sexta-feira, 25 de julho de 2008

Apresentação do blog

Participando direta ou indiretamente de movimentos sociais e estudantis há alguns anos, sempre me impressionou a baixa formação teórica de seus respectivos militantes. Mesmo na universidade onde deveria ser central a questão do conhecimento e a fundamentação teórica das posições tomadas, quase sempre o que se nota é arbitrariedade e posições fundadas em aspectos meramente emocionais, doutrinários ou impressões. Saliento que tal característica está presente na quase totalidade dos estudantes universitários, que apesar de não compreenderem quase nada, sentem-se no direito de emitir “opiniões” sobre tudo e rotular todos os movimentos.

Como militante da esquerda socialista desde a adolescência tal questão sempre ficou evidente no que diz respeito ao marxismo em particular. Todos opinam sobre o comunismo, partidos políticos, movimentos sociais etc., e em regra desconhecem não apenas o processo de desenvolvimento de tais ideologias ou organizações, como os seus aspectos mais imediatos. É corriqueiro ver as correntes derivadas do marxismo serem taxadas de utópicas, inviáveis, mas as características básicas de tais correntes são estranhas aos referidos críticos.

Se este problema é característico por parte dos supostos críticos do comunismo, ele se faz presente também nos que militam a favor deste. Vários militantes lêem quatro ou cinco livros tidos como clássicos e a partir de então já consideram-se os detentores da verdade. Colocam a tendência que participam dentro do movimento como absoluta e única possível de êxito. Opinam sobre a situação dos mais diversos países, assim como dos mais diversos pensadores com frases feitas que para eles expressam por si só toda razão. Não procuram o fundamento teórico que aliado à realidade objetiva deveria servir de base para as decisões tomadas e as posições defendidas.

Com intento de criar um veículo com conteúdo organizado de maneira lógica sobre o marxismo, este blog foi criado. Vários textos dos mais diversos autores foram por mim selecionados e dispostos em uma organização determinada, para que possam servir de base para os interessados no assunto que se esbarrarem por aqui. A seção inicial “textos básicos” contêm o que se pretende ser uma espécie de “introdução ao marxismo”. Sob o meu ponto de vista, tais textos representam uma das possibilidades de conteúdo mínimo necessário que qualquer pessoa precisa saber para posicionar-se sobre o assunto, sejam favoráveis ou não. Ressalto aqui a necessidade de estuda-los e não apenas uma leitura superficial.

Outras seções pretendem aprofundar temas específicos do marxismo segundo estudos de meu interesse particular, mas que podem ser úteis a outra pessoas. Também incluiremos elos para os melhores veículos (revistas, sítios) com textos e estudos marxistas, assim como conteúdos culturais afins (músicas, vídeos etc.).

Se por um lado a precária formação teórica é um marco nos movimentos sociais e estudantis em geral, cabe ressaltar que na universidade também se faz presente o outro lado da moeda. Pessoas que se dedicam a estudar o marxismo em um plano puramente teórico, encarando a teoria em uma perspectiva meramente contemplativa, própria da ciência burguesa. Neste caso é conveniente uma citação de Florestan Fernandes:

“O marxismo se empobreceu na medida em que intelectuais marxistas passaram a ser intelectuais não-ativistas. O intelectual não pode se dissociar da prática política, sob pena de perder a perspectiva de classe e cair no vício acadêmico do pensamento abstrato. [...] Agora, ser ativista não significa necessariamente filiar-se a um partido. No Manifesto Comunista, Marx e Engels não falam em partido comunista. Eles falam que a função dos comunistas é servir a todos os partidos operários. E que o comunista devia levar a eles a visão de conjunto, a totalidade das grandes transformações que ocorrem e o que elas vão gerar. Seriam elementos fermentadores no processo político e de produção intelectual.”


Gustavo Henrique Lopes Machado



terça-feira, 22 de julho de 2008

A Perspectiva da Totalidade - Ricardo Musse

Texto retirado do artigo "A dialética como discurso do método" disponível em www.fflch.usp.br/sociologia/docentes/docartigos/Ricardo_Tempo%20Social-Scielo.pdf (grifo meu)

Os equívocos da exposição engelsiana da dialética, entretanto, não decorrem apenas de uma indevida incorporação do conhecimento da natureza e da cientificidade que lhe é própria. Segundo Lukács, assentam-se também em uma compreensão incorreta da relação entre Marx e Hegel.
Como se sabe, o último Engels apresenta a metodologia do marxismo como uma confluência na qual um dos troncos consiste na inversão materialista da dialética hegeliana - premissa indispensável para a superação do "platonismo" que lhe é característica. A possibilidade dessa metamorfose, de certo modo, seria fornecida pelo próprio caráter revolucionário do método hegeliano, em flagrante e permanente contradição com o espírito conservador do sistema. O descompasso entre a dialética - incompatível por definição com afirmações absolutas - e o empenho sistemático de Hegel em apresentar sua filosofia como "resumo e compêndio" de uma verdade absoluta impõe, na visão de Engels, o giro materialista como um desdobramento quase diria necessário desse pensamento.
Lukács não rejeita propriamente a tese que considera o materialismo histórico o "herdeiro do idealismo alemão". Antes, procura até mesmo aprofundá-la, e para tanto não hesita em alterar o qualificativo da relação entre Hegel e Marx de "desdobramento" para "prolongamento". Entretanto, ao contrário de Engels, Lukács concede pouca ênfase ao giro materialista. Segundo ele, a maneira como se praticou essa inversão (em Engels e em seus epígonos na Segunda Internacional) não deixou de provocar um enfraquecimento do empenho sistêmico, acarretando uma fragmentação que dispersou o conhecimento em esferas autônomas, à semelhança da teoria de Max Weber.
Em contraposição a esse diagnóstico, Lukács salienta que Marx conseguiu transmudar a dialética hegeliana em "álgebra da revolução" sobretudo porque se ateve à sua matriz principal (totalmente ignorada por Engels), à categoria, ou melhor, ao ponto de vista da totalidade.
O domínio do todo sobre as partes, configurado por meio da apreensão dos múltiplos fenômenos parciais como momentos do todo, como parcelas de um mesmo processo, torna-se, em História e consciência de classe, fator decisivo para a definição do campo marxista. Identificado com a essência do método de Marx, o ponto de vista da totalidade sobrepujaria inclusive outras determinações, consideradas até então suficientes para delimitar suas diferenças diante da ciência burguesa, como o "predomínio de motivos econômicos na explicação da história" ou mesmo a prática de "contrapor à sociedade burguesa conteúdos revolucionários".
Segundo essa perspectiva, que ressalta a importância da categoria "totalidade" para a compreensão da metodologia do materialismo histórico, a aproximação entre Marx e Hegel seria maior que a proximidade entre Marx e a maioria dos teóricos, declaradamente marxistas, da social-democracia:
Mesmo a polêmica materialista contra a concepção "ideológica" da história é dirigida bem mais contra os epígonos de Hegel do que contra o próprio mestre que, a esse respeito, estava muito mais próximo de Marx do que este pôde imaginar em sua luta contra a esclerose "idealista" do método dialético. O idealismo "absoluto" dos epígonos de Hegel chega, com efeito, a dissolver a totalidade primitiva do sistema, a separar a dialética da história viva [...]. Contudo, o materialismo dogmático dos epígonos de Marx repete a mesma dissolução da totalidade concreta da realidade histórica. Se o método dos epígonos de Marx não degenera, como o dos epígonos de Hegel, num esquematismo intelectual vazio, ele se atrofia numa ciência específica e mecanicista, em economia vulgar (Idem, pp. 116-117).
Uma primeira conseqüência de se considerar a dialética conforme a perspectiva da totalidade seria, portanto, a exigência de superar as distinções abstratas sobretudo no que tange à relação entre sujeito e objeto do conhecimento, premissa inicial da constituição de domínios autônomos de pesquisa, separados em decorrência da divisão intelectual do trabalho e da especialização científica. Trata-se de redirecionar o conhecimento para considerar a sociedade uma totalidade, recomendação enfatizada na célebre passagem: "Para o marxismo, em última análise, não há, portanto, uma ciência jurídica, uma economia política e uma história etc. autônomas; mas somente uma ciência histórico-dialética, única e unitária, do desenvolvimento da sociedade como totalidade" (Idem, p. 107).
Certamente, Lukács não ignora a necessidade, durante o processo de elaboração do conhecimento, de isolar e abstrair elementos de um amplo campo de investigação, de focalizar complexos de problemas ou ainda de condensar conceitos de um dado campo de estudos. Para ele, porém, o decisivo consiste em saber se esse isolamento é apenas um meio para o conhecimento do todo, inserido como momento determinado de uma conexão total, ou se o conhecimento abstrato de regiões parciais isoladas preserva sua autonomia, convertendo-se, à maneira da ciência burguesa, em finalidade própria.
No transplante da dialética de Hegel para Marx nem tudo, como seria de se esperar, permanece idêntico. Na medida em que, para Lukács, o método de Marx apresenta-se "como a continuação conseqüente do que Hegel havia almejado, mas que não obtivera concretamente" (Idem, p. 92), o "prolongamento" da dialética hegeliana inclui algumas correções. No que tange à perspectiva da totalidade, a modificação mais substancial diz respeito à necessidade de que essa categoria determine não só o objeto, mas também o sujeito do conhecimento.
A ciência burguesa, em especial a economia clássica, mantém-se presa à consideração dos fenômenos sociais a partir da perspectiva do indivíduo (o agente capitalista). Despreza-se assim, na perspectiva de Lukács, simultaneamente, duas características primordiais da dialética - "a exigência da totalidade tanto como objeto determinado como sujeito que determina".
Hegel, por sua vez, embora encare o objeto como totalidade, só preenche metade dos requisitos, já que hesita entre o "ponto de vista do 'grande homem' e o do espírito abstrato do povo" (Idem, p. 108).
Marx, porém, particularmente em O capital, na medida em que "considera os problemas de toda a sociedade capitalista como problemas das classes que a constituem, sendo a dos capitalistas e a dos proletários apreendidas como conjuntos", atinou para o papel-chave do conceito de classe. Descortina assim um sujeito que, na sociedade moderna, "para se pensar a si mesmo é obrigado a pensar o objeto como totalidade".
Parte-se, portanto, da premissa de que "o ponto de vista do indivíduo não pode levar a nenhuma totalidade, quando muito pode levar a aspectos de um domínio parcial, mas na maioria das vezes somente a algo fragmentário: a 'fatos' desconexos ou a leis parciais abstratas". Nesse diapasão, "a totalidade só pode ser determinada se o sujeito que a determina é ele mesmo uma totalidade" (Idem, p. 107). Lukács reconstitui assim o marxismo como uma forma de saber umbilicalmente vinculada ao proletariado9.
Afinal, uma vez que a superioridade científica e metodológica do ponto de vista de classe sobre a perspectiva individual assenta-se no fato de que "somente a classe, por sua ação, pode penetrar a realidade social e transformá-la em sua totalidade" (Idem, p. 125), a única classe capaz de promover a esperada modificação social, garantindo, ao mesmo tempo, a unidade de teoria e prática, seria o proletariado. Recuperando uma frase célebre de Marx, no Manifesto do Partido Comunista, que identifica o proletariado como executor da sentença de morte proferida pela burguesia contra si mesma, Lukács conclui que o proletariado, "ao reconhecer sua situação, age, e ao combater o capitalismo, reconhece sua situação" (Idem, p. 127).
O giro principal efetivado por Marx em relação ao método de Hegel, portanto, segundo Lukács, não consiste precisamente na passagem do idealismo para o materialismo - como às vezes sugere o próprio Marx, e Engels não cessava de reiterar. O mais decisivo foi a transição do ponto de vista do indivíduo para a perspectiva das classes sociais.
História e consciência de classe ressalta ainda que, ao adotar a perspectiva da totalidade, Marx teria transplantado diretamente de Hegel não apenas a consideração de todos os fenômenos parciais como momentos do todo ou a identidade entre sujeito e objeto, mas também a compreensão do processo dialético como unidade de pensamento e experiência. Segundo ele, esse modo de conceber o vínculo entre lógica e história tornou-se um fator determinante no recente renascimento do marxismo, consagrado nas obras decisivas de Lênin e Rosa Luxemburgo - respectivamente, O estado e a revolução e A acumulação do capital.
Lukács detecta a manifestação dessa unidade de conceito e temporalidade em partes pouco valorizadas e mal compreendidas desses livros, em trechos dedicados a balanços históricos da literatura produzida sobre a questão em pauta, como é o caso dos segundo e terceiro capítulos do livro de Lênin, "A experiência de 1848-1851" e "A experiência da Comuna de Paris (1871)", e da segunda parte do de Rosa, "Exposição histórica do problema".
Diferentemente do ato de "tomar em consideração os precursores", típico da ciência burguesa (mas também dos teóricos da social-democracia), distante da enumeração infindável e despropositada do "especialista", Lênin e Rosa teriam conseguido desenvolver nesses capítulos a tão almejada unidade de teoria e história:
Devido a essa relação com as tradições de método e de exposição referentes a Marx e a Hegel, Lênin fez da história do problema uma história interna das revoluções européias do século XIX; a abordagem histórico-literária dos textos por Rosa Luxemburgo se desenvolve numa história das lutas em torno da possibilidade e da expansão do sistema capitalista (Idem, p. 118).
Esse método, segundo Lukács, está presente em Marx já em "sua primeira obra acabada, completa e madura", Miséria da filosofia, por meio da crítica direta das verdadeiras fontes de Proudhon (Ricardo e Hegel). E estrutura também outros livros de Marx, como O capital e Teorias sobre a mais-valia, ainda que sob uma forma modificada e menos nítida.
Desse modo, o procedimento de reconstruir o processo histórico por meio de um exame dialético da literatura disponível acerca dos temas abordados atesta mais que a pertinência e a eficácia do predomínio da perspectiva da totalidade. Indica também que:
O método filosófico de Hegel, que sempre foi - de maneira mais convincente na Fenomenologia do espírito - história da filosofia e filosofia da história ao mesmo tempo, jamais foi abandonado por Marx em relação a esse ponto essencial. Pois, a unificação hegeliana - dialética - do pensamento e do ser, a concepção de sua unidade como unidade e totalidade de um processo, formam também a essência da filosofia da história do materialismo histórico (Idem, p. 116).
Lukács explicita assim o método inerente, ainda que inconsciente, de Lênin e Rosa Luxemburgo como a realização efetiva do programa do idealismo alemão. Desse modo, não deixa de situar, pelo menos no que tange a essas obras específicas, esses dois autores como pontos inaugurais daquele movimento que a posteridade nomeou como "marxismo ocidental".
A junção, que teria sido promovida desde Marx, de história da filosofia e filosofia da história, do a priori e do a posteriori, da teoria e da experiência, do lógico e do histórico, serve também de guia para quem queira evitar os dilemas em que se enredam as tentativas de, num trânsito de mão única, compreender as formações "ideológicas", típicas da superestrutura, unicamente a partir da base objetiva da sociedade.
Seja qual for o tema em discussão, o método dialético trata sempre do mesmo problema: o conhecimento da totalidade do processo histórico. Sendo assim, os problemas "ideológicos" e "econômicos" perdem para ele sua estranheza mútua e inflexível e se confundem um com o outro. A história de um determinado problema torna-se efetivamente uma história dos problemas. A expressão literária ou científica de um problema aparece como expressão de uma totalidade social, como expressão de suas possibilidades, de seus limites e de seus dilemas. O estudo histórico-literário do problema acaba sendo o mais apto a exprimir a problemática do processo histórico. A história da filosofia torna-se filosofia da história (Idem, p. 117).
É, portanto, sob a égide da filosofia da identidade que a categoria da totalidade justifica, em Lukács, o trânsito de mão dupla entre fenômenos objetivos e subjetivos, economia e superestrutura, que se tornará, a partir de então, uma das marcas distintivas do marxismo ocidental.


