalismo, ou em qualquer evento histórico mais importante, para termos uma idéia clara do que aqui nos referimos: não é possível explicá-los a partir do desenvolvimento das determinações biológicas dos homens.

Pelo contrário, o desenvolvimento social tem por seu fundamento último o fato de que, a cada processo de objetivação(9), o trabalho produz objetiva e subjetivamente algo “novo”, com o que a história humana se consubstancia como um longo e contraditório processo de acumulação que é o desenvolvimento das “capacidades humanas” para, de forma cada vez mais eficiente, transformar o meio nos produtos materiais necessários à reprodução social.

Em outras palavras, ao transformar a natureza, o indivíduo e a sociedade também se transformam. A construção de uma lança possibilita que, no plano da reprodução do indivíduo, este acumule conhecimentos e habilidades que não possuía antes; ou seja, após a lança, o indivíduo já não é mais o mesmo de antes. Analogamente, uma sociedade que conhece a lança possui possibilidades e necessidades que não possuía antes; ela também já não é mais a mesma. Todo processo de objetivação cria, necessariamente, uma nova situação sócio-histórica, de tal modo que os indivíduos são forçados a novas respostas que devem dar conta da satisfação das novas necessidades a partir das novas possibilidades. Por isso, a história humana jamais se repete: a reprodução social é sempre e necessariamente a produção do novo.(10)

É esta produção do novo que revela um dos traços ontologicamente mais marcantes do trabalho: ele sempre remete para além de si próprio. Ao transformar a natureza para atender suas necessidades mais imediatas, o indivíduo também transforma a si próprio e à sociedade. Neste impulso ontológico em direção às sociabilidades cada vez mais complexas, ricas, o desenvolvimento social consubstancia o crescimento das “capacidades humanas” para produzir os bens materiais necessários à sua reprodução. Este desenvolvimento das capacidades humanas, por sua vez, possui dois pólos distintos, ainda que rigorosamente articulados (são “determinações reflexivas”): o desenvolvimento das forças produtivas e o desenvolvimento das individualidades. A rigor, sem o desenvolvimento das forças produtivas não poderíamos ter a passagem da sociabilidade aos modos de produção mais complexos e, concomitantemente, sem o desenvolvimento das “capacidades” dos indivíduos estes não poderiam operar as relações sociais cada vez mais complexas envolvidas na passagem da sociedade a modos de produção cada vez mais desenvolvidos. A reprodução social, portanto, desdobra, segundo Lukács, dois “pólos” indissociáveis: a reprodução das individualidades e a reprodução da totalidade social.

Este remeter do trabalho para além de si próprio é a sua conexão ontológica com a reprodução social como um todo. É esta característica que o torna a categoria fundante do ser social: é aqui que a história social apresenta determinações absolutamente distintas da natureza. Por ser o locus ontológico da criação do novo, o trabalho é o fundamento genético de necessidades que, muitas vezes, requerem o desenvolvimento de complexos sociais que são em tudo e por tudo heterogêneos ao trabalho. Basta pensarmos em complexos como a linguagem (com a lingüística, a gramática, etc.), como o direito, a filosofia, as ciências, a religião, etc, para termos uma noção da complexidade do processo aqui referido. É por esse processo de desenvolvimento que o mundo dos homens vai se explicitando, ao longo do tempo, como um “complexo de complexos” cada vez mais mediado e internamente diferenciado, cada vez mais desenvolvido socialmente.

Para distinguir entre o trabalho e o conjunto muito amplo das praxis sociais que não operam a transformação material da natureza, Lukács denominou o primeiro de posição teleológica primária e o segundo de posições teleológicas secundárias.

Ideologia e estranhamento


É no interior das posições teleológicas secundárias que encontramos o complexo da ideologia. O que o particularizaria, segundo Lukács, é sua função social específica: mediar os conflitos sociais, quaisquer que sejam eles. Sumariamente, Lukács argumenta que a transformação do real, no processo de reprodução social, requer necessariamente algum conhecimento do setor do real a ser transformado.(11) Esta exigência de conhecimento do real posta pelo trabalho exibe um duplo impulso à totalização que também não pode ser cancelado: 1) como o real é uma síntese de múltiplas determinações, o conhecimento de uma destas determinações remete, necessariamente, às relações que ela possui com as “outras determinações”, de tal modo que nenhum conhecimento de nenhum setor específico da realidade se esgota em si próprio, remetendo sempre à totalidade dos complexos ao qual pertence e, no limite, à totalidade do existente.(12) 2) O segundo momento decorre da própria praxis social: como o indivíduo que adquire um dado conhecimento acerca da pedra e da madeira ao fazer o machado é o mesmo indivíduo que vai fazer a casa, construir uma enxada ou adorar aos deuses, o conhecimento da pedra e da madeira passa a ser explorado em sua capacidade de atender às necessidades postas em outros setores da praxis social, não necessariamente articulado com aquela objetivação que possibilitou tal conhecimento. Assim, o conhecimento adquirido em uma práxis específica pode, e é, remetido e utilizado em circunstâncias as mais diversas.

É por meio destas mediações mais gerais que, segundo Lukács, a praxis social dá origem a uma série de complexos sociais que têm a função social de sistematizar os conhecimentos adquiridos em uma concepção de mundo que termine por fornecer, no limite, uma razão para a existência humana. É neste contexto que se desenvolvem os complexos sociais da ciência, da filosofia, da religião, da ética, da estética, etc. Não podemos, aqui, examinar as determinações ontológicas de cada um destes complexos. O que aqui nos importa é indicar ao leitor como, e em que medida, do impulso do trabalho para além de si próprio, temos a gênese de complexos sociais em tudo distintos da transformação material da natureza, ainda que surjam para atender a necessidades postas, em última instância, pelo próprio desenvolvimento do trabalho.(13)

É aqui o solo ontológico do complexo da ideologia. Todo conflito social implica, para seu desdobramento, em uma transformação das relações sociais. Para tanto, no interior dos próprios conflitos, é necessário que as posições sejam justificadas, de tal forma que uma alternativa seja reconhecida como mais válida que a outra. Em sociedades sem classes, estes conflitos podem ser resolvidos sem que se recorra à violência pura. Contudo, nas sociedades de classe, a violência passa a ser uma mediação indispensável para a própria reprodução social. Em ambos os casos, a ideologia é um complexo social fundamental: sem ela, nem o desenvolvimento dos conflitos nem a utilização da violência poderiam ocorrer, impossibilitando assim a continuidade da reprodução das sociedades de classe.