Referências Bibliográficas

LUKÁCS, Georg. (2003), História e consciência de classe. Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo, Martins Fontes.
ENGELS, Friedrich. (1976), Anti-Dühring. São Paulo, Paz e Terra.
______. (1977a), Do socialismo utópico ao socialismo científico.
HEGEL, G. W. F. (1968), Ciencia de la lógica. Buenos Aires, Solar.
______. (1988), Enciclopédia das ciências filosóficas em epítome. Lisboa, Edições 70.
______. (1992), Fenomenologia do espírito. Petrópolis, Vozes.
MARX, Karl. (1983), O capital. Crítica da economia política. São Paulo, Abril Cultural.
______. (1988), Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis, Vozes.
______. (2004), A miséria da filosofia. São Paulo, Ícone.

A Dialética do Processo Histórico - Ricardo Musse

Texto retirado do artigo "A dialética como discurso do método" disponível em www.fflch.usp.br/sociologia/docentes/docartigos/Ricardo_Tempo%20Social-Scielo.pdf (grifo meu)


O livro "História e consciência de classe" de Georg Lukács retoma deliberadamente a primazia do método. Antes de expor seu conteúdo no propósito de recuperar a configuração original da dialética, estabelece como premissa uma determinação que reputa essencial, enunciada de forma breve no dístico: "A dialética materialista é uma dialética revolucionária" (2003, p. 64).
Lukács desdobra essa fórmula em diversas variantes - dialética como álgebra, como veículo da revolução etc. Com isso, busca ressaltar a importância da metodologia na "determinação das condições de possibilidade da unidade entre teoria e prática", destacando o vínculo estreito que articula, no marxismo, o método com a transformação do mundo.
Ao ressaltar esse nexo, Lukács indica sua preocupação em transpor os termos sob os quais a questão do método foi apresentada, sobretudo por Eduard Bernstein e Rudolf Hilferding, durante o período de proeminência política e teórica da Segunda Internacional. Ele adverte que tal discussão não pode ser travada nos parâmetros de um enfoque estritamente gnosiológico, nem ser restringida pelo esquadro de uma indagação puramente científica, na qual o "método pode ser rejeitado ou aceito, segundo o estado da ciência, sem que a atitude fundamental diante da realidade e do seu caráter modificável ou imutável sofra a menor mudança" (Idem, p. 68).
Na origem desses equívocos estaria, segundo Lukács, nada mais nada menos que a versão engelsiana da dialética. No mínimo como parcela responsável, ainda que indiretamente, pela adoção posterior de um procedimento que se quer estritamente científico embora, na verdade, permaneça aquém do método de Marx.
Caso interesse uma distinção que não deixa de redundar em uma classificação um tanto quanto compartimentada, a contestação da apresentação engelsiana da dialética, levada a cabo por História e consciência de classe, desdobra-se, de modo geral, em dois movimentos distintos. Lukács ora avalia a exposição concisa da dialética, ensaiada na "Introdução" do Anti-Dühring, pela aplicação que outros autores lhe deram, ora a julga por si mesma, tomando-a como um todo coerente, ainda que independente e apartada do conjunto da obra de Engels.
História e consciência de classe aproxima, até quase a indistinção, a dialética compendiada por Engels da apropriação cientificista do método, desdobrada pela geração subseqüente. Tal associação permite inferir - conclusão compartilhada pelos dois lados que se enfrentaram por ocasião e em torno da publicação do livro de Lukács - que Engels, apesar de suas conhecidas divergências em relação à prática política reformista, não teria deixado de calçar o terreno para tais deturpações.
Por outro lado, independentemente da questão da legitimidade da utilização, no mínimo polêmica, da obra do último Engels pelos mentores da Segunda Internacional (Eduard Bernstein em particular), alguns pontos precisos da exposição engelsiana (fortalecendo a veracidade da inferência acima citada) foram incluídos por Lukács diretamente no rol dos fatores que, jogando "indevidamente no esquecimento aspectos absolutamente essenciais", dificultaram uma adequada compreensão da dialética.
Entre eles, um ponto central sem dúvida consiste na observação de que Engels teria descurado da "essência prática da teoria". A conseqüência maior de tal descuido - grave entre marxistas - reside em sua contribuição, mesmo que involuntária, para relegar a segundo plano ou pelo menos a uma esfera distinta a questão da transformação da realidade. Semelhante desatenção pode ser atribuída à ênfase concedida por Engels ao caráter científico da dialética ou pelo menos ao vínculo, que promoveu e intensificou, entre o método do marxismo e o desenvolvimento científico.
Lukács recapitula, uma a uma, as determinações da dialética engelsiana: dissolução da rigidez dos conceitos e dos objetos que lhes correspondem, passagem contínua de uma determinação a outra, permanente superação dos contrários, substituição da causalidade unilateral e rígida pela interação recíproca. Maculadas pela subordinação do marxismo às ciências naturais ou pelo fato de não se levar em conta a dimensão prática da teoria, ou melhor, uma vez ausente a consideração metodológica da "relação dialética do sujeito e do objeto no processo da história", Lukács avalia que tais determinações seriam insuficientes para suplantar a perspectiva meramente contemplativa, própria da ciência burguesa.
Nunca é demais lembrar o choque causado pela reivindicação de autenticidade - totalmente inusitada dentro das fileiras do marxismo -, manifestada nessa acusação e reafirmada com todas as letras no "Prefácio" de História e consciência de classe. Lukács se auto-atribui representante, contra o próprio Engels, do ponto de vista do marxismo ortodoxo.
Desviando, entretanto, a atenção do escândalo ou mesmo das conseqüências políticas de semelhante crítica, torna-se possível discernir nos termos da acusação, na contraposição implícita, uma primeira determinação positiva da versão lukacsiana da dialética. A dualidade, enfatizada reiteradamente, entre os pólos contemplativo e ativo (prático) recobre, mas também contribui para delimitar, uma distinção mais essencial que opõe, de um lado, a ciência burguesa e, de outro, a ação revolucionária. Tal diferença, por sua vez, permite esclarecer as diversas modalidades de âncoras que sustentam as versões, bastante distintas, da dialética conforme Engels ou segundo Lukács.
A interpretação elaborada em História e consciência de classe acusa Engels de ter deixado de "investigar, tanto na teoria como na maneira como ela penetra nas massas, esses momentos e essas determinações que fazem da teoria, do método dialético, o veículo da revolução" (Idem, p. 65). Negligenciando os aspectos históricos ou mesmo políticos da questão, ou seja, a partir de um ponto de vista estritamente lógico, essa censura assenta-se sobretudo em uma discrepância conceitual, aqui reduzida ao mínimo: Lukács considera a "condição prévia da dialética revolucionária", seu momento indispensável, uma determinação totalmente ausente da exposição engelsiana do método - "a unidade de teoria e prática".
A importância dessa determinação, responsável, de certo modo, por um novo desenho da dialética, vai além de sua capacidade em configurar, à maneira de um pólo magnético, uma reorganização geral das articulações metodológicas. Ela se manifesta também na forma como Lukács articula teoria e método. Embebido nessa relação, o método dialético, "essência teórica da teoria" marxista, possibilita uma outra redefinição pela qual a teoria passa a ser concebida como "expressão pensada do próprio processo revolucionário".
Tudo isso não resulta apenas da ancoragem da dialética na relação entre teoria e prática. Deve ser atribuído sobretudo ao intermediário que Lukács posiciona como mediador entre esses dois termos. Como se sabe, os desdobramentos da "essência prática da teoria", consolidados no lema "unidade de teoria e prática", dependem, no arcabouço de História e consciência de classe, da elevação conceitual do proletariado à condição de sujeito e objeto do processo histórico, mediando assim a relação entre consciência e realidade:

Somente quando for dada uma situação histórica na qual o conhecimento exato da sociedade tornar-se, para uma classe, a condição imediata de sua auto-afirmação na luta; quando, para essa classe, seu autoconhecimento significar, ao mesmo tempo, o conhecimento correto de toda a sociedade; quando, por conseqüência, para tal conhecimento, essa classe for, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do conhecimento e, portanto, a teoria interferir de modo imediato e adequado no processo de revolução social, somente então a unidade da teoria e da prática, enquanto condição prévia da função revolucionária da teoria, será possível (Idem, p. 66).

A indiferença em relação ao vínculo que une dialética e proletariado teria contribuído, ou até mesmo provocado, a capitulação metodológica do marxismo às normas do saber burguês. Esse feito foi, em geral, computado sobretudo como resultado da apropriação da exposição esboçada no Anti-Dühring pelos teóricos da Segunda Internacional e quase nunca como uma responsabilidade do próprio Engels. Lukács, no entanto, como vimos, em sua reconstituição da questão, deliberadamente polêmica, atribui pesos idênticos à apropriação dos seguidores e à versão engelsiana do método dialético.
Além do descuido em relação à dimensão revolucionária ou, em termos mais brandos, à determinação prática da teoria, manifesta na despolitização do método, inerente à sua ancoragem nos progressos da ciência, Lukács acrescenta outra acusação. Tanto Engels como a geração subseqüente teriam adotado de forma indiscriminada as ciências naturais como regra e modelo.
História e consciência de classe atribui essa subordinação da teoria e do método a ditames e desdobramentos de uma tradição de conhecimento para a qual é indiferente a consideração da dimensão histórica. Mas também reitera que semelhante restrição resulta, paradoxalmente, de uma hybris: Engels teria se afastado do modelo marxista - que concebe a teoria, atenta às relações que o saber estabelece com o objeto, como "expressão pensada do próprio processo revolucionário" - na medida em que não restringiu a aplicabilidade da dialética à realidade histórico-social:

Os equívocos surgidos a partir da exposição de Engels sobre a dialética baseiam-se essencialmente no fato de que Engels - seguindo o mau exemplo de Hegel - estende o método dialético também para o conhecimento da natureza. No entanto, as determinações decisivas da dialética (interação entre sujeito e objeto, unidade de teoria e prática, modificação histórica do substrato das categorias como fundamento da sua modificação no pensamento etc.) não estão presentes no conhecimento da natureza (Idem, p. 69, nota).

Ante tamanha insistência, impõe-se a ressalva: Lukács não estaria sendo demasiado drástico, aproximando indevidamente os dois patamares, o das determinações da versão da dialética formulada por Engels com o das apropriações perpetradas por seus seguidores no ambiente intelectual (e político) da Segunda Internacional?
Tal indagação adquire maior pertinência quando se observa que Eduard Bernstein, por exemplo, inverteu completamente a estratégia de Engels. Em lugar de procurar oxigenar as ciências da natureza, investigando, em sua lógica própria, afinidades que apontem no sentido de uma progressiva aproximação ao procedimento dialético, Bernstein considera o método corriqueiro - empírico e matematizante, logo não dialético - das ciências naturais como modelo adequado para o marxismo7. Não seria, portanto, muita caturrice de Lukács associar coisas tão distintas como a idolatria do método das ciências naturais, por parte dos teóricos da Segunda Internacional, e a (ilusória) percepção engelsiana de que a natureza também estaria sujeita às leis da dialética?
As passagens de História e consciência de classe que procuram refutar a incorporação, por marxistas, do método das ciências naturais, apesar de assentarem sua bateria unicamente sobre os epígonos de Engels, não deixam de reforçar essa continuidade. Não dissociam, como seria de se esperar, interpretações dialéticas ou não dialéticas dos métodos das ciências naturais. Antes, concedem o mesmo tratamento, embora nunca o mesmo espaço, às duas metodologias.
O primeiro ensaio de História e consciência de classe ("O que é marxismo ortodoxo"), por exemplo, indaga acerca do significado metodológico do empirismo. Lukács não se limita aí à observação de que a mera enumeração dos fatos relevantes para o conhecimento - que, como se sabe, varia conforme os objetivos do saber - já pressupõe uma interpretação e, com ela, um método e uma teoria, o que aliás se tornou lugar comum após Hegel ou Max Weber. Atribui a adaptabilidade dos dados percebidos ao padrão de conhecimento imposto pelas regras das ciências naturais - a incorporação ao saber de fatos "puros" por meio de procedimentos tais como a observação, a abstração e a experimentação - a uma ilusão socialmente necessária, constitutiva da própria sociedade capitalista.
Recorre-se assim à teoria do fetichismo da mercadoria, delineada por Marx em O capital. A redução dos fenômenos à sua dimensão quantitativa, condição prévia de sua expressão "em números e em relações numéricas", decorre do próprio desenvolvimento histórico do capitalismo:

O caráter fetichista da forma econômica, a reificação de todas as relações humanas, a extensão sempre crescente de uma divisão do trabalho, que atomiza abstratamente e racionalmente o processo de produção, sem se preocupar com as possibilidades e capacidades humanas dos produtores imediatos, transformam os fenômenos da sociedade e, com eles, sua apercepção (Idem, p. 72).

A teoria de Lukács, ao adotar como vetor explicativo o fenômeno do fetichismo, descola-se substancialmente das considerações de Engels. No entanto, sua descrição dos procedimentos correntes no saber tradicional, à primeira vista, mantém-se consoante com as determinações do "método metafísico", estabelecidas em Anti-Dühring. História e consciência de classe apresenta o procedimento em que "um fenômeno da vida é transportado, realmente ou em pensamento, para um contexto que permite estudar as leis às quais ele obedece sem a intervenção perturbadora de outros fenômenos" (Idem, p. 71), matriz dos "sistemas parciais isolados e isolantes", como resultado de uma determinação própria e histórica (isto é, nem natural, nem perene) da sociedade burguesa.
Conclui, assim, que os equívocos resultantes da adoção dessa metodologia padrão tornam-se evidentes quando se confronta a necessidade - inerente ao método das ciências naturais - de trabalhar com dados constantes e invariáveis com a realidade, permanentemente mutável, da evolução histórica. Por conseguinte, a simples consideração histórica dos fatos parece suficiente para pôr em dúvida a exatidão e a objetividade desse método.
Dessa forma, Lukács reitera, ainda que pontualmente, os ensinamentos de Engels, a quem aliás concede os créditos necessários. Mas não se trata de uma incorporação tout court do método apresentado no Anti-Dühring. A ênfase engelsiana na incessante mutabilidade dos fatos adquire, em Lukács, uma função terapêutica, na medida em que possibilita uma inicial apreensão dos erros inerentes a uma metodologia explicitamente não dialética.
Lukács só acompanha a exposição engelsiana até esse ponto. Quando se trata de restabelecer a objetividade do conhecimento, ou mesmo quando o diagnóstico aprofunda-se, buscando esclarecer os fatores que concedem ao método das ciências naturais sua espantosa naturalidade, as determinações com que configura sua versão da dialética tomam uma direção oposta ao caminho ensaiado por Engels.
O vetor principal não consiste na consideração de que os fatos estão envolvidos num processo de contínua mudança, mas antes na observação de que "são, precisamente na estrutura de sua objetividade, produtos de uma época histórica determinada: a do capitalismo" (Idem, p. 74). O tratamento histórico-dialético a que os dados devem ser submetidos depende assim da apreensão de seu condicionamento histórico, ou melhor, de suas mediações. Dessa forma, Lukács instaura uma distinção primordial entre "sua existência real e seu núcleo interior", entre representações e conceitos, premissa indispensável à compreensão do caráter necessário da "aparência fenomenal"8.
A objetividade do conhecimento, por conseguinte, só se torna possível quando as determinações fatuais, à primeira vista "simples, puras, imediatas e naturais" no âmbito do capitalismo, perdem sua condição de dados inquestionáveis e passam a ser compreendidas como momentos de uma "totalidade concreta como reprodução intelectual da realidade". Sem a apreensão dos condicionamentos históricos, bem como da necessidade inerente à forma que sua apreensão adquire na sociedade capitalista, permanece-se ainda no campo oposto:

Aquela "ciência" que reconhece como fundamento do valor científico a maneira como os fatos são imediatamente dados, e como ponto de partida da conceitualização científica sua forma de objetividade, coloca-se simples e dogmaticamente no terreno da sociedade capitalista (Idem, p. 74).

Consuma-se assim o veredicto acerca da versão engelsiana da dialética. Esta se apresenta como insuficiente, uma vez que não vai além da simples constatação de mutabilidade dos fatos (que pode inclusive se dar dentro de uma mesma ordem social, desde que considerada temporalmente), ou de sua inclusão em um processo contínuo e ininterrupto. Lukács reivindica que a compreensão do caráter histórico de um dado fatual qualquer esteja vinculada à apreensão dos condicionamentos que o configura como momento determinado de uma totalidade sócio-histórica.
As determinações da dialética engelsiana (dissolução da rigidez dos conceitos e dos objetos que lhes correspondem, passagem contínua de uma determinação a outra, permanente superação dos contrários, substituição da causalidade unilateral e rígida pela interação recíproca) nada significam, segundo Lukács, sem a consideração metodológica da "relação dialética do sujeito e do objeto no processo da história".