Portanto, a ideologia, para Lukács, é o conjunto das idéias que os homens lançam mão para interferirem nos conflitos sociais da vida cotidiana. Se as idéias são ou não reflexos corretos da realidade, se e em que medida correspondem ao real, é uma questão que em nada interfere(14) no fato de exercerem uma função ontológica na reprodução social.

Conceber a ideologia como função social e não como “falsificação do real” possibilita a Lukács superar o mito da “ciência neutra”: se a ideologia fosse sempre e necessariamente a falsa consciência, a “verdadeira” consciência apenas poderia ser a ciência. Deste modo, por uma vertente absolutamente inesperada, terminaríamos na tese, claramente burguesa, da ciência como conhecimento neutro, acima das classes e dos valores, com todos os problemas que advêm de tal posição.

Além do desenvolvimento de complexos sociais em tudo heterogêneos em relação ao trabalho, o impulso do trabalho para além de si próprio tem ainda um outro resultado: como não podemos controlar de forma absoluta todas as conseqüências possíveis dos atos humanos, há sempre a possibilidade de as objetivações terminarem por se converterem em obstáculos ao pleno desenvolvimento humano. Dito de outro modo, toda objetivação põe em ação séries causais cujos desdobramentos futuros não podem ser previstos de modo absoluto, já que ainda não aconteceram. Ou, ainda, como o presente é apenas o campo de possibilidades para o desenvolvimento futuro (do presente não há apenas um futuro possível) não podemos, a partir do presente, prever de forma absoluta como será o futuro. Ou, uma outra formulação equivalente, como a história não é uma processualidade teleológica, não há como termos absoluto controle do futuro a partir do presente (e, claro, do passado).

É este quantum de acaso presente em toda objetivação e nas suas conseqüências que se radica a possibilidade de a humanidade produzir mediações sociais que terminarão por se constituir na própria desumanidade socialmente posta pelos homens. É este fenômeno que Lukács denomina de Entfremdung, geralmente traduzido entre nós por Estranhamento ou Alienação. Nada mais é que o complexo de relações sociais que, a cada momento histórico, consubstancia os obstáculos socialmente produzidos para o pleno desenvolvimento humano-genérico.

As formas historicamente concretas que assumem estes obstáculos variam enormemente; contudo sempre se relacionam ao nódulo mais essencial da reprodução das sociedades. É por isso que a superação dos estranhamentos fundamentais de cada sociabilidade tem requerido, até hoje, a superação da própria sociabilidade.



(9) Objetivação é a transformação do real a partir de um projeto previamente idealizado na consciência. É uma mediação fundamental do complexo categorial do trabalho.

(10) Não queremos sugerir que esta incessante produção do novo não exiba linhas de continuidade às quais, não raramente, são predominantes nos processos sociais.

(11) Conhecer o real, portanto, é uma exigência fundamental posta pelo próprio trabalho. Contudo, esta exigência jamais se apresenta de forma absoluta. Por exemplo: a transformação da pedra em machado pode se dar, e o conhecimento necessário para esta transformação pode estar presente, numa práxis social pertencente a um indivíduo e sociedade que crêem em uma concepção animista da natureza. Uma concepção ontológica falsa pode, perfeitamente, ser compatível com o conhecimento verdadeiro, efetivo, do setor do real a ser transformado.

(12) Acerca da determinação do processo gnosiológico pelas relações e categorias do ser-precisamente-assim existente, cf. Sérgio Lessa, “Lukács, ontologia e método: em busca de
um(a) pesquisador(a) interessado(a), Revista Praia Vermelha, l1(2), 1999 e também “Teleologia, causalidade e conhecimento” in Trabalho e ser social, Maceió, Edufal, 1997.

(13) A não consideração deste fato tem conduzido, no debate contemporâneo, à redução de todo o ser social ao trabalho. Com isto, por uma outra vertente que não a de Claus Offe e Habermas, cancelamos o caráter fundante do trabalho para o mundo dos homens: se tudo é trabalho, não há como o trabalho exercer uma função ontológica fundante, já que seria mera tautologia afirmá-lo como fundante de si próprio. Cancelado o trabalho como categoria fundante está aberta a porta para também cancelarmos a reprodução material como o momento predominante da história e, ainda que com as devidas mediações, para abolirmos a distinção social entre os operários e as outras classes sociais (se todas as praxis sociais são trabalho, Antônio Ermínio de Moraes é tão trabalhador quanto qualquer operário fabril!). Atualmente, no Serviço Social, na Educação e na Medicina encontramos algumas formulações que caminham nesse sentido.

(14) Fixemos, pois fundamental para a compreensão da Ontologia: ser ideologia não depende de compor um reflexo falso ou verdadeiro do real, mas sim de cumprir, em um dado momento histórico, a função social de ideologia. Cf. E. Vaisman, “Ideologia e sua determinação ontológica”, Ensaio, 17-18, s/d.

O Problema da Essência Humana - Sérgio Lessa

Retirado do artigo: "Lukács e a ontologia: uma introdução" da revista Outubro nº 1. (grifo meu)

Resumindo, talvez além do admissível, as investigações acerca da essência humana, poderíamos afirmar que nela encontramos dois grandes momentos. O primeiro, que vai dos gregos até Hegel, e o segundo, de Marx até nossos dias.

O primeiro período se subdivide em três momentos. A Grécia Antiga que, desde Parmênides, estabeleceu o patamar do que viria a ser a discussão, até Hegel; o período Medieval, Santo Agostinho e São Tomás como seus maiores expoentes e, finalmente, Hegel, principalmente o da Fenomenologia do Espírito. O que caracteriza todo este primeiro período é a concepção dualista/transcendental de que teríamos um “verdadeiro ser”, que corresponderia à essência, à eternidade, ao fixo; e um ser menor, ou uma manifestação “corrompida” do ser, que seria a esfera do efêmero, do histórico, do processual.

No mundo grego, a concepção da relação entre o homem e seu destino foi moldada a esta concepção mais geral. Existiria uma dimensão essencial, eterna, que não poderia ser construto dos homens nem poderia ser por eles alterada. Esta dimensão, por sua vez, impunha limites ao fazer a história pelos homens. Assim, em Platão, a direção da história é dada, não pelas ações dos próprios homens, mas pela referência fixa ao modelo, também fixo, da esfera essencial das Idéias.

Mutatis mutandis, em Aristóteles um esquema análogo pode ser encontrado. O Cosmos seria uma estrutura esférica que articularia uma esfera eterna (a das estrelas fixas) com o seu centro, no qual se localizaria a Terra, onde tudo não passaria de movimento, de história. Esta estrutura forneceria a cada coisa o seu “lugar natural”, de tal modo que conhecer a essência de cada ente nada mais significava que descobrir o seu “lugar natural” dentro da estrutura cosmológica. O “lugar natural” dos homens seria o espaço limitado pelos semideuses e os bárbaros: a humanidade poderia se desenvolver no espaço entre os bárbaros (os humanos mais primitivos) e os gregos (em especial os Atenienses, os humanos mais desenvolvidos). Tal como em Platão, também em Aristóteles o limite da história humana é dado, não por nenhuma dimensão propriamente sócio-história, mas pelo caráter dualista de sua concepção de mundo: a essência impõe aos homens o “modelo” da Idéia ou o “lugar natural” do Cosmos. Em ambos os casos, cabe aos homens, no limite, apenas desenvolverem as possibilidades que lhes são fornecidas por esta estrutura ontológica mais geral.

A enorme crise que marca a transição do escravismo ao feudalismo é o primeiro momento da história humana em que, por séculos, os homens foram submetidos a um processo de decadência. As contradições internas ao modo de produção escravista, potencializadas pela sua particularização em Roma, junto com a expansão dos povos bárbaros (que se relacionava, em alguns casos como os varegues e magiares, com a expansão do Império Chinês), fez com que a crise do Império Romano fosse também a crise final do escravismo. Desta crise, dos entulhos de Roma e da sua apropriação pelos povos “bárbaros”, terminou surgindo, num processo tortuoso, desigual e muito prolongado, o que viria a ser o modo de produção feudal.

A vivência, por séculos, de um processo histórico de decadência no qual a única certeza era que o amanhã seria pior que hoje, terminou dando origem a uma concepção fatalista da história. Tal fatalismo é o reflexo ideológico do «destino cruel» ao qual os homens estavam submetidos naquele momento histórico. E, por esse motivo, as seitas religiosas então portadoras de uma concepção segundo a qual os homens estavam aqui na Terra para sofrer e pagar os seus pecados terminaram se transformando na expressão ideológica predominante daquele momento histórico. Foi neste contexto que surgiu e se desenvolveu a Igreja católica.

Tal como a concepção grega de mundo, aqui também se mantém uma estrutura ontológica dualista: Deus, enquanto eterna e imutável essência de tudo versus o mundo dos homens, cuja característica é ser locus do pecado e, por isso, efêmero, mutável e transitório. Tal como os gregos, os homens medievais também concebiam a sua história como a eles imposta por forças que estes jamais poderiam controlar. Diferente dos gregos, contudo, a concepção cristã pressupõe os homens como essencialmente ruins, pecadores e, por isso, merecedores do sofrimento terreno. O pecado original explica a razão e os limites do sofrimento humano: temos um destino de sacrifícios porque pecamos, este sacrifício termina com o Apocalipse e o Juízo Final. Depois dele, a danação eterna ou o Paraíso. Novamente, a história humana seria portadora de limites que não poderiam ser alterados pelos homens: estava encarcerada entre a gênese e o apocalipse.


A passagem do mundo medieval ao mundo moderno não conseguiu romper completamente com a dualidade entre a eternidade da essência e a historicidade do mundo dos homens. Certamente, o pensamento moderno abandona a concepção medieval de uma essência divina dos homens; a essência humana é agora entendida como a «natureza» dos homens. Esta “natureza”, por sua vez, nada mais é que a projeção à universalidade da “natureza específica” do homem burguês: acima de tudo, ser proprietário privado. Os padrões modernos de racionalidade e de essência humanas correspondem às condições de vida nas sociedades mercantis, então em pleno desenvolvimento. A relação comercial capitalista, um momento apenas particular da história, é transformada na essência eterna e imutável de todas as relações sociais: o homem se converte em lobo do homem.

Tal como com os gregos e medievais, também o pensamento moderno está preso à concepção segundo a qual os homens desdobram na sua história determinações essenciais que nem são frutos de sua ação, nem poderiam ser alteradas pela sua atividade. Por serem essencialmente proprietários privados, o limite máximo do desenvolvimento humano não poderia jamais ultrapassar a forma social que permite a máxima explicitação dessa sua essência imutável, a propriedade privada. Para ser breve: não há como se superar a sociabilidade burguesa porque o homem, sendo essencialmente um egoísta e proprietário privado, não conseguiria desdobrar nenhuma relação social que superasse essa sua dimensão mesquinha. Nisto se resume, no que agora nos interessa, as reflexões acerca da “natureza humana” nos modernos. De Locke e Hobbes a Rousseau, a natureza humana comparece como a determinação essencial dos homens, determinação esta que impõe os limites da história e que não pode ser por esta alterada. Sob uma nova forma, e com um novo conteúdo de classe, nos defrontamos novamente com a velha concepção ontológica dualista: há uma dimensão essencial que determina a história sem ser resultante, nem poder ser alterada, pela história que ela determina. Para os modernos, esta dimensão é a “natureza” de proprietário privado dos indivíduos humanos.

Hegel leva esta concepção às suas últimas conseqüências. O Espírito Absoluto é o resultado rigorosamente necessário das determinações essenciais do Espírito em-si: a essência, posta no início, determina sua passagem para o seu para-si. A verdade está no fim, mas a essência do processo que determina o fim como verdade está posta já no seu primeiro momento. Direção dada pela essência, a história adquire um caráter teleológico cujo resultado não poderia ser outro senão a plena explicitação da essência já dada desde o início: a sociedade burguesa representa o “fim da história”.

Lukács argumentou à saciedade os traços “positivos”, “revolucionários” e “verdadeiros” das realizações hegelianas, fundamentalmente sua concepção da história enquanto uma processualidade dialética. Não poderíamos, aqui, nos deter sobre este aspecto do problema, ainda que nos pareça imprescindível ao menos assinalá-lo. O que a nós importa é que, tal como na Grécia clássica, a essência em Hegel não é um construto, nem poderia ser radicalmente modificada pela processualidade (a história dos homens) da qual é a determinação essencial. E, se a essência funda o processo, o problema da origem da essência, de sua gênese, passa a ser literalmente insolúvel. Para os gregos, esta questão nunca foi decisiva, pois como, segundo eles, para a essência ser perfeita teria que ser eterna, a questão da sua gênese pôde ser evitada. Para a Idade Média, a origem da essência dos homens está em Deus, especificamente na Criação. Para eles, portanto, desde que não se perguntasse pela gênese de Deus (tal como entre os gregos, descartada pela afirmação de sua eternidade), a origem da essência humana era explicada pela ação divina.