Referências Bibliográficas

LUKÁCS, Georg. (2003), História e consciência de classe. Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo, Martins Fontes.

sábado, 19 de julho de 2008

A Totalidade Como Categoria Central na Dialética Marxista - Edmilson Carvalho

Artigo extraído da revista Outubro do Instituto de Estudos Socialistas, nº 15, 2007. (grifo meu)

Resumo: O presente artigo constitui um ato de resistência ao ataque e a à supressão de uma categoria entre as mais centrais da gnosiologia dialética marxista, a categoria de totalidade. Para dar conta da tarefa, o autor teve de examinar como a referida categoria foi posta pelos principais pensadores marxistas - o próprio Marx, Engels, Lukács, entre outros - e como e por que ela persiste atual, necessária e insubstituível para pensar as mais diversas esferas da sociabilidade burguesa e o processo, também ele uma totalidade, de sua superação.


Uma das categorias mais fundamentais no processo de produção dialético do conhecimento é a totalidade. Num escrito elaborado na década de 1940, Lukács assim a definia:


A categoria de totalidade significa (...), de um lado, que a realidade objetiva é um todo coerente em que cada elemento está, de uma maneira ou de outra, em relação com cada elemento e, de outro lado, que essas relações formam, na própria realidade objetiva, correlações concretas, conjuntos, unidades, ligados entre si de maneiras completamente diversas, mas sempre determinadas (Lukács, 1967, p.240)(1).

A propósito, lembrava o próprio Lukács que Marx se referia a essa mesma categoria quando havia afirmado que “as condições de produção de toda sociedade formam um todo”.

Apesar do desuso cada vez maior, mais sistemático e crescentemente condicionado por motivos ideológicos, que filósofos, sociólogos, antropólogos, historiadores e até artistas fazem dessa categoria, mais cabalmente nos atuais tempos de descostura e dos pós-modernismos, nunca é demais lembrar e confirmar o estatuto onto-gnosiológico e o valor lógico intrínseco dessa importante categoria, sem a qual qualquer interpretação teórica do mundo fica reduzida a um amontoado incoerente, amorfo e desarticulado de fragmentos, do qual não pode resultar qualquer processo de efetiva produção do conhecimento. (2) Contudo, a categoria de totalidade não pode ser compreendida, construída ou empregada sem que se tomem alguns cuidados filosóficos especiais, sob pena de não ser possível obter a apropriação, no decurso da análise, de nada mais do que uma aparência, dentre todas as demais, quando então, ao invés de contribuir para revelar o âmago concreto e explicativo da realidade, a “categoria” venha a se colocar como um obstáculo intransponível ao alcance do verdadeiro conhecimento dessa mesma realidade. (3) Com efeito, para que a totalidade seja uma categoria dialética, para que possa estar em condições de oferecer a máxima eficácia científica que lhe é inerente, a sua constituição passa, durante cada efetivo exercício da análise, por alguns procedimentos filosóficos que se apresentam como pressupostos imprescindíveis para o alcance do seu pleno e rico significado. Isto quer dizer que o todo pode não passar de mera aparência se for utilizado sem determinado trajeto filosófico de constituição. Esse trajeto teórico (dialético) é o único procedimento capaz de proporcionar estatuto rigorosamente científico à referida categoria.

De início pode ser adiantado que se determinado fato é um todo composto de partes, leis e relações conectadas entre si e em movimento, resulta que a desarticulação e a fragmentação desse todo opera uma amputação do mesmo e elimina a possibilidade de conhece-lo como tal. O conhecimento de uma região do todo não é ainda conhecimento do todo, porque o conhecimento de partes isolados do conjunto não é conhecimento nem das partes e nem do conjunto. Em outras palavras, numa totalidade o conhecimento das partes e do todo pressupõe uma reciprocidade, porque o que confere significado tanto ao todo quanto às diversas partes que o formam são determinações, dispostas em relações, que exatamente perpassam completam a transversalidade do todo, de modo que não pode haver conhecimento de um todo ou de partes dele se, amputada a totalidade, isolados os seus elementos entre si e em relação à totalidade e desconhecidas suas leis, não é possível captar a amplitude de determinações ontológica das partes e da totalidade - determinações que só podem ser apreendidas se a análise percorre a transversalidade essencial do todo.

Ademais, toda totalidade é formada de categorias e relações simples, entre as quais algumas mais fundamentais, que devem ser conhecidas e descortinadas para exatamente dar passagem à reconstituição abstrata do todo; o todo é, portanto, estruturado (4) e hierarquizado e, sem que se tenha percorrido essa estrutura e essa hierarquia, no ato de sua constituição, a partir do que ela possui de essencial, a categoria permanece indeterminada e, por isso mesmo, indefinida - o que conduziria a uma forma empirista de encarar (e apenas descrever) a realidade concreta (deve ficar claro que a estruturação teórica - dialética - da totalidade não é um atributo só do discurso, mas a representação conceitual que parte de uma objetivação que antecede o discurso porque já está na totalidade como real concreto). Como resultado, não se teria conhecimento, mas ideologia.

Para conhecer a transversalidade conectiva do todo não se faz necessário - e nem possível - percorrer, como uma listagem, todas as inumeráveis partes, elementos, momentos e relações do todo, pois se trata de conhecer a lógica que preside a sua conexão. Com efeito, a apreensão da conexão dialética essencial de uma totalidade pode ser descoberta mesmo antes de se ter alcançado o grau máximo de concretude da totalidade. É, com efeito, o que ocorre quando se procede à análise de uma dada totalidade por necessárias aproximações, de degrau em degrau, cobrindo, revelando e completando cada conceito, cada relação, cada conexão e cada categoria desde sua apreensão mais abstrata (e mais simples) à mais concreta (e mais complexa), no curso da qual a lógica essencial que preside a conexão do todo pode ser captada em algum estágio intermediário. O próprio Marx dá inúmeros exemplos da justeza dessa assertiva, que revela uma questão de método, e é esse o procedimento que ele emprega, em O Capital, na construção do próprio conceito de capital. (5) Em O Capital, com efeito, o conceito de capital (entre outros) construído no “Livro I” só serve para elucidar toda a análise teórica intermediária e que, num crescendo, vai atingir sua concretude máxima no “Livro III”, quando aquele conceito inicial deve dar lugar ao conceito de capital finalmente entendido no âmbito das determinações mais concretas - de modo que “(...) os dois primeiros tomos não ultrapassam a análise do ‘capital em geral’, enquanto o terceiro supera esse limite, fazendo a passagem para a análise da ‘pluralidade de capitais’ e de suas inter-relações, ou seja, do capital que existe ‘na realidade’” (Rodolsky, 2001, p.69).

Assim, nesse caso, que evidencia uma necessidade imanente do método (em Marx), a revelação parcial do conceito, de acordo com cada degrau alcançado, nunca é tomada como um conceito acabado e definido, senão no final da análise quando a totalidade foi teoricamente (e completamente) alcançada. Aqui, sim, a totalidade e cada parte estão completadas e a exigência onto-gnosiológica se impõe: o conhecimento concreto das partes e do todo pressupõem-se e aparecem em seu grau conectivo máximo. Porém - e isto dever ser destacado -, o alcance da plenitude conectiva da totalidade, que se faz, no plano teórico, por aproximações dos aspectos mais simples e unilaterais aos mais concretos e complexos, já revela, em determinados estágios da aproximação, o essencial do todo, de maneira que, a partir de certo ponto, as conexões internas do todo já podem ser percebidas - o que também significa, como já foi afirmado anteriormente, que o alcance da compreensão da lógica do todo não implica na consideração e no conhecimento extensivo de todos os seus fatos, momentos e relações, mas na compreensão da sua estrutura dialética, vale dizer, naquela essencialidade que, alcançada a meio caminho do conceito acabado, já caracteriza o todo. Para recorrer ao mesmo exemplo sugerido anteriormente, o conceito de capital, que só se completa no Livro III, quando o “capital em geral” é situado na “pluralidade dos capitais”, portanto no âmbito da concorrência etc., está essencialmente formulado quando, já no Livro I, a sua gênese já está compreendida: a valorização do valor mediante a reconversão da mais-valia.

Uma outra questão da análise da totalidade é a que se refere ao papel fundante e decisivo da contradição nas conexões da totalidade. É óbvio que nem todas as conexões que se espalham através de toda a transversalidade de uma dada totalidade são conexões de forças que se colocam em relação de contradição; mas, por outro lado, as conexões que implicam contradições ou antagonismos são as mais decisivas na definição do caráter e na eclosão de momentos de unidade e ruptura das totalidades em geral. É por demais sabido que o próprio modo de produção capitalista conecta, em um momento para o seu desenvolvimento, em outro, para a sua ruptura, duas categorias fundamentais: trabalho e capital no plano objetivo, proletariado e burguesia no plano de suas respectivas subjetividades. Essa contradição, presente no topo da totalidade abrangente modo de produção, também está presente na outra ponta - a da categoria mais simples (molecular), a mercadoria - desse modo de produção. Também a mercadoria é uma totalidade e, como tal, encerra, na sua objetivação, através da produção capitalista, conexões de outras categorias que se revelam como relações de oposição, tais como: valor e mais-valia, visibilidade e fetiche etc. No caso da totalidade modo de produção capitalista, são incontáveis as conexões que encerram desde a imediata produção da mercadoria, passando por todos os processos (e totalidades) intermediários (troca, circulação simples, circulação de capital etc.), até o momento mais amplo da concorrência e das crises do sistema - contradições que combinam para assegurar o desenvolvimento do capital mais que, em épocas de crise, quando explodem rompendo as respectivas unidades (combinação do salário com a mais-valia para a valorização do valor etc.), podem se manifestar revelando, tanto na teoria quanto na prática, o desacordo interno e imanente desse modo de produção, potência que se coloca como pressuposto objetivo da possibilidade de sua ruptura.

Em adendo, é exatamente a apreensão da lógica que preside as conexões da totalidade - que constitui, portanto, a sua essência, a sua lei -, e que está presente em toda a transversalidade conectiva do todo, que permite a possibilidade de conhecimento, portando, também, de uma relativa predição do movimento do todo. Essa lógica, essa essência, perpassa o passado, o presente e também o futuro da totalidade em movimento. Ao lado do núcleo essencial de um todo, daquilo que constitui o seu “leito remoto”, encontram-se uma infinidade de acidentes, contingências e circunstâncias que também participam da totalidade e do seu movimento. Aqui existem duas ordens e dois ritmos de movimento: o do “leito remoto” e o dos acidentes - o primeiro, lento, o segundo, (muito mais) rápido. A essência do movimento do todo é o que o unifica e que, portanto, articula as contingências, as circunstâncias e os acidentes ao todo. Enquanto o “leito remoto” do todo, aquilo que constitui a sua lei, a sua lógica, a sua necessidade, a sua estrutura, permanece por um tempo maior, as circunstâncias, os acidentes e as contingências mudam, aparecem e desaparecem, muito rapidamente. É exatamente esse “leito remoto”, que antecede e que sucede o estágio presente do movimento do todo, que confere a possibilidade do conhecimento e do reconhecimento do todo na sua constituição pretérita e de uma relativa possibilidade de conhecimento dos desdobramentos futuros - portanto também de predição - da totalidade. Quando uma crise cíclica do sistema do capital acontece, a sua constituição não se dá por força de elementos acidentais ou circunstanciais de uma da conjuntura, mas por efeito de uma lei - a lei da queda tendencial da taxa de lucro etc. -, e é pelo reconhecimento e pelo conhecimento dessa lei que se pode prever certos desdobramentos - sempre em certa medida - essenciais da ordem do capital em crise. Fenômenos acidentais, circunstanciais, contingenciais podem até precipitar, num dado momento, um processo de crise de superprodução, mas jamais dar origem a esse tipo de crise. A análise da lei da crise garante previsões aproximadas de sua duração cíclica, da possibilidade de uma depressão ou de um crack, de uma certa dimensão do desemprego, da ruína e sucateamento de certos segmentos de capitais etc. O grau de acerto em tal tipo de predição vai depender da capacidade de apropriação do máximo de mediações existentes nas relações entre a lei e as circunstâncias presentes no processo de crise. (6)

Do todo exposto, o problema consiste, pois, em saber quais são, em cada caso, as categorias e relações centrais que constituem a essência de uma totalidade (uma realidade concreta e complexa). Era exatamente o que Marx tinha em mente quando escreveu estas palavras nos Grundrisse:


Quando consideramos um determinado país do ponto de vista da economia política, começamos por sua população, pela divisão desta em classes, a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos produtivos, a exportação e a importação, a produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias etc. Parece justo começar pelo real e concreto, pela verdadeira suposição; assim, por exemplo, na economia, pela população que é a base e o sujeito da ação social da produção em seu conjunto. Contudo, se examinarmos com maior atenção, isto se revela um procedimento falso. A população é uma abstração caso deixe de lado, por exemplo, as classes que a compõem. Estas classes são, por sua vez, uma palavras vazia se desconheço os elementos sobre os quais repousam, por exemplo, o trabalho assalariado, o capital etc. Estes últimos supõem a troca, a divisão do trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, os preços etc. Se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do conjunto e, necessitando cada vez mais, chegaríamos analiticamente a conceitos cada vez mais simples. Alcançando este ponto, teríamos que empreender novamente a viagem de retorno, até encontrar de novo a população, mas desta vez não teríamos uma representação caótica de um conjunto, mas uma rica totalidade com múltiplas determinações e relações (Marx, 1973, p 20-21).


Colocando a questão nos termos mais gerais dedutíveis do texto, pode-se dizer que Marx se refere, como ele próprio enuncia, à abordagem de “um dado país do ponto de vista da economia política”; mas, por outro lado, é óbvio que o procedimento se enquadra perfeitamente na conceituação do modo de produção capitalista, que é, de resto, o que ele de fato tinha em mente quando tentava, com essas notas (O método da economia política), encontrar caminhos de acesso a tal conceituação, empreendimento que levará a efeito na obra O capital, para cuja elaboração os Grundrisse constituíam parte essencial dos estudos preliminares.

Num caso, teórico - conceituação de modo de produção capitalista -, não é pela população que a investigação deve começar, mas pelas determinações mais simples, constitutivas e fundadoras dessa totalidade. Marx argumenta que não se pode ceder à tentação, como de fato acontecia com a economia política nascente, de começar pela população, porque começar a análise por tal ponto de partida levaria o analista a incorrer no erro de toma-la por um todo homogêneo, indiferenciado, não estruturado, ilógico; portanto, procedimento que o conduziria a erros cumulativos em toda a investigação subseqüente. É obvio que se poderia aduzir que a divisão da população em classes poderia ser feita depois; todavia, Marx argumenta, com perspicácia, que o correto e fecundo para a análise - do “dado país” ou do modo de produção capitalista, que são duas totalidades em si mesmas -, agora, não mais tão somente a população, mas a própria formação social capitalista como um todo - passa por um estágio que deve anteceder à sua abordagem específica e direta, e a questão passa a ser exatamente o problema posto em seus termos mais gerais: o de saber por quais categorias simples e fundantes se deve começar para alcançar uma dada realidade (totalidade) concreta. Assim, muito antes de se chegar à população ou ao conceito de modo de produção (capitalista, no caso), o itinerário está cheio de paradas obrigatórias que vão desaguar não só na população (dividida e formada por classes sociais), como na totalidade que contém e a reproduz na sua especificidade histórica. Trata-se, portanto, de cindir (não obviamente, como se faz com o método cartesiano) o objeto até se chegar a seus elementos mais simples e centrais - noções, conceitos, categorias, leis e relações. Por exemplo: a mercadoria e, dentro dela, trabalho, valor, mais-valia etc., são os elementos simples decisivos, na ausência dos quais, todavia, sem viagem de retorno, jamais o analista lograria caracterizar o todo (população, sociedade etc.) como uma síntese verdadeiramente dialética. Só dessa maneira a categoria totalidade estará pronta e apta para uso científico e, naturalmente, para as exigências da práxis social, (7) porque só desta forma pode-se evitar uma visão caótica do todo, o que só é possível se se descobre as relações, leis e categorias-chave - e, como pressuposto, uma hierarquia de determinações, em processo, entre as mesmas - capazes de dar acesso científico ao entendimento da população e do todo social como uma totalidade uma e articulada, embora contraditória em sua essência. De resto, essa articulação, que se desencadeia por todo o edifício social numa movimentação que não é “funcional”, linear, mecânica, mas dialética, tem, em alguns pontos nodais, suas principais determinações.