Para os modernos, esta questão era resolvida pela afirmação da eternidade da “natureza” humana. Ser humano significa ter a natureza dos homens, isto é, acima de tudo, ser portador da “racionalidade” do proprietário privado. Em última instância, a concepção de que Deus fez os homens com esta natureza termina permeando os escritos de muitos dos seus mais importantes pensadores. Em Hegel, o problema da gênese recebe uma solução de caráter estritamente lógico. Na Ciência da Lógica termina por transformar o “nada”, de não ser, não-existente, em o “ser-do-outro”, em uma relação de alteridade, de diferença, ao invés de uma relação de negação ontológica. Com isso, Hegel perde a possibilidade de incorporar, em seu sistema, a negação ontológica, categoria decisiva na história humana, ainda que não exclusivamente nela. (8)

A essência a-histórica não pode possuir na história sua gênese; por isso, toda concepção histórica que se baseia nesta concepção deve pressupor, de alguma forma, uma dimensão transcendente que funda esta mesma essência. Tal determinação não-social da história humana faz com que esta seja portadora de um limite que ela não pode em hipótese alguma superar, e não é mero acaso que em todos os casos este limite seja exatamente a sociedade à qual pertence o pensador. Para Aristóteles, o lugar natural dos homens fazia de Atenas o último e mais desenvolvido estágio de desenvolvimento humano; para a Idade Média, a sociedade feudal era uma criação divina que corresponderia à essência pecadora dos homens; para os modernos, a melhor sociedade é aquela que possibilita a explicitação plena do egoísmo essencial dos proprietários privados, a sociedade mercantil burguesa; e, finalmente, para Hegel, a plena realização da essência humana é o Espírito Absoluto, no qual a sociedade civil (bürgerlisch Gesellschaft) encontra no Estado seu complemento dialético ideal, garantindo assim a vida social em seu momento mais pleno (o que inclui, claro, a propriedade privada burguesa).

Em suma, todas as principais concepções ontológicas, da Grécia a Hegel, conceberam a essência humana como a-histórica, no preciso sentido que ela funda e determina a história da humanidade contudo não pode ser determinada ou alterada por ela. A imutabilidade da essência aparece como condição indispensável da história: a efemeridade dos fenômenos históricos apenas poderia existir fundada por uma instância externa à história. Desta concepção ontológica decorrem três conseqüências inevitáveis:

1) o fundamento da história não pode ser ela própria, mas sim, uma instância a ela transcendente. Daqui, o caráter dualista das ontologias até Marx, Hegel incluso;
2) por ser fundada em uma categoria não-histórica, o sentido da história decorre da essência da sua categoria fundante (a ordem cosmológica, o Mundo das Idéias, Deus, a “natureza” do proprietário privado burguês ou o Espírito hegeliano). A realização dessa essência se transforma no limite intransponível à história humana: o desenvolvimento da humanidade, por possuir um fundamento que não ele próprio, termina limitado por barreiras que não decorrem dele, e que por isso não as pode superar. É este elemento de todas as ontologias antes de Marx que as faz ideologias justificadoras do status quo da sociedade na qual surgiram. É aqui que reside explicitamente seu caráter mais conservador;
3) por ter um início e um fim determinados por uma essência a-histórica, as ontologias que tratamos não poderiam evitar uma concepção teleológica da história. O destino humano teria sua explicação última no sentido da história, sentido este determinado do exterior da história enquanto tal.

Segundo Lukács, o projeto revolucionário marxiano realiza a superação de todas estas concepções a-históricas da essência humana, bem como das concepções teleológicas da história que necessariamente as acompanham. É isto que o pensador húngaro se propõe a demonstrar com a sua Ontologia. Para facilitar a exposição de como Lukács realiza esta demonstração, a desdobraremos em dois momentos: 1) o estatuto ontológico da essência e, 2) as categorias ontológicas que fundam a historicidade da essência humana.


(8) Cf. Sérgio Lessa, “Lukács, Engels, Hegel e a categoria da negação”. Ensaio, 17-18, 1989.



quarta-feira, 20 de agosto de 2008

O Encontro de Marx com a Economia Política Clássica - Francisco José Soares Teixeira

Texto extraído do artigo "O Encontro de Hegel e Marx com a Economia Política Clássica"

Qual é, então, a razão desse fracasso que sofre a teoria do valor nas mãos de Smith e Ricardo? Noutras palavras, por que os economistas clássicos, que tão bem definiram o princípio segundo o qual o valor das mercadorias é determinado pelas quantidades de trabalho necessárias à sua produção, não foram capazes de levar adiante esta sua descoberta? Uma das razões, senão a mais importante, deve‑se, segundo Marx, ao método utilizado por eles. De acordo com este pensador, Smith e Ricardo passam por cima das mediações que fundamentam a passagem das formas aparentes de riqueza à sua fonte: ao trabalho. É o que se pode ler na seguinte passagem das Teorias da Mais‑Valia, onde Marx reconhece que " economia clássica procura pela análise reduzir as diferentes formas de riqueza, fixas e estranhas entre si, à unidade intrínseca delas, despojá‑las da configuração em que existem lado a lado, independentes umas das outras; quer apreender a conexão interna que se contrapõe à diversidade das formas da aparência... [Entretanto], Nessa análise a economia clássica se contradiz em certos pontos com freqüência de maneira direta, sem elos intermediários, tenta empreender essa redução e demonstrar que as diferentes formas têm a mesma fonte"(18).

Desdobrando melhor essa crítica de Marx, o que ele quer com ela mostrar é o fato de que a EPC não conseguiu fazer, com sucesso, o caminho de volta ao ponto de onde ela parte. Como assim? A EPC, conforme foi visto antes, foi capaz de, partindo da aparência, chegar à essência. Essa redução é, contudo, insuficiente. Ela (EPC) teria que retornar ainda às formas aparentes da riqueza para, aí, descobrir como as leis da essência se põem neste nível. Acontece que, para isto, ela teria que ter tomado essas formas de riquezas como formas historicamente determinadas e não como tendo validade para todas as formas sociais de produção. Infelizmente, o método analítico, com que a crítica e a compreensão têm de iniciar, diz Marx, "... não tem interesse em analisar como nascem as diferentes formas, mas em convertê‑las, pela análise, à unidade delas, pois parte destas formas como pressupostos dados. Mas a análise é indispensável para se revelar a gênese, para se compreender o processo real de formação nas diferentes fases"(19).

Essa falta de interesse de que fala Marx deve‑se ao fato de que o método da EPC trabalha com conceitos que nada mais são do que formas impostas ao objeto pelo sujeito do conhecimento. Trabalha, portanto, com generalizações que abstraem todas as diferenças para guardar o que julga que é comum a todo e qualquer objeto dado imediatamente pela experiência. Neste sentido, o real, para a EPC, é resultado de uma construção e que, por isto mesmo, os conceitos são da ordem do pensamento, que emprestam à realidade caótica uma racionalidade posta pelo sujeito cognoscente. Daí porque Smith e Ricardo, quando se defrontam com as contradições da realidade capitalista, procuram transformá‑las em contradições do pensamento, da teoria mesma. É desta perspectiva que Ricardo procura eliminar as contradições da teoria Smith.

Sem negar a importância da EPC, que havia organizado a experiência, aparentemente caótica, numa série ordenada de conceitos, Marx, ao dialogar com os economistas clássicos, procura "devolver" à realidade o que dela foi "tirado" pelo método analítico: as diferenças, que são justamente quem dão vida e movimento ao real. Isso ele o faz investigando como nascem as diferentes formas de riqueza, o que lhe permitiu descobrir que elas são produtos de formas específicas de sociabilidade, que as determinam em consonância com as diferentes condições históricas. Sua investigação, portanto, permite desnaturalizar o método analítico, que concebe as formas abstratas da riqueza capitalistas como formas naturais que regem por igual toda e qualquer forma histórica de sociedade.

Ao conceber as formas de riqueza da sociedade burguesa como formas históricas e não naturais, Marx pôde compreender sua conexão interna como algo de determinado, também, historicamente. Por isso, o movimento que ele realiza, ao passar do valor de troca ao valor e daí ao seu fundamento ‑ ao trabalho ‑, não é um movimento unicamente do pensamento, como o é na EPC, mas, sim, também da realidade. Ou como ele o diz na Crítica da Economia Política, as categorias estão dadas tanto na realidade efetiva como no cérebro, elas expressam formas de ser. Seu pensamento tem, portanto, peso ontológico.

É assim que Marx enfrenta as limitações e contradições em que se viu enredada a EPC. Para isto, ele tem que investir a dialética na economia para obrigá‑la a dar conta das contradições, não como sendo produto do pensar, mas, sim, como resultado da realidade capitalista mesma. Afinal de contas, "... o processo de troca das mercadorias encerra relações contraditórias e mutuamente exclusivas. O desenvolvimento da mercadoria não suprime essas contradições, mas gera a forma dentro da qual elas podem mover‑se. Esse é, em geral, o método com o qual as contradições reais se resolvem. É uma contradição, por exemplo, que um corpo caia constantemente em outro e, com a mesma constância, fuja dele. A elipse é uma das formas de movimento em que essa contradição tanto se realiza como se resolve"(20).

Se a contradição é, portanto, inerente à forma capitalista de produção, não há como dela fugir. Sendo assim, cabia a Marx descobrir e expor as formas sociais dentro das quais se movem e se realizam as contradições da realidade capitalista. A EPC já tinha realizado um grande trabalho de pesquisa, o que lhe permitiu revelar, ainda que de maneira incompleta e inadequada, as categorias da sociedade burguesa. Restava ainda captá‑las detalhadamente, analisar as suas várias formas de evolução e rastrear sua conexão interna, para em seguida expô‑las adequadamente enquanto expressão do movimento do objeto pesquisado, no caso, a sociedade burguesa e suas leis de funcionamento(21).

Admitindo‑se que O Capital é o momento da exposição das categorias que traduzem o movimento de produção e reprodução da sociedade burguesa, tais categorias são apresentadas numa ordem tal que deve reproduzir a hierarquia lógico‑estrutural do sistema burguês de produção. Sendo assim, esta exposição é essencialmente crítica e num duplo sentido: ao expor as determinações do capital, da sua estrutura e de seu movimento contraditório, esta exposição é uma crítica da realidade existente, pois ela revela que o capital é uma relação social, cuja pretensão de dominação de toda sociedade leva a que os indivíduos se transformem em suporte desta relação, ao invés de ser seus verdadeiros sujeitos. Por outro lado, ao reproduzir, idealmente, a hierarquia do sistema, Marx pôde se confrontar criticamente com as teorias que falam desta realidade: a EPC, na voz de seus maiores representantes (Smith e Ricardo).

No que concerne à sua crítica à EPC, por questão de espaço, convêm tomar apenas dois pontos:
(1) o círculo vicioso em que caiu a teoria do valor, quando Smith tenta fazer do trabalho comandado a medida do valor
(2) relação entre valor e preço, ou se se preferir: a passagem das leis internas de funcionamento do capital para as suas formas de manifestações visíveis. Adiante‑se que, aqui, serão feitas apenas indicações bem gerais de como Marx enfrenta estas questões.

O esforço ricardiano para livrar a teoria do valor do círculo vicioso em que ela se encontrava nas mãos de Smith, diz Marx, não foi bem sucedido, pois Ricardo continua prisioneiro deste mesmo círculo. Com efeito, a expressão "valor do trabalho" é uma tautologia no sentido de que o trabalho, que é a medida imanente do valor, teria que ter valor(22). Para superar este erro lógico, Marx descobre que o que o trabalhador vende, no mercado, é a sua força de trabalho e não trabalho. Ou como diz Marx: "o que se defronta diretamente ao possuidor de dinheiro, no mercado, não é, de fato, o trabalho, mas o trabalhador. O que este último vende é a sua força de trabalho. Tão logo seu trabalho realmente começa esta já deixou de pertencer‑lhe e portanto não pode mais ser vendida por ele"(23). E o que é mais importante destacar: se o trabalhador vendesse, de fato, trabalho, e seu trabalho fosse realmente pago, como admite Ricardo, não haveria possibilidade do dinheiro, que foi adiantado para comprar este trabalho, se transformar em capital.