Quando a totalidade está assim posta ou reposta, ficam devidamente ressaltados alguns de seus traços constitutivos universais: em primeiro lugar, ela aparece como uma rede de relações, as fundadoras e as demais, a partir de uma determinada centralidade; em segundo, ela também aparece, simultaneamente, como uma unidade concreta das contradições que se chocam no seu interior e que exatamente expressam o seu conteúdo e o seu movimento; em terceiro, fica evidenciado o fato de que qualquer totalidade contém totalidades a ela subordinadas - totalidades internas e inferiores - e está contida em totalidades mais abrangentes, mais complexas e situadas numa escala superior; em quarto, e por último, fica também evidenciado o caráter histórico, portanto transitório, da totalidade, de qualquer totalidade dada. Nisso reside, finalmente, a categoria totalidade do ponto de vista da dialética materialista. É essa categoria que o método de Marx revela: uma totalidade jamais idealizada, porque esse método não finge que constrói o conhecimento, como fazem as grandes formulações idealistas, por meio de uma série de associações, total ou parcialmente arbitrárias, de idéias - porque descoladas dos aspectos decisivos do real concreto, em cuja transformação o sujeito que a pensa age direta e ativamente.

Mas, por onde se deve abordar analiticamente determinada totalidade? Esta é uma questão da maior importância para todos os que realizam investigações de caráter científico, mormente quando se trata da análise de totalidades sociais. No que se refere à questão Karel Kosik tem a seguinte opinião:


Aquilo de onde a ciência inicia a própria exposição já é resultado de uma investigação e de uma apropriação crítico-científica da matéria. O início da exposição já é um início mediato, que contém em embrião a estrutura de toda a obra. Todavia, aquilo que pode, ou melhor, deve constituir o início da exposição, isto é, do desenvolvimento científico (exegese) da problemática, ainda não é conhecida, no início da investigação. O início da exposição e o início da investigação são coisas diferentes. O início da investigação é casual e arbitrário, ao passo que o início da exposição é necessário (1976, p.31).


E, mais adiante, na mesma obra, ele conclui:


O capital, de Marx, começa (...) com a análise da mercadoria. Mas, como a mercadoria é uma célula da sociedade capitalista, como é o início abstrato cujo desenvolvimento reproduz a estrutura interna da sociedade capitalista, tal início da interpretação é o resultado de uma investigação, o resultado da apropriação científica da matéria. Para a sociedade capitalista a mercadoria é a realidade absoluta, visto que ela é a unidade de todas as determinações, o embrião de todas as contradições (...). Todas as determinações ulteriores constituem mais ricas definições ou concretizações deste “absoluto” da sociedade capitalista (...). Na investigação o início é arbitrário... (idem, o. 31-32).

Já da afirmação feita pelo mesmo Kosik, de que a mercadoria é “a realidade absoluta da sociedade capitalista”, e, complementarmente, que “todas as determinações ulteriores constituem mais ricas definições ou concretizações deste ‘absoluto’ da sociedade capitalista”, pode-se deduzir que a assertiva desse autor, acerca da casualidade da investigação científica de uma totalidade, deve ser relativizada.

Toda totalidade tem suas categorias-resumo, suas “unidades de todas determinações”, categorias mais densas e que, por isso mesmo, devem ser colocadas como chaves da própria investigação, e não só da exposição. Em tese, toda absoluta primeira investigação tem, de fato, algo de arbitrário, mas é preciso dar-se conta de que toda verdadeira investigação científica não constitui nem um ato e nem um início isolado e absoluto, antes é também um processo social e histórico de produção do conhecimento, ou seja, quase nunca é uma investigação totalmente nova e sem antecedentes que legasse patamares e pontos de partida criticamente abordáveis - com continuidades e rupturas. Assim, à medida que a própria investigação avança, e que, portanto, as descobertas de categorias sucessivas vão sendo feitas, as categorias-chave vão aparecendo, vão revelando as suas potencialidades no sentido apontado anteriormente e vão dando ordem à investigação à medida que vão revelando o caráter totalizante que possuem, de tal maneira que, depois de certo desenvolvimento da própria investigação, a casualidade vai sendo substituída pela necessidade no mesmo passo em que vão avançando, sucessivamente, as novas conexões entre categorias - fato que, se é verdadeiro para a continuidade de uma mesma investigação, passa a ser mais verdadeiro ainda para investigações futuras “iniciais”, nas quais aquelas categorias tornam-se pontos de partida necessários para os novos esforços e seus respectivos avanços. Seria, de fato, contra-senso e uma concessão ao empirismo manter uma investigação em eterno compasso de casualidade e arbitrariedade, não só depois da descoberta das categorias-chave dentro de um mesmo processo de investigação como entre vários e sucessivos processos de investigação posteriormente iniciados, nos quais aquelas mesmas categorias podem e devem ocupar destaque gnosiológico e lógico; como seria da mesma forma um contra-senso (uma atitude dogmática) não considerar tais categorias passíveis de crítica e portanto, de possíveis revisões de alcance variável. A considerar como legítima a assertiva absoluta de Kosik de que todo processo de investigação é necessariamente casual - e não só, como pensamos, apenas os processos absolutamente pioneiros e iniciais de investigação e, assim mesmo, não de maneira absoluta -, imputa-se à uma investigação, vista como um processo que une esforços de várias procedências e, inclusive, de várias gerações, uma circularidade que estaria se reproduzindo quase sempre do mesmo ponto de partida. No conjunto do processo historio geral de produção do conhecimento, esses inícios absolutos das investigações constituem exceção, não a regra. Cada todo exposto constitui, a nosso ver, uma seqüência de categorias dispostas que deve ser tomada como um ponto de partida necessário a cada nova investigação. E nem é por mero acaso que Marx, no texto que temos diante de nossa vista, insiste em dois métodos de estudo, não só de exposição, da Economia Política: aquele que ele atribui à “nascente economia”, que, a seu juízo, constitui o método falso, e o outro que ele reivindica como o certo, e que parte das categorias simples que constituem a chave para o êxito do processo de totalização teórica. No longo prazo, no plano do desenvolvimento histórico de toda e qualquer ordem de investigação rigorosamente científica, toda investigação tende a coincidir numa mesma ordem categorial, até mesmo quando a análise revela a necessidade de ultrapassagem, parcial ou total, desta ou daquela categoria ou mesmo de eventuais conjuntos de categorias. Destarte, podemos concluir que toda totalidade possui suas categorias-chave e que, no processo de investigação de cada uma delas, deve-se tomar categorias já comprovadamente eficazes para resultados rigorosamente científicos ou, em se tratando da primeira vez e do primeiro esforço de teorização/investigação, deve-se pinçar as categorias-chave à testa da análise tão logo sejam descobertas e identificadas como tais. Dessa forma, o empirismo vai sendo ultrapassado no próprio curso da investigação, à medida que a necessidade vai ultrapassando, nela e com ela, a casualidade aludida.

Deve-se notar, de resto, que no texto aqui analisado, Marx já está definitivamente rompido, distante e diferenciado de Hegel, no que diz respeito às relações entre ser e o pensamento: o pensamento agora não sai em busca de idéias “em si mesmas”, mas de idéias (noções, categorias, conceitos, leis etc.) que são capazes de expressar o mecanismo central de constituição e articulação do real concreto, a essência desse real concreto. Já as duas buscas mais fundamentais estão aqui combinadas numa mesma perspectiva, num mesmo movimento: a dos elementos simples e decisivos do concreto e a do uso abstrato do conceito, dois dos pilares centrais do método dialético de Marx. Cai por terra o princípio hegeliano de que é na idéia que reside esse mecanismo e seu impulso primário. A inversão gnosiológica está definitivamente feita (Cf. Hegel, 1968). O método dialético materialista já está posto e, embora não totalmente desenvolvido, na sua idade maior; e, para concluir, já está colocada, no plano teórico, a questão proposta, a do início da abordagem analítica de determinada totalidade.


Referências bibliográficas

Dosse, François. A História em migalhas - Dos Annales à Nova História. São Paulo: Unicamp, 1994.

Hegel, G. W. F. Ciência de la lógica. Argentina: Solar, 1968.

Kosik, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.

Lukács, G. Existencialismo ou marxismo. São Paulo: Senzala, 1967.

Marx, Karl. Borrador. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 1973.

_________. El capital. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 1966.

Rodolsky, Roman. Gênese e estrutura de O Capital de Karl Marx. Rio de Janeiro: UERJ/Contraponto, 2001.


(1) Mais adiante será visto por que a afirmação de Lukács, de que as relações objetivas são “sempre determinadas”, não implica - ou não expressa - um determinismo “objetivo” (absoluto) no qual o elemento subjetivo não esteja presente com sua eficácia específica.

(2) A propósito do impacto negativo causado pelo abandono dessa categoria dialética nos domínios de importantes segmentos da historiografia contemporânea, consultar a obra de François Dosse (1994).

(3) Com efeito, alguns autores e algumas concepções, notadamente no âmbito da sociologia e fora da esfera teórica do marxismo, empregam o conceito de todo ou totalidade sem a observância dos pressupostos de que se fala mais acima. À propósito, escreve Kosik: “(...) a categoria da totalidade atingiu no século XX uma ressonância e notoriedade, mas ao mesmo tempo se viu continuamente exposta ao perigo de ser entendida unilateralmente ou de se transformar no seu oposto, isto é, de deixar de ser um conceito dialético. O sentido principal das modificações introduzidas no conceito de totalidade durante os últimos foi a sua redução a uma exigência metodológica e a uma regra metodológica na investigação da realidade. Essa degeneração do conceito resultava em duas banalidades: que tudo está em conexão com tudo, e que o todo é mais do que as partes” (Kosik, 1969, p.34).

(4) Como se verá em todo este escrito, o termo estrutura não comporta qualquer identificação com o significado que ele recebe em tendências ou escolas que, ao atribuir uma conotação de determinismo absoluto ou da mais completa ausência da ação social ao conceito, na verdade não fazem mais do que proceder a uma inaceitável hipóstase do mesmo.

(5) A esse respeito o leitor pode consultar o excelente livro de Romam Rosdolsky, Gênese e Estrutura de O Capital de Karl Marx, nomeadamente o Apêndice II (Rosdolsky, 2001).

(6) A dificuldade de captar todo um conjunto representativo de mediações num dado processo social sempre foi um grande obstáculo às predições de movimentos, ora para mais, ora para menos, mesmo por parte de leitores de conjunturas em perspectiva, do porte de Marx, Engels, Lênin e Trotsky. A análise desse tipo de dificuldade - a saber: a questão do tratamento que deve ser dado às mediações nas análises e predições pelo método marxista das análises de conjunturas - não será abordada neste estudo, pois se trata de problema complexo que merece, por isso mesmo, uma abordagem à parte.

(7) Essa afirmação não supõe que a elaboração dessas categorias seja um ato que anteceda ou que esteja acima ou fora da práxis social, como uma postura meramente contemplativa - no estilo platônico, por exemplo - da produção do “conhecimento”, mas, ao contrário, simultaneamente nela e com ela. Nos termos do marxismo, não existe coisa mais estranha ou inútil do que um pensamento que elabora distante de uma inserção prática no ato de transformação da realidade que é, simultaneamente, compreendida para ser transformada e transformada para ser continuamente compreendida.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

A Totalidade, a Contradição e a Mediação - Leandro Konder

Observação do autor do blog: Este texto, ao nosso ver, se encaixa naquilo que podemos chamar: "marxismo vulgar". O alto nível de abstração em que o autor aborda o tema (sem levar em conta nenhum objeto determinado; como se a totalidade, a contradição e a mediação pairassem no ar), a indeterminação de categorias como a contradição; a falta de referências a O Capital de Marx e ao seu modo de exposição que tornam a totalidade, a mediação e a contradição apreensíveis enquanto momento em que é capturada a lógica do próprio objeto analisado, faz com que este texto do Konder pouco ou nada possa acrescentar, antes confundir. Aconselhamos a leitura de outros textos do blog como:

Da lógica com um grande “L” à lógica de O Capital - Hector Benoit



Capítulos extraídos do livro "O que é dialética" de Leandro Konder (Grifo meu)


Para a dialética marxista, o conhecimento é totalizante e a atividade humana, em geral, é um processo de totalização, que nunca alcança uma etapa definitiva e acabada. Mas o que quer dizer exatamente isso? O que significa totalizante? E o que significa totalização? Vamos trocar a coisa em miúdos.
Qualquer objeto que o homem possa perceber ou criar é parte de um todo. Em cada ação empreendida, o ser humano se defronta, inevitavelmente, com problemas interligados. Por isso, para encaminhar uma solução para os problemas, o ser humano precisa ter uma certa visão de conjunto deles: é a partir da visão do conjunto que a gente pode avaliar a dimensão de cada elemento do quadro. Foi o que Hegel sublinhou quando escreveu: “A verdade é o todo". Se não enxergarmos o todo, podemos atribuir um valor exagerado a uma verdade limitada (transformando-a em mentira), prejudicando a nossa compreensão de uma verdade mais geral.
Exemplo disso: alguém observa que o capitalista X é um homem generoso, progressista, sinceramente preocupado com seus operários. Essa observação pode ser correta. No entanto, é necessário entendê-la dentro de seus limites, para não perdermos de vista o fato de que ela nunca pode ser usada para pretender invalidar outra observação mais abrangente: a de que o sistema capitalista, por sua própria essência, impele os capitalistas em geral, quaisquer que sejam as qualidades humanas deles, a extraírem mais-valia do trabalho de seus operários.
A visão de conjunto - ressalve-se - é sempre provisória e nunca pode pretender esgotar a realidade a que ele se refere. A realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que a gente tem dela. Há sempre algo que escapa às nossas sínteses; isso, porém, não nos dispensa do esforço de elaborar sínteses, se quisermos entender melhor a nossa realidade. A síntese é a visão de conjunto que permite ao homem descobrir a estrutura significativa da realidade com que se defronta, numa situação dada. E é essa estrutura significativa - que a visão de conjunto proporciona - que é chamada de totalidade.
A totalidade é mais do que a soma das partes que a constituem. No trabalho, por exemplo, dez pessoas bem entrosadas produzem mais do que a soma das produções individuais de cada uma delas, isoladamente considerada. Na maneira de se articularem e de constituírem uma totalidade, os elementos individuais assumem características que não teriam, caso permanecessem fora do conjunto.
Há totalidades mais abrangentes e totalidades menos abrangentes: as menos abrangentes, é claro, fazem parte das outras. A maior ou menor abrangência de uma totalidade depende do nível' de generalização do pensamento e dos objetivos concretos dos homens em cada situação dada. Se eu estou empenhado em analisar as questões políticas que estão sendo vividas pelo meu país, o nível de totalização que me é necessário é o da visão de conjunto da sociedade brasileira, da sua economia, da sua história, das suas contradições atuais. Se, porém, eu quiser aprofundar a minha análise e quiser entender a situação do Brasil no quadro mundial, vou precisar de um nível de totalização mais abrangente: vou precisar de uma visão de conjunto do capitalismo, da sua gênese, da sua evolução, dos seus impasses no mundo de hoje. E, se eu quiser elevar a minha análise a um plano filosófico, precisarei ter, então, uma visão de conjunto da história da humanidade, quer dizer, tia dinâmica realidade humana como um todo (nível máximo de abrangência da totalização dialética).
É evidente que, na prática, a vida coloca diante de mim problemas que eu tenho de resolver, em geral, sem necessidade de recorrer a cada passo a considerações de filosofia da história (isto é, ao nível de totalização mais abrangente). De certo modo, contudo, mesmo no dia-a-dia, nós estamos sempre, implicitamente, totalizando; estamos sempre trabalhando com totalidades de maior ou menor abrangência.
Para trabalhar dialeticamente com o conceito de totalidade, é muito importante sabermos qual é o nível de totalização exigido pelo conjunto de problemas com que estamos nos defrontando; e é muito importante, também, nunca esquecermos que a totalidade é apenas um momento de um processo de totalização (que, conforme já advertimos, nunca alcança uma etapa definitiva e acabada). Afinal, a dialética - maneira de pensar elaborada em função da necessidade de reconhecermos a constante emergência do novo na realidade humana - negar-se-ia a si mesma, caso cristalizasse ou coagulasse suas sínteses, recusando-se a revê-las, mesmo em face de situações modificadas.
A modificação do todo só se realiza, de fato, após um acúmulo de mudanças nas partes que o compõem. Processam-se alterações setoriais, - quantitativas, até que se alcança um ponto crítico que assinala a transformação qualitativa da totalidade. É a lei dialética da transformação da quantidade em qualidade. Por enquanto, o que devemos sublinhar é que a modificação do todo é mais complicada que a modificação de cada um dos elementos que o integram. E devemos sublinhar outra coisa: cada totalidade tem sua maneira diferente de mudar; as condições da mudança estariam dependendo do caráter da totalidade e do processo específico do qual ela é um momento. Vejamos um exemplo. Observemos a sociedade brasileira. Podemos analisá-la em três níveis distintos. Num primeiro nível, podemos estudar seu regime jurídico-político, suas leis, suas instituições, seu sistema administrativo, a estrutura do seu Estado. Num segundo nível, podemos mergulhar mais fundo e procurar examinar a história da sociedade brasileira, a relação existente entre sua vida política, seus problemas sociais e sua economia; podemos encará-la como formação sócio-econômica. E, finalmente, num terceiro nível, mais geral e mais abstrato, podemos fixar nossa atenção no modo de produção que se acha na base da formação sócio-econômica existente. Na prática, não é possível separar inteiramente as questões que se apresentam num desses níveis das questões que se manifestam nos outros dois; afinal, concretamente, elas são elementos de uma mesma realidade global, que é a sociedade brasileira. No entanto, focalizada no plano de cada uma das diversas totalizações mencionadas, essa realidade nos revela aspectos distintos, que nos ajudam a compor sua verdadeira fisionomia e a orientar de maneira mais realista nossa atividade tendente a transformá-la.
Em 1964, quando foi deposto o Presidente João Goulart, e em 1968, quando foi editado o AI-5, o Brasil sofreu uma importante modificação (em dois episódios): mudou o seu regime jurídico-político. Era necessário reconhecer a mudança qualitativa dessa totalidade, para extrair todas as conseqüências que se impunham, no plano estratégico (e não ficar se iludindo com a idéia de que tinha ocorrido uma mera "quartelada" cujos efeitos seriam passageiros). Ao mesmo tempo, porém, era preciso observar que, como formação sócio-econômica, o Brasil não sofrera nenhuma alteração significativa em 1964.ou em 1968.' A formação sócio-econômica, como totalidade, não muda no mesmo ritmo que o regime jurídico-político.
Ao longo destas últimas décadas, num ritmo bem mais lento que o do regime jurídico-político, a nossa formação sócio-econômica está-se modificando; em certos aspectos, com o crescimento econômico, com o avanço da industrialização, com a modernização conservadora (promovida de "cima" para "baixo"), a nossa formação sócio-econômica já mudou bastante e assumiu, inclusive, características qualitativamente novas. O que se passa, entretanto, com o modo de produção capitalista, no Brasil? Ele apresenta sinais de que está na iminência de sofrer alguma alteração qualitativa? Está na iminência de ser modificado como totalidade? Em vão, os revolucionários impacientes, acicatados pela pressa pequeno-burguesa, cansam-se na busca de indícios de que a "grande crise" do modo de produção capitalista no Brasil está próxima; tudo indica que esse modo de produção continua bastante forte.
Temos, então, três totalidades, elaboradas em três níveis diversos, exprimindo três processos diferentes de totalização e nos revelando três aspectos distintos (todos três importantíssimos) da mesma realidade brasileira.
A esta altura da nossa exposição, o leitor pode indagar: como é que eu posso ter certeza de que estou trabalhando com a totalidade correta, de que estou fazendo a totalização adequada à situação em que me encontro? A única resposta possível a esta pergunta se arrisca a ser decepcionante: não há, no plano puramente teórico, solução para o problema. A teoria é necessária e nos ajuda muito, mas por si só não fornece os critérios suficientes para nós estarmos seguros de agir com acerto. Nenhuma teoria pode ser tão boa a ponto de nos evitar erros. A gente depende, em última análise, da prática - especialmente da prática social - para verificar o maior ou menor acerto do nosso trabalho com os conceitos (e com as totalizações).
A teoria nos ajuda, fornecendo importantes indicações. Em relação à totalidade, por exemplo, a teoria dialética recomenda que nós prestemos atenção ao "recheio" de cada síntese, quer dizer, às contradições e mediações concretas que a síntese encerra.
Na investigação científica da realidade, a gente começa trabalhando com conceitos que são, ainda, sínteses muito abstratas. Marx dá o exemplo da população. A população é um todo, mas o conceito de população permanece vago se nós não conhecemos as classes de que a população se compõe. Só podemos conhecer concretamente as classes entretanto, se estudarmos os elementos sobre os quais elas se apoiam, na existência delas, tais corno o trabalho assalariado, o capital, etc. Tais elementos, por sua vez, supõem o comércio, a divisão do trabalho, os preços, etc. "Se começo pela população, portanto, tenho uma representação caótica do conjunto; depois, através de uma determinação mais precisa, por meio de análises, chego a conceitos cada vez mais simples. Alcançado tal ponto, faço a viagem de volta e retorno à população. Dessa vez, contudo, não terei sob os olhos um amálgama caótico e sim uma totalidade rica em determinações, em relações complexas." Esse texto de Marx é de grande interesse para nós. O ponto de partida - observemos - não é um conceito rudimentar: é uma expressão que designa, ainda confusamente, uma realidade complicada. A análise, portanto, só pode ser orientada com base em uma síntese (mesmo precária) anterior. Uma certa compreensão do todo precede a própria possibilidade de aprofundar o conhecimento das partes.
Mas o texto ainda diz mais: por análise, eu decomponho e recomponho o conhecimento indicado na expressão que me serviu de ponto de partida. No fim, realizada a viagem do mais complexo (ainda abstrato) ao mais simples e feito o retorno do mais simples ao mais complexo (já concreto), a expressão população passa a ter um conteúdo bem determinado. O concreto, portanto, é o resultado de um trabalho. "0 concreto" - insiste Marx - "é concreto porque é a síntese de várias determinações diferentes, é unidade na diversidade." A concepção de Marx, segundo a qual o conhecimento não é um ato e sim um processo, desenvolveu-se em polêmica contra a concepção irracionalista. Os irracionalistas consideram a intuição um instrumento privilegiado do conhecimento humano; para eles, o que é "sacado" intuitivamente já possui valor de verdade, de modo que não existe nenhum motivo para nós trilharmos o trabalhoso caminho indicado por Marx: a impressão genérica obtida no ponto de partida já nos basta. O irracionalismo desestimula o ser humano a realizar o paciente esforço de ir além da aparência, em busca da essência dos fenômenos. E as "totalidades" dos irracionalistas permanecem um tanto vazias, não têm um "recheio" definido.
A dialética é muito mais exigente do que o irracionalismo. Para reconhecer as totalidades em que a realidade está efetivamente articulada (em vez de inventar totalidades e procurar enquadrar nelas a realidade), o pensamento dialético é obrigado a um paciente trabalho: é obrigado a identificar, com esforço, gradualmente, as contradições concretas e as mediações específicas que constituem o "tecido" de cada totalidade, que dão “vida” a cada totalidade.
"A dialética" - observa Carlos Nelson Coutinho - "não pensa o todo negando as partes, nem pensa as partes abstraídas do todo. Ela pensa tanto as contradições entre as partes (a diferença entre elas: a que faz de uma obra de arte algo distinto de um panfleto político) como a união entre elas (o que leva a arte e a política a se relacionarem no seio da sociedade enquanto totalidade)". Os irracionalistas, implicitamente, dispensam-nos desse esforço. Quem achar que já "saciou" intuitivamente o todo não precisará examinar cuidadosamente as partes. Mas também não terá uma compreensão clara das conexões e conflitos internos e ficará com uma totalidade um tanto nebulosa.
Já Hegel criticava a concepção irracionalista que seu ex-amigo Schelling adotara da totalidade (do absoluto), dizendo que se tratava de uma noite na qual todas as vacas eram pardas. Para que o nosso conhecimento avance e o nosso laborioso (e interminável) descobrimento da realidade se aprofunde - quer dizer: para nós podermos ir além das aparências e penetrar na essência dos fenômenos - precisamos realizar operações de síntese e de análise que esclareçam não só a dimensão imediata como também e, sobretudo, a dimensão mediata delas.
A experiência nos ensina que em todos os objetos com os quais lidamos existe uma dimensão imediata (que nós percebemos imediatamente) e existe uma dimensão mediata (que a gente vai descobrindo, construindo ou reconstruindo aos poucos). Vejamos, por exemplo, este livrinho sobre a dialética que está nas mãos do leitor: é uma realidade imediata, palpável, legível; um conjunto de folhas impressas com símbolos gráficos. Mas não é só isso. Se o leitor parar um pouco para pensar sobre ele, verificará que o fato de p livro estar em suas mãos passa por uma série de mediações, é um fato que está mediatizado por outros fatos e por diversas ações humanas.
A mediação mais próxima a ser reconstituída é a do deslocamento do livro: como foi que ele veio parar nas mãos do leitor? O leitor comprou-o numa livraria? Recebeu-o de presente? Está lendo o volume numa biblioteca? Há também uma mediação subjetiva: qual foi o motivo que levou o leitor a se interessar pelo livrinho? Por que este livro e não outro? Quando e como o leitor passou a ter a impressão ou a convicção de que o assunto do livro era digno de atenção e valia a pena lê-lo? Quais foram as experiências pessoais e os condicionamentos culturais que o levaram a isso?
Somente levando em conta essas (e outras) mediações é que poderemos avaliar corretamente toda a significação do fato de o livro estar, agora, neste imediato momento, nas mãos' do leitor.
As mediações, entretanto, obrigam-nos a refletir sobre outro elemento insuprimível da realidade: as contradições. Há muita confusão em torno da palavra contradição. Desde que Hegel expôs pela primeira vez os fundamentos do método dialético, uma das principais objeções formuladas contra ele - uma objeção até hoje repetida - é a de que o conceito de contradição usado pelos dialéticos estaria errado.
Durante séculos, a hegemonia do pensamento metafísico nos acostumou a reconhecermos somente um tipo de contradição: a contradição lógica. A lógica, como toda ciência, ocupa-se da realidade apenas em um determinado nível; para alcançar resultados rigorosos, ela limita o seu campo e trata de uma parte da realidade.
As leis da lógica são certamente válidas, no campo delas; e - nesse campo de validade - a contradição é a manifestação de um defeito no raciocínio.
Existem, porém, dimensões da realidade humana que não se esgotam na disciplina das leis lógicas. Existem aspectos da realidade humana que não podem ser compreendidos isoladamente: se queremos começar a entendê-los, precisamos observar a conexão íntima que existe entre eles e aquilo que eles não são. Henri Lefebvre escreveu, com razão: "Não podemos dizer ao mesmo tempo que determinado objeto é redondo e é quadrado. Mas devemos dizer que o mais só se define com o menos, que a dívida só se define pelo empréstimo".
As conexões íntimas que existem entre realidades diferentes criam unidades contraditórias. Em tais unidades, a contradição é essencial: não é um mero defeito do raciocínio. Num sentido amplo, filosófico, que não se confunde com o sentido que a lógica confere ao termo, a contradição é reconhecida pela dialética como princípio básico do movimento pelo qual os seres existem. A dialética não se contrapõe à lógica, mas vai além da lógica, desbravando um espaço que a lógica não consegue ocupar.


terça-feira, 1 de julho de 2008

Marx no Tempo da Gazeta Renana - Vânia Noeli Ferreira de Assunção

Artigo retirado da revista on-line "verinotio" disponível em: http://www.verinotio.org/edicoes_anteriores.htm (Grifo meu)

Introdução


Um pensador da importância do filósofo alemão Karl Marx (1818-83) suscita discussões permanentes, nas quais se insere este trabalho. Não se trata para nós, contudo, apenas de um interesse acadêmico ou simples curiosidade, desliado da realidade: trata-se de encontrar respostas para questões que, na atualidade, ferem gravemente a ciência e a prática de uma humanidade extremamente carente de autoconhecimento. Tal análise se torna ainda mais premente após o colapso dos regimes do leste europeu, pretensamente socialistas, cuja consideração impõe-se a quem quer que se preocupe com a questão da emancipação humana. Enfim, as discussões levantadas numa pesquisa sobre o pensamento de Marx estão estreitamente atadas a problemas práticos e científico-filosóficos contemporâneos.

Problemas estes que refletiram nos inúmeros “reexames”, nas incontáveis “leituras” a que foi submetida obra de Marx – o que efetivamente configura o seu destino trágico: ela sofre com deturpações, incompreensões, atribuições aleatórias de sentido. Mesmo os autodenominados partidários de Marx – ou justamente eles – muito têm contribuído para isso: Hobsbawm observou, certa vez, que o marxismo “sempre sofreu com a tendência dos marxistas de começar por decidir o que pensam que Marx deveria ter dito e depois procurar a confirmação, nos textos, dos pontos de vista escolhidos” (Hobsbawm apud Fernandes, 1989, p. 10).

Compreender um objeto implica apreender sua differentia specifica; no nosso caso, isso faz fundamental remeter à gênese do marxismo, a seu período de gestação, o que contribui para ultrapassar toda perspectiva unilateralizante, impeditiva de sua adequada compreensão. De fato, em boa parte como herança da II Internacional, o ideário de Marx foi visto por longo tempo como um materialismo mecanicista de caráter semipositivista; como reação a isso, passou-se a destacar “o papel ativo e criador dos fatores subjetivos, fazendo do marxismo uma filosofia da consciência próxima do idealismo hegeliano e distante do materialismo” (Frederico, 1990, p. 9). O “jovem Marx” é considerado ora simplesmente hegeliano, ora meramente feuerbachiano, e diante da “unilateralização sofisticada sob a qual passaram a ser apreendidas as investigações, desimportavam as origens, passando a valer apenas a desembocadura no método redentor”, que desobriga ao exame do caminho (Chasin, 1995, p. 339). O Marx adulto ou é desmesuradamente aproximado de Hegel, chegando mesmo a ser qualificado como mero aplicador da lógica deste ao modo de produção do capital, ou, no outro extremo, é totalmente afastado dele.

Outro problema que aparece nos últimos decênios é a pura atribuição de significados ao texto marxiano, visto como uma “obra de pensamento” que escapa ao autor, tornando-se o que os ledores fazem dela, de acordo com os dilemas de seu tempo histórico. Com isso, a subsunção ativa aos escritos (e sua objetividade) acaba cedendo lugar às imputações mais ou menos bem-intencionadas.

De outra parte, a transição para a maturidade de Marx é atribuída a uma resolução epistêmica, fazendo crer que o eixo de sua teoria baseia-se nesse campo, pelo que têm se reproduzido as disputas acerca do estatuto científico do discurso marxiano e pela “descoberta” constante nela de perfis teóricos cognitivos e metodológicos os mais diversos. Ao final, como observou M. Löwy, as tentativas de superar o pensamento de Marx têm conduzido aquém dele (Löwy, 2002, p. 18).

Assim, poder-se-ia dizer, parafraseando o Marx d’A Sagrada Família, que os marxólogos das posições dominantes no século XX transformam “trivialidades em mistérios” e “sua arte não consiste em revelar o oculto, mas ocultar o revelado”.

Em verdade, entender a gênese e o caminho constitutivo do pensamento próprio de Marx é condicionante para atingir efetivamente as categorias que ele apreende no real e os contornos mesmos da sua teoria. Com tal objetivo – e ainda que com a profundidade rasa que uma atividade deste tipo comporta –, iniciaremos com um traçado histórico da Alemanha no início dos anos 1840, mostrando em seguida as principais reflexões do Marx pré-marxiano, tal como explicitadas nos artigos jornalísticos. Incluímos uma ligeira discussão sobre o problema do “jovem Marx”, posicionando-nos acerca do período da vida em que ele merece tal epíteto.