Quanto à relação entre valor e preço, que tanto preocupou Ricardo, Marx descobre, no preço de produção, a forma social dentro da qual as divergências entre estas duas grandezas encontram sua resolução. Esta forma social mostra que as mercadorias não são vendidas segundo seus valores (C + V + M), mas, sim, de acordo com seus preços de produção, que são a soma do preço de custo (capital adiantado para comprar meios de produção e força de trabalho) mais o lucro médio estabelecido pela partilha do conjunto mais‑valia, segundo a grandeza de cada capital(24). O fato de as mercadorias não serem vendidas por seus valores não significa que Marx tenha renunciado à teoria do valor como fundamentação. A incongruência entre preço e valor é uma imposição da realidade mesma. As coisas têm que ser necessariamente assim, pois o capital é uma forma social de produção que separa, espacial e temporalmente, a produção do valor de sua realização. Essa separação nasce do fato de que os elementos do processo de trabalho, meios de produção e força de trabalho, são propriedades privadas, isto é, pertencem a sujeitos econômicos formalmente independentes entre si, e que só entram em relação no mercado. Sendo assim, a mais‑valia que cada capital individualmente produz, e que se encontra embutida em suas mercadorias, só pode ser efetivamente por ele apropriada no mercado, quando ela então é transformada na sua forma dinheiro, que é o que unicamente interessa ao capitalista. Por isso, para cada capital individual, o seu lucro não depende unicamente da mais‑valia por ele criada, do trabalho contido nos seus produtos, mas, sim, depende de quanto ele pode transformar em dinheiro essa mais‑valia gerada no processo de produção. Esse poder é proporcional à magnitude de cada capital, que expressa a força de cada um no seu embate com os demais.



(18) Marx, Karl. Teorias da Mais‑Valia ‑ São Paulo: Difel, 1980‑1985. Vol.III, p.1358. Os grifos são por nossa conta.

(19) Marx, Karl. Teorias da Mais‑Valia ‑ São Paulo: Difel, 1980‑1985. Vol.III, p. 1538. Os grifos são por nossa conta.

(20) Marx, Karl. O Capital... op. cit. Liv.I, Vol.I, p.93. Os grifos são por nossa conta.

(21) No Posfácio da segunda edição de O Capital, Marx apresenta o método dialético por ele utilizado nesta obra. Nesta apresentação, ele distingue o método de exposição do método de pesquisa, dando a entender que O Capital é a exposição dos resultados do trabalho de pesquisa.

(22) Se o trabalho tivesse valor, a forma burguesa de produção regeria por igual todas as formas sociais de produção.

(23) Marx, Karl. O Capital, Livro I, Vol.II, p.128.

(24) A transformação dos valores em preço é uma questão em aberto no debate acadêmico. Mário Possas, em trabalho publicado pela Revista de Economia Política, 1982, constrói uma tipologia das principais posturas que têm debatido esta questão. Segundo ele, as mais importantes são: [1] a posição neoricardiana, que defende a tese de que a teoria do valor deve ser abandonada, por sua incapacidade de explicar a determinação não circular da taxa de lucro e dos preços; [2] uma outra postura defende a idéia de que a transformação, como aparece em Marx, não é a do valor em preço, e sim a da mais-valia em lucro médio; [3] a terceira posição nega a existência de qualquer problema, quer seja de natureza metodológica ou teórica, na passagem efetuada por Marx dos valores aos preços de produção; [4] a quarta posição reconhece que a transformação dos valores em preço é um problema sério e não resolvido. A este respeito ver Teixeira, Francisco José Soares. "Transformação dos valores em preço: o mau infinito e um debate" in Revista Ensaio, número 17/18, São Paulo, 1989.

A Teoria do Valor, Segundo a Economia Política Clássica - Francisco José Soares Teixeira

Texto extraído do artigo " O encontro de Hegel e Marx com a Economia Política Clássica" (grifo meu)

Partindo das diferentes formas aparentes da riqueza social (salário, lucro, renda da terra e juros), a EPC(economia política clássica) procura reduzi-las a seu elemento comum: o trabalho. Noutras palavras, partindo do valor de troca, a EPC chega ao valor e daí a sua fonte: as quantidades de trabalho despendidas na produção das mercadorias.

Para demonstrar que o trabalho é a verdadeira fonte do valor, Adam Smith(5) idealiza a existência de um estado hipotético habitado por caçadores, que vivem da troca dos produtos de seus diferentes trabalhos. De posse desta ficção teórica, ele intenta demonstrar que as quantidades de trabalho inseridas nas mercadorias são as únicas regras que os homens devem observar ao permutar seus diferentes produtos. Neste estado original, onde não há propriedade privada da terra nem acumulação de capital, não havia, portanto, patrões nem empregados, o valor do produto do trabalho pertencia integralmente a quem o produzia. Nestas condições, como diz Smith, "todo o produto do trabalho pertence ao trabalhador; e a quantidade de trabalho normalmente empregada em adquirir ou produzir uma mercadoria é a única circunstância capaz de regular ou determinar as quantidades de trabalho que ele normalmente deve comprar, comandar ou pelo qual deve ser trocado"(6). Na ausência de propriedade privada, o valor produzido pelo trabalhador lhe pertence integralmente e, por isso, o valor de sua mercadoria é igual à quantidade de trabalho nela inserida, ou igual à quantidade a certa de trabalho que essa mesma mercadoria pode comandar ou adquirir. Em vista disto, a remuneração que cada um recebe por seu trabalho, para falar em termos smithiano, é igual ao valor do produto, ou, se se preferir, salário e valor são duas grandezas iguais. Nestas condições a troca obedece ao princípio da equivalência.

Entretanto, Smith(7) é levado a reconhecer que este princípio perde sua validade na sociedade capitalista. Nesta sociedade, porque dividida entre proprietários e não-proprietários(8), o produto do trabalho não mais pertence integralmente a quem o produz, ao trabalhador, pois, agora, ele é obrigado a ceder parte do que produziu com quem o empregou. Neste caso, a igualdade entre salário e valor do produto deixa de existir. Neste sentido, a quantidade de trabalho que uma dada mercadoria pode comprar ou comandar é maior que a quantidade de trabalho nela inserida (contida). Um exemplo esclarece melhor tudo isso. "Suponha-se que em uma mercadoria estão contidas 100 horas de trabalho, proporcionadas por trabalhadores cuja subsistência custa 50 horas de trabalho: então, com essa mercadoria pode-se proporcionar a subsistência de um número de trabalhadores capaz de proporcionar 200 horas de trabalho. Nesse caso, o trabalho contido é 100 e o trabalho ordenado (comandado) é 200"(9).

Mas, qual desses dois trabalho deverá ser a medida do valor das mercadorias? O trabalho contido ou o trabalho comandado? Uma coisa é certa: com o conceito de trabalho comandado, Smith queria dar conta da troca entre capital e trabalho para mostrar como surge a mais-valia na sociedade capitalista. Mas, o seu raciocínio, neste particular, é tautológico. Com efeito, se se considerar que a mercadoria que o trabalhador recebe sob a forma de salário é a base explicativa do valor por ela comandado, este último (o valor comandado), para ser conhecido, exige que se conheça primeiro o valor da mercadoria recebida pelo trabalhador. Chega-se, assim, a uma proposição destituída de sentido: o valor depende do valor(10).