1) A “Miséria Alemã”

A forma específica pela qual a Alemanha chegou ao capitalismo industrial recebeu (por Lênin) a designação de via prussiana, que busca refletir a idéia de um país cujo desenvolvimento capitalista, embora fizesse progressos, era atrasado, mantendo-se essencialmente agrícola, com um proletariado incipiente em termos numéricos e políticos e que estava sob o jugo semifeudal dos Junkers – influentes aristocratas que forneciam os quadros para a poderosa burocracia prussiana e o exército, tão importantes num país em que vigia o culto ao militarismo.

Enquanto na Inglaterra e na França a coesão pátria deu-se já no processo de dissolução feudal (com a constituição das monarquias nacionais), na Alemanha a problemática da unidade nacional estava na ordem do dia da revolução burguesa. Isso porque até quase o final do século XIX ela não existia como um país unificado: compunha-se de 38 pequenos Estados, cada um dos quais tivera durante um longo período suas próprias leis civis, impostos e moedas, fronteiras aduaneiras, seu sistema de pesos e medidas – eram, enfim, um organismo econômico fechado cujos soberanos se aferravam ao poder e se opunham decididamente a todo progresso.

Conseqüentemente, na Alemanha a revolução burguesa – se feita – teria de começar pela conquista da unidade nacional, teria de se bater com preceitos que, nos países clássicos, haviam sido destruídos por séculos de lutas de classe, e teria de instaurar de uma vez órgãos e instituições nacionais que, naqueles países, também haviam sido o resultado de um processo secular. E, como o desenvolvimento do país foi tardio, mas vigoroso, a partir da segunda metade do século XIX a questão tornava-se ainda mais urgente, pois a necessidade de realizar a unidade nacional é tanto mais premente quanto mais robusto for o desenvolvimento capitalista.

Na Alemanha, progresso social e evolução nacional não se empuxam mutuamente, mas se contrapõem. Ali, o desenvolvimento do capitalismo não consegue produzir uma classe burguesa capaz de assumir a direção da nação. Recusando-se "a correr o menor risco”, as classes dominantes só “aceitam se mobilizar em torno de temas novos” “quando seu poder está gravemente posto em questão pelas idéias da Revolução Francesa”, pois “têm por único objetivo manter seus privilégios arcaicos, ajuntando a eles, tanto quanto possam, as vantagens da indústria", pelo que se compõem entre si e, “assim que a tormenta tenha passado, eles reconstituem, com toda tranqüilidade e sob a proteção de sua polícia, o ‘passado de tempos modernos’” (Châtelet, 1971, pp. 21 e 24).

Acresça-se a isso que a frágil burguesia alemã, consciente do antagonismo com o proletariado revolucionário e temerosa dos feitos deste mais além, abandona covardemente suas tarefas políticas, realizando apenas as econômicas (unidade monetária, liberdade profissional e de circulação etc.). E explicita seu caráter antiliberal em conciliações constantes com os representantes da antiga ordem[1].

De outra parte, quando o capitalismo industrial iniciou verdadeiramente seu caminho na Alemanha e noutros países retardatários (Rússia, Japão, Itália), o antagonismo entre burguesia e proletariado já era patente e assumido teórica e praticamente, alhures e aquém. Ainda mais: na Alemanha, com a transformação dos grandes senhorios feudais em um “absolutismo em miniatura” (privado de seus aspectos progressivos, como o servir de nascedouro e fonte de forças para a burguesia), as formas acentuadas de exploração dos camponeses não permitiam que se transformassem em proletários, dada a ausência de manufaturas, levando eles “vidas de lumpemproletários” (Lukács, 1972, p. 29).

Lembre-se que os anos 1840 assistem às primeiras lutas independentes e autônomas do proletariado europeu, que até então, na maior parte das vezes, estava ao lado da burguesia nas lutas revolucionárias (as ofensivas isoladas tinham geralmente um caráter espontâneo e destruidor, como o ludismo)[2]. Daí em diante, o incipiente movimento operário começa a alcançar um desenvolvimento ideológico, por meio de uma ligação com as teorias socialistas e comunistas – embora, a bem da verdade, estas não tenham em princípio se declarado uma força social e não pudessem resistir a uma crítica no plano teórico. Enquanto isso, na Alemanha o

proletariado, tão pouco desenvolvido quanto a burguesia, educado numa concreta submissão espiritual, não organizado e inclusive incapaz ainda de formar uma organização independente, somente pressentia, de modo vago, o profundo antagonismo de interesses que o separava da burguesia. Continuava sendo, portanto, seu apêndice político, apesar de na realidade ser seu adversário ameaçador. (Engels, s.d., p. 145)

A burguesia se assusta, portanto, com o que o proletariado alemão poderia ser em face do que já era o francês, optando por um conchavo com a monarquia e a nobreza contra os trabalhadores. A maioria da população era formada pela pequena burguesia urbana e pelos camponeses e, diferentemente da França,

não tinha a Alemanha uma classe média forte, consciente, politicamente educada, que liderasse a luta contra aquele absolutismo. /.../ A classe média urbana, distribuída em numerosas municipalidades, cada uma com seu próprio governo e seus próprios interesses locais, era impotente para cristalizar e efetuar qualquer oposição séria. (Marcuse, 1988, p. 26)


Transitou-se, pois, de antiga para nova ordem sem uma revolução, impondo-se um quadro de forte censura, proibição de reuniões políticas, ausência de organizações políticas, rigoroso controle das universidades, predomínio da religião (o Estado não se tinha tornado laico) e inexistência de um processo extensivo de industrialização ou urbanização do mesmo porte do que ocorria nos outros países europeus, localizando-se o país na retaguarda do desenvolvimento social europeu. “Não existiam instituições nacionais representativas. As assembléias provinciais, os Landtag, apenas tinham voz consultiva, e o seu princípio de representação por estados sociais reduzia fortemente os direitos da burguesia” (VVAA, 1983, p. 14). Por isso, conforme observou o filósofo húngaro G. Lukács,

Precisamente pelos anos em que a Europa ocidental /.../ abraçava resolutamente o caminho do capitalismo, da fundamentação econômica e do desdobramento ideológico da sociedade burguesa, vemos como, na Alemanha, se mantém em pé tudo o que há de miserável nas formas de transição da Idade Média à época moderna. (Lukács, 1972, p. 29).


Mas havia diferenças regionais. A cidade onde nasceu o pequeno Karl Marx, Trier, localiza-se na região da Renânia, então a mais desenvolvida em termos econômicos e políticos, tendo sido fortemente influenciada pela Revolução Francesa. Entre 1794 e 1815, o vale do Reno tinha feito parte da República Francesa sob o governo de Napoleão e, ainda que o Congresso de Viena tenha determinado a volta da maior parte da região para a Prússia feudal e absolutista, foi impossível apagar totalmente as modificações introduzidas pela dominação napoleônica e sua “missão civilizatória”, que, no essencial, suprimira o feudalismo. O descontentamento com o governo prussiano era patente na burguesia renana, que acabou por se tornar porta-voz dos círculos burgueses da Prússia e de toda a Alemanha.

Ao mesmo tempo, e em aparente contradição com as condições sociohistóricas do país, as construções teóricas alemãs alcançavam grande desenvolvimento, a ponto de Marx dizer que os alemães pensavam o que os outros povos realizavam. Aqui, as grandes lutas e polêmicas ocorriam no âmbito da filosofia e neste domínio – o ideal – havia na Alemanha uma reflexão filosófica que tendia a concentrar as grandes questões da época.

O descasamento entre a realidade sociopolítica atrasada, a ausência de fortes bases sociais e o desenvolvimento filosófico avançado fez que os ideólogos alemães cultivassem uma ideologia de caráter abstrato e especulativo, que aparentemente que não só não dependia da vida concreta como era o motor da história, de forma que a vida real devia submeter-se aos ideais que eles tinham elaborado. Isso só foi possível porque estava distanciada da realidade, mantendo-se inquestionada mesmo diante da falsidade de seus pressupostos.

O idealismo alemão surgiu, em grande medida, como resposta à Revolução Francesa que, no entender dos filósofos idealistas, veio completar a tarefa da Reforma. A Revolução abolira os restos do absolutismo feudal e emancipara o indivíduo que, livre de tradições e instituições atávicas, agora dependeria aparentemente apenas de sua própria atividade racional e livre. Ao mesmo tempo, o processo econômico parecia dar razão a essas noções, pois o capitalismo industrial punha à disposição novos meios demandados para a satisfação das necessidades humanas[3].

Em termos filosóficos, a Alemanha havia encontrado sua mais alta expressão em Georg W. F. Hegel (1770-1831), em cuja filosofia ecoavam os grandes abalos ocorridos na Europa entre fins do século XVIII e início do seguinte. As transformações profundas que se seguiram à Revolução Francesa, “bem como o impetuoso desenvolvimento das ciências, principalmente das ciências da natureza, assestaram um sério golpe no velho modo de pensar metafísico” (VVAA, 1983, p. 25). Escrita como resposta a tais processos sociais, a obra de Hegel filósofo marcou de tal forma a Alemanha que após a sua morte, ocorrida em 1831, e as Revoluções de 1848, o xis da filosofia alemã é a disputa pelo legado hegeliano. De fato, iniciou-se para a escola associada ao seu pensamento uma divisão, de forma que existem então dois grandes grupos, ambos hegelianos, que apreendem a obra de Hegel de forma diferente e tiram dela conclusões opostas. Ambas as tendências têm em comum o centrar suas forças em um ou outro aspecto da obra hegeliana, forçando uma interpretação estranha à figura do próprio Hegel, em quem a conciliação era o que mantinha o todo do seu pensamento unido, ainda que de maneira precária.

O nó górdio do pensamento hegeliano está sintetizado, principalmente, na frase “o racional é real; o real é racional”. Os hegelianos ortodoxos enfatizaram a primeira parte da frase, buscando com isso justificar a racionalidade do existente, identificado com a sociedade e o Estado prussianos. Já a nova geração de pensadores hegelianos realçava a última parte da frase, recaindo aí a ênfase no racional, objeção mais óbvia, segundo eles, às mazelas da realidade; o racional, então, só se realizaria de fato com a contestação e negação do existente irracional[4].

Assim, de um lado, os hegelianos ortodoxos (formando a chamada direita hegeliana), que privilegiava na obra de Hegel aspectos ou dubiedades que lhes permitiam forçar uma interpretação conservadora, de forma a torná-lo um teórico do Estado prussiano, um apologeta do existente. Esta corrente se fixou na construção sistêmica da obra de Hegel como algo acabado, expressa fundamentalmente no seu logicismo filosófico. Para Hegel, a história mundial é o processo lógico do desenvolvimento do Espírito, desenvolvimento este cujo sentido é a tomada de consciência pelo Espírito de sua liberdade. A partir disso, ele constrói uma teoria do fim da história, segundo a qual o processo de reconciliação do Espírito com a realidade histórica acaba se realizando na racionalidade do Estado.

Do lado oposto, jovens pensadores que rechaçavam o sistema filosófico geral de Hegel e tomavam como fundamental o que chamavam método hegeliano. De fato, esse grupo destaca na filosofia hegeliana o caráter negativo da dialética, o movimento contínuo da Idéia que põe o mundo em constante desenvolvimento ascensorial, desenvolvimento que se faz por meio de uma luta entre as contradições internas e que resulta no novo, na abolição das velhas contradições e no aparecimento de outras, próprias da nova situação. Baseando-se em tais premissas, esses jovens pensadores apontam para uma contradição forte e imanente do pensamento do velho filósofo, entre método e sistema: falar em realização da razão na história através do Estado desdiz as bases da filosofia de Hegel, segundo as quais a história é processualidade contraditória, dinâmica, que não tem um ponto final.

Os hegelianos mais radicais agrupavam-se em torno do Clube dos Doutores[5] e eram críticos acerbos da teologia e do misticismo presentes na filosofia hegeliana e na cultura alemã. Todavia, enquanto entre os conservadores havia uma grande unidade, a ideologia dos jovens hegelianos não representava algo de único, de internamente homogêneo: os “jovens hegelianos” estavam unidos apenas na oposição à direita e constituíam um bloco de pensadores extremamente heterogêneo. Dentre eles havia desde pensadores com tendências liberais até ateus, mais tendentes ao materialismo (estes últimos constituindo, sob grande influência de Feuerbach, precisamente a esquerda hegeliana)[6].

Aqui cabe um parêntese acerca da importância da religião – e, portanto, da crítica desta, levada a cabo pelos jovens hegelianos. Lembre-se que o Estado prussiano não era um Estado laico, de forma que, pela crítica à religião, estar-se-á fazendo na verdade uma crítica social elíptica, já que “negar a religião como revelação divina, declarar que ela era o produto do desenvolvimento do espírito humano, era minar um dos mais importantes pilares do regime absolutista” (VVAA, 1983, p. 27). Tomando mais detalhadamente um aspecto que Ludwig Feuerbach (1804-1872) destacava: “Se os homens redescobrirem, graças à crítica à religião, enfim posta a nu, sua própria essência, eles experimentarão sua liberdade” (Châtelet, 1971, p. 179). Assim, a crítica da religião tem um inequívoco papel político, torna-se a crítica de um Estado que ainda não se laicizou. Como o próprio Marx diria, na Alemanha daquela época a crítica religiosa era a porta de entrada da crítica social: “Tal como a religião é o resumo dos combates teóricos da humanidade, o Estado político é o resumo de seus combates práticos” (Marx, 1987e, p. 459). Dessa maneira, até o final dos anos 30, as principais controvérsias no interior do hegelianismo estavam concentradas nessa questão, ampliando-se a partir desse ponto para problemas sociopolíticos - nesse aspecto, Feuerbach tem grande proeminência.

Marx emerge como pensador no momento que há uma claríssima disputa pelo legado monumental que é a obra de Hegel. Desde o princípio, mostra simpatia pelos autores da esquerda hegeliana e muito especialmente para com Feuerbach. Mas, mesmo quando se soma às fileiras da esquerda hegeliana, tem uma atitude diferenciada que remetia a filosofia hegeliana à realidade prussiana (e a incompreensões do próprio método pelo velho filósofo) e mantinha uma atitude crítica em relação a ela. Já nos textos jornalísticos podemos encontrar críticas sociais radicais que inexistem em Hegel: isso se deve ao desenvolvimento burguês na Alemanha pós-Hegel, à influência de M. Hess e do socialismo francês sobre Marx e à recusa deste das soluções hegelianas para o conflito Estado-sociedade civil.

Completemos o quadro com a dissolução da herança hegeliana. De fato, embora sua ascensão (1840) tenha sido cercada de ilusões progressistas da parte dos jovens hegelianos (das quais Marx não compartilhou), Frederico-Guilherme IV se dirigiu prontamente contra os jovens hegelianos, afastando Bauer da Universidade de Berlim (março de 1842) e a multiplicando as medidas repressivas e policiais. Até por conta disso, em 1843 o grupo dos jovens hegelianos fragmentou-se em várias tendências que coagulavam as divergências delineadas no ano anterior – ainda que tendo como denominador comum a recusa do Estado prussiano e do liberalismo burguês. A partir de então, o hegelianismo entrou acentuadamente em descaimento, processo que alcançou o auge em 1848, quando seus mais conseqüentes adeptos apoiaram as revoluções daquele ano e foram reprimidos por isso.

2) Estudos na Universidade

Em seus estudos na universidade (1836-1841), Marx se dedicou a uma grande variedade de temas – jurisprudência, filosofia, história, socialismo e comunismo, economia política –; não estando satisfeito com nenhuma das teorias do direito existentes, tentou desenvolver um sistema filosófico completo, experimento que foi objeto de numa feroz autocrítica por estudar de forma dogmática, não permitindo “que a coisa se encarregue de desenvolver-se ela mesma como algo rico e vivo”, mas apresentando-se como “obstáculo para compreender a verdade” (Marx, 1987a, pp. 6-7). E arremata: “na expressão concreta de um mundo de pensamentos vivos como são o direito, o Estado, a natureza, toda a filosofia, é necessário parar e escutar atentamente o próprio objeto em seu desenvolvimento, sem procurar inserir nele classificações arbitrárias, mas deixando que a razão mesma da coisa siga seu caminho contraditório e encontre em si mesma sua própria unidade” (Marx, 1987a, p. 7).