Adam Smith nada faz para sair desse círculo vicioso. Continua expondo a sua teoria do valor sem se importar com as seguidas contradições em que se envolve(11). De fato, no capítulo VII, em que trata do preço natural e do preço de mercado, ele volta a sustentar a tese anterior, segundo a qual as mercadorias são trocadas umas pelas outras na proporção do tempo de trabalho nelas inseridas e não pela quantidade de trabalho que podem comandar. Surgem, assim, duas teorias do valor: a do trabalho contido e a do trabalho comandado.

Para livrar a teoria de Smith destas contradições, Ricardo passa a sustentar que, tanto no estado de natureza, como na sociedade capitalista, o valor das mercadorias é determinado pelas quantidades de trabalho nelas inseridas. Noutras palavras, para ele é o conceito de trabalho contido e não o de trabalho comandado que deve ser afirmado na construção da teoria do valor.

Para sustentar que o trabalho contido nas mercadorias é a verdadeira medida do valor, Ricardo elabora o conceito de valor do trabalho. De acordo com este conceito, o valor do trabalho se mede como o de qualquer outra mercadoria: pelas quantidades de trabalho contidas nos meios de subsistência do trabalhador. Ora, se o trabalho é uma mercadoria como outra qualquer, a troca entre capital e trabalho obedece o mesmo princípio da troca das mercadorias em geral: troca se valor por valor, equivalente por equivalente. Conseqüentemente, a lei do valor vale tanto para o rude estado de natureza como para a sociedade capitalista.

Desse modo, Ricardo julga haver resolvido a contradição smithiana e demonstrado que o trabalho contido é a única e verdadeira medida do valor. E o que é mais importante: ao fazer do trabalho contido a única medida do valor, ele põe fim à falsa idéia, em parte defendida por Smith, de que o salário determina o preço das mercadorias. Rechaçar essa concepção foi o seu grande mérito, ao acabar de uma vez por todas com o dogma de que o valor é resultado de uma soma que acrescenta ao salário o lucro do capitalista e a renda do proprietário. Se o valor fosse resultado de uma simples soma não haveria limites para as classes participarem na apropriação do produto, já que cada uma dela poderia receber uma maior fatia simplesmente aumentando as parcelas que compõem essa soma. O sistema seria, assim, um sistema onde não haveria lugar para a luta de classes(12).

Superadas as contradições da teoria do valor de Smith, Ricardo tinha agora como tarefa pensar a passagem dos valores aos preços, ou, se se preferir, analisar como as leis internas do capital se põem no nível da aparência do sistema, isto é, como aparecem na interação dos diversos capitais, na concorrência. Entretanto, como se sabe, ele não consegue realizar com sucesso a passagem da essência para a aparência. Ao tentar realizá-la acaba por escamotear a origem da mais-valia. Realmente, o modo como calcula a taxa de lucro esconde a idéia do lucro como excedente produzido pelo trabalho. Parte simplesmente do fato de que o valor dos salários é menor do que o valor do produto, sem explicar as razões dessa diferença(13).

A origem da mais-valia se torna mais obscura ainda quando se tem presente o modo pelo qual Ricardo concebe o conceito de valor do trabalho. Ao determinar o "valor de trabalho" pelo tempo de trabalho necessário que o trabalhador despende para prover sua subsistência, ele pressupõe que o tempo de trabalho contido nos meios de subsistência é igual ao tempo de trabalho diário que o trabalhador realiza. Ora, estas duas expressões só são equivalentes quando se trata de trabalho materializado(14). São diferentes quando se referem a trabalho materializado e a trabalho vivo. Como a troca entre capital e trabalho é uma troca de trabalho vivo (do lado do trabalhador) por trabalho materializado (do lado do capitalista), Ricardo só consegue salvar a teoria do valor de Smith passando por cima da realidade desta troca. Assim, acaba por mascarar a origem da mais-valia.

Mas o que realmente impede Ricardo realizar a passagem da essência para a aparência do sistema é o fato de ele considerar o capital adiantado como se resolvendo unicamente em salários. Por isso, a taxa de lucro que ele calcula é na verdade a taxa de mais-valia. Ao tomar uma pela outra, descobre que capitais da mesma magnitude só fornecerão lucros iguais se tiverem a mesma composição orgânica. Ora, isto nunca acontece na realidade, que mostra que capitais iguais, mesmo dentro de um determinado ramo, geralmente têm composições distintas. Sendo assim, como sustentar o princípio da igualdade do lucro, que dita que capitais de magnitude igual, pela força da concorrência, devem gerar a mesma quantidade de lucro? É, parece que a teoria do valor, neste particular, torna-se incompatível com os fenômenos positivos da produção capitalista, com as leis da concorrência.

É assim mesmo o que pensa Ricardo. Entretanto, ele não aceita passivamente essa incompatibilidade. A forma de como vai tentar superá-la chega a ser desesperadora(15). Na seção IV de seu livro, dedicada a esta questão, ele desenvolve um raciocínio extremamente intrincado e obscuro. Supõe que dois homens empregam cada um 100 trabalhadores, por um ano. Em seguida imagina que um deles emprega seus trabalhadores para cultivar trigo e o outro para produzir máquinas. No fim do ano ambos dispõem de um produto de mesmo valor, já que foi empregada a mesma quantidade de trabalho. O produtor de trigo vende sua colheita e reembolsa o capital que havia adiantado para pagar os salários de seus 100 trabalhadores. O produtor da máquina não a vende, pois a produzir para com ela produzir novas mercadorias. Reembolsado capital inicial, o produtor de trigo reinicia um novo período de produção, contratando novamente 100 trabalhadores. O produtor de máquinas, por sua vez, contrata no segundo ano novamente 100 trabalhadores, desta feita para trabalhar com a máquina e não mais para produzí-la. O que acontece, então, com o valor de seus respectivos produtos ao fim do segundo período de produção? Ricardo responde da seguinte maneira: "durante o segundo ano, todos eles terão empregado a mesma quantidade de trabalho, mas os produtos e máquina do fabricante de tecido de lã (...) terão resultado do trabalho de 200 homens empregado por um ano; ou melhor do trabalho de 100 homens durante dois anos, enquanto o trigo terá sido produzido pelo trabalho de 100 homens durante um ano"(16).