Assim consciente das debilidades de suas primeiras incursões filosóficas, no início de 1839 Marx mergulha no estudo da filosofia, empreendendo vasto trabalho histórico sobre a filosofia da Antigüidade e, em princípios de 1841, inicia a redação de sua tese doutoral. Ao comparar a filosofia da natureza de Demócrito (460 a.C. - 370 a.C.) e Epicuro (341 a.C. – 270 a.C., aproximadamente) – ambos adeptos do atomismo, portanto materialistas –, Marx salienta nelas radicais diferenças no que tange à verdade e à própria possibilidade do conhecimento e da ciência. O filósofo alemão lê em Demócrito passagens contraditórias sobre a certeza do conhecimento, uma dissociação entre essência e fenômeno que redundaria na impossibilidade de atingir a essência, já que os sentidos conhecem apenas a aparência dos fenômenos. Já para Epicuro os sentidos são dizem da verdade e o mundo sensível é objetivo, sendo que o elemento que permite que a essência seja desvelada é o tempo, no qual o fenômeno se apresenta como uma alienação da essência.

Outra das diferenças fundamentais salientadas por Marx entre os dois atomistas dá-se acerca do movimento dos átomos. Em relação a Demócrito, Epicuro insere nesse campo a declinação da linha reta, um movimento incausado de autodeterminação dos átomos. Segundo Marx, Epicuro concluiu a necessidade da declinação do fato de que, se os átomos se movessem a igual velocidade, de cima para baixo, em linhas retas, como afirmava Demócrito, jamais chegariam a se encontrar. Portanto, o movimento desvio era tido como necessário para que se desse o encontro entre os átomos e, conseqüentemente, a formação de todas as coisas.

Por outro lado, uma vez que, na filosofia epicuréica, o homem não passa de um composto de átomos, a possibilidade da declinação transcende os aspectos naturais e toma significação – nada menos – de escape ao determinismo natural, assumindo extrema relevância para a afirmação da liberdade humana. Dessa forma, no plano da sociabilidade, este desvio da linha reta está relacionado à suplantação dos aspectos imediatamente naturais: trata-se da consciência de si, que se concebe como o singular abstrato – a autoconsciência resguarda o livre-arbítrio.

Marx considerava Epicuro o grande iluminista da Antigüidade, pela sua luta em prol da libertação dos homens dos preconceitos, do misticismo, do determinismo natural ou sobrenatural. De fato, o objetivo que o pensamento epicurista atribui à ciência é fundamentalmente o de tranqüilizar o espírito, e não o de trazer conhecimento efetivo da natureza. Marx – que participa então de um movimento de crítica sobretudo da religião – salienta aí o elemento libertário, a afirmação da autoconsciência singular-abstrata como princípio absoluto da liberdade, mesmo percebendo que ela, no epicurismo, é uma propriedade interna de cada indivíduo isolado.

Quando terminou seus estudos, Marx pensava lecionar ao lado de Bruno Bauer, que contava com este aliado valoroso contra os adversários dos jovens hegelianos. O governo, investindo contra os neohegelianos, frustra esses planos.

3) Idealismo Ativo e Atividade Jornalística

Tendo recrudescido a investida prussiana contra a cátedra universitária, a imprensa tornou-se para inúmeros intelectuais o único meio de desenvolver suas idéias teóricas e políticas. O jornalismo tinha então caracteres específicos: mesmo com o crescimento industrial – retardatário e incipiente, mas robusto – que perpassava várias regiões da Alemanha e em face do atraso do país e da resistência prussiana, não havia organizações políticas fortes; a burguesia, excluída do Estado (dominado pela burocracia), reivindicava participação política e direitos de manifestação compatíveis com a nova realidade em processo de constituição. Os novos órgãos de imprensa refletiam justamente essas mudanças, de vez que, na ausência de organismos políticos de monta, a articulação político-ideológica ocorria entre os intelectuais. Destes, os jovens hegelianos se arvoraram em aliados diretos da burguesia liberal, divulgando suas idéias político-filosóficas por meio de periódicos.

Tem-se, assim, a dimensão da imprensa como centro privilegiado do debate, entre os intelectuais, acerca de assuntos vários da vida alemã daquele início dos anos 1840. “Naquele tempo, nenhuma organização comum estável congregava correligionários de um mesmo ideal político, fosse por se considerar a idéia de ação conjunta e disciplinada incompatível com uma concepção política que valorizava a responsabilidade e a consciência individuais, fosse simplesmente pelo obstáculo legal, uma vez que não existia liberdade de associação”. Dessa maneira, “o que havia de mais parecido com os escritórios, comitês e estados-maiores de ‘partidos’ do século XX eram as redações dos jornais” (Agulhon, 1991, pp. 24 e 26).

Quanto à situação particular de Marx, sua atuação jornalística é de grande relevância. É a partir dela que ele questiona o arcabouço teórico que até então era o seu e parte para a busca de um novo, próprio, pois perceberá que sua formação não lhe permite enfrentar os problemas da realidade sociopolítica. Marx, como de resto os neohegelianos, acreditava na importância da imprensa para a vida política alemã: daí que ajude a fundar e se torne articulista e redator-chefe de um dos periódicos de maior destaque então: a Gazeta Renana, editada entre 1° de janeiro de 1842 e 31 de março do ano seguinte, produto e representante do curto enlace entre a burguesia liberal da Renânia e a intelligentsia jovem-hegeliana.

Marx escrevia para o jornal desde abril[7] e assumiu o posto de chefe de redação em outubro, quando pelejou por fazer da GR um órgão eficaz da democracia e uma arma da luta política, por meio da discussão lógica de questões práticas da vida social. Começa, então, uma nova fase da sua evolução ideológica.

É bem conhecida a reflexão autobiográfica do “Prefácio” de 1859, quando Marx afirma que “Em 1842/43, sendo redator da Gazeta Renana, vi-me pela primeira vez no difícil transe de ter que opinar sobre os chamados interesses materiais” (Marx, s.d a, pp. 300-1). De fato, os textos tratam de variados assuntos de caráter político, econômico e social: questões relativas à lei sobre o roubo de lenha, especulação filosófica, assuntos de ordem religiosa e, em especial, a questão da liberdade de imprensa e da censura. De forma que, nessa época, Marx vê suas concepções confrontadas com a realidade, ao tratar diretamente de problemas vitais, concretos, que acabam sendo resolvidos no espírito do democratismo radical.

Para Marx, a imprensa apresentava-se como um ambiente ímpar para o debate filosófico, mas também como espaço para a modificação do espírito e para a efetivação da liberdade humana. A imprensa livre “é o espelho espiritual no qual um povo vê a si mesmo, e a autocontemplação é a primeira condição da sabedoria” (Edit, 2001, pp. 84 e 90). A força da imprensa está em que atua sobre a esfera espiritual do povo, e esta amadurece a partir da crítica filosófica, via imprensa, das questões relativas à vida nacional. Por esse meio, mesmo as questões mais habituais tornam-se públicas, ajudando, pela solidariedade, a diminuir o sofrimento dos envolvidos e elevando os fatos particulares, isolados, ao espaço da universalidade.

A imprensa livre e popular, diz Marx, é um organismo com caracteres híbridos e bem singulares: é pública, mas não burocrática; civil, mas não meramente privada, tem “cabeça de cidadão do Estado e coração de burguês”. Marx atribuía a esse órgão a capacidade de sintetizar e mediar conflitos entre interesse público e privado: estando a meio caminho entre o Estado e a sociedade civil, pode ser o “terceiro elemento” entre a administração e os administrados. Ali onde a imprensa é livre, os homens, tendo por base a racionalidade, têm iguais condições de manifestar suas idéias diferentes, sem dever respeito à hierarquia, aos estamentos etc. Quando a imprensa é livre, ela se torna o “órgão pelo qual são eliminadas as relações políticas hierárquicas e são estabelecidas relações de igualdade entre os cidadãos de Estado”, sendo uma de suas capacidades, por via de conseqüência, a de instaurar entre governo e povo relações cidadãs “que se estabelecem como forças intelectuais, sustentadas por fundamentos racionais” (Eidt, 2001, p. 86).

No jovem Marx, então beirando os 25 anos de idade, “A imprensa é compreendida como a mediação que leva à realização, no Estado, da essência espiritual do homem”, contraposta às religiões particulares e indivíduos singulares (Enderle, 2000, p. 4). No entanto, ele observa que as instituições políticas da Alemanha não estão capacitadas para efetivar a igualdade política, pelo que defende a liberdade de imprensa como um pressuposto desta. Isso porque, na ausência da liberdade de comunicar-se com o outro, o espírito está acorrentado – em face do que todas as outras liberdades tornam-se uma ilusão. Assim, a liberdade de imprensa aparece como “demiurgo da sociedade”, “força redentora do espírito de um povo”, e “reconhecer na imprensa o lugar mais propício ao desenvolvimento do espírito da época não é precisamente um mérito da imprensa alemã; é muito mais uma decorrência da miséria dos demais espaços de manifestação de tal espírito” (Eidt, 2001, p. 94).

Marx constata que a filosofia está dissociada da realidade alemã, “ocupando-se, acima de tudo, da construção de sistemas ordenados de forma lógica, mas não conciliados com sua época” (Marx apud Eidt, 2001, p. 97). Contudo, assevera Marx, os filósofos não estão fora do mundo; ao contrário, exprimem justamente a “seiva mais sutil, invisível e preciosa” de seu tempo e seu povo; essa discussão sobre a relação entre filosofia e mundo constitui uma diferença substancial entre ele e os jovens hegelianos, já expressa em sua tese doutoral. Desde então Marx despende grande esforço para ligar a filosofia avançada à vida, ao mesmo tempo em que entende que esta é irrealizável no quadro do idealismo. De início, compreende este fato como um defeito da forma de análise especulativa hegeliana e sua “linguagem mística, incompreensível”, imposta pelas condições históricas anteriores, já superadas, que persistia como uma expressão da “mania” alemã de prestar culto às idéias e “de não as realizar, à força de as respeitar em excesso” (apud Lápine, 1983, p. 86). Então, tratava-se de realizar a filosofia – isso implicava mostrar aos homens que esta delibera não acerca de absurdidades, mas de seus interesses imediatos.

Nos textos da GR, Marx considera que a própria história redunda de uma ação recíproca entre filosofia e mundo que incluiu várias etapas, iniciadas todas pela elevação da filosofia à categoria de sistema (minuciosamente elaborado), o que reflete o isolamento dela em relação ao mundo. Alcançado este acabamento interno, a filosofia entra em interação recíproca com o mundo exterior, num processo em que a realização da filosofia transforma tanto a ela própria quanto ao mundo. Dessa forma, a filosofia, “por ser a essência espiritual de um tempo, há de se conciliar com o mundo”, deixando “sua postura sacra para se revelar cidadã do mundo”, de tal forma que este se torna filosófico e a filosofia se torna mundana (Marx apud Eidt, 2001, pp. 97-8). Tal se consegue por meio da imprensa livre: quando não trava contato com a esfera jornalística, a filosofia (sistemas filosóficos isolados) opõe-se à imprensa (preocupada com os fatos cotidianos); a primeira ganha, assim, um colorido nitidamente antipopular, “se assemelha a um professor das artes mágicas, cujos exorcismos parecem solenes porque não se os entende”.

Note-se: “Marx chega (por uma via idealista, naturalmente), à compreensão do alcance histórico da luta filosófica do seu tempo como fator ativo que contribui para transformar radicalmente a realidade prussiana” (Lápine, 1983, pp. 55-6). Lembre-se que, para os jovens hegelianos, o ponto nodal estava na autoconsciência, numa subjetividade capacitada a, por uma “ação crítica”, eliminar as irracionalidades do mundo objetivo. “Essa circularidade inicia com a concepção de homem como espírito ou autoconsciência, que se desenvolve e amadurece na atividade crítico-filosófica da livre imprensa e chega à realização nas várias instituições humanas e, em particular, nas instituições de ordem política” (Enderle, 2000, p. 4).

Ora, pelo que foi dito podemos perceber que, não obstante pertencer, ainda então, a um “gradiente idealista” (ativo), Marx a este “agrega dimensão crítica particularizadora, que o distingue tanto de Hegel quanto dos neohegelianos” (Chasin, 1995, p. 352) e que exprime o próprio esgotamento da filosofia precedente.

No crepúsculo de 1842, os governos alemães recrudescem a acometida contra a imprensa liberal. Embora Marx salientasse a equivalência entre essa reprovação e a condenação do espírito político do povo, percebia que isso só ocorria porque a imprensa popular tornara-se forte e era reconhecida como tal: a luta contra algo é a primeira forma do seu reconhecimento. Para fazer jus a esse novo status, Marx busca impedir o governo de valer-se de razões fúteis para destruir a GR, obrigando-o a discussões sobre problemas fundamentais. Esse intento se concretiza com a publicação de dois artigos do correspondente do Mosella sobre a situação de penúria em que viviam os vinhateiros da região, respondidos pelo primeiro-presidente von Schaper, que exigiu esclarecimentos quanto ao conteúdo dos textos.

Marx acabará por se encarregar pessoalmente da resposta, dando início à série de artigos Justificação do Correspondente do Mosella, redigida após intensa investigação e estudo de dados concretos e na qual ele esforçou-se por impor uma discussão sobre as próprias bases do Estado, e não apenas dos aspectos jurídicos e lógicos da questão. É de supor que a coleta e análise de tais dados tenham contribuído para minar suas concepções idealistas, emparedadas pela necessidade de encarar o caráter objetivo das relações sociais. Embora não se trate, ainda, de uma ruptura com o idealismo – e nem de longe tenha encontrado o papel determinante das relações de produção –, a atenção do jovem Marx estará dirigida às relações materiais e, ainda, à relação entre esta esfera e o Estado.

Nesse sentido, seus artigos têm como ponto nevrálgico a afirmação da racionalidade do Estado, do direito e das instituições em geral e a conseqüente denúncia dos realmente existentes. Notam-se neles, assim, exalações claramente neohegelianas: “o Estado não pode ser constituído partindo da religião, mas da razão da liberdade. Só a mais crassa ignorância pode sustentar a afirmação de que esta teoria, a autonomia do conceito de Estado, seja uma postulação efêmera dos filósofos de nossos dias”. Trata-se de afirmar “o Estado como o grande organismo no qual a liberdade jurídica, moral e política devem encontrar a sua realização, e no qual cada cidadão, obedecendo às leis do Estado, não faça mais do que obedecer somente às leis da sua própria razão, da razão humana” (Marx apud Chasin, 1995, p. 355). Assim, o Estado é compreendido como diretamente derivado da idéia do todo, como a estrutura na qual a liberdade – jurídica, ética e política – se efetiva.

Sua noção de política – então democrata-radical – pode ser bem apreendida nos textos em que trata da propriedade privada, principalmente nos Debates a Propósito da Lei sobre os Roubos de Madeira e nas discussões sobre o livre-câmbio e o protecionismo. Neles são contrapostas a universalidade do Estado e a particularidade da propriedade privada e feitas duras críticas ao primeiro por se “rebaixar” ao nível da propriedade privada, degradando-se ao descair da universalidade quando, na verdade, deveria submeter os interesses particulares ao interesse comum, representado pelo próprio Estado. Contra sua natureza, dirá Marx, este está subordinado ao Landtag, organismo que representa os interesses privados das ordens ou da propriedade privada, ao invés de serem a personificação de princípios abstratos da razão. Ocorre, então, o inverso do que pregam as concepções idealistas: não é o Estado que subordina os interesses privados – de caráter econômico, fundamentalmente – aos interesses racionais da sociedade, mas estes que reduzem “o Estado ao papel de instrumento do interesse privado”. Daí que Marx “Passa então a analisar não as noções de ordens, de Estado etc., mas os fatos, a natureza real dos diferentes fenômenos da vida social e as suas relações reais” (Lápine, 1983, p. 99).

Lembre-se que a lenha era, por aquela época, um bem de extrema utilidade para uma família camponesa e esta resistia a abrir mão do direito ancestral de apanhá-la na floresta. A gestão prussiana, porém, propôs aos Landtags um projeto de lei proibindo – e qualificando como roubo, sujeito a punição – a recolha sem a autorização do proprietário da floresta. Marx se utiliza de argumentos jurídico-políticos contra tal lei: a lenha é floresta morta, isto é, não é floresta, objeto de propriedade; ou: apanhar lenha equivale a tomar posse dela de maneira legítima, pelo trabalho, nunca a um roubo. Para além disso, diz, é da condição social dos camponeses e da atitude das outras classes em relação a eles que devem vir seus direitos. Por isso protesta contra o poder das outras classes, pelo qual ocorre “a transformação de privilégios em direitos”, “quando deveria, ao contrário, reconhecer no costume da classe pobre o instintivo sentido de direito que, na forma do direito consuetudinário, elevaria esta classe à efetiva participação no Estado” (Enderle, 2000, p. 5).

Veja-se como, aí, o problema social (miséria dos camponeses) aparece como um problema jurídico, ou de ordem política. “Sendo a lógica uma propriedade da razão, Marx deduz a racionalidade de um Estado da lógica das suas ações. Mostra a contradição lógica existente nos atos do governo prussiano e demonstra desse modo a irracionalidade do Estado prussiano.” (Lápine, 1983, p. 65) Mas ainda não sabe o porquê do problema: “Como hegeliano, descobre sobretudo uma causa ideal: o caráter unilateral do entendimento que se esforça por tornar o mundo unilateral” (Lápine, 1983, p. 98). Também a crítica à religiosidade do Estado prussiano evidencia-se por uma argumentação hegeliana: este Estado “contradizia a idéia de universalidade do Estado ao privilegiar uma única crença”, da mesma forma que ia contra a “racionalidade do Estado, entendida como realização da liberdade, que não precisa dos dogmas para poder existir” (Frederico, 1990, p. 26).

Como corolário desta visão da política, Marx mostra em seus textos a dissociação e a oposição entre representação popular e representação estamental – que divide o povo, de maneira artificial, “em partes sólidas abstratas”, impedindo-lhe os movimentos orgânicos – e proclame que um Estado autêntico é uma democracia, produto da atividade do povo auto-representado, onde os interesses privados estarão sujeitos aos interesses públicos. Cumpre observar que a evolução ideológica de Marx não era linear nem inteiramente consciente: justapunham-se discussões que apontavam para um democratismo revolucionário a outras, típicas do idealismo.

No que tange à forma de entender o problema político, portanto, o jovem Marx seguia a tradição ocidental e, de resto, estava de acordo com o neohegelianismo. De fato, como vimos, nos artigos da GR, percebe-se em Marx uma apreensão da política como locus de realização do ser humano e de sua racionalidade. Nos termos de Chasin, nos textos jornalísticos da época, a “politicidade é tomada como predicado intrínseco ao ser social”, inerente à sua própria natureza. “Marx estava vinculado às estruturas tradicionais da filosofia política, ou seja, à determinação ontopositiva da politicidade, o que o atava a uma das inclinações mais fortes e características do movimento dos jovens neohegelianos” (Chasin, 1995, p. 354). Nesta forma de conceber a política, “Estado e liberdade ou universalidade, civilização ou hominização se manifestam em determinações recíprocas”, considera-se “o plano político como o lugar próprio da resolução dos problemas sociais” e até se tenta os “elevar” à “altura” daqueles, de forma que “é conferido à política o poder de entificar a sociabilidade”, parâmetro em cujo interior “Marx, muito sintomaticamente, procurou resolver problemas socioeconômicos recorrendo ao pretendido formato racional do Estado moderno e da universalidade do direito” (Enderle, 2000, p. 5).

Em dia 19 de janeiro de 1843, a publicação da GR (então com cerca de 3.400 assinantes e amplamente difundida na Prússia e mesmo além-fronteiras) é proibida a partir de 1º de abril, episódio que Marx analisa como um reconhecimento da força do periódico e um efetivo progresso da consciência política[8]. Ele resolveu, então, voltar-se aos estudos, à busca de solucionar as dúvidas que carregará até Kreuznach. Assim, ainda que persista vendo o Estado de forma essencialmente idealista até fins de 1842, o trato com as “chamadas questões materiais” o obrigou a buscar o real conteúdo do Estado e a discutir problemas vitais e concretos, num processo que alcançou o auge na Crítica de 43.

4) O “Jovem Marx” e a Tradição Filosófica Ocidental

Ainda com o objetivo de bem compreender a correta situação de Marx no momento dado, vamos incursionar rapidamente pela discussão acerca da medida exata da contribuição da tradição ocidental e do caldo cultural de sua época para o pensamento próprio deste autor, além do exato momento em que este surgiu.

É bem conhecida a teoria das assim chamadas “três fontes” constitutivas do pensamento de Marx, segundo a qual ele teria se apropriado e reelaborado a doutrina dos mais avançados domínios do pensamento social do século XIX – a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês – fundindo-os na “doutrina marxista”[9]. Acreditamos que subjaz a esta teoria uma certa teleologia histórica, dado que cada um dos produtos deste tríplice amálgama originário, desenvolvido isoladamente por cada povo, seria, a um só tempo, passível de ser apropriado e carente de reelaboração, o que teria tornado possível a Marx selecionar seus elementos mais progressistas e refundi-los num pensamento próprio.

Contudo, J. Chasin, após proceder a uma análise do ideário de Marx – desde sua época pré-marxista até a configuração adulta de seu pensamento –, se dá conta da impossibilidade dessa associação. Seria possível, indaga, conceber uma nova pelo retalhamento, filtragem e fundição de três universos teóricos tão diferentes? Não seria necessário bem mais que um salto mortal para mesclar o conteúdo de teorias tão díspares e cuja estrutura elementar era contraditória?

Ou, especificamente: é possível engendrar algum tipo de discurso de rigor, minimamente articulado, por meio da fusão de uma filosofia especulativa – que sustenta a identidade entre sujeito e objeto –, mesmo se redutível a método, com porções de uma ciência vazada em termos “empiristas ainda abstratos” /.../ e ainda combinado com emanações da consciência utópica que, por natureza, reenviam à especulação (piedosa ou sonhadora)? (Chasin, 1995, p. 346)


É por isso, Chasin acredita, que “o tríplice amálgama é, a rigor, impensável, a não ser como vaga alusão metafórica às doutrinas mais notáveis do universo intelectual ao qual Marx pertencia, e às quais ele teve o discernimento de se voltar, preferencialmente, a partir de certo instante de seu próprio desenvolvimento” (Chasin, 1995, p. 345). Mas estudou-as não para se apropriar integral ou parcialmente delas, mas para proceder à sua crítica ontológica: inicialmente a crítica à especulação, à qual se seguiriam a crítica à politicidade e à economia política (englobando, esta, a crítica do capital e suas formas de sociabilidade e a de sua ciência). Estas três críticas, ao se enlaçarem, permitem a parturição de uma visão global de mundo própria, “uma vez que têm por objetos a prática, a filosofia e a ciência, respectivamente nas formas da política, da especulação hegeliana e da economia política clássica, admitidas como expressões de ponta da elaboração teórica de toda uma época” (Chasin, 1995, pp. 380-1).

Por outro lado, o saber até quando se pode qualificar a obra de Marx como “juvenil” – portanto, não ainda um pensamento próprio amadurecido – tem dado origem a um grande número de manifestações variadas e não raro divergentes. Há os que põem toda a obra de Marx anterior a 1848 sob a autoria do “jovem Marx”, dando a ilusão de que o autor “ascendeu à ciência sem ter atravessado pelo inferno da dúvida e pelo fogo do combate com as questões de sua época”, “sem nada aprender com seus interlocutores” (Frederico, 1990, p. 11). Outras tendências consideram como partes integrantes de seu pensamento adulto mesmo as obras pré-marxianas, esquadrinhadas na busca apologética de idéias futuras. Desconsideram a advertência de M. Löwy (2002, p. 59), segundo a qual tais escritos são “estruturas relativamente coerentes” que “se tem de considerar enquanto tais e dos quais não se pode isolar certos elementos sem que lhes faça perder toda significação”.

Entre ambas as correntes há, porém, uma quase unanimidade: opor um Marx jovem – filósofo, idealista – a um Marx maduro – economista ou cientista –desprezando o fio condutor de suas obras, escolhendo arbitrariamente um de seus aspectos e usando-o contra o outro; saliente-se que a desconsideração pela especificidade do ideário marxiano também serve a certos interesses socioteóricos:

De modo geral, os que desejam fugir dos problemas filosóficos vitais – e nada especulativos – da liberdade e do indivíduo, se colocam ao lado do Marx “científico”, ou “economista político maduro”, enquanto os que não desejam assumir a implicação prática do marxismo (que é inseparável de sua desmistificação da economia capitalista) exaltam o jovem “jovem filósofo Marx”. (Mészáros, 1981, p. 206)


Tentando nos afastar de ambos os equívocos, reafirmamos 1841-47 como o período de formação do ideário marxiano: é quando ele se confronta com os grandes temas de sua época e faz-lhes a crítica, transitando do idealismo ativo à democracia radical e à revolucionária. Aqui se apresentam os elementos necessários para compreensão da evolução constitutiva de sua teoria: após extenso e complexo percurso intelectual, o pensamento de Marx é então já adulto, embora não plenamente maduro, a que chegará nos anos 50, com a retomada dos estudos econômicos.

Para fins de apresentação, esse período pode ser dividido em dois outros: o primeiro (1841-43) compreende sua dissertação de doutorado e os artigos da GR, quando ainda é bastante visível a influência de Hegel e de Kant e que – somente ele - pode se encaixar na rubrica de “obra juvenil”, visto que é a fase inicial e não-marxiana da elaboração teórica de Marx. Percebem-se então certas inquietações teóricas que resultam de sua refinada sensibilidade para os dilemas humanos, mas “que não alteram a natureza do arcabouço ideal que matriza o conjunto desses escritos, nem tampouco são traços constitutivos do futuro desenvolvimento teórico de seu autor” (Chasin, 1995, p. 357). Pelo contrário, Marx romperá logo em seguida com essa estrutura ideológica ainda neohegeliana, ainda “ideologia alemã”. Em síntese, não se pode fazer recair na diferença de Marx com os jovens hegelianos o eixo de análise da tese doutoral e dos artigos de sua fase jornalística, nem valorizar em demasia os elementos de continuidade entre este período e o seguinte, em que a crítica à especulação e à politicidade nasce e amadurece, pelo que as raízes do pensamento político-filosófico posterior de Marx não podem ser aí encontradas.

A particularidade da fase jornalística está em que então Marx se filia às estruturas tradicionais da filosofia política (que capta a política como característica imanente ao ser social) e se inclui no movimento neohegeliano da filosofia da ação ou idealismo ativo, ainda que com matizes próprios, como já vimos. Os artigos da GR, nesse sentido, incluem-se e rematam o que efetivamente pode ser chamado de sua “fase juvenil” e se distanciam radicalmente da fase posterior, ainda que permitam o início de seu salto para a maturidade teórica.

A segunda etapa, de meados de 43 a 47, se inicia com a Crítica de 43 e artigos imediatamente subseqüentes (Sobre a Questão Judaica, Para a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel – Introdução e Glosas Críticas ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social”) e estende-se até à Miséria da Filosofia. Os escritos de então representam uma primeira exposição de seu pensamento próprio, pois que incluem conquistas fundamentais que serão conservadas e desenvolvidas em sua obra posterior, como ele mesmo assumiu ao se referir a seu processo formativo. Portanto, é na redação da Crítica de 43 que identificamos o momento exato da inflexão de Marx em direção a sua fase marxiana, resultado do debate com as grandes correntes filosóficas de sua época, sua critica e superação radical, tendo por momentos altos as três grandes críticas que ali se iniciam: à especulação, à politicidade e à economia política. Mas isso já é assunto para outro trabalho.

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* Publicado originalmente na Revista da APG/PUC-SP, São Paulo, ano XI, n. 29, p. 193-217, set./2003.

** Mestre e doutoranda em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (com bolsa CNPq); tema da pesquisa: Marx e a Política: Em torno do Bonapartismo.

E-mail: vanianoeli@uol.com.br

[1] “Assim, em troca da lei aduaneira de 1818, que transformou a Prússia em região econômica unificada, a burguesia prussiana aceitou docilmente, em 1819, os decretos reacionários de Karlsbad, que marcaram o início de uma nova etapa de perseguição aos liberais. A criação da União Aduaneira Alemã (1834), que fez de toda a Alemanha uma zona de livre-câmbio, foi acompanhada pela adoção de seis decretos da Dieta da União, que tiveram como resultado reduzir ao mínimo a vida constitucional das províncias” (Lápine, 1983, p. 43).

[2] Foi em Lion, entre 1831-34, que por vez primeira os operários insurgiram-se de forma particular, ocorrendo também importantes batalhas operárias em Manchester e Paris. Em 1842 o movimento operário cartista inglês – considerado o primeiro movimento operário político de massas –, alcança o apogeu, realizando inclusive uma greve geral apoiada pelos sindicatos e de influência extensiva a várias regiões industriais do país e também da França e até da Alemanha.

[3] Lembre-se que a máquina a vapor havia sido inventada no início daquele século, seguida de várias outras inovações: o barco a vapor, a locomotiva, o telefone, a eletricidade, para citar apenas alguns.

[4] Não há uma identificação imediata entre razão e realidade para Hegel: primeiro, porque ele diferencia o real (processual) do existente (contingente); segundo, o pensamento deve governar a realidade, mas para tanto é necessário que esta também tenda para a razão. Para Hegel, “Na medida em que haja qualquer hiato entre o real e o potencial, o primeiro deve ser trabalhado e modificado até se ajustar à razão. /.../ ‘Real’ é o racionalizável (racional), e só este o é.” (Marcuse, 1988, pp. 23-4).

[5] Como, em 1837, nenhum tinha nem 30 anos, os ortodoxos os chamavam “jovens hegelianos”.

[6] Entre os jovens hegelianos havia um grupo fortemente marcado por posições liberais, que atribuía a situação de atraso da Alemanha à inexistência de poderosas correntes de pensamento liberal. A ausência de potentes movimentos sociais, de lutas de classes, de transformações sociais era criticada por esses autores e imputadas ao atraso do próprio povo, visto como incapaz de apreender os elementos emancipadores que atribuíam à filosofia. Assim, esses pensadores evoluíram para uma crítica à incapacidade das massas populares da Alemanha de incorporar as conquistas da filosofia hegeliana e passaram a acreditar que a transformação das condições sociais da Alemanha viria exclusivamente através dos movimentos de idéias. É a chamada crítica crítica, cujos expoentes são os irmãos Bauer, que Marx censurará acidamente depois. Observe-se, contudo, que praticamente todos os jovens hegelianos tendiam a uma concepção subjetivista da história e à crença na onipotência da crítica teórica, à força insubstituível do pensamento crítico, com o que subestimavam a ação prática.

[7] Seu primeiro artigo, Observações sobre as Novas Instruções Prussianas acerca da Censura, foi publicado só um ano depois de escrito, no início de 1842, na coletânea Inéditos Filosóficos (Anekdota), juntamente com outros “textos inflamáveis” que a censura impedira de ser publicados nos Anais Alemães.

[8] O anúncio da suspensão do jornal provoca uma enorme vaga de protestos e petições, inclusive por parte dos camponeses pobres dos cantões rurais – obviamente, os Junkers e a burguesia urbana da Renânia tinham uma visão diferente. Por dois meses ainda Marx permanecerá à frente do periódico, sob condições excepcionais de controle mesmo para um Estado policial como o era na época a Prússia, até que se demite sumariamente.

[9] Não se trata de referência ao inescapável “húmus cultural” (J. P. Netto) da época. Evidentemente, não se pode ignorar que Marx é herdeiro crítico de uma determinada tradição filosófica que vai do Renascimento (concepção do homem como o único ser aberto) ao neohegelianismo (a problemática do homem), passando pelo materialismo (a ruptura com a conduta especulativa). Contudo, notados seus limites históricos, Marx lhes faz a crítica, não simplesmente se apropria delas. Os limites desse trabalho não nos permitem nos delongar na questão. Ver Vaisman, 2001, pp. VII-VIII.