Tomando esses resultados, tais como Ricardo os apresenta, é claro que no fim do segundo ano, o industrial dispõe de um produto que vale duas vezes mais do que o do agricultor. A máquina e o produto dela resultante vale o dobro do trigo. Até aí tudo pode ser explicado com base na teoria do valor: os produtos do fabricante e do agricultor podem ser trocados na proporção do tempo de trabalho neles incorporado; na proporção de 2 para 1. Acontece que neste caso, o industrial sairia perdendo, pois teve que esperar dois anos para poder reaver seu capital, enquanto que o produtor de trigo recuperou todo o seu capital no final do primeiro ano. Por isso, diz Ricardo, os produtos do agricultor e do fabricante não terão valor na exata proporção da quantidade de trabalho gasto na sua produção; mas numa proproção maior para compensar o tempo em que o fabricante levou para recuperar o seu capital.

Diante disto, Ricardo é forçado a renunciar entender os fenômenos positivos da produção capitalista. A prova disto é o fato de que ele foi obrigado a admitir que o trabalho não é a única fonte de valor. É o que se pode constatar a partir da seção IV do primeiro capítulo de sua obra. O subtítulo que abre esta seção traduz muito bem essa sua mudança de postura, ao anunciar claramente que, "O princípio de que a quantidade de trabalho empregada na produção de mercadorias regula seu valor relativo é consideravelmente modificado pelo emprego de maquinaria e de outros capitais fixo e duráveis". Esta modificação viria pôr em xeque toda a sua teoria. De fato, se não tinha como justificar que o valor é base sobre a qual se apóia os preços, Ricardo não poderia explicar as leis de manifestação do capital ao nível de sua aparência. Diante disso, só lhe restava uma saída: sustentar a validade da teoria do valor por um ato de fé. É o que se pode deduzir da seguinte passagem: "ao avaliar, portanto, as causas das variações no valor das mercadorias, seria errôneo omitir totalmente o efeito produzido pelo encarecimento ou barateamento do trabalho, mas seria igualmente errôneo atribuir lhe muita importância. Assim, embora apenas ocasionalmente mencione esta causa na parte restante desta obra, considerarei todas as grandes variações que ocorrem no valor relativo das mercadorias como sendo produzidas pela maior ou menor quantidade de trabalho que, em épocas diferentes, seja necessária para produzi las"(17).

Assim, a tentativa de Ricardo de salvar a teoria do valor de Smith redunda num grande fracasso. A razão deste fracasso encontra se, em grande parte, no método utilizado por Smith e Ricardo.


5 - Para uma exposição mais demorada da teoria de Smith, ver Teixeira, Francisco José Soares. "Smith: Lido e Comentado", in A Teoria do Valor em Smith e Marx. Coletânea de ensaios do autor, publicada pela EDUECE: Editora da Universidade Estadual do Ceará UECE, 1992.

6 - Smith, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas - São Paulo: Nova Cultural, 1985. P. 77
7 - Ver Smith, Adam. Op, especialmente capítulos V, VI, VII e VIII.

8 - ... no momento em que o patrimônio ou o capital se acumulou nas mãos de pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, fornecendo-lhes matérias-primas e subsistência a fim de auferir lucro com a venda do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que esse trabalho acrescenta ao valor desses materiais. Ao se trocar o produto acabado por dinheiro ou por trabalho, ou por outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os salários dos trabalhadores, deve resultar algo para para pagar os lucros do empresário, pelo seu trabalho e pelo risco que ele assume ao empreender esse negócio"(idem, ibidem).

9 - Napoleoni, Claudio. Smith, Ricardo e Marx: Considerações sobre a história do pensamento econômico - Rio de Janeiro: Grall, 1983. P. 98.

10 - "Sabemos que, de acordo com a concepção clássica do salário, ou as quantidades físicas dos bens-salários são consideradas como dadas. O seu valor de troca deve, evidentemente, ser determinado na base do princípio da quantidade de trabalho que comandam. Mas essa quantidade de trabalho só se pode conhecer se se conhecer anteriormente o valor de troca dos dos bens-salários. Voltamos ao ponto de partida" (Benetti, Carlo. Valor e Repartição - Coimbra: Centelha, 1978; p. 40-41)

11 - Marx chama a atenção para as contradições de Smith, quando diz que ele (Smith) se move "... com grande ingenuidade em contradição contínua. Ora investiga as conexões causais das categorias econômicas ou a estrutura oculta do sistema econômico burguês. Ora junta a essa pesquisa as conexões tais como se exteriorizam na aparência dos fenômenos da concorrência, se manisfestam portanto ao observador não científico e, do mesmo modo, ao que na prática está preso e interessado no processo de produção burguesa (...). Isso nele se justifica /.../, pois na realidade sua tarefa era dupla. Numa procura penetrar na fisiologia interna da sociedade burguesa e, na outra, empreende várias tentativas: descrever, pela primeira, as formas vitais aparentes, externas dessa sociedade e apresentar suas conexões como aparecem exteriormente (...). Uma tarefa interessa-o tanto quanto a outra, daí resultam modos de apresentação absolutamente contraditórios" (Marx, Karl. Teorias da Mais-Valia, Vol.III. P.597/8).

12 - "... deve-se reconhecer a Ricardo o grande mérito de haver destruído até os fundamentos (...) o velho erro, tão divulgado e gasto, de que o salário determina o preço, falácia rechaçada por Adam Smith e seus predecessores franceses na parte verdadeiramente científica de suas investigações, mas que, não obstante, eles reproduziram nos seus capítulos mais superficiais e de vulgarização" (Marx, Karl. Salário, preço e lucro - São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 152 [os economistas]).

13 - Ricardo, diz Marx, "parte da realidade presente da produção capitalista. O valor do trabalho é menor do que o valor do que que ele gera (...). Como este fato surge, permanece obscuro. A jornada inteira é maior que o segmento dela requerida para produzir o salário. Não se evidência o porquê" (Teorias da mais-valia. op. cit. Vol. II, p. 837).

14 - a este respeito, o leitor deve consultar o volume II das Teorias da Mais Valia de Marx, notadamente o capítulo XV.

15 - Ver Teixeira, Francisco José Soares. Pensando com Marx: uma leitura crítico-comentada de O capital - São Paulo: Editora Ensaio, 1995.

16 - Ricardo, David. Princípios de Economia Política e tributação - São Paulo: Nova Cultural, 1985. P. 54.

17 - Ricardo, David. Op. Cit. P. 56.